26.02.2014 Views

Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

doutrina, confesso que não me seduz muito, apesar da sua comodida<strong>de</strong>. Que o estágio<br />

mental infantil seja primário, não t<strong>em</strong> dúvida, porém essa primarida<strong>de</strong> só existe <strong>em</strong><br />

relação ao que essa criança virá a ser quando crescida. Quer seja pelo seu contato<br />

quotidiano conosco, ou por outra razão, <strong>de</strong> hereditarieda<strong>de</strong> talvez, o certo é que <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

logo a mentalida<strong>de</strong> da criança, por mais livre e imprevisível, vai se exercendo <strong>de</strong>ntro<br />

da reflexão lógica. Nós a obrigamos a isso, não só pelas nossas proibições, que<br />

<strong>de</strong>rivam todas da lógica. Pouco importa que a proibição <strong>de</strong> um pai mal educado não<br />

seja logicamente lógica: ela será errada, será maldosa, será fruto <strong>de</strong> má educação, mas<br />

se coloca s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>ntro do domínio da reflexão lógica. Assim, se o estágio mental da<br />

criança é incontestavelmente primário, ele o é especialmente por ignorância, por falta<br />

<strong>de</strong> conhecimentos adquiridos. Mas os disparates infantis têm outra natureza que a<br />

maneira <strong>de</strong> raciocinar dos dois outros primitivos. Não <strong>de</strong>rivam, <strong>de</strong> forma alguma, <strong>de</strong><br />

uma mentalida<strong>de</strong> mística completamente manejada por interesses sociais, mas <strong>de</strong><br />

paixões e interesses individuais, <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> até racionalista, dominada pelo<br />

maior materialismo, pelo maior agnosticismo.<br />

Aceitado o epíteto <strong>de</strong> “primitivo” para <strong>de</strong>signar a criança, t<strong>em</strong>os s<strong>em</strong>pre que<br />

nos precaver contra ele, para que a observação da criança não nos leve a concluir<br />

sobre os outros primitivos – como tão freqüent<strong>em</strong>ente acontece. O <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> nada<br />

sabermos ao certo sobre o comportamento e a mentalida<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> pré-hitórico<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Karl Lamprecht t<strong>em</strong> levado muitos autores a explicá-lo pela comparação da<br />

criança. O estudo <strong>de</strong> Luquet ( L’Art Primitif ) é s<strong>em</strong> dúvida dos mais percucientes<br />

que se t<strong>em</strong> escrito nesse sentido. Mas não chega a me convencer. Ele prova<br />

incontestavelmente que existe um tal ou qual paralelismo <strong>de</strong> comportamento entre a<br />

criança e o pré-histórico, mas disso, <strong>de</strong>sse paralelismo, triar-se conclusões sobre o<br />

caçador <strong>de</strong> renas, me parece um enorme abuso.<br />

Antes <strong>de</strong> mais nada, se paralelismo existe, paralelismo não significa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Basta l<strong>em</strong>brar que há um paralelismo b<strong>em</strong> forte <strong>de</strong> medidas socialistas<br />

entre o comunismo russo e o fascismo italiano, s<strong>em</strong> que haja entre estes dois sist<strong>em</strong>as<br />

sociais a menor i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Há um vasto paralelismo <strong>de</strong> ganhar as alturas, entre o<br />

Gótico e o arranha-céu cont<strong>em</strong>porâneo, mas as causas e os resultados são inteiramente<br />

outros. De resto, justamente <strong>em</strong> arte, a distinção psicológica entre paralelismo e<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se impõe preliminarmente, até grosseiramente. Porque os autores e escolas<br />

se inspiram com muita freqüência no passado, surg<strong>em</strong> os paralelismos que repõ<strong>em</strong> na<br />

ord<strong>em</strong> do dia ora o Egípcio ora o Grego, s<strong>em</strong> que haja mais a menor i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

psicológica entre o novo amador e o velho objeto amado.<br />

Se paralelismo existe entre a criança e o pré-histórico, ele não é suficiente para<br />

concluirmos nada sobre o hom<strong>em</strong> da caverna. Este e a criança, preliminarmente,<br />

sofr<strong>em</strong> influências <strong>de</strong> tal forma diversas (que o próprio Luquet reconhece, mas<br />

repele), que paralelismos <strong>de</strong> resultado sequer implicam paralelismo <strong>de</strong><br />

comportamento, quanto mais i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A criança é her<strong>de</strong>ira, é contagiada, é<br />

estimulada. Ela traz na hereditarieda<strong>de</strong> um mando tradicional que o hom<strong>em</strong><br />

aurinhaciano não tinha quando a primeira vez se dispôs a esculpir o corpo<br />

eroticamente <strong>de</strong>formado da fêmea, ou a pintar no rochedo o perfil dos bisontes. A<br />

criança sofre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que abre os olhos e os ouvidos, o contágio artístico dos quadros,<br />

das oleogravuras, das revistas e do rádio do pai. Se ela não canta logo tonalmente n<strong>em</strong><br />

pinta naturalisticamente, a sua incapacida<strong>de</strong> técnica, a sua ignorância técnica intervêm<br />

tão violentamente no probl<strong>em</strong>a, que não permit<strong>em</strong> absolutamente i<strong>de</strong>ntificá-la ao préhistórico.<br />

Porque o hom<strong>em</strong> aurinhaciano se orientou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo pro naturalismo e nos<br />

<strong>de</strong>ixou obras tão tecnicamente feitas, tão esteticamente dirigidas como a Vênus <strong>de</strong><br />

Willendorf, por ex<strong>em</strong>plo. E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo os estímulos sofridos por um e outro<br />

xiv

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!