Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

Neste exemplo, Mário ressalta a força das palavras, da linguagem, na produção da assombração. Ainda que a assombração marioandradina preserve algo da ordem do assustador, trata-se já de uma significação e não da presença do objeto a, do real angustiante. No seminário XI, Lacan define o real a partir do além do princípio do prazer, como o impossível: “O real se distingue por sua separação do campo do princípio do prazer, por sua dessexualização, pelo fato de que sua economia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossível”. 366 A fantasia ou fantasma implica um arranjo, uma série contínua entre o que funciona bem e o que funciona mal, que encontra uma satisfação própria. Como disse Miller, “o fantasma é uma máquina que transforma o gozo em prazer”. O objeto a encontra-se normalmente velado sob os semblantes, sob isso que chamamos de nossa realidade. Desvelá-lo é cair momentaneamente num campo onde as significações colapsam, onde não há arranjo possível. Enquanto há cadeia significante e seu efeito de sentido, há formas de enredo que situam o sujeito e sustentam o desejo enquanto metonímico. O que chamamos comumente de objeto do desejo é na verdade uma fantasia que não deixa entrever a verdadeira cara do objeto a. De maneira aproximada àquela pela qual Lacan circunscreve os objetos do desejo, como logro, encontra-se em Marx o uso do termo fantasmagoria para se referir ao mundo das mercadorias que, na sua aparência, ilusória, velam o processo de produção. Mas o que Benjamin quer acentuar é a mercadoria em exibição seduzindo os observadores-consumidores, levados a identificar os seus sonhos e desejos com tais objetos. Benjamin também utiliza o termo fantasmagoria para descrever o espetáculo de Paris – “Uma lanterna-mágica das ilusões de ótica, com sua rápida alteração de tamanhos e formas”. 367 Segundo Buck-Morss, fantasmagorias são tecnoestéticas que anestesiam o organismo humano pela inundação dos sentidos e cujos efeitos são experimentados coletivamente, onde uma realidade compensatória se torna meio de controle social. Numa outra crônica de 1929, denominada “O culto das estátuas”, registramos a crítica social de Mário. Considerando o culto dos mortos como um fenômeno de psicologia social, o autor sustenta que este foi substituído pelo culto das estátuas. O que prevaleceria, no monumento erguido ao morto, não seria a sua memória, “difícil de sustentar”, mas “um minuto vivo de beleza”, oferecido ao olhar 366 J. Lacan, O seminário, livro XI, p. 159. 153

distraído. Nulificação dos mortos na rua, inexistência do culto, diz Mário de Andrade; perda da aura na era da reprodutibilidade técnica, dizemos com Benjamin. Acerca destes novos tipos de monumentos criados pela publicidade, o cronista ironiza estupefato: “É incontestável que o anúncio erguido à ‘memória’ de tal cigarro ou sabonete, no Anhangabaú, é monumento que jamais Colombo não teve”. 368 O ‘culto’ das estátuas seria, ainda, uma espécie de egolatria, segundo Mário, que esclarece: “egolatria não consiste apenas na adoração do eu”, pois haveria outras formas de egolatria, “de família, de classe, nacional”. 3. A máquina de escrita No escrito “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan, ao definir o inconsciente como “o capítulo censurado” da história de cada um, “marcado por um branco ou ocupado por uma mentira”, dirá que a verdade pode ser resgatada, pois está escrita em outro lugar. Qual seja: - nos monumentos: e esse é meu corpo, i. é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave; - nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência; - na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e de meu caráter; - nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história; - nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. 369 Lembremos que durante os dez anos que se seguiram a este escrito, o manifesto fundador de seu ensino, Lacan desenvolveu seus dez primeiros seminários sob a insígnia de um retorno à letra freudiana. Neste sentido, o trecho citado apóia-se 367 S. Buck-Morss, op. cit., p. 113 368 M. de Andrade, “O culto das estátuas”, op. cit., p.34. 369 J. Lacan, op. cit., 1998, pp. 260-61. 154

