Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

No seu trabalho ativo de leitura e apropriação da psicanálise, Mário utilizou-a de diferentes maneiras, como assinalamos nesta tese. Por vezes, num tom mais sério, o que prevalecia era a sua admiração pelo inventor da psicanálise e pelas suas teses; noutros momentos, com humor e num tom mais satírico, brincava com o uso dos conceitos freudianos, parodiava o psicanalista e dialogava com Freud. O narrador do conto “Atrás da catedral de Ruão”, assim como o missivista que escreve a “Carta pras Icamiabas” em Macunaíma, ambos se mostram conhecedores da psicanálise, provocando um ato falho em sua escrita, bem como interpretando a origem do ato falho de Mademoiselle, em sua “psicopatologia da vida cotidiana”. É o trabalho ativo de leitura de uma obra que lhe confere um sentido que não estava dado a princípio, como observa Silviano Santiago em seu ensaio “O entre-lugar do discurso latino americano”. Situa a posição do intelectual latino-americano, e aqui incluiríamos a posição de Mário de Andrade, a partir de um entre-lugar – entre a submissão ao código e a agressão – de um movimento de devoração antropofágica do outro. Segundo o crítico, dentro dos princípios etnocêntricos da literatura comparada, o procedimento tradicional consistiria em identificar, numa obra segunda, os elementos que se repetem, a influência de uma obra primeira, a qual serve como modelo. Reconhecendo a inevitabilidade da dependência, Santiago propõe que a ênfase seja dada na diferença que o “texto dependente” pode inaugurar, dando “o salto por cima das imitações” e contribuindo com algo original. O próprio Mário satiriza a questão do plágio, por exemplo, numa nota dede página ao conto “História com data”, dizendo que “este conto é plagiado do ‘Avatara’ de Teófilo Gautier que eu desconheceria até hoje sem a bondade do amigo que me avisou do plágio. Mas como geralmente acontece no Brasil, o plágio é melhor que o original”. 423 Parece-nos que em textos do auge do modernismo, como no “Prefácio interessantíssimo”, em “A escrava que não é Isaura”, ou mesmo em Amar, verbo intransitivo, transparece um uso da psicanálise que, ao Mário vanguardista, serve para solidificar alguns rompimentos modernistas que leva a efeito. É o próprio Mário quem o confirma, exemplarmente, ao dizer: Ora os modernistas, vítimas de suas próprias ou de alheias teorizações necessárias, se aplicaram muito mais a pesquisar sobre o subconsciente em experiências múltiplas, fazendo assim, muitas vezes, uma poesia que, embora 423 M. de Andrade, “História com Data”, Obra imatura, p. 153. 175

de muita essencialidade poética, era em especial uma exploração descritiva, crítica e até mesmo científica da subconsciência. 424 Além disso, devido às leituras de psicólogos franceses como Ribot e Janet, alguns textos carregavam mais as marcas de um “inconsciente à francesa” do que do inconsciente freudiano, como vimos no último capítulo. Em contrapartida, nos Contos novos percebemos uma relação com a psicanálise bem mais intrínseca, uma psicanálise melhor digerida, incorporada, de maneira que não aparece nenhum resquício de cientificismo ou freudismo, mas jogos de linguagem que evocam a psicanálise e brincam com ela. De qualquer modo, já em Amar, como afirma Mário em sua carta-resposta às críticas que a publicação do livro provocou, “as melhores penas da crítica literária” não compreenderam seu “jogo estético”, como “transformei em lirismo dramático a máquina fria de um racionalismo científico” e, quanto ao freudismo do livro, diz que já fora acentuado e estigmatizado por ele dentro do próprio livro. Numa carta dirigida ao crítico literário, ensaísta e jornalista pernambucano Álvaro Lins, em julho de 1942, Mário parece desencantado com a psicanálise: Ultimamente, dei pra achar paupérrima a psicanálise. Não acho errada, não, acho paupérrima. Esse mundo imenso do ser humano ficou reduzido a meia dúzia de noções gerais e genéricas que não esclarecem nada, são mesquinhas, tipos das generalizações conformistas e acomodatícia pequena burguesa. 425 Em O banquete também encontramos críticas às generalizações produzidas pelas teorias, citando o caso das verdades descobertas por Freud, através do diálogo entre Pastor Fido e Janjão, “dois personagens não conformistas”. Em entrevista a Mário da Silva Brito para o Diário de São Paulo (dezembro de 1943), explica-lhe o motivo da interrupção do romance Quatro pessoas, iniciado em 1939: Eu o estava escrevendo no Rio de Janeiro quando a notícia da queda de Paris me estarreceu. Não era mais possível preocupar-me com o destino de quatro indivíduos – envolvidos em dois casos de amor – quando o mundo sofria tanto e a cultura recebia um golpe profundo. Desisti. 426 424 Idem, “A volta do condor”, Aspectos da literatura brasileira, p. 143. 425 M. de Andrade, Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins, p. 66. 426 M. Zélia Galvão de Almeida, “Quatro pessoas: Uma edição crítica”, in: Mário de Andrade, Quatro pessoas, p. 15. 176

