Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ... Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Em consonância com esta idéia, Soler afirma em seu texto “O sujeito psicótico na psicanálise” que na psicose há um destinatário: o paranóico pode apelar ao procurador da república, Rousseau confiou na posteridade, Joyce pretendeu ocupar os estudiosos de sua obra durante anos, e Schreber em suas Memórias se dirigia aos cientistas do futuro. Freud se constituiu para Schreber neste destinatário, na medida em que se interessou por sua obra, alguns anos depois da publicação, selando o encontro entre a psicanálise e a psicose. Podemos aventar a hipótese de que o escrito de Febrônio também tinha um destinatário virtual e que malgrado a queima dos livros, bem como os artigos críticos que o desqualificavam totalmente, Mário de Andrade, ao preservar o livro em sua biblioteca e escrever sobre ele do modo como escreveu, foi o destinatário por excelência que respondeu à mensagem lançada por Febrônio. A carta, mais uma vez, por vias que desconhecemos, chegou ao seu destino. Como sublinha Miller, Lacan foi “ alguém que se pôs eminentemente a questão do destinatário”, 295 lembrando que este foi o autor de “A carta roubada”, “A instância da letra no inconsciente” e do escrito “ Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, nos quais se volta para as relações do homem com a letra. 296 Neste último escrito, Lacan dialoga todo o tempo com a obra de Jean Delay La jeunesse de André Gide, e apresenta a sua tese de que todo o material a que teve acesso o psicobiógrafo, notas pessoais de Gide, a vasta correspondência com sua mãe e mais uma série de cartas inéditas, havia-lhe sido endereçado; a ele e a todos nós: Digamos que, deixando a Jean Delay a tarefa de escrever em seu lugar sobre suas notinhas, Gide não ignorava que Jean Delay sabia escrever (...). Mas sabia ainda que Jean Delay era um psiquiatra eminente e que, numa palavra, era no psicobiógrafo que suas notinhas encontrariam sua destinação de sempre. 297 Lacan dá importância ao livro de Delay, ao ponto de considerá-lo como “complemento indispensável da obra” de André Gide, funcionando ao modo de prefácio. Miller, a partir de Lacan, afirma que o psicobiógrafo estava “previsto pelo autor que já havia destinado o lugar de seu parceiro a vir”. 295 J-A. Miller. “Sobre o Gide de Lacan”, Opção lacaniana, nº 22, p.22. 296 Lettre em francês, com sua dupla acepção de letra e de carta, que convém a Lacan e também a nós. 297 Idem, “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, Escritos, p. 754. Foi publicado na revista Critique nº 131, abril de 1958. 123
Vincent Kaufmann, no texto “Artaud: loucuras epistolares”, circunscreve, a partir da correspondência de Antonin Artaud com Jacques Rivière, “o espaço literário como lugar de engendramento ou de reconstituição do sujeito”. É nesse sentido que Lacan parece ter situado as Memórias de Schreber, ao sublinhar que elas consistiram numa “longa construção que foi para ele a solução de sua aventura interior”. 298 Rivière, então secretário da Nouvelle Revue Française, rechaça alguns poemas de Artaud por considerá-los de pouco valor estético, mas, ao cabo de um certo tempo, propõe publicar a correspondência que entre os dois se estabelece, na qual Artaud procura justificar seu desejo de publicar textos. Artaud, que aceitará imediatamente a proposta de Rivière como se não houvesse estado esperando outra coisa, ingressa na literatura por um efeito de substituição (cartas por poemas), e um efeito de compensação: a correspondência com Rivière vem reparar em todos os sentidos do termo uma falta de destinatário e uma dificuldade de expressão (...). O secretário da NRF intervém ali onde a palavra poética não chega a coagular, ali onde falta um leitor ideal, que Artaud é incapaz de apreender para lhe destinar uma palavra, um leitor que ele não consegue imaginar, nem desejar, e que condena a sua ‘obra’ a um desgaste perpétuo e centrífugo. 