Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Quando eu... o outro agora me lembro estava morrendo fiz uma promessa para São Vito de contar tudo se salvasse. Estou vivo. Sinto que estou vivo...Mudei... Não! não sou eu!... Este não!... Sou o outro!... Sou o outro!... Sou o criminoso!... Este é inocente!... não matou meus dois filhos... Foi o outro, eu, José... Dio! 353 O médico havia esclarecido à mãe aflita do aviador, para tranqüilizá-la, que não se tratava de loucura, mas de abandono parcial da memória, muito comum nestes casos de traumatismos. Já que desde Freud pensamos que o psíquico, mesmo apoiando-se no cérebro, constitui uma estrutura que tem uma legalidade própria, podemos propor ao Dr. Chiz uma outra possibilidade de leitura a respeito do drama de Alberto/José, pela via de uma teoria da identificação na perspectiva do que Lacan teorizou como a função de desconhecimento do eu, no estádio do espelho. A criança, ao identificar-se com a sua imagem no espelho (entre os seis e dezoito meses), antecipa uma unidade que não coincide com a prematuração do seu corpo. Num momento inaugural, esta imagem que o espelho lhe devolve é vista como outra, e é nesse sentido que se pode dizer que o eu é outro. Esta constituição narcísica do eu, a partir da relação especular com o semelhante, implicará uma relação de tensão agressiva com o outro, pois, segundo Lacan, a alienação constituinte da Urbild do eu aparece na relação de exclusão que estrutura no sujeito, a partir daí, a relação dual do eu a eu. Pois, se a coaptação imaginária de um ao outro deveria fazer com que os papéis se distribuíssem complementarmente entre o notário e o notariado, por exemplo, a identificação precipitada do eu com o outro no sujeito tem o efeito de essa distribuição jamais constituir uma harmonia, nem mesmo cinética, porém instituir-se no “tu ou eu” permanente de uma guerra, na qual entra em jogo a existência de um ou outro dos notários em cada um dos sujeitos. Situação que se simboliza no “Tu estás outro” da querela transitivista, forma original da comunicação agressiva. 354 O eu envolve uma função de desconhecimento porque a partir do movimento de identificação do sujeito com o outro, não reconhece esta mediação, acreditando que o eu é igual ao eu. Tal função de desconhecimento do eu é também sua própria loucura, seu caráter presunçoso, na medida em que esquece a mediação do outro, como atenta Lacan no escrito “Formulações sobre a causalidade psíquica”. A identificação com a imagem do semelhante possibilita que o sujeito conheça quem é e 353 Idem, ibidem. 147
o quer, de modo que os objetos de seu desejo são os objetos do desejo do outro. Estas duas formas de conhecimento, mediadas pela relação com o outro, implicará no que Lacan chamou de conhecimento paranóico: o eu experimenta o outro como aquele que o persegue e quer roubar-lhe o que tem de mais próprio. Assim, o paciente do Dr. Chiz, ao invés de fascinar-se ante a imagem que vê no espelho, numa “assunção jubilatória de sua imagem”, como o bebê lacaniano, horroriza-se diante do seu não reconhecimento, numa espécie de estádio do espelho às avessas. A identificação sugerida pelo espaço virtual – e pelo cirurgião – falha, revelando a fratura do sujeito, cuja imagem não pode suturar. Poderíamos elucubrar no sentido de que para Alberto, naquele momento em que é surpreendido pela imagem especular, se produz uma quebra simbólico-imaginária, e o que se revela é o objeto a que jazia velado atrás da imagem, produzindo no sujeito um golpe de angústia. Não esqueçamos que é o registro simbólico, são os significantes que nos nomeiam que autentificam nossa própria imagem, permitindo que nos reconheçamos todos os dias. O grito de horror de Alberto ante a imagem refletida no espelho evoca Das Unheimliche freudiano, o inquietante, o estranho. Alberto “apalpava-se desesperado. Os olhos girogiravam no limite das órbitas infantis como num esforço para ver o rosto a que pertenciam”. 