Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

polêmicas, evidenciando os limites de tal sistema de classificação. 24 Antes, o fio condutor de nossa pesquisa foi a presença da psicanálise nos textos de Mário – mais especificamente os temas propostos pelos capítulos, onde quer que estivessem os seus rastros, o que chamamos deRastros freudianos em Mário de Andrade”. Isto não aponta, entretanto, para a expectativa de uma leitura totalizante ou que abarque a vasta obra do escritor, obrigando a um alargamento excessivo da pesquisa. Talvez se possa dizer, metaforicamente, que a tese se apresenta fragmentária, como o modo de surgimento do inconsciente, e parcial como a montagem pulsional, desde que se entenda, com Lacan, parcial como partes de nenhum todo. Ainda que o título desta tese não tenha sido previamente calculado, não nos podemos furtar a mencionar o fato de que o termo rastro está presente em Freud, como traço (Spur), e foi lido por Jacques Lacan como significante, e por Jacques Derrida como rastro (trace, em francês), também a partir de Freud. Nos seus primeiros esboços do aparelho psíquico – como será retomado no capítulo “Inconsciente” –, Freud trata da inscrição de traços mnêmicos ( Erinnerungsspur) como condição formadora de tal aparato, de modo que não haveria aparelho psíquico anterior à própria inscrição de traços de memória. Na “Carta 52 a Fliess”, formula a hipótese de que “a memória não preexiste de maneira simples, mas múltipla, está registrada em diversas variedades de signos”. 25 Apresenta um esquema onde os traços mnêmicos aparecem reordenados segundo diferentes transcrições (Niederschriften), entre a percepção e a consciência. O que Freud denomina de signos de percepção, inacessíveis à consciência, como primeira transcrição, Lacan irá tomar como significantes; a segunda transcrição é a da inconsciência, e a terceira transcrição da pré-consciência. O essencial desse modelo, segundo Lacan, o que Freud nos mostra com a “Carta 52”, é que entre a percepção ( Wahrnehmung) e a consciência (Bewusstsein), nesse intervalo, está o lugar do Outro onde o sujeito se constitui. Nas 24 Sobre a questão dos gêneros, Mário, em 1926, diz a Drummond: “todos os gêneros se baralham, isso até Croce já decretou e está certo. Romances que são estudos científicos, poemas que são apenas lirismo, contos que são poemas, histórias que são filosofias, etc., etc.”, reafirmando muitos anos depois a Fernando Sabino a mesma opinião: “Todos os gêneros sempre e fatalmente se entrosaram, não há limites entre eles. O que importa é a validade do assunto na sua forma própria”(Mário de Andrade apud M. A. de Moraes, Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. p. 17). De acordo com Barbara Johnson em A world of difference, as diferenças entre entidades como prosa e poesia baseiamse na repressão das suas diferenças interiores. Tal repressão redundaria na compreensão de que um texto é uma entidade homogênea, íntegra, independente e igual a si mesma. Para a autora, o que interessa é a possibilidade de que um texto, um gênero, algo que aparente ser uma identidade, venha a diferir de si mesmo. 25 S. Freud, “Carta 52 a Fliess”, Obras completas, vol. I, p. 274. 11

palavras de Lacan, no Seminário VII - A Ética da Psicanálise, “(...) a cadeia que vai do mais arcaico inconsciente à forma articulada da fala no sujeito, tudo isso ocorre entre Wahrnehmung [percepção] e Bewusstsein [consciência]” 26 . Como bem assinala Alfredo Garcia-Roza, “trata-se, portanto, de um aparelho concebido não apenas como um aparelho de memória, mas também como um aparelho de linguagem” 27 . Freud nos ensina que a memória não existe de maneira estática, mas que os traços aí inscritos, de tempos em tempos, passam por retranscrições. Nosso intuito é o de que esta tese possa se configurar como uma retranscrição possível dos traços freudianos em Mário, desde logo entendidos como não contendo nenhuma verdade essencial a ser descoberta, nem como constituindo uma presença originária. Estes traços não remetem às coisas que eles supostamente representariam, a uma verdade referencial, mas reenviam-se uns aos outros, tecendo a escrita de um texto que se oferece à construção de leituras possíveis, diferentes ficções teóricas. Tomando a leitura de Mário sobre Freud como sendo uma interpretação, o nosso trabalho é, portanto, interpretação de uma interpretação e, deste modo, “exerce algum tipo de violência simbólica sobre outros enunciados (...) comete hybris”. 28 Freud, em “Construções em análise”, ao fazer a analogia do trabalho do analista com o do arqueólogo, diz que ambos trabalham a partir dos restos, dos fragmentos que sobreviveram. A tarefa do analista seria reunir estes fragmentos e completar o que foi esquecido através de construções. Como nem tudo pode ser rememorado pelo paciente, na medida em que há um recalcado originário (Urverdrängung), faz equivaler a convicção da verdade da construção à lembrança. Esta pesquisa se configura como um trabalho de construção, a partir de fragmentos, restos e rastros de psicanálise, inscritos em textos marioandradinos. A investigação caminhou, principalmente, em dois sentidos: por um lado, buscando a psicanálise lida e interpretada por Mário de Andrade, e por outro, através da psicanálise, construiu, num exercício teórico-crítico, algumas leituras possíveis dos seus textos. Deste modo, optou-se por não fazer um capítulo teórico separado, mas por articular a teoria psicanalítica com os textos do escritor. 26 J. Lacan. “Das Ding”, A ética da psicanálise (1959-60) - O Seminário, livro VII, p.67. 27 A. Garcia-Rosa, “Impressão, traço e texto”, Introdução à metapsicologia freudiana, vol. II, p. 52. 28 R. Antelo, “O híbrido como categoria crítica”, p. 01. 12