299 O interessante é que Artaud não aceita a proposta de Rivière de lançar mão do artifício de substituição de nomes, trocas de datas e lugares, pois ele pretende criar um espaço de autenticidade (e não de fantasia) oferecendo ao leitor “o grito da vida”, “a substância da alma”, de maneira a que o leitor pense estar diante de uma novela vivida. Febrônio, aquele que não assina o seu livro, o que troca de nomes por onde passa 300 , o que forcluiu o nome-do-pai, deixa, no entanto, sua assinatura no sócius, nome estampado nos jornais, nos relatórios médicos, nos processos judiciais, na gíria 298 S. Laia no livro Os escritos fora de si – Joyce, Lacan e a loucura, propõe “abordar a obra como um campo de gozo em que o autor tenta amarrar a trama de sua vida”. Diz ele, tomando certa distância da concepção barthesiana da morte do autor – já que para a psicanálise, além da mortificação produzida pelo significante, há restos de vida que escapam à mortificação, que são os objetos petit a, como campo de gozo –: “Lacan ensina-nos que o autor, e sobretudo Joyce, goza de sua obra – há um uso que o autor faz da própria criação, e um uso que escapa a toda concepção psicológica do autor ou da obra” ( p. 95). 299 V. Kaufmann. “Artaud: locuras epistolares”, La psicosis en el texto, pp. 44-45. 300 Conforme anotações do Processo-Crime de Febrônio, recolhidas por Peter Fry, o nome que aparece registrado numa carta, na qual o irmão de Febrônio solicita um novo exame de sanidade mental para o mesmo, é Febrônio Ferreira de Mattos. F. Índio do Brasil é um dos nomes que ele inventa para si. Nas cidades por onde passou, atuando como falso médico ou dentista, utilizava outro pseudônimo. 124
- Page 79 and 80: Entre o significante enigmático do
- Page 81 and 82: epetição de personagens e alguns
- Page 83 and 84: vazio. E quando a criança chega a
- Page 85 and 86: - “Meu Deus! que gelo! que frieza
- Page 87 and 88: escapatórias assim” 177 . Mário
- Page 89 and 90: everberar o eco dos significantes d
- Page 91 and 92: eprodução, conservando assim todo
- Page 93 and 94: artigo sobre o narcisismo, Freud es
- Page 95 and 96: acontecimento. Poderíamos pensar q
- Page 97 and 98: Capítulo III - Loucura 90
- Page 99 and 100: que não posso me queixar em nada
- Page 101 and 102: sabedoria foi proclamada pelos dada
- Page 103 and 104: do Rio de Janeiro. Além de Febrôn
- Page 105 and 106: Ao juiz, durante seu processo no Tr
- Page 107 and 108: pesquisas em psicologia, psiquiatri
- Page 109 and 110: particulares, manchas. A descriçã
- Page 111 and 112: No artigo publicado na revista Le M
- Page 113 and 114: que caracterizaria a paranóia seri
- Page 115 and 116: sacrifícios ao sujeito: a apariç
- Page 117 and 118: Não esqueçamos, todavia, que mesm
- Page 119 and 120: É detenção, fixação (fixierung
- Page 121 and 122: Gláucia Bastos, Como se escreve Fe
- Page 123 and 124: Os relatos que temos sobre Febrôni
- Page 125 and 126: sentimentos que animam as suas fant
- Page 127 and 128: Em artigo crítico de 12 de novembr
- Page 129: sem que este soubesse estar ao lado
- Page 133 and 134: texto literário, como ficção no
- Page 135 and 136: Supraconsciente Em 1921, quando esc
- Page 137 and 138: (1895). Já em A interpretação do
- Page 139 and 140: de uma função específica, limita
- Page 141 and 142: a que nem posso chamar de falta de
- Page 143 and 144: Eu, que era o homem do grupo, tiver
- Page 145 and 146: dom da voz” se articulam os três
- Page 147 and 148: para a ascendência da crônica “
- Page 149 and 150: Freud pôde “estender à vida an
- Page 151 and 152: Múltiplo (...) insubordinado ao en
- Page 153 and 154: - Sossega, meu rapaz. Sou eu. - Nã
- Page 155 and 156: o quer, de modo que os objetos de s
- Page 157 and 158: ou sobre o colecionador demonstram
- Page 159 and 160: adolescente que foi, e as lembranç
- Page 161 and 162: distraído. Nulificação dos morto
- Page 163 and 164: inconsciente. Benjamin olhava para
- Page 165 and 166: condição do arquivo envolveria um
- Page 167 and 168: escritura pode funcionar como suple
- Page 169 and 170: Rabello, “o espaço da escrita si
- Page 171 and 172: Não há como aceder a um sentido p
- Page 173 and 174: diz Lacan, asseverando que este de
- Page 175 and 176: O “Poema escrito aos dez anos”
- Page 177 and 178: Ao finalizar o percurso que realiza
- Page 179 and 180: lado, de viés, é o modo próprio
Vincent Kaufmann, no texto “Artaud: loucuras epistolares”, circunscreve, a<br />
