Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

na teoria do recalcamento, do retorno do recalcado no sintoma e na interpretação psicanalítica como operação de deciframento e levantamento do recalcado. Num artigo de 1906, “O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen”, Freud ilustra de que maneira o processo de repressão agiu na personagem central, que é um arqueólogo. Como bem observa James Strachey no prefácio deste artigo, a Freud “fascinava-o sobretudo a analogia entre o destino histórico de Pompéia (o seu sepultamento e a escavação posterior) e os fenômenos psíquicos que lhe eram tão familiares – o sepultamento por repressão e a escavação da análise”. 370 Norbert Hanold, o personagem-arqueólogo, ao sentir-se enamorado pela figura de uma mulher num antigo baixo-relevo, a quem denominou Gradiva (“de caminhar resplandecente”), empreende uma viagem até Pompéia, onde está certo de que a encontrará. Lá reencontra, vivo, o antigo amor de infância, Zoé Bertgang, depois de se ter aproximado dela através de um elaborado delírio. Diz-lhe então Zoé num dos seus diálogos: “Que alguém precise antes morrer para se tornar vivo para a arqueologia, isso, sem dúvida, é necessário”. 371 Sob o surgimento do baixo-relevo está o inconsciente reprimido. Referindo-se a Hanold, escreve Freud: “O jogo que logo se desenrola em seu interior é uma luta entre o poder do erotismo e as forças que o reprimem; o que se exterioriza desta luta é um delírio”. 372 Através do processo de repressão, algo do âmbito psíquico se torna inacessível e simultaneamente conservado, valendo então a analogia com o destino de Pompéia. De acordo com Freud, o poeta percebeu “a valiosa semelhança entre um fragmento de acontecer anímico individual e um episódio histórico singular da história humana”. 373 No artigo de 1937, “Construções em análise”, Freud retoma a analogia do trabalho do analista com o do arqueólogo: “ambos possuem o direito indiscutível a reconstruir por meio da suplementação e dos restos que sobreviveram”. 374 Ressalta, contudo, que o material à disposição do analista não é algo destruído, mas sim vivo. Se nos outorgarmos o direito de qualificar o trabalho de Benjamin de arqueológico, no sentido de que encontra os objetos-fósseis a partir de escavações, de ruínas, reafirmaremos que, para o filósofo, tais objetos carregavam um significado a ser desvelado, e assim teriam a mesma força psíquica que os traços de memória do 370 S. Freud, “El delirio y los sueños en la ‘Gradiva’ de W. Jensen” . Nota introdutória de J. Strachey. Obras completas, vol. IX, p. 4. 371 Idem, p.42. 372 Idem, p.41. 373 Idem, p.34. 155

inconsciente. Benjamin olhava para os objetos industriais como fósseis que permitiam que a história viva fosse lida através de sua superfície. Theodor W. Adorno, ao caracterizar o pensamento de Benjamin como “natural-histórico”, afirma que este teria como ninguém a habilidade para considerar as coisas históricas, as manifestações do espírito objetivado, a ‘cultura’ como se fosse natureza (...). O inventário de fragmentos culturais petrificados, congelados ou obsoletos lhe falava (...) como os fósseis ou as plantas no herbário ao seu colecionador. 375 Este modo benjaminiano de conceber os objetos históricos remete-nos às metáforas arqueológicas usadas por Freud, em vários momentos de sua obra, como figuras centrais para a explicitação de conceitos. Em parte, isto deve estar relacionado com o êxito da arqueologia na sua época, com o descobrimento de Tróia e outras cidades, com a verificação das origens de textos que até então não haviam sido comprovadas. 376 No entanto, como demonstram algumas fotos do consultório de Freud e algumas declarações suas, havia da parte deste último um interesse especial pelos objetos antigos, tais como estatuetas, placas, tapetes orientais, além de fotografias e fragmentos de descobertas do antigo Egito. Benjamin também lançou mão da analogia arqueológica, como podemos observar em fragmentos como “Trabalhos de subsolo” e “Escavando e recordando”, ambos incluídos em “Rua de mão única”. Do segundo, cito: Quem pretende aproximar-se do próprio passado soterrado deve agir como o homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. 377 Na sua biografia de Freud, Peter gay cita o paciente de um dos seus “casos” clássicos, o “Homem dos lobos”, a quem o consultório do psicanalista lembraria “não o consultório de um médico, mas o gabinete de um arqueólogo.” 378 Freud lia o que pudesse sobre o assunto como um aficcionado, e ouvia as histórias desse universo contadas por um amigo seu, professor de arqueologia. A figura do sedimento aparece, 374 S. Freud, “ Construcciones en análisis”, Obras completas, vol. XXIII, p. 261. 375 T. Adorno apud S. Buck-Morss, op. cit., p. 87. 376 E. Laurent, “Parejas de hoy y consecuencias para sus hijos”, Carretel, p.10. 377 W. Benjamin, op. cit., p.239. 156

na teoria do recalcamento, do retorno do recalcado no sintoma e na interpretação<br />

psicanalítica como operação <strong>de</strong> <strong>de</strong>ciframento e levantamento do recalcado.<br />

