Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

Ao longo da sua obra, seja em textos e livros da década de 20 – em que o Mário vanguardista se interessava por todas as experiências de renovação estética, pelo papel do inconsciente e do consciente na elaboração poética – seja mais tarde, quando incorpora a psicanálise aos estudos sobre o folclore, lança mão de termos psicanalíticos como sublimação, recalque, desejo, inconsciente e libido, quer na ficção quer em textos críticos, apoiando em tais conceitos a sua compreensão do fenômeno literário e artístico. Como afirma Ivone Daré Rabello, o mundo da vida psíquica, com seus impulsos, recalques, fixações e sublimações, constituía um eixo de preocupações muito peculiar ao autor, bem como um problema a ser resolvido na representação literária de modo a não se confundir com o “psicologismo” em voga nas elites de então. 19 Mário aparece, então, como um privilegiado ponto de encontro entre modernismo e psicanálise e, mais amplamente, entre literatura e psicanálise. Por isto nos interessou investigar os usos que fez Mário de Andrade da psicanálise, percorrendo as marcas da leitura freudiana, os efeitos por ela produzidos, o lugar de proeminente que esta teve na sua obra, já que afirma, por exemplo, numa carta a Alceu de Amoroso Lima, que “de Freud acho que me utilizei sempre que se trate de psicologia”. Quais conceitos e noções priorizou e o que deles apreendeu? O uso que Mário fez da psicanálise implicou numa repetição da teoria freudiana, ou houve uma apropriação singular dos conceitos, cujas marcas, deixadas em seus textos, podemos ler? Existe mesmo um psicologismo ou freudismo, como afirmam alguns críticos, na obra de Mário de Andrade? Roberto Schwarz, por exemplo, no ensaio “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”, 20 apresenta um quadro de polaridades que orientam o seu pensamento estético, as quais não consegue superar. São elas: lirismo-técnica, subconsciente-consciente, ser-parecer. Dentro do mesmo raciocínio dialético, Schwarz propõe três momentos na poética de Mário: um momento individualista, no qual poesia = grafia do subconsciente (lirismo); momento antiindividualista, onde poesia = grafia do subconsciente “transformado em arte e tornado socialmente significativo pela interferência técnica”; e, finalmente, um momento de superação, em que o lirismo encontra a técnica que o realiza no plano do significado geral. Acreditamos que haja um reducionismo relativo a tais esquemas e 19 I. Daré Rabello, A caminho do encontro – Uma leitura de Contos Novos, p. 23. 20 R. Schwarz, A sereia e o desconfiado - Ensaios críticos, 1981. 9

adjetivações. Pensamos que Mário, diferentemente de outros modernistas que podem ter tido um contato superficial com a psicanálise, como uma teoria cujas idéias estava em plena circulação naquela época, estudou seriamente a psicanálise, indo além dos modismos e logrando incorporá-la à sua produção de modo nem simplista, nem artificial. Interessou-nos verificar, também, quais autores, psicanalistas, informaram Mário de Andrade acerca da psicanálise, constituindo suas referências e formando as suas idéias sobre a psicanálise. Numa primeira aproximação com a obra de Mário de Andrade, buscou-se levantar referências diretas e indiretas à psicanálise. Por referências diretas entende-se aquela nas quais conceitos e noções psicanalíticas são mencionados, bem como o nome Freud; referências indiretas são alusões a temas ou questões tratados pela psicanálise, ou que permitem uma articulação com ela. Desta leitura resultou o encontro com quatro temas psicanalíticos, que ao nosso olhar sobressaíram. São eles: a libido, o recalcamento, o inconsciente e a loucura. 21 O recorte de tais noções funcionou como balizamento para a pesquisa, e serviu como critério de elaboração dos capítulos da tese. Com Benjamin, é possível pensar que estas quatro temáticas saltam do contínuo da obra, estilhaçando a linha do tempo, como “uma construção cujo lugar não é tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”. 22 O termo origem(Ursprung), no sentido filosófico de Walter Benjamin, não remeteria a um começo em termos de desenvolvimento cronológico, mas “o que emerge do processo de devir e desaparecer”. Benjamin joga com o sentido literal do termo Ursprung (salto primeiro), para designar “ a origem como salto para fora da sucessão cronológica niveladora (...) interrupções que querem, também, fazer parar este tempo infinito e indefinido”. 23 Neste sentido, não foi um recorte cronológico da obra o que nos orientou, tampouco a concepção de gêneros literários, questão que tem provocado discussões 21 Numa alusão ao seminário XI de Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, poderíamos falar dos quatro conceitos psicanalíticos fundamentais em Mário de Andrade. No primeiro caso, os conceitos fundamentais são o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Lembramos, também, que dos quatro temas que intitulam os capítulos, três deles, o inconsciente, a libido – tomada a partir da teoria das pulsões – e o recalcamento, fazem parte da metapsicologia freudiana. Referimo-nos àqueles textos mais teóricos, que não tratam diretamente da prática ou da técnica psicanalíticas, mas que propõem, por exemplo, a ficção de um aparelho psíquico dividido em instâncias, o processo de repressão, o inconsciente, etc. 22 W. Benjamin, “Sobre o conceito da história”, Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política, p. 229. 23 J.-M. Gagnebin, “Origem, original, tradução”, História e narração em Walter Benjamin, p. 10. A autora propõe traduzir o termo Jetztzeit por “tempo de agora”. 10

