Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Homens & Obras<br />
A Escrava que não é Isaura...<br />
Sincerida<strong>de</strong> <strong>em</strong> arte<br />
Todos se mov<strong>em</strong> ao redor da obra <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> por simples interesse<br />
do grotesco, ou mera curiosida<strong>de</strong> do malsão. Os monstros também se estimam e até se<br />
pagam por divertidos. Os livros <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> são pequenas monstruosida<strong>de</strong>s literárias,<br />
que divert<strong>em</strong>, quando não interessam. Não chegam a indignar. Não consegu<strong>em</strong> irritar.<br />
Causam um tal ou qual prazer displicente, um como tédio arejado <strong>de</strong> esquisitice. O<br />
que às vezes nos irrita são os seus apologistas, os seus críticos, os seus imitadores.<br />
Vão à missa do <strong>Mário</strong> por amor ao seu êxito aparente, não pelas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua<br />
poesia negativa. Pois o que ele hesita <strong>em</strong> chamar <strong>de</strong> “poesia”, ou melhor, o que ele até<br />
agora t<strong>em</strong> produzido como “poesia”, não revela, no melhor critério imparcial,<br />
nenhuma das qualida<strong>de</strong>s que esse gênero comporta: n<strong>em</strong> sincerida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong><br />
espotaneida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> exaltação, n<strong>em</strong> ternura, n<strong>em</strong> entusiasmo, n<strong>em</strong> melancolia, n<strong>em</strong><br />
amor, n<strong>em</strong> ódio, n<strong>em</strong> encanto, n<strong>em</strong> enlevo, n<strong>em</strong> êxtase, - nada que se pareça ao que,<br />
<strong>em</strong> todas as obras <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos e <strong>em</strong> muitas obras do nosso próprio t<strong>em</strong>po, se<br />
reconhece como poesia. É tudo um esforço <strong>de</strong> ridículo, <strong>de</strong> patusco, <strong>de</strong> paródia, <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>gradação, fatores evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente inimigos da verda<strong>de</strong>ira poesia, no opinar <strong>de</strong> todos<br />
os estetas. T<strong>em</strong> escrito tumultuariamente o conto, o romance, a sátira, a crítica<br />
irreverente, sobretudo musical, <strong>de</strong> que lhe v<strong>em</strong> a nomeada <strong>de</strong> conhecedor, e até<br />
promete incursão pela gramática, on<strong>de</strong>, provavelmente, tentará codicilhar, à sua<br />
maneira <strong>de</strong>formista, a língua dos tropeiros <strong>de</strong> café e as saragalhadas lingüistas da<br />
gandaia. “Gramatiquinha da Fala Brasileira”, tal é o título do futuro e prometido<br />
“<strong>de</strong>svairismo” gramatical. De tudo resulta um lamentável <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> energia, que<br />
não acaba <strong>em</strong> fadiga, pregoada, aliás, como fonte <strong>de</strong> sua arte, no “Escrava que não é<br />
Isaura”. Obra <strong>de</strong> tomo tal, s<strong>em</strong> a força cativante da sincerida<strong>de</strong>, não é para ser imitada,<br />
conquanto haja atraído sob o seu autor as atenções do momento. <strong>Mário</strong>, <strong>em</strong> vários<br />
pontos, assegura, à maneira <strong>de</strong> Marinette a sua “absoluta sincerida<strong>de</strong>”. Esse refrão<br />
porém, <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> absoluta, é uma atitu<strong>de</strong> estratégica infeliz. Porque, à proporção<br />
que o l<strong>em</strong>os <strong>em</strong> qualquer dos seus livros, no “Escrava”, as auto-objeções saltam<br />
contra afirmações, umas, conscient<strong>em</strong>ente falsas, infundadas e incompletas, outras,<br />
difusas quase todas. O autor diverte-se a discutir consigo mesmo. Avança postulados<br />
no texto, que terão fatalmente <strong>de</strong> ser retificados nas notas ampliativas do fim da<br />
página, ou do livro. Em prefácios, posfácios, notas, chamadas, parênteses, apêndices,<br />
títulos, ninguém lhe leva às lâmpas. Ninguém, por s<strong>em</strong>elhantes fugas do pensamento,<br />
que nunca se afirma, ou conclui, po<strong>de</strong>rá surpreen<strong>de</strong>r o autor <strong>em</strong> sua sincerida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
inteligência e sentimento. Assim, por <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> brincar, a título <strong>de</strong> disposição<br />
congênita do humorismo, contrafaz a sua arte <strong>de</strong> escrever, afirmando e logo negando,<br />
construindo e logo <strong>de</strong>sfazendo, estabelecendo e logo <strong>de</strong>sestabelecendo, opinando e<br />
logo contestando, confundindo e logo explicando, numa instabilida<strong>de</strong> mental que<br />
<strong>de</strong>sorienta por melhor organizado o espírito do compreensivo prevenido contra as<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns tantas vezes procuradas dos efetistas <strong>de</strong> talento. <strong>Mário</strong> po<strong>de</strong> ser,<br />
convenhamos, sincero <strong>em</strong> arte. Mas perturba a sincerida<strong>de</strong> do leitor com a sua<br />
“sincerida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> autor. Prova <strong>de</strong> ginástica mental atiladíssima. Sobretudo, pela<br />
corag<strong>em</strong> e pelo engenho <strong>de</strong> a fazer valer, com tamanho ardil, que o leitor fica a<br />
duvidar não já da “sincerida<strong>de</strong>” do autor, mas da sua própria. “Serelepe”, <strong>de</strong> fato,<br />
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