A Barataria na Jurisprudência portuguesa - Instituto Politécnico de ...
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A <strong>Barataria</strong> <strong>na</strong> <strong>Jurisprudência</strong> <strong>portuguesa</strong><br />
Dr. Mário Raposo<br />
I<br />
1. Dispõe o § 1º do art. 604º do Código Comercial que “o segurador<br />
não respon<strong>de</strong> pela barataria do capitão, salva a convenção em contrário, a<br />
qual, contudo, será sem efeito, se, sendo o capitão nomi<strong>na</strong>lmente<br />
<strong>de</strong>sig<strong>na</strong>do, foi <strong>de</strong>pois mudado sem audiência e consentimento do<br />
segurador”.<br />
Trata-se <strong>de</strong> um conceito do direito, que tem que ser entendido com base em<br />
pressupostos doutri<strong>na</strong>is. Adriano Antero sustentava que nele se contêm não<br />
ape<strong>na</strong>s as faltas intencio<strong>na</strong>is, mas também as não intencio<strong>na</strong>is, como a<br />
simples negligência ou imprudência. Análoga parece ser a opinião <strong>de</strong><br />
Cunha Gonçalves.<br />
O Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça i<strong>na</strong>lteravelmente tem vindo a pronunciar-se<br />
no sentido sufragado entre nós por Adriano Antero. Assim, e como<br />
exemplo já distante, o seu Acórdão <strong>de</strong> 1.11.1949 (B.M.J., 16, p. 340).<br />
2. Rodière, citando o Acórdão do S.T.J. <strong>de</strong> 6.12.1974, que fora<br />
publicado em Le Droit Maritime français (1977, p. 248). comentou<br />
ironicamente que, <strong>na</strong> companhia (então...) da Argenti<strong>na</strong>, Portugal era um<br />
dos dois únicos países do mundo em que para a jurisprudência, a barataria<br />
abrangia “aussi bien les fautes légères que les fautes lour<strong>de</strong>s du capitaine” 1 .<br />
O já referido Acórdão <strong>de</strong> 1949 do S.T.J. aduzia ape<strong>na</strong>s dois argumentos <strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong>, não encarando o fundo da questão. E a “autorida<strong>de</strong>”, aliás<br />
justificável noutros casos, era meramente afirmativa no caso <strong>de</strong> Adriano<br />
Antero e susceptível <strong>de</strong> entendimento dual no caso <strong>de</strong> Cunha Gonçalves.<br />
O Acórdão <strong>de</strong> 30.3.1973 2 tinha sido, aliás muito mais extenso e<br />
justificativo (pelo menos em tentame) da posição prevalente. Relatou-o o<br />
Cons. Oliveira Carvalho, que viria a ser um notável presi<strong>de</strong>nte daquele<br />
Supremo Tribu<strong>na</strong>l. Nele cita, com alguma <strong>de</strong>tenção, o parecer <strong>de</strong> Adriano<br />
Vaz Serra, para o qual ape<strong>na</strong>s os actos dolosos ou fraudulentos do capitão<br />
1 DROIT MARITIME, Assurances, Dalloz, 1983, p. 138.<br />
2 B.M.J., 225, p. 272.<br />
1
correspon<strong>de</strong>riam a barataria. E nele se reconhece que “a orientação<br />
mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> das legislações estrangeiras (é) no sentido indicado”. De qualquer<br />
modo o que havia que tomar em conta era a jurisprudência <strong>portuguesa</strong> e<br />
“gran<strong>de</strong> parte da doutri<strong>na</strong>”. E esta não estabelecia qualquer distinção no<br />
tocante ao § 1º do art. 604º do Código Comercial. A barataria comportaria<br />
duas modalida<strong>de</strong>s: a dolosa ou fraudulenta e a simples. Na hipótese então<br />
em apreço aproveitou ao segurado a apólice ape<strong>na</strong>s excluir da cobertura a<br />
barataria dolosa ou fraudulenta. Não a simples.<br />
Num Acórdão ulterior (o <strong>de</strong> 7.7.1999) manteve-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>rá<br />
existir a chamada barataria simples, ou seja, a <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> faltas<br />
meramente culposas. E isto, porque para esse critério apontaram os<br />
“autores” e uma doutri<strong>na</strong> “há muito consolidada”.<br />
Entretanto, e para além <strong>de</strong> elencar as “baratarias” (uma por cada acto<br />
culposo!), remata o Acórdão com uma afirmação <strong>de</strong> todo em todo<br />
i<strong>na</strong>ceitável: a <strong>de</strong> que “o segurador só assume os riscos no pressuposto<br />
negocial <strong>de</strong> que a sua verificação não tem a contribuição culposa do próprio<br />
