Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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O que quer<strong>em</strong>os realçar não é a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma das posições, <strong>Mário</strong> ou<br />
Machado, tradição versus vanguarda, 335 mas o lugar <strong>de</strong> I<strong>de</strong>al que Machado <strong>de</strong> Assis<br />
ocupava para <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, e o que isso implicava na sua relação com ele. É o<br />
que Freud <strong>de</strong>nominou I<strong>de</strong>al do eu; Freud tratou <strong>de</strong>le, entre outros textos, na<br />
Psicologia das massas e análise do eu, ao discutir a relação com a figura do<br />
hipnotizador, do lí<strong>de</strong>r e do objeto amado. Conforme Lacan, “o sujeito vê o seu ser<br />
numa reflexão <strong>em</strong> relação ao outro, isto é, <strong>em</strong> relação ao Ich-I<strong>de</strong>al”. 336 O sujeito se<br />
me<strong>de</strong>, se critica segundo os critérios e valores do i<strong>de</strong>al. Por ocupar tal lugar para<br />
<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, o nome <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis ficou recalcado através do lapso,<br />
quando o viajante <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer discursos <strong>de</strong> improviso, coisa que Machado <strong>de</strong> Assis<br />
teria censurado (ao menos o Machado <strong>de</strong> <strong>Mário</strong>). Aqueles que encarnam este lugar<br />
também amamos, ainda que possamos transgredi-los. Porque o que dá consistência ao<br />
i<strong>de</strong>al é o objeto pequeno a, com seu caráter libidinal, velado sob os s<strong>em</strong>blantes.<br />
No artigo sobre Machado, <strong>Mário</strong> refere que “a l<strong>em</strong>brança do hom<strong>em</strong> faz com<br />
que me irrite freqüent<strong>em</strong>ente com a obra, ao passo que o encanto <strong>de</strong>sta exige <strong>de</strong> mim<br />
dar a qu<strong>em</strong> a fez um amor, um anseio <strong>de</strong> presença e concordância a que meu ser se<br />
recusa”. 337 Esta passag<strong>em</strong> sugere uma ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentos para com o mestre,<br />
a qu<strong>em</strong> se recusa amar, provavelmente pelas críticas que lhe faz, pelo que representou<br />
<strong>de</strong> tradição, acad<strong>em</strong>icismo, imobilida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> oposição aos valores mo<strong>de</strong>rnistas <strong>de</strong><br />
<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Há um sonho relatado por <strong>Mário</strong> <strong>em</strong> O turista aprendiz, que nos<br />
mostra mais uma vez o <strong>de</strong>staque da figura <strong>de</strong> Machado. Este lhe aparece <strong>de</strong> barba<br />
feita, contando que estava no inferno. “Coitado... Ele se riu mansinho e esclareceu:<br />
‘Mas estou no inferno <strong>de</strong> Dante, no lugar pra on<strong>de</strong> vão os poetas. O único sofrimento<br />
é a convivência”. 338 No artigo crítico já citado, <strong>Mário</strong> ilustra com trechos da poesia <strong>de</strong><br />
Machado ecos que encontra da Divina comédia.<br />
Mas se por um lado o nome <strong>de</strong> Machado funcionou como censura, inibição,<br />
por outro lado <strong>Mário</strong> soube <strong>de</strong>le fazer uso, reinventando com ele e a partir <strong>de</strong>le. No<br />
livro Transportes pelo olhar <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, Ana L. Andra<strong>de</strong> chama a atenção<br />
335 Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> no ensaio “O antropófago” (Estética e Política, Obras Completas), sustenta que<br />
“a reação é s<strong>em</strong>pre o passado. Deix<strong>em</strong>os passado e não tradição, pois na tradição pod<strong>em</strong> ser<br />
encontrados pontos <strong>de</strong> referência e apoio para o progresso. Mas o passado – no que ele guarda <strong>de</strong> mofo<br />
e <strong>de</strong> pesado compromisso com a morte”. Creio que po<strong>de</strong>ríamos esten<strong>de</strong>r esta posição a <strong>Mário</strong>, na<br />
medida <strong>em</strong> que este rechaça o que chamava <strong>de</strong> passadismo e não o legado transmitido pela tradição<br />
literária, que conhecia profundamente, sabendo <strong>de</strong>la fazer uso.<br />
336 J. Lacan, “Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud”, O s<strong>em</strong>inário, livro 1, p.148.<br />
337 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, op. cit., p. 103.<br />
338 Id<strong>em</strong>, O turista aprendiz, p.53.<br />
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