Num artigo <strong>de</strong> 1906, “O <strong>de</strong>lírio e os sonhos na Gradiva <strong>de</strong> Jensen”, Freud<br />

ilustra <strong>de</strong> que maneira o processo <strong>de</strong> repressão agiu na personag<strong>em</strong> central, que é um<br />

arqueólogo. Como b<strong>em</strong> observa James Strachey no prefácio <strong>de</strong>ste artigo, a Freud<br />

“fascinava-o sobretudo a analogia entre o <strong>de</strong>stino histórico <strong>de</strong> Pompéia (o seu<br />

sepultamento e a escavação posterior) e os fenômenos psíquicos que lhe eram tão<br />

familiares – o sepultamento por repressão e a escavação da análise”. 370<br />

Norbert Hanold, o personag<strong>em</strong>-arqueólogo, ao sentir-se enamorado pela figura<br />

<strong>de</strong> uma mulher num antigo baixo-relevo, a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>nominou Gradiva (“<strong>de</strong> caminhar<br />

resplan<strong>de</strong>cente”), <strong>em</strong>preen<strong>de</strong> uma viag<strong>em</strong> até Pompéia, on<strong>de</strong> está certo <strong>de</strong> que a<br />

encontrará. Lá reencontra, vivo, o antigo amor <strong>de</strong> infância, Zoé Bertgang, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se<br />

ter aproximado <strong>de</strong>la através <strong>de</strong> um elaborado <strong>de</strong>lírio. Diz-lhe então Zoé num dos seus<br />

diálogos: “Que alguém precise antes morrer para se tornar vivo para a arqueologia,<br />

isso, s<strong>em</strong> dúvida, é necessário”. 371 Sob o surgimento do baixo-relevo está o<br />

inconsciente reprimido. Referindo-se a Hanold, escreve Freud: “O jogo que logo se<br />

<strong>de</strong>senrola <strong>em</strong> seu interior é uma luta entre o po<strong>de</strong>r do erotismo e as forças que o<br />

reprim<strong>em</strong>; o que se exterioriza <strong>de</strong>sta luta é um <strong>de</strong>lírio”. 372<br />

Através do processo <strong>de</strong> repressão, algo do âmbito psíquico se torna inacessível<br />

e simultaneamente conservado, valendo então a analogia com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Pompéia.<br />

De acordo com Freud, o poeta percebeu “a valiosa s<strong>em</strong>elhança entre um fragmento <strong>de</strong><br />

acontecer anímico individual e um episódio histórico singular da história humana”. 373<br />

No artigo <strong>de</strong> 1937, “Construções <strong>em</strong> análise”, Freud retoma a analogia do<br />

trabalho do analista com o do arqueólogo: “ambos possu<strong>em</strong> o direito indiscutível a<br />

reconstruir por meio da supl<strong>em</strong>entação e dos restos que sobreviveram”. 374 Ressalta,<br />

contudo, que o material à disposição do analista não é algo <strong>de</strong>struído, mas sim vivo.<br />

Se nos outorgarmos o direito <strong>de</strong> qualificar o trabalho <strong>de</strong> Benjamin <strong>de</strong><br />

arqueológico, no sentido <strong>de</strong> que encontra os objetos-fósseis a partir <strong>de</strong> escavações, <strong>de</strong><br />

ruínas, reafirmar<strong>em</strong>os que, para o filósofo, tais objetos carregavam um significado a<br />

ser <strong>de</strong>svelado, e assim teriam a mesma força psíquica que os traços <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória do<br />

370 S. Freud, “El <strong>de</strong>lirio y los sueños en la ‘Gradiva’ <strong>de</strong> W. Jensen” . Nota introdutória <strong>de</strong> J. Strachey.<br />

Obras completas, vol. IX, p. 4.<br />

371 Id<strong>em</strong>, p.42.<br />

372 Id<strong>em</strong>, p.41.<br />

373 Id<strong>em</strong>, p.34.<br />

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