Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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escabrosos, lutando contra fortes bestas e vis dragões que almejam subir do abismo à terra e seus habitantes destruir. Daniel, cap.7; volve em turba, o sangue batalhado; triunfou; o céu e o menino do Santo Terçado eis aí, oh humanidade, o teu rei é um grande guerreiro e não o maior covarde!”. Este aliás um dos poucos passos em que não surgem terríveis erros de concordância, porque o Príncipe do Fogo embora pregue a concórdia é o mais feroz inimigo da concordância gramatical que nunca encontrei nas minhas viagens pela literatura popular. Mas o Príncipe do Fogo era bastante lido, principalmente do Apocalipse que o deslumbrou e cuja mística imaginosa o inspira. Assim transportado para grandes visões assombradas, o poeta criou um livro muito obscuro que é difícil interpretar claramente em seus princípios, direi... genealógicos. Logo de início, numa linguagem abracadabrantemente contraditória, anunciando a morte dos deuses (“certifico-vos que estão dissolvidos e bem assim, toda e qualquer espécie de ilusões que denominam deuses”) o Príncipe do Fogo apresenta os seus títulos nesta notável enumeração: “Eu o altíssimo Deus-Vivo, o Onipotente Santo Criador dos universos reunidos, o real Príncipe dos Príncipes Oriente, o legítimo herdeiro da real Coroa do Eterno Reino por cláusula expressa em Direito eterno no sacrossanto Trono da Vida, o Santo-Vivo do tronco nascido, o gênio da puridade denominado Santo dos santos, a pedra viva do monte santo caída, o Capitão de Armas, o General de Batalha, em missão à terra. Santo Guerreiro e Defensor Perpétuo do Santuário do Tabernáculo no Testemunho que há no Céu; o que testifico e dou testemunho desta grande Sentença” (sic) . No decorrer das “Revelações” a gente consegue perceber mais claramente que o Príncipe do Fogo é filho do “Santo Tabernáculo do Testemunho que há no Céu”, numa fácil imitação do dualismo deus-padre e deus-filho, de que o Espírito Santo foi esquecido, nunca saberei por que. Mas o que o Príncipe não esquece é de maldar das imagens neste trecho de que , por não estar fazendo ciência, corrijo os erros de concordância: “Ouvi-me oh almas viventes, falou o Anjo da Puridade aos mortais: não prostrai-vos ante imagens de ouro, prata, cobre, pedra, madeira ou figuras de papéis; ouvi-me, oh meus filhos, estes ídolos só servem de auxílio à maldição!”. Mas as orações católicas também auxiliam o poeta na construção de sua santidade. O Credo, a que chama “Credo Forte do Santo Vivo”, o Padre Nosso, o Ato de Contrição e a Salve Rainha surgem, detestavelmente deformados de sua sublime perfeição. Estas descabidas não impedem, porém, que haja verdadeiras belezas de poesia mística no livro. Eis por exemplo, um notável trecho em que os arcanjos fiéis exaltam o Príncipe do Fogo: “Meu Filho... percutindo lágrimas de imenso prazer na meiga encarnação da maior infância, és a expressão mais pura de nobreza na designação virtuosa de um mistério divino; o grão imã da ingênua vontade perfeita habita no encanto juvenil da tua humilde inocência, oh nato infinito do gorjeio primeiro, acatai os murmúrios de saudades na nova do destino”! E termina dizendo ao vaidoso Príncipe: “És bendito desde o teu início até a tua última extensão!” Mas o próprio Príncipe sabe se exaltar com facilidade vibrante: “Então a voz jovial do Filho do Fogo, atuando as águas, disse: Eu, o justo obscuro, o equilíbrio dos planetas, o entendimento da carne, o sangue da humanidade, o da vida a pureza e da alma o alívio único viajo em além mundo, volvo aqui nesse instante, habito em tronco na árvore nascida no nascente das águas vivas... etc”. Mas também sabe se entregar às malícias da auto-punição, como neste passo dramático: “... não sou eu, oh Flor do Mal, o Senhor dos mundos; este Trono não é meu, este arco-íris não me pertence, o jaspe não vê, a sardônia não tem olhos, estas vozes não são minhas, estes relâmpagos não são meus, estes trovões não são meu poder, estes espíritos não me querem, este x
