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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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Primitivos<br />

A palavra “primitivo”, na crítica <strong>de</strong> arte, v<strong>em</strong> sendo aplicada <strong>em</strong> conceitos<br />

diversos, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre legítimos. Essa diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceituação leva a confusões<br />

<strong>de</strong>feituosíssimas, contra as quais t<strong>em</strong>os que nos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r.<br />

Um <strong>de</strong>sses conceitos, aliás, já está completamente <strong>de</strong>sautorizado <strong>em</strong> nossos<br />

dias, graças à revolta <strong>de</strong> alguns historiadores e críticos. Me refiro ao conceito do<br />

primitivo relativo-histórico, divulgado <strong>em</strong> parte pelo naturalismo evolucionista do<br />

século passado. Tal escola ou tal artista eram consi<strong>de</strong>rados primitivos <strong>em</strong> relação a<br />

uma outra manifestação artística vinda <strong>de</strong>pois. Neste sentido é que os Egípcios já<br />

foram consi<strong>de</strong>rados “primitivos” <strong>em</strong> relação aos Gregos, e poucos não terão visto <strong>em</strong><br />

histórias <strong>de</strong> arte mais ou menos antiquadas <strong>de</strong>signar-se Giotto e Duccio como<br />

“primitivos” do Renascimento...<br />

Não é possível a gente imaginar conceito mais confusionista. Na verda<strong>de</strong> cada<br />

época, cada povo, cada indivíduo genial realiza a total possibilida<strong>de</strong> da sua concepção<br />

estética e da sua expressão. Diminuir o Egípcio, porque nas suas artes maiores<br />

<strong>de</strong>sprezou o realismo, censurar os Bizantinos pela ausência da perspectiva, da mesma<br />

forma que criticar tal romancista brasileiro porque é regional, porque lhe falta o senso<br />

do universal humano, me parece simplesmente uma ingenuida<strong>de</strong> crítica. É uma crítica<br />

feita <strong>em</strong> relação cronológica ao indivíduo que se supõe criticar, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> nascida da<br />

obra criticada.<br />

Da mesma forma, a ausência <strong>de</strong> tal processo técnico ou <strong>de</strong> tal matéria não<br />

po<strong>de</strong>rá implicar jamais uma relação <strong>de</strong> primitivismo. De que serviria a cadência <strong>de</strong><br />

dominante para o canto gregoriano ? <strong>de</strong> que serviriam óleo pras “Núpcias<br />

Aldobrandinas” e o cimento armado pro Partenão? ... On<strong>de</strong> a crítica terá <strong>de</strong> exercerse,<br />

neste caso, é nos que faz<strong>em</strong> com cimento armado os seus pífios partenões. Certas<br />

ausências representam apenas diferença e caráter. E se caráter não é uma relação<br />

histórica, mas participa da essência mesma da obra-<strong>de</strong>-arte, diferença não implica, só<br />

por si, nenhuma noção relativa <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> ou sequer <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong>.<br />

O caso <strong>de</strong> Giotto é característico <strong>de</strong>sse caráter e <strong>de</strong>ssa diferença. Giotto, amigo<br />

<strong>de</strong> Dante, por certo conhecedor dos poetas sicilianos, traz incontestavelmente nas suas<br />

obras vários indícios da Renascença. Pesquisas novas <strong>de</strong> composição, um <strong>de</strong>senho<br />

mais obediente à observação, uma sensibilida<strong>de</strong> expressiva b<strong>em</strong> pessoal, mais<br />

con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, mais amável. As ilações <strong>de</strong>ssas qualida<strong>de</strong>, muito mais que a<br />

evolução <strong>de</strong>las, dariam <strong>em</strong> Rafael ou no Ticiano. Giotto seria por isso um “primitivo”<br />

<strong>em</strong> relação a Rafael ? O caso é inteiramente outro. Não quero comparar agora os dois<br />

pintores, salientar o que Giotto revelou genialmente quanto a equilíbrio da<br />

composição e forças rítmicas da plástica, el<strong>em</strong>entos que Rafael ajudou a <strong>de</strong>struir ou<br />

ignorou. Por sua vez Rafael terá outras diferenças e outro caráter... o essencial para a<br />

compreensão <strong>de</strong> Giotto é percebê-lo <strong>em</strong> seu caráter místico, no seu anti-retratismo<br />

popularesco, na monumentalida<strong>de</strong> gótica, na sua amabilida<strong>de</strong> diferente. Giotto e<br />

Rafael são igualmente amáveis, mas a amabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rafael é mais perceptível. É<br />

que a amabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Giotto <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma compreensão mais experiente, mais<br />

con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, mais incapaz <strong>de</strong> pecar. A <strong>de</strong> Rafael rescen<strong>de</strong> toda ao Diabo-Mundo.<br />

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