Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

o discurso histérico. 270 Afinal de contas, os significantes “doido” ou “caso perdido”, aos quais Juca se identifica, vieram-lhe do Outro familiar e podemos cogitar que este significante que articulava uma satisfação lhe permitiu, numa primeira atitude modernista, quebrar barreiras, ultrapassando limites impostos pela tradição. Ruth S. Brandão, no ensaio “A última ceia do pai”, aludindo à atitude de Juca no conto “O peru de natal” como metáfora do gesto modernista, dirá: “A loucura esplêndida do filho contra a tradição e os parentes devoradores (...), que deixavam um resto de peru, resto de festa, torna possível uma nova festa, não de restos, mas de excessos, como foi a Semana de Arte Moderna”. 271 Outras experiências que poderiam ser consideradas loucas, citadas por Mário em suas crônicas, apontam para a divisão do sujeito, como os atos falhos, que dependem do mecanismo de repressão, não se tratando de um processo de recusa ou rejeição, mesmo no caso de um sentimento de estranheza (Unheimlichkeit) em relação à própria imagem, como neste comentário que Mário faz da impressão que lhe causa ver seu retrato pintado por Lasar Segall ou por Flávio de Carvalho: Quando olho para meu retrato pintado por Segall me sinto bem. É o eu convencional, decente, o que se apresenta em público. Quando defronto o retrato feito pelo Flávio sinto-me assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos outros. 272 explicitar que se tratava, na poesia dos modernistas, da “substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente”. Faz alusão ao fato de que alguém tenha se preocupado por responder a acusação de que não havia ordem em sua poesia (dos modernistas), de que estavam loucos, diferenciando “a literatura dos modernistas e a dos alienados”. Mário afirma que tais acusações deram apenas motivos para mais lirismo, citando um verso de Picabia e outro de Palazzeschi, que jogam com as palavras follia e fou (pp. 244-45). 270 A teoria dos discursos foi desenvolvida no seminário XVII – O avesso da psicanálise. Os outros três discursos são o discurso universitário, o discurso do mestre e o discurso analítico. Estes se formam a partir de quatro posições ou lugares fixos, o do agente, o lugar do Outro, o da verdade e o do produto, e pela rotação dos termos a, $, S1, S2, tomando como princípio o discurso do mestre. No discurso histérico o sujeito ($) situa-se na posição do agente, fazendo trabalhar o significante mestre (S1). O histérico interroga o saber do mestre, questionando sua capacidade de exercer a mestria. Com seu discurso interpelador, ele procura no Outro um ponto de falta, desnudando a sua castração, revelando a incompletude do Outro. O histérico interessa-se pelo saber como meio de gozo, para fazê-lo servir à verdade. Importa ao histérico fazer saber ao Outro o objeto precioso que ele é, que sob sua barradura de sujeito está o objeto petit a, que neste discurso aparece no lugar da verdade, como a sua força motriz. Segundo Lacan, foi o histérico que provocou no amo o desejo de saber, nascendo desse desejo o discurso universitário. É possível pensar que movimentos artísticos que impliquem uma ruptura com a tradição, como foi o movimento modernista, tenham sua dose de histerização, questionando a lei paterna instituída, mas, por outro lado, acreditando que a verdade da lei está em outro lugar. Seria, no entanto, demasiadamente reducionista limitar os efeitos do modernismo e em especial da produção de Mário de Andrade em termos de discurso histérico, já que a partir deles novos significantes e objetos artísticos foram criados, num gesto claramente sublimatório. 271 R. S. Brandão, Literatura e Psicanálise, p. 140. 272 “Um salão de feira”, Diário de São Paulo, 21/10/41. 115

Os relatos que temos sobre Febrônio, com todas as limitações aí implicadas, parecem apontar na direção do que Lacan sublinhou no seminário III: O sujeito, por não poder restabelecer de maneira alguma o pacto com o Outro, por não poder fazer uma mediação simbólica qualquer entre o que é o novo e ele próprio, entra em outro modo de mediação completamente diferente do primeiro, substituindo a mediação simbólica por uma proliferação imaginária, na qual se introduz (...) o sinal central de uma mediação possível. 273 A descrição do intenso sofrimento psíquico de Febrônio, o crer-se no lugar do enviado de Deus, as mortes que arrasta atrás de si, movidas pela missão que tem a cumprir, anunciada pela visão da dama loura, tudo isso nos leva a pensar que algo da ordem da lei simbólica não se havia inscrito, deixando-o fora da “cidade dos discursos”. Cendrars, tendo a informação de que Febrônio havia sido preso na encosta do Pão-de-Açúcar, cartão postal da cidade que se queria moderna e iluminada, ao final de sua crônica sobre Febrônio, enuncia: apesar desta iluminação feérica, apesar desta improvisação moderna renovada incessantemente... não posso contornar este rochedo, à bordo do cargueiro que me leva de volta à França, sem tremer ao evocar os quarenta ou sessenta esqueletos encontrados... entre os cactos e as palmeiras... muitos dos quais não foram jamais identificados. 274 O interesse do poeta, talvez o fascínio, por estas figuras incomuns de la vie dangereuse, como Lampião, o coronel Bento, o lobisomem de Minas e Febrônio, identificado com o anti-moderno, não lhe apaga o horror de seus feitos, aqui propositadamente exagerados. O sombrio dos atos de Febrônio ofusca o brilho moderno da cidade, que de seu “altar de pedra” vem lembrar à civilização a sua face bárbara, esse resto não assimilável pela cultura, sua pulsão de morte. Tal como Freud, Benjamin criticou a fé obtusa no progresso, ressaltando nas suas famosas teses sobre a história que a transmissão da cultura não está isenta da barbárie: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. 275 Os atos 273 J. Lacan, As psicoses – O Seminário, livro III, p. 104. 274 Cendrars apud Bastos, op. cit., p.109. A autora tomou como referência o original em Francês da crônica sobre Febrônio, publicada no jornal Paris Soir em 1938, que juntamente com outras ganharam o título “ Pénitenciers de noirs”, e também no livro La vie dangereuse, do mesmo ano. 275 W. Benjamin, “Sobre o conceito de história”, Magia e técnica – Arte e política, p. 225. 116