Ao longo da sua obra, seja <strong>em</strong> textos e livros da década <strong>de</strong> 20 – <strong>em</strong> que o<br />

<strong>Mário</strong> vanguardista se interessava por todas as experiências <strong>de</strong> renovação estética,<br />

pelo papel do inconsciente e do consciente na elaboração poética – seja mais tar<strong>de</strong>,<br />

quando incorpora a psicanálise aos estudos sobre o folclore, lança mão <strong>de</strong> termos<br />

psicanalíticos como sublimação, recalque, <strong>de</strong>sejo, inconsciente e libido, quer na ficção<br />

quer <strong>em</strong> textos críticos, apoiando <strong>em</strong> tais conceitos a sua compreensão do fenômeno<br />

literário e artístico. Como afirma Ivone Daré Rabello,<br />

o mundo da vida psíquica, com seus impulsos, recalques, fixações e<br />

sublimações, constituía um eixo <strong>de</strong> preocupações muito peculiar ao autor, b<strong>em</strong><br />

como um probl<strong>em</strong>a a ser resolvido na representação literária <strong>de</strong> modo a não se<br />

confundir com o “psicologismo” <strong>em</strong> voga nas elites <strong>de</strong> então. 19<br />

<strong>Mário</strong> aparece, então, como um privilegiado ponto <strong>de</strong> encontro entre mo<strong>de</strong>rnismo e<br />

psicanálise e, mais amplamente, entre literatura e psicanálise.<br />

Por isto nos interessou investigar os usos que fez <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> da<br />

psicanálise, percorrendo as marcas da leitura freudiana, os efeitos por ela produzidos,<br />

o lugar <strong>de</strong> pro<strong>em</strong>inente que esta teve na sua obra, já que afirma, por ex<strong>em</strong>plo, numa<br />

carta a Alceu <strong>de</strong> Amoroso Lima, que “<strong>de</strong> Freud acho que me utilizei s<strong>em</strong>pre que se<br />

trate <strong>de</strong> psicologia”. Quais conceitos e noções priorizou e o que <strong>de</strong>les apreen<strong>de</strong>u? O<br />

uso que <strong>Mário</strong> fez da psicanálise implicou numa repetição da teoria freudiana, ou<br />

houve uma apropriação singular dos conceitos, cujas marcas, <strong>de</strong>ixadas <strong>em</strong> seus textos,<br />

pod<strong>em</strong>os ler? Existe mesmo um psicologismo ou freudismo, como afirmam alguns<br />

críticos, na obra <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>? Roberto Schwarz, por ex<strong>em</strong>plo, no ensaio “O<br />

psicologismo na poética <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>”, 20 apresenta um quadro <strong>de</strong> polarida<strong>de</strong>s<br />

que orientam o seu pensamento estético, as quais não consegue superar. São elas:<br />

lirismo-técnica, subconsciente-consciente, ser-parecer. Dentro do mesmo raciocínio<br />

dialético, Schwarz propõe três momentos na poética <strong>de</strong> <strong>Mário</strong>: um momento<br />

individualista, no qual poesia = grafia do subconsciente (lirismo); momento<br />

antiindividualista, on<strong>de</strong> poesia = grafia do subconsciente “transformado <strong>em</strong> arte e<br />

tornado socialmente significativo pela interferência técnica”; e, finalmente, um<br />

momento <strong>de</strong> superação, <strong>em</strong> que o lirismo encontra a técnica que o realiza no plano do<br />

significado geral. Acreditamos que haja um reducionismo relativo a tais esqu<strong>em</strong>as e<br />

19 I. Daré Rabello, A caminho do encontro – Uma leitura <strong>de</strong> Contos Novos, p. 23.<br />

20 R. Schwarz, A sereia e o <strong>de</strong>sconfiado - Ensaios críticos, 1981.<br />

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