segurado ou das pessoas por quem é civilmente responsável (salvo<br />
convenção em contrário)”.<br />
Representa esse ponto <strong>de</strong> vista o regresso aos rigores do século XIX, em<br />
que razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m ética impediam o seguro da culpa (grave) do segurado<br />
ou das pessoas por quem fosse civilmente responsável.<br />
3. O velho Código Comercial espanhol ainda excluía dos riscos<br />
cobertos, com carácter geral, a “barataria” do capitão (art. 756, nº 5). O art.<br />
756, nº 7, confirma esta solução, a não ser que o segurador tenha tomado a<br />
seu cargo “la baratería <strong>de</strong>l patrón”.<br />
Entretanto, não obstante no início do século findo um ou outro autor ter<br />
sustentado que no conceito <strong>de</strong> barataria se incluiria a mera negligência do<br />
capitão ou da tripulação, a doutri<strong>na</strong> afirma agora uniformemente no sentido<br />
<strong>de</strong> que a barataria simples (!) não existe. Terá que haver uma conduta<br />
dolosa ou intencio<strong>na</strong>l do capitão ou da tripulação <strong>na</strong> origem do sinistro.<br />
Como referem Gabaldón Garcia – Ruiz Soroa 3 não resta hoje dúvida que a<br />
chamada “barataria” ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong> refere aos actos fraudulentos (sic) do<br />
capitão. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma barataria simples (!) está, prosseguem, ple<strong>na</strong>mente<br />
contraditada pelo art. 809, nº 9, do Código Comercial, que claramente<br />
3 MANUAL DE DERECHO DE LA NAVEGACIÓN MARÍTIMA, 2ª ed., ed. Marcial<br />
Pons, 2002, p. 818.<br />
2
distingue entre “barataria”, por um lado, e “faltas ou negligências do<br />
capitão e da tripulação” por outro. “En base a todo ello, se concluye que el<br />
término barataria incluye en nuestro Derecho (ou seja no espanhol)<br />
unicamente los actos dolosos o fraudulentos <strong>de</strong>l capitán (...)”. Assim<br />
também a jurisprudência do Supremo Tribu<strong>na</strong>l.<br />
Foi exactamente neste mesmo sentido que se pronunciou José Luis<br />
Rodriguez Carrión 4 . A barataria resulta <strong>de</strong> um acto fraudulento do capitão<br />
ou <strong>de</strong> um membro da tripulação. E sempre assim foi entendido<br />
historicamente, ressalvado um parêntese <strong>de</strong> algumas décadas, e <strong>de</strong> autores<br />
visivelmente influenciados por Ripert.<br />
Hoje, não “incluye, ni pue<strong>de</strong> ser equiparada a la culpa en alguno <strong>de</strong> sus<br />
grados” 5 .<br />
4. Nos sistemas juridicos mo<strong>de</strong>rnos a barataria foi sempre<br />
frontalmente equiparada à frau<strong>de</strong>. Assim os anglo-saxónicos, a começar<br />
pelo inglês – tradicio<strong>na</strong>l “pátria” do seguro maritimo.<br />
A barataria correspon<strong>de</strong> a uma wilful conduct, nos termos da lei e da<br />
prática seguradora 6 .<br />
É um acto “wilful” e <strong>de</strong>liberadamente praticado, com o propósito <strong>de</strong><br />
prejudicar o armador ou os restantes interessados <strong>na</strong> expedição.<br />
Não existe uma só voz discordante sobre a total insustentabilida<strong>de</strong> da<br />
doutri<strong>na</strong> que em tempos teve seguidores no direito continental.<br />
5. Acontece que hoje só inci<strong>de</strong>ntalmente se encontra referência à<br />
barataria, mesmo no domínio dos actos dolosos ou crimi<strong>na</strong>lmente<br />
tipificáveis.<br />
Cito a este respeito o clássico Manuale di Diritto <strong>de</strong>lla Navigazione <strong>de</strong><br />
Lefebvre d’Ovidio – Gabriele Pescatore – Leopoldo Tullio 7 :<br />
“Questo criterio sistematico ha portato all’abolizione <strong>de</strong>lla tradizio<strong>na</strong>le<br />
figura <strong>de</strong>l diritto marittimo, la baratteria, nella quale era comprese<br />
numerose figure di reati 8 <strong>de</strong>lla più varia oggettività giuridica, dal <strong>na</strong>ufrágio<br />
4 El DOLO Y LA CULPA DEL ASEGURADO, SUS AUXILIARES Y TERCEROS EN EL<br />
SEGURO MARITIMO, COM ESPECIAL REFERENCIA A LA BARATERÍA DEL<br />
PATRÓN, no Anuário <strong>de</strong> Derecho Maritimo, vol. VII, 1989, pp. 39 e segs., maxime p. 51.<br />
