Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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adolescente que foi, e as l<strong>em</strong>branças se confund<strong>em</strong> com a ficção. Reinterpretando o<br />
passado, o narrador reinventa a si mesmo. Na crônica “Biblioteconomia” (1937),<br />
<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> afirma que “o manuscrito original ... Ele nos reverte à nossa<br />
antigüida<strong>de</strong>”, e que o livro antigo é “um banho inconsciente <strong>de</strong> antigüida<strong>de</strong>”. Os<br />
fragmentos <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória saltam <strong>de</strong> um passado vivo e parec<strong>em</strong> presentificar traços do<br />
acontecimento singular, com a mesma força afetiva <strong>de</strong> outrora. Segundo Rabello, <strong>em</strong><br />
relação ao procedimento do narrador, que ela <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “terapêutica da m<strong>em</strong>ória”,<br />
“<strong>em</strong>bora a sua ‘verda<strong>de</strong>’ não sejam apenas os fatos vividos, mas a ‘impressão’ que<br />
neles ficou inscrita, o narrador quer rastreá-los e colocá-los sob sua organização”. 363<br />
Mas, como diz Lacan, no s<strong>em</strong>inário I – Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud, “A história não<br />
é o passado. A história é o passado na medida <strong>em</strong> que é historiado no presente”. A<br />
partir <strong>de</strong> Freud, o que Lacan acentua, não é a revivência, a r<strong>em</strong><strong>em</strong>oração dos fatos <strong>de</strong><br />
sua existência, mas o que po<strong>de</strong> disso o sujeito reconstruir, reescrever.<br />
Numa crônica <strong>de</strong> 1929, “M<strong>em</strong>ória e assombração”, <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> busca<br />
fazer uma distinção entre a fragilida<strong>de</strong> da m<strong>em</strong>ória, sintética e <strong>de</strong>gradante, e a força<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, o exagero das assombrações. Estas são “sonhos <strong>de</strong> acordado revestidos<br />
<strong>de</strong> palavras”, ou ainda, pra falar <strong>em</strong> nosso idioma psicanalítico, fantasias, <strong>de</strong>vaneios,<br />
nos quais articulam-se o imaginário e o simbólico. O cronista, <strong>em</strong> sua tradução<br />
própria da noção freudiana <strong>de</strong> fantasia, aclara que “estas assombrações, por completo<br />
diferentes <strong>de</strong> quanto passou, a gente chama <strong>de</strong> ‘passado’”. 364 Afirmando ser<strong>em</strong> as<br />
assombrações secundariamente falsas, e diz, ainda, que não é possível reviver o<br />
passado e seus sentimentos. O ex<strong>em</strong>plo trazido por <strong>Mário</strong> para tratar da assombração<br />
é o seguinte: vai visitar <strong>em</strong> São Paulo o amigo Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Moraes Neto, mas a<br />
<strong>em</strong>pregada da casa o informa <strong>de</strong> que Pru<strong>de</strong>ntinho estava no Rio. <strong>Mário</strong> argumenta,<br />
então, que isto não seria possível, pois neste mesmo dia havia falado com ele ao<br />
telefone, ao que a moça conclui tratar-se <strong>de</strong> Pru<strong>de</strong>nte Filho, o Pru<strong>de</strong>ntão, mas ele não<br />
estava.<br />
Fugi com tanta afobação da casa do gigante, uma casa mui alta, fugi com toda<br />
a afobação (...) E enxergava um <strong>de</strong>spotismo <strong>de</strong> Pru<strong>de</strong>ntes sobre um estrado<br />
muito comprido, procurava, procurava e não achava o meu. Quando cheguei lá<br />
no fim do estrado enxerguei novo estrado cheio <strong>de</strong> novos Pru<strong>de</strong>ntes... 365<br />
362 K. Muricy, Alegorias da dialética, p. 16.<br />
363 I. Daré Rabello, op. cit., p. 45.<br />
364 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “M<strong>em</strong>ória e assombração”, Os filhos da Candinha, p. 163<br />
365 Id<strong>em</strong>, pp. 162-63.<br />
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