Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Esse sujeito, que é puro vazio, i<strong>de</strong>ntifica-se com os significantes que lhe vêm<br />
do Outro, marcando-lhe um lugar na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais. Po<strong>de</strong> então apresentarse<br />
como estudante, professor, poeta, escritor e tantos outros significantes que o<br />
represent<strong>em</strong>, mas que não coincid<strong>em</strong> com ele. 347 Pois o sujeito ex-siste <strong>em</strong> relação à<br />
ca<strong>de</strong>ia significante. O efeito <strong>de</strong> divisão provocado pela incidência da linguag<strong>em</strong> no ser<br />
falante abre uma fenda entre sujeito e i<strong>de</strong>ntificação, o que estamos acostumados a<br />
<strong>de</strong>signar como eu, relançando continuamente a pergunta por qu<strong>em</strong> eu sou e o que<br />
<strong>de</strong>sejo. Tal diferença entre o sujeito e as suas i<strong>de</strong>ntificações é retratada por <strong>Mário</strong> <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plarmente quando afirma: “sou <strong>em</strong> dois”, b<strong>em</strong> como no célebre po<strong>em</strong>a<br />
“Eu sou trezentos...”, 348 no qual o poeta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s múltiplas aspira um dia<br />
encontrar a sua unida<strong>de</strong>:<br />
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />
As sensações renasc<strong>em</strong> <strong>de</strong> si mesmas s<strong>em</strong> repouso<br />
Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras!<br />
Si um Deus morrer, irei no Piauí buscar outro!<br />
Abraço no meu leito as milhores palavras<br />
E os suspiros que dou são violinos alheios;<br />
Eu piso a terra como qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobre a furto<br />
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!<br />
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />
Mas um dia afinal eu toparei comigo...<br />
Tenhamos paciência , andorinhas curtas,<br />
Só o esquecimento é que con<strong>de</strong>nsa<br />
E então minha alma servirá <strong>de</strong> abrigo<br />
Kossovitch assinala a relação existente, nos textos andradinos, seja <strong>de</strong> prosa ou<br />
poesia, ficção ou crítica, entre o Um (do significado) e o Múltiplo (da diss<strong>em</strong>inação),<br />
ou seja, a busca da unificação do sujeito, por um lado, e por outro a afirmação da<br />
multiplicida<strong>de</strong>; paradoxo que não se resolve numa solução dialética. Assim, o sujeito<br />
da enunciação po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se ao sujeito do enunciado, dissolver-se<br />
polifonicamente <strong>em</strong> personagens, narradores, diferentes figuras e enunciadores. Ainda<br />
que se queira idêntico, uno, “ ‘trezentos-e-cincoenta’ é enunciado <strong>de</strong> enunciador<br />
346 Id<strong>em</strong>, p.30.<br />
347 Aqui nos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong>os ao célebre axioma <strong>de</strong> Lacan: “um significante é o que representa um sujeito<br />
para outro significante” ( Escritos, p. 854).<br />
348 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Eu sou trezentos...”, R<strong>em</strong>ate <strong>de</strong> Males, Poesias completas, p. 211.<br />
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