Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

se subordina ao ambiente pelo simples prazer de uma fiel reprodução. O coeficiente pessoal é ainda a penetração psicológica, a exposição admirável dos sentimentos, a interpretação lírica dos fatos, a própria fabulação que seria impossível há pouco tempo e ainda não é de todo verossímil. Quanto a essa última, havia uma dificuldade considerável a vencer: a influência de Freud. O assunto está tão ligado ao nome do professor vienense que escapar à influência dele parecia impossível. Quem quer que lesse apenas o resumo do romance era obrigado a imagina-lo construído segundo Freud, quer dizer, livro de gabinete, livro de tese, livro perdido. Ora, Mário safou-se da dificuldade muito bem. Se há trechos em que o romancista se encontra e coincide com o psicólogo é porque ambos se ocupam dos mesmos fenômenos e ainda que não existisse a psicanálise, de certo a história de Fraulein seria conduzida da mesma maneira. A grande novidade de Freud parece ter sido a observação metódica, simples e sem preconceitos de determinados fenômenos psicológicos. A psicanálise, fruto dessa observação, é portanto um lugar-comum e todo mundo pode ter a impressão de ir descobrindo nas teorias freudianas as suas próprias observações. Aliás, muito mais espantoso é encontrar quase as mesmas descobertas na obra de Proust, toda escrita num tempo em que Freud era desconhecido na França. E às pessoas pacientes e investigadoras podia se recomendar a aplicação do freudismo a obras de todas as épocas, pra ver quantas coincidências interessantes. Iríamos encontrar influências de Freud em Stendhal, em Racine, em Shakespeare, em todo mundo. Mesmo porque seria supor que só depois de Freud é que as coisas começaram a se passar de uma certa maneira, e é desnecessário observar que Freud não modificou o nosso mecanismo psicológico; o que modificou em alguns pontos foi o conhecimento que tínhamos dele. O romancista, que joga com fatos e não com teorias, nunca esteve impedido de notar por conta própria coisas que a ciência só mais tarde vai explicar. Isso tudo era pra dizer que o romance Mário de Andrade tem uma vida independente de qualquer conhecimento científico do autor. Onde este dá livre curso à sabedoria é nos comentários, nas digressões compridonas que levam a gente sem rumo por este mundo de deus. Porém dois trechos propriamente do romance traem francamente uma influência científica: a amamentação do garoto e o seqüestro da palavra “segredo”. O último, por mais que se disfarce, com jeito de quem não quer nada está aí por acaso, ficou positivamente com o rabo de fora. Teve um pedaço lá atrás onde eu falei de “penetração psicológica” e “exposição admirável dos sentimentos”. Entretanto, “Amar, Verbo Intransitivo” não é um romance de análise e Mário de Andrade não é um analista. Por isso mesmo aquelas impressões carecem da necessária justeza. O que por comodidade eu chamei de penetração psicológica é antes uma faculdade de adivinhar e compreender por simpatia, um poder de sentir pelos outros, misterioso como campainha que a gente aperta o botão na porta e ela vai tocar lá não sei onde. A exposição admirável dos sentimentos é admirável sim, mas não como exposição, que Mário de Andrade é até confuso, não só porque não pensa com bastante clareza como porque não se exprime com precisão. O pensamento dele não é direto, é circular. Vai fazendo rodeios e apertando aos poucos, como um laço. Ele anda à caça do que quer dizer. O estilo dele é um estilo de poeta. Mas como ele é um grande poeta, o estilo dele é um estilo de grande poeta. Cheio de imagens e metáforas. Num ritmo que é mais do que um simples ritmo poético: ritmo de música, ritmo de dança, ritmo maxixado. Mário de Andrade é desgraçado pra requebrar. E não pára nisso a musicalidade dele, (é talvez da musicalidade que vem um pouco a confusão) é possível descobrir mesmo na prosa de Mário um notável trabalho de orquestração. A sílaba é tratada como uma nota xxviii

musical e a escolha das palavras é feita sem perder de vista o seu valor sonoro. Tem harmonia, tem coros, tem todos os instrumentos no estilo sinfônico de Mário de Andrade. Nem tudo será rigorosamente orquestrado como as “Enfibraturas do Ipiranga” e “A Moral Cotidiana”, respectivamente da “Paulicéia Desvairada” e do “Primeiro Andar”. Mas embora atenuada há sempre um pouco de composição musical na composição literária desse bamba. Seria preciso insistir muito mais nas grandes qualidades do romance excelente que é “Amar, Verbo Intransitivo”. A impressão mais forte que ele deixa é a de um raro poder de traduzir a vida, de um lirismo profundo, de uma força poética que eu já disse ser única entre nós. Não chego a lamentar as digressões de que o autor evidentemente abusou: é pensar que se está conversando com ele e fica tudo direito. Porque as digressões em si são quase todas muito interessantes. Mas isso não impede que se o livro fosse menos diluído e se reduzisse ao essencial, Mário de Andrade teria escrito um romance que seria romance até debaixo d’água. xxix

se subordina ao ambiente pelo simples prazer <strong>de</strong> uma fiel reprodução. O coeficiente<br />

pessoal é ainda a penetração psicológica, a exposição admirável dos sentimentos, a<br />

interpretação lírica dos fatos, a própria fabulação que seria impossível há pouco t<strong>em</strong>po<br />

e ainda não é <strong>de</strong> todo verossímil.<br />

Quanto a essa última, havia uma dificulda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável a vencer: a<br />

influência <strong>de</strong> Freud. O assunto está tão ligado ao nome do professor vienense que<br />

escapar à influência <strong>de</strong>le parecia impossível. Qu<strong>em</strong> quer que lesse apenas o resumo do<br />

romance era obrigado a imagina-lo construído segundo Freud, quer dizer, livro <strong>de</strong><br />

gabinete, livro <strong>de</strong> tese, livro perdido. Ora, <strong>Mário</strong> safou-se da dificulda<strong>de</strong> muito b<strong>em</strong>.<br />

