Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ... Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
as anteriores. Mas se o estatuto do sujeito é o da falta em ser, ele seguirá a deriva metonímica do vetor do desejo na cadeia significante e nenhum destes significantes poderá esgotá-lo, dizer quem ele é. Há ainda um aspecto a ser comentado acerca do poema supracitado. Se com “Eu sou trezentos...” podemos articular a questão do sujeito ($) e suas identificações, com o verso “Mas um dia afinal eu toparei comigo...” poderíamos pensar no objeto a, enquanto ser de gozo, o que se revela ao sujeito depois que ele se desliga de suas identificações. Topar consigo seria, assim, topar-se com algo que não é significante, mas que aponta para o que somos como objeto pequeno a. Articulamos, desta forma, as duas faces topológicas do ser falante: o sujeito ($) e o objeto (a) . Lacan, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dirá, respondendo a uma pergunta de Jacques-Alain Miller: O objeto da pulsão deve ser situado no nível do que chamei metaforicamente uma subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso, uma estrutura, um traçado, que representa uma face da topologia. A outra face é a que faz com que um sujeito, por suas relações com o significante, seja um sujeito furado. 350 No já citado conto escrito em 1921, “História com data”, Mário de Andrade trata, em estilo satírico, de uma cirurgia de transplante de cérebro realizada num aviador de nome Alberto, após sofrer um acidente ao realizar acrobacias com o avião. Citando Gustave Le Bon (La psychologie du hasard), o narrador, que no conto exibe cientificismo, se refere à “ironia dos desastres”, pois, com o corpo intacto, somente um estilhaço do avião se alojara no cérebro do “arrojado aviador”, levado para a sala de cirurgias. Ao mesmo tempo, em outra sala, morre um homem de problemas cardíacos, sem qualquer lesão em seu cérebro. Um dos cirurgiões, “curioso inventivo, riquíssimo subconsciente”, propõe então uma moderna cirurgia de transplante de cérebro. O incansável Dr. Chiz acompanhará de perto a recuperação do paciente, ansioso pela verificação dos resultados. Acontece que ao olhar-se no espelho pela primeira vez após a cirurgia, o sujeito não se reconhece. Grita horrorizado, apavorado, escondendo os olhos com o braço. Num diálogo tragicômico, pergunta ao médico: - Quem é, seu doutor!... Quem é esse homem... 350 Idem, p. 174. 145
- Sossega, meu rapaz. Sou eu. - Não, o outro! - Estamos sós. Vem comigo! Atraía-o para o espelho. Alberto com lindas forças venceu o médico. - Não quero! - Sossega Alberto! - Alberto?...quem é Alberto! - És tu. - Eu! ... Não! deve ser o outro... o moço! 351 A partir daí se desenrola o drama de Alberto, que se acredita José, ou melhor, de José que se vê no corpo de Alberto. Alberto ou José? É a dúvida lançada pelo autor do conto, que parece mais uma vez ter-se inspirado em Ribot e seu livro sobre as mudanças de personalidade: Pathologie frénétique des changements de personalité. Nas notas de rodapé deste conto, aparece uma série de referências a teóricos da psicologia e da psicopatologia, além de Ribot, Bergson, Le Bon, James, Ebbinghaus, Woodworth e Lombroso. Falham todas as tentativas do “imprudente e glorioso cientista” de fazer com que o operário italiano José aceite ser o aviador Alberto. A experiência “científica” termina, e com ela a vida de Alberto/José, a partir da última tentativa do Dr. Chiz de confirmar o sucesso da cirurgia, baseado na crença de uma memória muscular: “... Tão linda a operação! mas o cérebro é que sente... que manda... mas o corpo... aviador... avião... memória muscular... é milhor... sim, é milhor. Acaba-se duma vez”. 