mar não me vê, estas criaturas viventes não me conhecem, estes anciões não são meus servos, a terra não é minha, o Céu não me foi dado, o Livro Selado não é minha herança, os anjos fazem o que outro ordena, as trombetas tocam sem o meu bramido, as pragas não são enviadas por mim, o incenso das salvas não é meu, o Santuário fecha sem eu entrar, eu não sou o Santo Criador”! Considero trechos, como estes citados, verdadeiramente notáveis, uma exaltação mística vibrante, uma eloquência sentida, criadora de ótimos ritmos e sonoridades, uma imaginação mirífica em que se misturam práticas, ritos de várias religiões (o espiritismo também não é esquecido), produzindo combinações novas, imagens esplêndidas, um sentido muitas vezes inédito da adjetivação. Aquela “meiga encarnação”, aquela “ingênua vontade perfeita” não são exemplos únicos desse poder inédito de adjetivação. Surgem inesperadamente um “harmonioso louvor”, um “garboso testemunho”; e o Príncipe do Fogo às vezes penetra em “noites confusas”, mas tudo vence com a sua “erudição deliciosa”. E é com seu poder e a sua verdadeiramente deliciosa... erudição que o Príncipe constrói a maioria de suas sentenças, levado por um verdadeiro amor do próximo, a tudo e todos prometendo glórias e felicidade. Dirigindo-se à terra ele promete: “darte-ei dobrados bens, usarei de misericórdia com os habitantes teus, encher-te-ei de magníficos jardins”! Aos animais: “Multiplicar-vos-ei o número dos mansos, acrescentar-vos-ei as vossas forças, diminuir-vos-ei os maus, suscitar-vos-ei a alegria dos campos, enriquecer-vos-ei as crias das veredas”! Não é magnífico? E só dando benefícios, aos espaços, às pedras fiéis, às nuvens fiéis, às almas viventes, às ilhas, aos quatro ventos, aos vegetais, tem este passo da maior beleza poética, dirigido aos mares: “suscitar-vos-ei grandes peixes mansos, lindos em escamas, legar-vos-ei ilhas estacionárias para os pescadores teus, usarei de clemência com os teus navegantes, dar-vos-ei inumeráveis marinhas de sal!” Está claro que escolhi as passagens melhores para apresentação. Livro irregular, desagradável pelos defeitos gramáticos violentos, mas incontestavelmente produzido com grande força lírica. Apesar das reminiscências de leituras evoca por momentos a eloqüência apocalíptica de São João, em outros, pelo inesperado sonhador das visões, lembra Lautreamont. Mesmo na literatura culta brasileira, não sei de páginas mais belas, mais fortes que estas revelações do Príncipe do Fogo. xi
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escabrosos, lutando contra fortes bestas e vis dragões que almejam subir do abismo à<br />
terra e seus habitantes <strong>de</strong>struir. Daniel, cap.7; volve <strong>em</strong> turba, o sangue batalhado;<br />
triunfou; o céu e o menino do Santo Terçado eis aí, oh humanida<strong>de</strong>, o teu rei é um<br />
gran<strong>de</strong> guerreiro e não o maior covar<strong>de</strong>!”.<br />
Este aliás um dos poucos passos <strong>em</strong> que não surg<strong>em</strong> terríveis erros <strong>de</strong><br />
concordância, porque o Príncipe do Fogo <strong>em</strong>bora pregue a concórdia é o mais feroz<br />
inimigo da concordância gramatical que nunca encontrei nas minhas viagens pela<br />
literatura popular. Mas o Príncipe do Fogo era bastante lido, principalmente do<br />
Apocalipse que o <strong>de</strong>slumbrou e cuja mística imaginosa o inspira. Assim transportado<br />
para gran<strong>de</strong>s visões assombradas, o poeta criou um livro muito obscuro que é difícil<br />
interpretar claramente <strong>em</strong> seus princípios, direi... genealógicos. Logo <strong>de</strong> início, numa<br />
linguag<strong>em</strong> abracadabrant<strong>em</strong>ente contraditória, anunciando a morte dos <strong>de</strong>uses<br />
(“certifico-vos que estão dissolvidos e b<strong>em</strong> assim, toda e qualquer espécie <strong>de</strong> ilusões<br />
que <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong>uses”) o Príncipe do Fogo apresenta os seus títulos nesta notável<br />