Em sentido análogo, como é óbvio, cfr. do mesmo autor um texto com um título quase<br />
coinci<strong>de</strong>nte, em ESTUDIOS DE DERECHO MARITIMO, ed. Bosch, 1992, pp. 145 e segs.<br />
5 cit. est. <strong>de</strong> 1989, p. 74.<br />
6 Robert Merkin, ANNOTATED MARINE INSURANCE LEGISLACTION, ed. LLP,<br />
1997, Londres, p. 82. Cfr. ainda Payne & Ivamy’s, Carriage of Goods by Sea, ed.<br />
Butterworths, 13ª ed., 1989, p. 185, que inclui a “baratry of the master” <strong>na</strong> área das frau<strong>de</strong>s.<br />
7 Giuffrè ed., 9ª ed., 2000, p. 827.<br />
8 Actos <strong>de</strong>lituosos, crimes.<br />
3
doloso alla distruzione <strong>de</strong>l carico e <strong>de</strong>gli attrezzi, dal falso in polizza o nel<br />
gior<strong>na</strong>le di bordo a contrabbando <strong>de</strong>l comandante o <strong>de</strong>ll’equipaggio”.<br />
8. O Código da Navegação italiano, <strong>de</strong> 1942, não refere já sequer a<br />
figura da barataria. O dolo do capitão e da tripulação são cobertos no<br />
seguro <strong>de</strong> mercadorias (seguro <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>s) mas ao abrigo do art. 524.<br />
Entretanto, repito, o Código já não usa a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção “barataria”. Assim<br />
também <strong>na</strong> lei e <strong>na</strong> prática seguradora inglesas 9 .<br />
No mesmo sentido <strong>de</strong> Ferrarini diz Giorgio Righetti 10 que a barataria<br />
correspon<strong>de</strong> a uma activida<strong>de</strong> <strong>de</strong>lituosa, não consi<strong>de</strong>rada já no Código <strong>de</strong><br />
Navegação; ape<strong>na</strong>s o fora no já <strong>de</strong>rrogado Código da Marinha Mercante.<br />
Será aquilo que para Carver é “any willful fraudulent, consciously illegal<br />
act which exposes the ship or goods to danger, <strong>de</strong>struction or confiscation,<br />
done by the master ou crew without the consent of the shipowner” 11 .<br />
9. Martine Remond – Gouilloud coloca a barataria no mesmo plano<br />
da pirataria. Esta uma acção criminosa provinda do exterior do <strong>na</strong>vio; a<br />
barataria um acto fraudulento cometido a bordo do <strong>na</strong>vio 12 .<br />
Entretanto, inexiste <strong>na</strong> lei francesa uma menção específica à barataria.<br />
10. E qual a origem da persistência do Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça<br />
<strong>na</strong> configuração <strong>de</strong> uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma barataria simples ou<br />
meramente culposa, a par da barataria dolosa ou fraudulenta?<br />
Na origem <strong>de</strong>sta orientação estão ape<strong>na</strong>s – ape<strong>na</strong>s po<strong>de</strong>rão estar – Cunha<br />
Gonçalves e Adriano Antero, que publicaram os seus Comentários ao<br />
Código Comercial em meados dos anos 10 do século passado. O <strong>de</strong><br />
Adriano Antero (vol. II) é <strong>de</strong> 1915.<br />
Curiosamente, Adriano Antero – que foi professor do <strong>Instituto</strong> Industrial do<br />
Porto (como ele próprio refere no prefácio do seu Comentário, preparado<br />
como livro auxiliar das suas aulas <strong>de</strong> Direito Comercial <strong>na</strong>quele <strong>Instituto</strong>) –<br />
reconhece que no Código anterior (o <strong>de</strong> 1833) se consi<strong>de</strong>rava a “ribal<strong>de</strong>ria”<br />
9 Sergio Ferrarini, Le Assicurazioni Marittime, ed. Giuffrè, 3ª ed., 1991, p. 126-127. A<br />
Schedule I do MIA (Marine Insurance Act <strong>de</strong> 1906) dispõe que “the term baratry inclu<strong>de</strong>s<br />
every wrongfull act committed by the master or crew to the prejudice of the owner, or, at<br />
the case may be, the charter”. É entendido pela doutri<strong>na</strong> que a barataria inclui qualquer tipo<br />
<strong>de</strong> frau<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> procedimento intencio<strong>na</strong>lmente errado do capitão ou da tripulação”. Assim<br />
Hudson & Allen (cits por Ferrarini).<br />
10 Trattato di Diritto Marittimo, parte 4ª, 1999, ed. Giuffrè, p. 717.<br />
11 Cit. por Righetti, loc. cit. Cfr., no entanto, explicitamente no mesmo sentido, J. Kenneth<br />
Goodacre, Marine Insurance Claims, ed. Witherby & Co. Ltd, 2ª ed., 1981, p. 124.<br />
