Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Eu, que era o hom<strong>em</strong> do grupo, tivera até esse dia a timi<strong>de</strong>z intelectual <strong>de</strong><br />
jamais falar <strong>em</strong> público, jamais improvisar. Já algumas vezes lera <strong>em</strong> público,<br />
manifestação honrada e pertencente ao domínio da inteligência, e que nada<br />
t<strong>em</strong> a ver com falar. Eis que <strong>de</strong> repente,(...) um orador se levantou e veio pra<br />
cima <strong>de</strong> mim com um discurso <strong>de</strong> saudação. Digo que o discurso veio pra cima<br />
<strong>de</strong> mim, não porque fosse a mim dirigido, era com toda a justiça en<strong>de</strong>reçado à<br />
rainha <strong>de</strong> todos nós. Mas logo percebi que a mim, hom<strong>em</strong> do grupo e tido às<br />
vezes por poeta, caberia respon<strong>de</strong>r. Ainda a timi<strong>de</strong>z me obrigou a hesitar <strong>em</strong><br />
meu bom-senso açaimado, mas D. Olívia me fez um graciosíssimo pedido com<br />
olhar. E penetrei na onda convulsa da pororoca. 325<br />
Nosso poeta, cheio <strong>de</strong> bom senso e cautela intelectual, <strong>de</strong>ixa-se levar pelo pedido, o<br />
<strong>de</strong>licado gesto da rainha <strong>de</strong> seu coração. Em O turista aprendiz, o mesmo fato é<br />
brev<strong>em</strong>ente narrado, i<strong>de</strong>ntificando o prefeito como o nobre orador que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
momento <strong>em</strong> que se ergueu lhe <strong>de</strong>ixou “<strong>em</strong> brasas”, por compreen<strong>de</strong>r que a resposta<br />
lhe caberia.<br />
Veio uma nuv<strong>em</strong> que escureceu minha vista, fui me levantando fatalizado, e<br />
veio uma idéia. Ou coisa parecida. Falei que tudo era muito lindo, que<br />
estávamos maravilhados, e idênticas besteiras verda<strong>de</strong>iríssimas, e soltei a<br />
idéia: nos sentíamos tão <strong>em</strong> casa (que mentira!) que nos parecia que tinham se<br />
eliminado os limites estaduais! Sentei como qu<strong>em</strong> tinha levado uma surra <strong>de</strong><br />
pau. Mas a idéia tinha... tinham gostado. 326<br />
A tal idéia, segundo explicação do narrador, significava que os homens seriam<br />
iguais <strong>em</strong> todos os lugares, norte ou sul, estando associada a frase <strong>de</strong> um “gran<strong>de</strong><br />
poeta” e proferida no <strong>em</strong>polgado discurso: “Tendo um só coração e um só rosto”.<br />
Nas cida<strong>de</strong>s por on<strong>de</strong> a caravana seguiria, o poeta seria ainda parafraseado por <strong>Mário</strong><br />
<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, inúmeras vezes. Curioso é que, por mais repetida que fosse a frase <strong>em</strong><br />
seus discursos, o orador não conseguia recordar o nome do autor. Somente quando já<br />
se distanciava daquelas situações pô<strong>de</strong> l<strong>em</strong>brá-lo.<br />
Qu<strong>em</strong> me trouxe à razão foi o ‘gran<strong>de</strong> poeta’(...). O nome sagrado <strong>de</strong> Machado<br />
<strong>de</strong> Assis, que nunca fez discursos <strong>de</strong> improviso, se recalcara no subconsciente<br />
como terrível censura à minha confiança <strong>em</strong> mim. Só quando estava já no mar<br />
oceano, <strong>de</strong> volta, s<strong>em</strong> probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> botar discurso mais, o nome do poeta<br />
me tornou à l<strong>em</strong>brança. Caí <strong>em</strong> mim. 327<br />
325 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, op. cit., p.157.<br />
326 Id<strong>em</strong>, O turista aprendiz, pp. 62-63.<br />
327 Id<strong>em</strong>, op. cit., p.153.<br />
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