Neste ex<strong>em</strong>plo, <strong>Mário</strong> ressalta a força das palavras, da linguag<strong>em</strong>, na produção da<br />

assombração. Ainda que a assombração marioandradina preserve algo da ord<strong>em</strong> do<br />

assustador, trata-se já <strong>de</strong> uma significação e não da presença do objeto a, do real<br />

angustiante. No s<strong>em</strong>inário XI, Lacan <strong>de</strong>fine o real a partir do além do princípio do<br />

prazer, como o impossível: “O real se distingue por sua separação do campo do<br />

princípio do prazer, por sua <strong>de</strong>ssexualização, pelo fato <strong>de</strong> que sua economia, <strong>em</strong><br />

seguida, admite algo <strong>de</strong> novo, que é justamente o impossível”. 366 A fantasia ou<br />

fantasma implica um arranjo, uma série contínua entre o que funciona b<strong>em</strong> e o que<br />

funciona mal, que encontra uma satisfação própria. Como disse Miller, “o fantasma é<br />

uma máquina que transforma o gozo <strong>em</strong> prazer”. O objeto a encontra-se normalmente<br />

velado sob os s<strong>em</strong>blantes, sob isso que chamamos <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong>. Desvelá-lo é<br />

cair momentaneamente num campo on<strong>de</strong> as significações colapsam, on<strong>de</strong> não há<br />

arranjo possível. Enquanto há ca<strong>de</strong>ia significante e seu efeito <strong>de</strong> sentido, há formas <strong>de</strong><br />

enredo que situam o sujeito e sustentam o <strong>de</strong>sejo enquanto metonímico. O que<br />

chamamos comumente <strong>de</strong> objeto do <strong>de</strong>sejo é na verda<strong>de</strong> uma fantasia que não <strong>de</strong>ixa<br />

entrever a verda<strong>de</strong>ira cara do objeto a.<br />

De maneira aproximada àquela pela qual Lacan circunscreve os objetos do<br />

<strong>de</strong>sejo, como logro, encontra-se <strong>em</strong> Marx o uso do termo fantasmagoria para se referir<br />

ao mundo das mercadorias que, na sua aparência, ilusória, velam o processo <strong>de</strong><br />

produção. Mas o que Benjamin quer acentuar é a mercadoria <strong>em</strong> exibição seduzindo<br />

os observadores-consumidores, levados a i<strong>de</strong>ntificar os seus sonhos e <strong>de</strong>sejos com tais<br />

objetos. Benjamin também utiliza o termo fantasmagoria para <strong>de</strong>screver o espetáculo<br />

<strong>de</strong> Paris – “Uma lanterna-mágica das ilusões <strong>de</strong> ótica, com sua rápida alteração <strong>de</strong><br />

tamanhos e formas”. 367 Segundo Buck-Morss, fantasmagorias são tecnoestéticas que<br />

anestesiam o organismo humano pela inundação dos sentidos e cujos efeitos são<br />

experimentados coletivamente, on<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> compensatória se torna meio <strong>de</strong><br />

controle social. Numa outra crônica <strong>de</strong> 1929, <strong>de</strong>nominada “O culto das estátuas”,<br />

registramos a crítica social <strong>de</strong> <strong>Mário</strong>. Consi<strong>de</strong>rando o culto dos mortos como um<br />

fenômeno <strong>de</strong> psicologia social, o autor sustenta que este foi substituído pelo culto das<br />

estátuas. O que prevaleceria, no monumento erguido ao morto, não seria a sua<br />

m<strong>em</strong>ória, “difícil <strong>de</strong> sustentar”, mas “um minuto vivo <strong>de</strong> beleza”, oferecido ao olhar<br />

366 J. Lacan, O s<strong>em</strong>inário, livro XI, p. 159.<br />

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