palavras <strong>de</strong> Lacan, no S<strong>em</strong>inário VII - A Ética da Psicanálise, “(...) a ca<strong>de</strong>ia que vai<br />

do mais arcaico inconsciente à forma articulada da fala no sujeito, tudo isso ocorre<br />

entre Wahrnehmung [percepção] e Bewusstsein [consciência]” 26 . Como b<strong>em</strong> assinala<br />

Alfredo Garcia-Roza, “trata-se, portanto, <strong>de</strong> um aparelho concebido não apenas como<br />

um aparelho <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória, mas também como um aparelho <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>” 27 . Freud nos<br />

ensina que a m<strong>em</strong>ória não existe <strong>de</strong> maneira estática, mas que os traços aí inscritos, <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos, passam por retranscrições.<br />

Nosso intuito é o <strong>de</strong> que esta tese possa se configurar como uma retranscrição<br />

possível dos traços freudianos <strong>em</strong> <strong>Mário</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo entendidos como não contendo<br />

nenhuma verda<strong>de</strong> essencial a ser <strong>de</strong>scoberta, n<strong>em</strong> como constituindo uma presença<br />

originária. Estes traços não r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> às coisas que eles supostamente representariam,<br />

a uma verda<strong>de</strong> referencial, mas reenviam-se uns aos outros, tecendo a escrita <strong>de</strong> um<br />

texto que se oferece à construção <strong>de</strong> leituras possíveis, diferentes ficções teóricas.<br />

Tomando a leitura <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> sobre Freud como sendo uma interpretação, o nosso<br />

trabalho é, portanto, interpretação <strong>de</strong> uma interpretação e, <strong>de</strong>ste modo, “exerce algum<br />

tipo <strong>de</strong> violência simbólica sobre outros enunciados (...) comete hybris”. 28<br />

Freud, <strong>em</strong> “Construções <strong>em</strong> análise”, ao fazer a analogia do trabalho do<br />

analista com o do arqueólogo, diz que ambos trabalham a partir dos restos, dos<br />

fragmentos que sobreviveram. A tarefa do analista seria reunir estes fragmentos e<br />

completar o que foi esquecido através <strong>de</strong> construções. Como n<strong>em</strong> tudo po<strong>de</strong> ser<br />

r<strong>em</strong><strong>em</strong>orado pelo paciente, na medida <strong>em</strong> que há um recalcado originário<br />

(Urverdrängung), faz equivaler a convicção da verda<strong>de</strong> da construção à l<strong>em</strong>brança.<br />

Esta pesquisa se configura como um trabalho <strong>de</strong> construção, a partir <strong>de</strong> fragmentos,<br />

restos e rastros <strong>de</strong> psicanálise, inscritos <strong>em</strong> textos marioandradinos.<br />

A investigação caminhou, principalmente, <strong>em</strong> dois sentidos: por um lado,<br />

buscando a psicanálise lida e interpretada por <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, e por outro, através<br />

da psicanálise, construiu, num exercício teórico-crítico, algumas leituras possíveis dos<br />

seus textos. Deste modo, optou-se por não fazer um capítulo teórico separado, mas<br />

por articular a teoria psicanalítica com os textos do escritor.<br />

26 J. Lacan. “Das Ding”, A ética da psicanálise (1959-60) - O S<strong>em</strong>inário, livro VII, p.67.<br />

27 A. Garcia-Rosa, “Impressão, traço e texto”, Introdução à metapsicologia freudiana, vol. II, p. 52.<br />

28 R. Antelo, “O híbrido como categoria crítica”, p. 01.<br />

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