Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Em artigo crítico <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1939, no jornal O Estado <strong>de</strong> São<br />
Paulo, <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> comenta o livro As revelações do príncipe do fogo, treze<br />
anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua publicação, passado o furor inicial das notícias que saíam na<br />
imprensa sobre os crimes <strong>de</strong> Febrônio. Inicia o artigo com uma crítica feroz ao<br />
individualismo que encontra <strong>em</strong> certas manifestações messiânicas <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong><br />
coletiva, que chegam a substituir a noção <strong>de</strong> um Deus ritual por “<strong>de</strong>usinhos <strong>de</strong> meia<br />
tigela”, i<strong>de</strong>ntificados com a figura <strong>de</strong> algum pregador. Acredita que a religião<br />
protestante tenha contribuído para a exacerbação <strong>de</strong>ste individualismo, 285 encontrado<br />
nos pregadores religiosos do Jardim da Luz. Descreve a cena das pessoas <strong>em</strong> volta<br />
<strong>de</strong>stes homens, geralmente nor<strong>de</strong>stinos, ouvindo as maravilhas <strong>de</strong> uma religião<br />
perfeita e as promessas <strong>de</strong> uma vida melhor. Estes profetas que criticam padres e<br />
igrejas, no entanto, não incentivam a participação <strong>em</strong> cultos religiosos, mas a<br />
louvação <strong>de</strong> si próprios. “A santida<strong>de</strong> está com eles, são todos eles uns Antônios<br />
Conselheiros ainda no ovo, que a indiferença urbana se esquece <strong>de</strong> chocar, únicos<br />
a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> sua Bíblia, lá <strong>de</strong>les, ensebada e <strong>de</strong>coradinha do princípio ao fim”. 286 O<br />
autor das Revelações, que para <strong>Mário</strong> se revela idêntico aos santos pregadores do<br />
Jardim da Luz, d<strong>em</strong>onstra ter lido muito b<strong>em</strong> a Bíblia, citada constant<strong>em</strong>ente; <strong>de</strong><br />
modo especial, o Apocalipse parece ter-lhe servido <strong>de</strong> inspiração. As anotações<br />
marginais que constam no ex<strong>em</strong>plar do livro <strong>em</strong> questão sustentam as opiniões do<br />
crítico no jornal: “Mesma base protestante, anti-imagens. Destrói os <strong>de</strong>uses para ser<br />
ele o <strong>de</strong>usinho. Ataca as imagens, só que muito superior <strong>em</strong> mística poética”. 287<br />
Apesar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o livro um tanto obscuro, “difícil <strong>de</strong> interpretar<br />
claramente <strong>em</strong> seus princípios, direi... genealógicos”, dos erros gramaticais, das suas<br />
285 J-A. Miller, no artigo “O sintoma como aparelho”, afirma que “graças a Lutero a renovação<br />
sensacional do sentimento <strong>de</strong> culpa <strong>de</strong>u lugar à psicanálise”. Enquanto o catolicismo s<strong>em</strong>pre achou<br />
formas <strong>de</strong> pagar as culpas, Lutero se insurgiu contra a venda <strong>de</strong> papéis que liquidavam o sentimento <strong>de</strong><br />
culpa. O protestante, por ser alguém que está s<strong>em</strong>pre sendo julgado por Deus, o qual dará seu veredicto<br />
somente no final, é alguém extr<strong>em</strong>amente culpado, e por isso analisável. Situando o protestantismo<br />
como a religião do “não” e o catolicismo como a religião do “sim”, aponta que o gesto <strong>de</strong> Lutero <strong>de</strong><br />
dizer não ao po<strong>de</strong>r da Igreja dá orig<strong>em</strong> ao individualismo mo<strong>de</strong>rno, “através do kantismo e da filosofia<br />
al<strong>em</strong>ã”. O direito do sujeito <strong>de</strong> dizer não, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer, teria surgido, conforme Miller, a partir<br />
da convicção protestante (Cf O sintoma-charlatão, 1998, pp 09-21).<br />
286 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Um poeta mystico”, Jornal O Estado <strong>de</strong> São Paulo, 12/11/39. Arquivos do IEB.<br />
<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> escreve o artigo nove anos <strong>de</strong>pois da publicação do livro, pelo que tudo indica,<br />
quando este lhe caiu nas mãos. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Antonio Conselheiro, assim como <strong>de</strong> outros<br />
pregadores, Febrônio não conseguiu a<strong>de</strong>ptos para a sua Bíblia, seguidores que reconhecess<strong>em</strong> nele a<br />
palavra divina. Pod<strong>em</strong>os pensar que esta fala solitária, que não faz laço social, é uma das características<br />
da fala do psicótico, que, apesar <strong>de</strong> estar imerso na linguag<strong>em</strong>, se encontra fora dos discursos.<br />
287 F. Índio do Brasil, As revelações do príncipe do fogo, RJ: Pap. e Typ. Monteiro & Borrelli, 1926. O<br />
ex<strong>em</strong>plar consta da Biblioteca <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> no IEB/USP.<br />
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