355 Mário com Freud e Benjamin 1. Conexões A narrativa de Mário de Andrade, à medida em que se afasta da ilusão referencial típica da tradição realista, vai focando o seu olhar numa dimensão subjetiva de suas personagens, seus conflitos, seus desejos, sonhos e pequenos acontecimentos do cotidiano. Nos Contos de Belazarte, cuja primeira edição é de 354 J. Lacan, “O estádio do espelho como formador da função do eu”, op. cit., p. 430. 355 M. de Andrade, op. cit., p. 135. O artigo de Freud, “O estranho” (1919), ressalta a ambigüidade do termo que envolve o familiar e conhecido, mas também o desconhecido, o inquietante. Diz Freud: “um estranho efeito se apresenta quando se apaga a distinção entre fantasia e realidade, quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós como realidade” (“Lo ominoso”, Obras completas, vol. XII, p. 244). Para usar um termo lacaniano, poderíamos substituir aqui realidade por real, removido de qualquer velamento fantasmático. Relaciona o estranho com a compulsão para a repetição, sobrepujando o princípio do prazer, de modo que algumas experiências se repetem com um caráter fatídico e inescapável, transformando o que pareceria uma coincidência inofensiva em algo sinistro e assustador. 148
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Lacan chamou <strong>de</strong> conhecimento paranóico: o eu experimenta o outro como aquele<br />
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Assim, o paciente do Dr. Chiz, ao invés <strong>de</strong> fascinar-se ante a imag<strong>em</strong> que vê<br />
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no sentido <strong>de</strong> que para Alberto, naquele momento <strong>em</strong> que é surpreendido pela<br />
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angústia. Não esqueçamos que é o registro simbólico, são os significantes que nos<br />
nomeiam que autentificam nossa própria imag<strong>em</strong>, permitindo que nos reconheçamos<br />
todos os dias. O grito <strong>de</strong> horror <strong>de</strong> Alberto ante a imag<strong>em</strong> refletida no espelho evoca<br />
Das Unheimliche freudiano, o inquietante, o estranho. Alberto “apalpava-se<br />
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para ver o rosto a que pertenciam”. 355<br />
<strong>Mário</strong> com Freud e Benjamin<br />
1. Conexões<br />
A narrativa <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, à medida <strong>em</strong> que se afasta da ilusão<br />
referencial típica da tradição realista, vai focando o seu olhar numa dimensão<br />
subjetiva <strong>de</strong> suas personagens, seus conflitos, seus <strong>de</strong>sejos, sonhos e pequenos<br />
acontecimentos do cotidiano. Nos Contos <strong>de</strong> Belazarte, cuja primeira edição é <strong>de</strong><br />
354 J. Lacan, “O estádio do espelho como formador da função do eu”, op. cit., p. 430.<br />
355 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, op. cit., p. 135. O artigo <strong>de</strong> Freud, “O estranho” (1919), ressalta a ambigüida<strong>de</strong> do<br />
termo que envolve o familiar e conhecido, mas também o <strong>de</strong>sconhecido, o inquietante. Diz Freud: “um<br />
estranho efeito se apresenta quando se apaga a distinção entre fantasia e realida<strong>de</strong>, quando algo que até<br />
então consi<strong>de</strong>rávamos imaginário surge diante <strong>de</strong> nós como realida<strong>de</strong>” (“Lo ominoso”, Obras<br />
completas, vol. XII, p. 244). Para usar um termo lacaniano, po<strong>de</strong>ríamos substituir aqui realida<strong>de</strong> por<br />
real, r<strong>em</strong>ovido <strong>de</strong> qualquer velamento fantasmático. Relaciona o estranho com a compulsão para a<br />
repetição, sobrepujando o princípio do prazer, <strong>de</strong> modo que algumas experiências se repet<strong>em</strong> com um<br />
caráter fatídico e inescapável, transformando o que pareceria uma coincidência inofensiva <strong>em</strong> algo<br />
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