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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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Um Poeta Místico<br />

<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Eu <strong>de</strong>sconfio bastante <strong>de</strong> que nas curiosas manifestações <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong><br />

coletiva, nas diversas “caraimonhagas”, nos Canudos e Joazeiros que surg<strong>em</strong><br />

periodicamente pelo Brasil, entra também com boa carga <strong>de</strong> culpa o nosso apregoado<br />

individualismo.Ele é que <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte leva à criação <strong>de</strong>sses ensimesmados<br />

<strong>de</strong>usinhos <strong>de</strong> meia-tigela que com tamanha facilida<strong>de</strong> se substitu<strong>em</strong> às vagas noções<br />

<strong>de</strong> um Deus ritual, apreendidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância. E ainda <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ve ser<br />

esse mesmo individualismo que, auxiliado pelas condições culturais e sociais, pelo<br />

ruralismo persistente mesmo <strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s do país facilita o imediato <strong>de</strong>sapego<br />

às tradições religiosas e provoca as ondas a<strong>de</strong>sistas que com tanta rapi<strong>de</strong>z se formam<br />

<strong>em</strong> torno <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>uses novos, prometedores mais recentes <strong>de</strong> uma vida melhor.<br />

Nesse sentido a religião protestante veio auxiliar po<strong>de</strong>rosamente o nosso<br />

individualismo. Não é preciso avançar pelo interior para colher as provas da<br />

exacerbação individualista que o protestantismo trouxe para a nossa religiosida<strong>de</strong><br />

popular. Qu<strong>em</strong> se <strong>de</strong>r ao instrutivo trabalho <strong>de</strong> passear aos domingos pelas calçadas<br />

externas do Jardim da Luz e algumas outras praças dos bairros populares <strong>de</strong> São<br />

Paulo, observará <strong>de</strong> perto o que afirmo. De longe <strong>em</strong> longe, formam-se pequenos<br />

círculos <strong>de</strong> povo dominical entregue à difícil tarefa <strong>de</strong> se divertir. No meio, fala um<br />

homenzinho pregando as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> uma religião perfeita. Não pregam nada <strong>de</strong> mau<br />

n<strong>em</strong> <strong>de</strong> perigoso, esses doadores <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>: são contra o álcool, o fumo, os vícios,<br />

juram que o sacrifício alimpa as almas, e celebram a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Deus com a bíblia<br />

<strong>em</strong> punho. Mas se reservam o direito profético <strong>de</strong> interpretar o livro que têm nas<br />

mãos... As igrejas são lugares inúteis, os padres perniciosos; e quanto a isso <strong>de</strong> adorar<br />

os santos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou gesso, que tomam para si gran<strong>de</strong> parte do que a Deus é<br />

<strong>de</strong>vido, isso é o maior dos crimes. Mas todos esses nor<strong>de</strong>stinos (são invariavelmente<br />

nor<strong>de</strong>stinos ou baianos esses profetas), <strong>em</strong>bora visivelmente <strong>de</strong>stinados <strong>em</strong> sua<br />

santida<strong>de</strong> pelos princípios mais facilmente apreensíveis do protestantismo, também<br />

não aconselham a freqüência a nenhum culto protestante, não. A santida<strong>de</strong> está com<br />

eles, são todos eles uns Antônio Conselheiros ainda no ovo, que a indiferença urbana<br />

se esquece <strong>de</strong> chocar, únicos a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> sua bíblia, lá <strong>de</strong>les ensebada e <strong>de</strong>coradinha do<br />

princípio ao fim.<br />

Recent<strong>em</strong>ente me caiu nas mãos o livrinho <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas santida<strong>de</strong>s neoprotestantes<br />

que me <strong>de</strong>ixou no maior dos entusiasmos. Foi publicado <strong>em</strong> 1926 numa<br />

tipografia que então ficava na rua <strong>de</strong> São Pedro, aqui no Rio, e se intitula “As<br />

revelações do Príncipe do Fogo”. Talvez alguns leitores estejam l<strong>em</strong>brados do seu<br />

autor, nada mais nada menos que o sinistro Febrônio, que encheu algum t<strong>em</strong>po a<br />

crônica policial do país. Ele mesmo, pelo que me contou o amigo que forneceu o<br />

ex<strong>em</strong>plar, o próprio Febrônio quando ainda aparent<strong>em</strong>ente normal, é qu<strong>em</strong> andava<br />

ven<strong>de</strong>ndo as suas admiráveis “Revelações” pelos cafés e bares baratos do Rio. Li o<br />

livrinho por curiosida<strong>de</strong>, mas confesso que <strong>em</strong> muitas das suas passagens ele me<br />

<strong>de</strong>spertou uma verda<strong>de</strong>ira admiração e um inesperado sentimento <strong>de</strong> beleza poética. O<br />

autor era um <strong>de</strong>sses místicos populares, perfeitamente i<strong>de</strong>ntificável aos<br />

protestantisados pregadores do Jardim da Luz. Só que <strong>de</strong> um valor lírico excepcional.<br />

A todo momento ele cita a bíblia com b<strong>em</strong> imitada indicação bibliográfica como neste<br />

passo incan<strong>de</strong>scente: “Salta <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>o prazer, oh céu, cada ave ao seu ninho: é<br />

voltado o eterno rei a seu real trono, o santo valente e guerreiro fero que do santo<br />

monte dos tortos caminhos baixou, nas profundida<strong>de</strong>s das vastas regiões dos vales<br />

ix

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