352 Alberto é conduzido pelo cirurgião a dirigir um avião, e enfim “os dois ‘ilustres representantes da ciência e do esporte paulistano’ foram se espedaçar muito longe nos campos vazios”. Mário de Andrade utiliza-se da metáfora do cérebro como sede da personalidade, da identidade do sujeito. O corpo é o de Alberto, mas a personalidade é de José. No entanto, as atividades automáticas, como pegar as meias, as botinas, o pijama roxo, eram as de Alberto, o que não o priva de equivocar-se, de “se tromper de lisière” (como diz a personagem Mademoiselle de “Atrás da catedral de Ruão”). Dura sorte de um ser híbrido, heterogêneo. Para complicar as coisas, a biografia de José incluía a culpa pela morte de dois filhos, em cumplicidade com a esposa. Confusão: 351 M. de Andrade, “História com data”, op. cit., p. 135. 352 Idem, p.151. A crítica cortante aos abusos da ciência e da prática médicas, que despontam neste conto, também a encontramos em vários contos e crônicas de Machado de Assis, dentre eles “O alienista”. 146
- Page 101 and 102: sabedoria foi proclamada pelos dada
- Page 103 and 104: do Rio de Janeiro. Além de Febrôn
- Page 105 and 106: Ao juiz, durante seu processo no Tr
- Page 107 and 108: pesquisas em psicologia, psiquiatri
- Page 109 and 110: particulares, manchas. A descriçã
- Page 111 and 112: No artigo publicado na revista Le M
- Page 113 and 114: que caracterizaria a paranóia seri
- Page 115 and 116: sacrifícios ao sujeito: a apariç
- Page 117 and 118: Não esqueçamos, todavia, que mesm
- Page 119 and 120: É detenção, fixação (fixierung
- Page 121 and 122: Gláucia Bastos, Como se escreve Fe
- Page 123 and 124: Os relatos que temos sobre Febrôni
- Page 125 and 126: sentimentos que animam as suas fant
- Page 127 and 128: Em artigo crítico de 12 de novembr
- Page 129 and 130: sem que este soubesse estar ao lado
- Page 131 and 132: Vincent Kaufmann, no texto “Artau
- Page 133 and 134: texto literário, como ficção no
- Page 135 and 136: Supraconsciente Em 1921, quando esc
- Page 137 and 138: (1895). Já em A interpretação do
- Page 139 and 140: de uma função específica, limita
- Page 141 and 142: a que nem posso chamar de falta de
- Page 143 and 144: Eu, que era o homem do grupo, tiver
- Page 145 and 146: dom da voz” se articulam os três
- Page 147 and 148: para a ascendência da crônica “
- Page 149 and 150: Freud pôde “estender à vida an
- Page 151: Múltiplo (...) insubordinado ao en
- Page 155 and 156: o quer, de modo que os objetos de s
- Page 157 and 158: ou sobre o colecionador demonstram
- Page 159 and 160: adolescente que foi, e as lembranç
- Page 161 and 162: distraído. Nulificação dos morto
- Page 163 and 164: inconsciente. Benjamin olhava para
- Page 165 and 166: condição do arquivo envolveria um
- Page 167 and 168: escritura pode funcionar como suple
- Page 169 and 170: Rabello, “o espaço da escrita si
- Page 171 and 172: Não há como aceder a um sentido p
- Page 173 and 174: diz Lacan, asseverando que este de
- Page 175 and 176: O “Poema escrito aos dez anos”
- Page 177 and 178: Ao finalizar o percurso que realiza
- Page 179 and 180: lado, de viés, é o modo próprio
- Page 181 and 182: Andrade. Encontramos, ainda, uma tr
- Page 183 and 184: de muita essencialidade poética, e
- Page 185 and 186: provérbio”, e como ele lida com
- Page 187 and 188: 1. Do autor ANDRADE, Mário de. Os
- Page 189 and 190: 2. Sobre o autor ANDRADE, Ana L.
