Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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E foi da permanência neste que ele tirou o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> beleza, bastante tímido, da suas<br />
Madonas. Ao passo que Giotto tirou a pureza dos seus santos da própria rigeza do<br />
material E é dos caracteres góticos da sua plástica, da originalida<strong>de</strong> inconfundível e<br />
incomparável da sua cont<strong>em</strong>plação do mundo, que ele se elevou ao sublime. Diante<br />
do Giotto a gente abaixa a voz s<strong>em</strong> querer. Foi um gênio, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer<br />
relação histórica e apesar da história. O parnasiano poeta Osório Duque Estrada, se<br />
não me engano foi ele sim, <strong>de</strong>clarou por escrito uma vez, que, por causa do <strong>de</strong>sleixo<br />
<strong>de</strong> fatura, não assinaria um só dos verso <strong>de</strong> Camões. Eis que teríamos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />
Camões um primitivo <strong>em</strong> relação a Osório Duque Estrada...<br />
A palavra “primitivo” t<strong>em</strong> sido tecnicamente aplicada para <strong>de</strong>signar um<br />
estágio mental humano. Salta aos olhos, diante <strong>de</strong>sta terminologia técnica,<br />
universalmente aceita, a levianda<strong>de</strong>, o confusionismo <strong>de</strong> outro conceito dado <strong>em</strong><br />
nossos dias à palavra, <strong>de</strong>signando com ela as orientações estéticas que usavam<br />
processos primários <strong>de</strong> expressão artística, encontrados nos povos primitivos. Não há<br />
liberda<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> legitimar tal terminologia, que leva ao <strong>em</strong>prego da mesma palavra<br />
pra <strong>de</strong>signar coisa tão essencialmente diversas. Os que, <strong>em</strong> suas pesquisas estéticas,<br />
aceitam conscient<strong>em</strong>ente processos primários <strong>de</strong> expressão, intencionalmente<br />
buscando efeitos <strong>de</strong>terminados, são um fenômeno <strong>de</strong> supercultura, ocasionado pela<br />
fadiga, pela ânsia do novo ou pelo pragmatismo. Não se trata <strong>de</strong> forma alguma <strong>de</strong> um<br />
estágio, mas <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> mental. Os primeiros cubistas, por 1908 e 9, que<br />
adotaram nas suas obras as diferenças e os caracteres da arte negra, chamar-lhes<br />
“primitivos” por isso, é da maior levianda<strong>de</strong>. Nesta nossa terra então, até os críticos<br />
mais importantes abusaram do nosso <strong>de</strong>spoliciamento intelectual, chamando<br />
“primitivos” aos que buscavam no dizer popular, no lendário indígena ou na cultura<br />
material das nossas raças o jeito <strong>de</strong> nacionalizar as suas obras. Ainda aqui tratava-se<br />
<strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> e não <strong>de</strong> um estágio. Era um caso apenas <strong>de</strong> pragmatismo<br />
nacionalizador, muito comum. E que v<strong>em</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po velhos. “Torniamo all’antico” já<br />
aconselhava o gran<strong>de</strong> Verdi. E se uns, como Raul Lino retomando <strong>em</strong> Portugal as<br />
tradições da arquitetura lusa, buscam reachar na fonte os caracteres nacionais<br />
perdidos, outros, como Tarsila assumindo nos seus quadros a responsabilida<strong>de</strong> dos<br />
nossos baús coloridos, buscam adquirir as fontes nacionais insuspeitadas. Fenômenos<br />
<strong>de</strong> afirmação ou repurificação nacional, chamar-lhes “primitivos”, dando à palavra um<br />
valor pejorativo (como se os primitivos foss<strong>em</strong> <strong>de</strong>sprezíveis pelo estágio mental <strong>em</strong><br />
que viv<strong>em</strong>) é uma levianda<strong>de</strong> confusionista, indigna <strong>de</strong> qualquer crítica séria.<br />
A palavra ainda é <strong>em</strong>pregada pra <strong>de</strong>signar os outros mais legítimos primitivos:<br />
o hom<strong>em</strong> pré-histórico, o hom<strong>em</strong> das civilizações naturais e a criança. Agora sim,<br />
estamos diante <strong>de</strong> três conceitos técnicos b<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>fensáveis. O hom<strong>em</strong> préhistórico<br />
t<strong>em</strong> direito a ser conceituado pela palavra, não só pelo aspecto cronológico<br />
<strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manifestação humana sobre a terra, como porque, pelas<br />
manifestações que nos ficaram <strong>de</strong>le, se <strong>de</strong>duz um estágio mental geralmente primário.<br />
S<strong>em</strong>pre é certo, porém, que o conceito se torna bastante abusivo, quando inclui os<br />
<strong>de</strong>senhos perfeitíssimos do Madaleniano e programas arquitetônicos tão<br />
admiravelmente equilibrados e monumentais como o <strong>de</strong> Stonehenge.<br />
Designar-se o hom<strong>em</strong> natural por “primitivo” será talvez o conceito mais<br />
justo. Já agora se trata <strong>de</strong> um real estágio mental primário, bastante diverso da nossa<br />
maneira exclusivamente... intelectual <strong>de</strong> pensar. Uma verda<strong>de</strong>ira mentalida<strong>de</strong> paralógica<br />
– o “pré-lógico” <strong>de</strong> Levy-Bruhl.<br />
A criança será um primitivo, se quiser<strong>em</strong>. É comum afirmar-se que cada ser<br />
realiza <strong>em</strong> si o ciclo mental completo da humanida<strong>de</strong>. Neste caso, a criança estaria <strong>em</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estágio mental com o primitivo pré-histórico e o hom<strong>em</strong> natural. Esta<br />
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