partir da correspondência <strong>de</strong> Antonin Artaud com Jacques Rivière, “o espaço literário<br />
como lugar <strong>de</strong> engendramento ou <strong>de</strong> reconstituição do sujeito”. É nesse sentido que<br />
Lacan parece ter situado as M<strong>em</strong>órias <strong>de</strong> Schreber, ao sublinhar que elas consistiram<br />
numa “longa construção que foi para ele a solução <strong>de</strong> sua aventura interior”. 298<br />
Rivière, então secretário da Nouvelle Revue Française, rechaça alguns po<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />
Artaud por consi<strong>de</strong>rá-los <strong>de</strong> pouco valor estético, mas, ao cabo <strong>de</strong> um certo t<strong>em</strong>po,<br />
propõe publicar a correspondência que entre os dois se estabelece, na qual Artaud<br />
procura justificar seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> publicar textos.<br />
Artaud, que aceitará imediatamente a proposta <strong>de</strong> Rivière como se não<br />
houvesse estado esperando outra coisa, ingressa na literatura por um efeito <strong>de</strong><br />
substituição (cartas por po<strong>em</strong>as), e um efeito <strong>de</strong> compensação: a<br />
correspondência com Rivière v<strong>em</strong> reparar <strong>em</strong> todos os sentidos do termo uma<br />
falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>stinatário e uma dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão (...). O secretário da NRF<br />
intervém ali on<strong>de</strong> a palavra poética não chega a coagular, ali on<strong>de</strong> falta um<br />
leitor i<strong>de</strong>al, que Artaud é incapaz <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r para lhe <strong>de</strong>stinar uma palavra,<br />
um leitor que ele não consegue imaginar, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejar, e que con<strong>de</strong>na a sua<br />
‘obra’ a um <strong>de</strong>sgaste perpétuo e centrífugo. 299<br />
O interessante é que Artaud não aceita a proposta <strong>de</strong> Rivière <strong>de</strong> lançar mão do<br />
artifício <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> nomes, trocas <strong>de</strong> datas e lugares, pois ele preten<strong>de</strong> criar um<br />
espaço <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> (e não <strong>de</strong> fantasia) oferecendo ao leitor “o grito da vida”, “a<br />
substância da alma”, <strong>de</strong> maneira a que o leitor pense estar diante <strong>de</strong> uma novela<br />
vivida.<br />
Febrônio, aquele que não assina o seu livro, o que troca <strong>de</strong> nomes por on<strong>de</strong><br />
passa 300 , o que forcluiu o nome-do-pai, <strong>de</strong>ixa, no entanto, sua assinatura no sócius,<br />
nome estampado nos jornais, nos relatórios médicos, nos processos judiciais, na gíria<br />
298 S. Laia no livro Os escritos fora <strong>de</strong> si – Joyce, Lacan e a loucura, propõe “abordar a obra como um<br />
campo <strong>de</strong> gozo <strong>em</strong> que o autor tenta amarrar a trama <strong>de</strong> sua vida”. Diz ele, tomando certa distância da<br />
concepção barthesiana da morte do autor – já que para a psicanálise, além da mortificação produzida<br />
pelo significante, há restos <strong>de</strong> vida que escapam à mortificação, que são os objetos petit a, como campo<br />
<strong>de</strong> gozo –: “Lacan ensina-nos que o autor, e sobretudo Joyce, goza <strong>de</strong> sua obra – há um uso que o autor<br />
faz da própria criação, e um uso que escapa a toda concepção psicológica do autor ou da obra” ( p. 95).<br />
299 V. Kaufmann. “Artaud: locuras epistolares”, La psicosis en el texto, pp. 44-45.<br />
300 Conforme anotações do Processo-Crime <strong>de</strong> Febrônio, recolhidas por Peter Fry, o nome que aparece<br />
registrado numa carta, na qual o irmão <strong>de</strong> Febrônio solicita um novo exame <strong>de</strong> sanida<strong>de</strong> mental para o<br />
mesmo, é Febrônio Ferreira <strong>de</strong> Mattos. F. Índio do Brasil é um dos nomes que ele inventa para si. Nas<br />
cida<strong>de</strong>s por on<strong>de</strong> passou, atuando como falso médico ou <strong>de</strong>ntista, utilizava outro pseudônimo.<br />
124