- Page 191 and 192: DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, Carole; DEF
- Page 193 and 194: HANNS, Luiz. Dicionário comentado
- Page 195 and 196: _______. “Sobre o Gide de Lacan
- Page 197 and 198: __________. Obras escolhidas vol. I
- Page 199 and 200: FRY, Peter. “Febrônio Índio do
- Page 201 and 202: Anexos
as anteriores. Mas se o estatuto do sujeito é o da falta <strong>em</strong> ser, ele seguirá a <strong>de</strong>riva<br />
metonímica do vetor do <strong>de</strong>sejo na ca<strong>de</strong>ia significante e nenhum <strong>de</strong>stes significantes<br />
po<strong>de</strong>rá esgotá-lo, dizer qu<strong>em</strong> ele é.<br />
Há ainda um aspecto a ser comentado acerca do po<strong>em</strong>a supracitado. Se com<br />
“Eu sou trezentos...” pod<strong>em</strong>os articular a questão do sujeito ($) e suas i<strong>de</strong>ntificações,<br />
com o verso “Mas um dia afinal eu toparei comigo...” po<strong>de</strong>ríamos pensar no objeto a,<br />
enquanto ser <strong>de</strong> gozo, o que se revela ao sujeito <strong>de</strong>pois que ele se <strong>de</strong>sliga <strong>de</strong> suas<br />
i<strong>de</strong>ntificações. Topar consigo seria, assim, topar-se com algo que não é significante,<br />
mas que aponta para o que somos como objeto pequeno a. Articulamos, <strong>de</strong>sta forma,<br />
as duas faces topológicas do ser falante: o sujeito ($) e o objeto (a) . Lacan, no<br />
s<strong>em</strong>inário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dirá, respon<strong>de</strong>ndo<br />
a uma pergunta <strong>de</strong> Jacques-Alain Miller:<br />
O objeto da pulsão <strong>de</strong>ve ser situado no nível do que chamei metaforicamente<br />
uma subjetivação acéfala, uma subjetivação s<strong>em</strong> sujeito, um osso, uma<br />
estrutura, um traçado, que representa uma face da topologia. A outra face é a<br />
que faz com que um sujeito, por suas relações com o significante, seja um<br />
sujeito furado. 350<br />
No já citado conto escrito <strong>em</strong> 1921, “História com data”, <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
trata, <strong>em</strong> estilo satírico, <strong>de</strong> uma cirurgia <strong>de</strong> transplante <strong>de</strong> cérebro realizada num<br />
aviador <strong>de</strong> nome Alberto, após sofrer um aci<strong>de</strong>nte ao realizar acrobacias com o avião.<br />
Citando Gustave Le Bon (La psychologie du hasard), o narrador, que no conto exibe<br />
cientificismo, se refere à “ironia dos <strong>de</strong>sastres”, pois, com o corpo intacto, somente<br />
um estilhaço do avião se alojara no cérebro do “arrojado aviador”, levado para a sala<br />
<strong>de</strong> cirurgias. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> outra sala, morre um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as<br />
cardíacos, s<strong>em</strong> qualquer lesão <strong>em</strong> seu cérebro. Um dos cirurgiões, “curioso inventivo,<br />
riquíssimo subconsciente”, propõe então uma mo<strong>de</strong>rna cirurgia <strong>de</strong> transplante <strong>de</strong><br />
cérebro. O incansável Dr. Chiz acompanhará <strong>de</strong> perto a recuperação do paciente,<br />
ansioso pela verificação dos resultados. Acontece que ao olhar-se no espelho pela<br />
primeira vez após a cirurgia, o sujeito não se reconhece. Grita horrorizado, apavorado,<br />
escon<strong>de</strong>ndo os olhos com o braço. Num diálogo tragicômico, pergunta ao médico:<br />
- Qu<strong>em</strong> é, seu doutor!... Qu<strong>em</strong> é esse hom<strong>em</strong>...<br />
350 Id<strong>em</strong>, p. 174.<br />
145