Os relatos que t<strong>em</strong>os sobre Febrônio, com todas as limitações aí implicadas,<br />

parec<strong>em</strong> apontar na direção do que Lacan sublinhou no s<strong>em</strong>inário III:<br />

O sujeito, por não po<strong>de</strong>r restabelecer <strong>de</strong> maneira alguma o pacto com o Outro,<br />

por não po<strong>de</strong>r fazer uma mediação simbólica qualquer entre o que é o novo e<br />

ele próprio, entra <strong>em</strong> outro modo <strong>de</strong> mediação completamente diferente do<br />

primeiro, substituindo a mediação simbólica por uma proliferação imaginária,<br />

na qual se introduz (...) o sinal central <strong>de</strong> uma mediação possível. 273<br />

A <strong>de</strong>scrição do intenso sofrimento psíquico <strong>de</strong> Febrônio, o crer-se no lugar do enviado<br />

<strong>de</strong> Deus, as mortes que arrasta atrás <strong>de</strong> si, movidas pela missão que t<strong>em</strong> a cumprir,<br />

anunciada pela visão da dama loura, tudo isso nos leva a pensar que algo da ord<strong>em</strong> da<br />

lei simbólica não se havia inscrito, <strong>de</strong>ixando-o fora da “cida<strong>de</strong> dos discursos”.<br />

Cendrars, tendo a informação <strong>de</strong> que Febrônio havia sido preso na encosta do<br />

Pão-<strong>de</strong>-Açúcar, cartão postal da cida<strong>de</strong> que se queria mo<strong>de</strong>rna e iluminada, ao final <strong>de</strong><br />

sua crônica sobre Febrônio, enuncia:<br />

apesar <strong>de</strong>sta iluminação feérica, apesar <strong>de</strong>sta improvisação mo<strong>de</strong>rna renovada<br />

incessant<strong>em</strong>ente... não posso contornar este rochedo, à bordo do cargueiro que<br />

me leva <strong>de</strong> volta à França, s<strong>em</strong> tr<strong>em</strong>er ao evocar os quarenta ou sessenta<br />

esqueletos encontrados... entre os cactos e as palmeiras... muitos dos quais não<br />

foram jamais i<strong>de</strong>ntificados. 274<br />

O interesse do poeta, talvez o fascínio, por estas figuras incomuns <strong>de</strong> la vie<br />

dangereuse, como Lampião, o coronel Bento, o lobisom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Minas e Febrônio,<br />

i<strong>de</strong>ntificado com o anti-mo<strong>de</strong>rno, não lhe apaga o horror <strong>de</strong> seus feitos, aqui<br />

propositadamente exagerados. O sombrio dos atos <strong>de</strong> Febrônio ofusca o brilho<br />

mo<strong>de</strong>rno da cida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong> seu “altar <strong>de</strong> pedra” v<strong>em</strong> l<strong>em</strong>brar à civilização a sua face<br />

bárbara, esse resto não assimilável pela cultura, sua pulsão <strong>de</strong> morte. Tal como Freud,<br />

Benjamin criticou a fé obtusa no progresso, ressaltando nas suas famosas teses sobre a<br />

história que a transmissão da cultura não está isenta da barbárie: “Nunca houve um<br />

monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. 275 Os atos<br />

273 J. Lacan, As psicoses – O S<strong>em</strong>inário, livro III, p. 104.<br />

274 Cendrars apud Bastos, op. cit., p.109. A autora tomou como referência o original <strong>em</strong> Francês da<br />

crônica sobre Febrônio, publicada no jornal Paris Soir <strong>em</strong> 1938, que juntamente com outras ganharam<br />

o título “ Pénitenciers <strong>de</strong> noirs”, e também no livro La vie dangereuse, do mesmo ano.<br />

275 W. Benjamin, “Sobre o conceito <strong>de</strong> história”, Magia e técnica – Arte e política, p. 225.<br />

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