<strong>de</strong> muita essencialida<strong>de</strong> poética, era <strong>em</strong> especial uma exploração <strong>de</strong>scritiva,<br />

crítica e até mesmo científica da subconsciência. 424<br />

Além disso, <strong>de</strong>vido às leituras <strong>de</strong> psicólogos franceses como Ribot e Janet, alguns<br />

textos carregavam mais as marcas <strong>de</strong> um “inconsciente à francesa” do que do<br />

inconsciente freudiano, como vimos no último capítulo. Em contrapartida, nos Contos<br />

novos perceb<strong>em</strong>os uma relação com a psicanálise b<strong>em</strong> mais intrínseca, uma<br />

psicanálise melhor digerida, incorporada, <strong>de</strong> maneira que não aparece nenhum<br />

resquício <strong>de</strong> cientificismo ou freudismo, mas jogos <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong> que evocam a<br />

psicanálise e brincam com ela. De qualquer modo, já <strong>em</strong> Amar, como afirma <strong>Mário</strong><br />

<strong>em</strong> sua carta-resposta às críticas que a publicação do livro provocou, “as melhores<br />

penas da crítica literária” não compreen<strong>de</strong>ram seu “jogo estético”, como “transformei<br />

<strong>em</strong> lirismo dramático a máquina fria <strong>de</strong> um racionalismo científico” e, quanto ao<br />

freudismo do livro, diz que já fora acentuado e estigmatizado por ele <strong>de</strong>ntro do<br />

próprio livro.<br />

Numa carta dirigida ao crítico literário, ensaísta e jornalista pernambucano<br />

Álvaro Lins, <strong>em</strong> julho <strong>de</strong> 1942, <strong>Mário</strong> parece <strong>de</strong>sencantado com a psicanálise:<br />

Ultimamente, <strong>de</strong>i pra achar paupérrima a psicanálise. Não acho errada, não,<br />

acho paupérrima. Esse mundo imenso do ser humano ficou reduzido a meia<br />

dúzia <strong>de</strong> noções gerais e genéricas que não esclarec<strong>em</strong> nada, são mesquinhas,<br />

tipos das generalizações conformistas e acomodatícia pequena burguesa. 425<br />

Em O banquete também encontramos críticas às generalizações produzidas pelas<br />

teorias, citando o caso das verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scobertas por Freud, através do diálogo entre<br />

Pastor Fido e Janjão, “dois personagens não conformistas”. Em entrevista a <strong>Mário</strong> da<br />

Silva Brito para o Diário <strong>de</strong> São Paulo (<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1943), explica-lhe o motivo da<br />

interrupção do romance Quatro pessoas, iniciado <strong>em</strong> 1939:<br />

Eu o estava escrevendo no Rio <strong>de</strong> Janeiro quando a notícia da queda <strong>de</strong> Paris<br />

me estarreceu. Não era mais possível preocupar-me com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> quatro<br />

indivíduos – envolvidos <strong>em</strong> dois casos <strong>de</strong> amor – quando o mundo sofria tanto<br />

e a cultura recebia um golpe profundo. Desisti. 426<br />

424 Id<strong>em</strong>, “A volta do condor”, Aspectos da literatura brasileira, p. 143.<br />

425 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Cartas <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> a Álvaro Lins, p. 66.<br />

426 M. Zélia Galvão <strong>de</strong> Almeida, “Quatro pessoas: Uma edição crítica”, in: <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Quatro<br />

pessoas, p. 15.<br />

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