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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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primitivos foram totalmente diversos. A criança é estimulada pelos pais, pelos<br />

parentes. O hom<strong>em</strong>-feito pré-histórico, ao lambuzar <strong>de</strong> colorantes vermelhos ou<br />

pretos o rochedo, e ao cavar nas pedras, o estímulo que sofreu foi o da imitação dos<br />

seus companheiros. De sorte que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, a gente percebe nas obras ficadas<br />

uma tradição, uma orientação unida, um estilo, coisas que a criança não t<strong>em</strong>.<br />

De resto, todos os paralelismos (e não são tão numerosos assim...), todas as<br />

coincidências se baseiam, a meu ver, numa grave confusão nossa. Confusão que torna<br />

o ponto-<strong>de</strong>-partida <strong>de</strong> quaisquer comparações fundamentalmente errado. Nós falamos<br />

<strong>em</strong> “arte”, <strong>em</strong> “manifestação artística”, ao nos referirmos ao <strong>de</strong>senho ou à cantarola<br />

da criança pré-escolar. Com que direito ?<br />

A mim me parece que é confundir alhos com bugalhos. O <strong>de</strong>senho infantil préescolar<br />

é manifestação já artística ? De forma alguma. Não se trata especialmente do<br />

gasto <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> supérflua, simplesmente porque, afora das necessida<strong>de</strong>s<br />

fisiológicas, comer, dormir, toda ativida<strong>de</strong> infantil é igualmente supérflua. Ou melhor,<br />

são todas elas a mesma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir, <strong>de</strong> simplesmente agir. Tudo na criança se<br />

confun<strong>de</strong> <strong>em</strong> “jogo”, no sentido spenceriano da palavra. De forma que, por este lado,<br />

não é possível qualificar-se <strong>de</strong> “ativida<strong>de</strong> artística” o <strong>de</strong>senho infantil pré-escolar.<br />

E <strong>de</strong> fato: se analisarmos esta ativida<strong>de</strong> grafomaníaca da criança pré-escolar,<br />

logo ela se caracteriza, como b<strong>em</strong> salientou o próprio Luquet, por ser meramente uma<br />

manifestação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> representar figuras. O que a criança exercita, no seu<br />

<strong>de</strong>senho, não é <strong>de</strong> forma alguma o <strong>de</strong>senho, mas seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> representação<br />

hieroglífica. A sua ativida<strong>de</strong> gráfica está muito mais, ou mesmo exclusivamente,<br />

<strong>de</strong>ntro do domínio da linguística, que não no terreno da arte. George Rouma já o<br />

salientou no seu bonito livro sobre “A Linguag<strong>em</strong> Gráfica da Criança”.<br />

Qual o prazer, ou melhor, qual a vitória obtida pela criança pré-escolar, com<br />

seus <strong>de</strong>senhos? Ninguém até agora, que eu saiba, não se l<strong>em</strong>brou <strong>de</strong> perscrutar se se<br />

tratava exatamente <strong>de</strong> um prazer estético. Ora, justamente o que se percebe, numa<br />

análise rápida, é que se trata <strong>de</strong> uma vitória estética sobre o material usado e sobre a<br />

expressão artística, mas simplesmente <strong>de</strong> um prazer interessado, <strong>de</strong> natureza<br />

lingüística: a posse comunicativa ou compreensiva <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong> do mundo<br />

exterior. Vejamos :<br />

Antes <strong>de</strong> mais nada, a criança pré-escolar é antitécnica. Quero dizer, ela não<br />

t<strong>em</strong> o menor interesse n<strong>em</strong> pelo material a respeitar, n<strong>em</strong> pela aquisição progressiva<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado processo <strong>de</strong> representação. Além disso ela é <strong>de</strong>sesperadoramente<br />

ocasional. A mesma criança que faz agora um <strong>de</strong>senho esteticamente ótimo ou<br />

interessantísssimo, como representação, logo <strong>de</strong>pois fará outro <strong>de</strong>senho péssimo,<br />

<strong>de</strong>testável sob qualquer ponto-<strong>de</strong>-vista exclusivamente artístico. Finalmente a criança<br />

é, repisando, meramente imitativa. Ela é perfeitamente indiferente à maior ou menor<br />

beleza dos seus <strong>de</strong>senhos. O <strong>de</strong>sgosto que manifesta diante dum <strong>de</strong>senho que fez<br />

<strong>de</strong>riva apenas da maior ou menor parecença <strong>de</strong> reprodução, nunca da beleza.<br />

Ora, os outros dois primitivos, tanto o pré-histórico como o hom<strong>em</strong> natural, se<br />

manifestam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo técnicos, estilizadores e anti-imitativos. Ninguém negará<br />

nocionamento da técnica, pesquisas <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> exclusivamente técnica,<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> técnicas escolhidas, a estes dois primitivos. Basta lhes estudar as<br />

obras e a evolução. Por estilizador, entendo mais aqui, a escolha tradicional <strong>de</strong>ste ou<br />

daquele estilo, coisa que caracteriza tão b<strong>em</strong> Altamira, as estatuetas f<strong>em</strong>ininas do<br />

Aurinhaciano, ou o final <strong>de</strong> pedra lascada no sul da Espanha, como também<br />

caracteriza Marajó, o bronze do Benin, ou as estelas totêmicas da América do Norte.<br />

Há estilo, há preferência por um estilo <strong>de</strong>terminado; e com tal clareza, que<br />

distinguir<strong>em</strong>os esses primitivos uns <strong>de</strong> outros, com a mesma facilida<strong>de</strong> com que<br />

xv

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