Se há trechos <strong>em</strong> que o romancista se encontra e coinci<strong>de</strong> com o psicólogo é porque<br />

ambos se ocupam dos mesmos fenômenos e ainda que não existisse a psicanálise, <strong>de</strong><br />

certo a história <strong>de</strong> Fraulein seria conduzida da mesma maneira. A gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Freud parece ter sido a observação metódica, simples e s<strong>em</strong> preconceitos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminados fenômenos psicológicos. A psicanálise, fruto <strong>de</strong>ssa observação, é<br />

portanto um lugar-comum e todo mundo po<strong>de</strong> ter a impressão <strong>de</strong> ir <strong>de</strong>scobrindo nas<br />

teorias freudianas as suas próprias observações. Aliás, muito mais espantoso é<br />

encontrar quase as mesmas <strong>de</strong>scobertas na obra <strong>de</strong> Proust, toda escrita num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que Freud era <strong>de</strong>sconhecido na França. E às pessoas pacientes e investigadoras podia<br />

se recomendar a aplicação do freudismo a obras <strong>de</strong> todas as épocas, pra ver quantas<br />

coincidências interessantes. Iríamos encontrar influências <strong>de</strong> Freud <strong>em</strong> Stendhal, <strong>em</strong><br />

Racine, <strong>em</strong> Shakespeare, <strong>em</strong> todo mundo. Mesmo porque seria supor que só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Freud é que as coisas começaram a se passar <strong>de</strong> uma certa maneira, e é <strong>de</strong>snecessário<br />

observar que Freud não modificou o nosso mecanismo psicológico; o que modificou<br />

<strong>em</strong> alguns pontos foi o conhecimento que tínhamos <strong>de</strong>le. O romancista, que joga com<br />

fatos e não com teorias, nunca esteve impedido <strong>de</strong> notar por conta própria coisas que a<br />

ciência só mais tar<strong>de</strong> vai explicar.<br />

Isso tudo era pra dizer que o romance <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> t<strong>em</strong> uma vida<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer conhecimento científico do autor. On<strong>de</strong> este dá livre curso à<br />

sabedoria é nos comentários, nas digressões compridonas que levam a gente s<strong>em</strong><br />

rumo por este mundo <strong>de</strong> <strong>de</strong>us. Porém dois trechos propriamente do romance tra<strong>em</strong><br />

francamente uma influência científica: a amamentação do garoto e o seqüestro da<br />

palavra “segredo”. O último, por mais que se disfarce, com jeito <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> não quer<br />

nada está aí por acaso, ficou positivamente com o rabo <strong>de</strong> fora.<br />

Teve um pedaço lá atrás on<strong>de</strong> eu falei <strong>de</strong> “penetração psicológica” e<br />

“exposição admirável dos sentimentos”. Entretanto, “Amar, Verbo Intransitivo” não é<br />

um romance <strong>de</strong> análise e <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> não é um analista. Por isso mesmo<br />

aquelas impressões carec<strong>em</strong> da necessária justeza. O que por comodida<strong>de</strong> eu chamei<br />

<strong>de</strong> penetração psicológica é antes uma faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> adivinhar e compreen<strong>de</strong>r por<br />

simpatia, um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sentir pelos outros, misterioso como campainha que a gente<br />

aperta o botão na porta e ela vai tocar lá não sei on<strong>de</strong>. A exposição admirável dos<br />

sentimentos é admirável sim, mas não como exposição, que <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> é até<br />

confuso, não só porque não pensa com bastante clareza como porque não se exprime<br />

com precisão. O pensamento <strong>de</strong>le não é direto, é circular. Vai fazendo ro<strong>de</strong>ios e<br />

apertando aos poucos, como um laço. Ele anda à caça do que quer dizer. O estilo <strong>de</strong>le<br />

é um estilo <strong>de</strong> poeta. Mas como ele é um gran<strong>de</strong> poeta, o estilo <strong>de</strong>le é um estilo <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> poeta. Cheio <strong>de</strong> imagens e metáforas. Num ritmo que é mais do que um<br />

simples ritmo poético: ritmo <strong>de</strong> música, ritmo <strong>de</strong> dança, ritmo maxixado. <strong>Mário</strong> <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong> é <strong>de</strong>sgraçado pra requebrar. E não pára nisso a musicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le, (é talvez<br />

da musicalida<strong>de</strong> que v<strong>em</strong> um pouco a confusão) é possível <strong>de</strong>scobrir mesmo na prosa<br />

<strong>de</strong> <strong>Mário</strong> um notável trabalho <strong>de</strong> orquestração. A sílaba é tratada como uma nota<br />

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