enumeração: “Eu o altíssimo Deus-Vivo, o Onipotente Santo Criador dos universos<br />
reunidos, o real Príncipe dos Príncipes Oriente, o legítimo her<strong>de</strong>iro da real Coroa do<br />
Eterno Reino por cláusula expressa <strong>em</strong> Direito eterno no sacrossanto Trono da Vida, o<br />
Santo-Vivo do tronco nascido, o gênio da purida<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominado Santo dos santos, a<br />
pedra viva do monte santo caída, o Capitão <strong>de</strong> Armas, o General <strong>de</strong> Batalha, <strong>em</strong><br />
missão à terra. Santo Guerreiro e Defensor Perpétuo do Santuário do Tabernáculo no<br />
Test<strong>em</strong>unho que há no Céu; o que testifico e dou test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong> Sentença”<br />
(sic) .<br />
No <strong>de</strong>correr das “Revelações” a gente consegue perceber mais claramente que<br />
o Príncipe do Fogo é filho do “Santo Tabernáculo do Test<strong>em</strong>unho que há no Céu”,<br />
numa fácil imitação do dualismo <strong>de</strong>us-padre e <strong>de</strong>us-filho, <strong>de</strong> que o Espírito Santo foi<br />
esquecido, nunca saberei por que. Mas o que o Príncipe não esquece é <strong>de</strong> maldar das<br />
imagens neste trecho <strong>de</strong> que , por não estar fazendo ciência, corrijo os erros <strong>de</strong><br />
concordância: “Ouvi-me oh almas viventes, falou o Anjo da Purida<strong>de</strong> aos mortais: não<br />
prostrai-vos ante imagens <strong>de</strong> ouro, prata, cobre, pedra, ma<strong>de</strong>ira ou figuras <strong>de</strong> papéis;<br />
ouvi-me, oh meus filhos, estes ídolos só serv<strong>em</strong> <strong>de</strong> auxílio à maldição!”. Mas as<br />
orações católicas também auxiliam o poeta na construção <strong>de</strong> sua santida<strong>de</strong>. O Credo, a<br />
que chama “Credo Forte do Santo Vivo”, o Padre Nosso, o Ato <strong>de</strong> Contrição e a Salve<br />
Rainha surg<strong>em</strong>, <strong>de</strong>testavelmente <strong>de</strong>formados <strong>de</strong> sua sublime perfeição.<br />
Estas <strong>de</strong>scabidas não imped<strong>em</strong>, porém, que haja verda<strong>de</strong>iras belezas <strong>de</strong> poesia<br />
mística no livro. Eis por ex<strong>em</strong>plo, um notável trecho <strong>em</strong> que os arcanjos fiéis exaltam<br />
o Príncipe do Fogo: “Meu Filho... percutindo lágrimas <strong>de</strong> imenso prazer na meiga<br />
encarnação da maior infância, és a expressão mais pura <strong>de</strong> nobreza na <strong>de</strong>signação<br />
virtuosa <strong>de</strong> um mistério divino; o grão imã da ingênua vonta<strong>de</strong> perfeita habita no<br />
encanto juvenil da tua humil<strong>de</strong> inocência, oh nato infinito do gorjeio primeiro, acatai<br />
os murmúrios <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s na nova do <strong>de</strong>stino”! E termina dizendo ao vaidoso<br />
Príncipe: “És bendito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o teu início até a tua última extensão!”<br />
Mas o próprio Príncipe sabe se exaltar com facilida<strong>de</strong> vibrante: “Então a voz<br />
jovial do Filho do Fogo, atuando as águas, disse: Eu, o justo obscuro, o equilíbrio dos<br />
planetas, o entendimento da carne, o sangue da humanida<strong>de</strong>, o da vida a pureza e da<br />
alma o alívio único viajo <strong>em</strong> além mundo, volvo aqui nesse instante, habito <strong>em</strong> tronco<br />
na árvore nascida no nascente das águas vivas... etc”. Mas também sabe se entregar às<br />
malícias da auto-punição, como neste passo dramático: “... não sou eu, oh Flor do<br />
Mal, o Senhor dos mundos; este Trono não é meu, este arco-íris não me pertence, o<br />
jaspe não vê, a sardônia não t<strong>em</strong> olhos, estas vozes não são minhas, estes relâmpagos<br />
não são meus, estes trovões não são meu po<strong>de</strong>r, estes espíritos não me quer<strong>em</strong>, este<br />
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