12 Droit Maritime, ed. Pedone, 2ª ed., 1993, p. 154.<br />
4
do capitão ou da tripulação como uma frau<strong>de</strong> 13 . E, vistas bem as coisas,<br />
Adriano Antero não é explícito quanto ao entendimento resultante do então<br />
(e agora, nesta parte) Código em vigor.<br />
Azevedo Matos, como quase sempre, não esclarece a questão e, embora<br />
comparando a barataria á ribal<strong>de</strong>ria e rebeldia, conclui, inesperavelmente,<br />
que ela abrange os actos meramente culposos do capitão ou da tripulação 14 .<br />
11. Ao invés, João Mata, que foi um profundo conhecedor das<br />
questões ligadas ao seguro marítimo escreveu, numa obra postumamente<br />
publicada e que tive muita honra em prefaciar, ainda a pedido <strong>de</strong>le, tem,<br />
afoitamente, como certo que a barataria a que se refere o art. 604, § 1º, do<br />
Código Comercial ape<strong>na</strong>s abrange os danos <strong>de</strong>liberadamente praticados<br />
pelo capitão ou pela tripulação “com intenção <strong>de</strong> prejudicar o armador ou o<br />
carregador” 15 .<br />
Assim a <strong>de</strong>fine igualmente o Glossário Marítimo – Comercial, publicado<br />
pela Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong> Lisboa 16 .<br />
12. A jurisprudência do nosso mais alto tribu<strong>na</strong>l, usualmente aberto<br />
às aportações doutri<strong>na</strong>is que ganharam foros <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> em todo o Mundo,<br />
é, neste ponto, fixista. Digo-o com o respeito profissio<strong>na</strong>l e institucio<strong>na</strong>l<br />
que sempre manifestei perante ele.<br />
13. A jurisprudência dos nossos Tribu<strong>na</strong>is Superiores está em radical<br />
oposição à solução hoje universal e incontroversamente seguida, e <strong>de</strong>ve ser<br />
repensada – porque ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da por uma i<strong>na</strong>ceitável “tradição”<br />
jurispru<strong>de</strong>ncial. Ora, o Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça é o “tribu<strong>na</strong>l a que a<br />
or<strong>de</strong>m jurídica pe<strong>de</strong>, para funcio<strong>na</strong>r, uma <strong>de</strong>cisiva tutela pastoral, usando<br />
da frase <strong>de</strong> André Tunc (...). É o Tribu<strong>na</strong>l paradigmático, o necessário<br />
ponto <strong>de</strong> referência da Administração da Justiça.<br />
13 Comentário, II, 1ª ed., p. 489.<br />
14 Princípios <strong>de</strong> Direito Marítimo, IV, 1958, p. 279 s. Como noutro local referi, Azevedo<br />
Matos invoca em seu apoio a lei brasileira, da qual se extrai precisamente a posição<br />
contrária à sua (Mário Raposo, Sobre o conceito <strong>de</strong> barataria, em Estudos sobre Arbitragem<br />
Comercial e Direito Marítimo, ed. Almedi<strong>na</strong>, 2006, p. 149 s.). Equipara Azevedo Matos a<br />
barataria às faltas náuticas e às faltas comerciais e embora invocando a lei e a doutri<strong>na</strong><br />
britânicas, que são inquestio<strong>na</strong>velmente no sentido da caracterização da barataria como<br />
correspon<strong>de</strong>ndo a um acto fraudulento praticado com a intenção <strong>de</strong> causar um prejuizo,<br />
conclui no referido sentido <strong>de</strong> que ela po<strong>de</strong> resultar <strong>de</strong> mera culpa do capitão ou da<br />
tripulação.<br />
15 Seguro Marítimo, 3ª ed., 1990, p. 25.<br />
16 2003, p. 34.<br />
5
14. Não era Adriano Antero um especialista <strong>de</strong> direito marítimo e<br />
está por completo <strong>de</strong>sactualizado. Esta é a realida<strong>de</strong>.<br />
E revela mesmo, por vezes, uma certa “ingenuida<strong>de</strong>” e generalizadamente<br />
uma patente superficialida<strong>de</strong>. Assim, como exemplo, atente-se no que diz<br />
<strong>na</strong> p. 340, a propósito da carga colocada no convés (art. 497 do Cód.<br />
Com.).<br />
Para <strong>de</strong>monstrar o agravamento <strong>de</strong> risco que daí advem (o que para a época<br />
estava certo e ainda hoje o será <strong>na</strong> carga a granel) explica que:<br />
“Neste sentido, o Consulado do Mar e o Edito austríaco <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong><br />
1774 obrigavam até o capitão a trazer gatos no <strong>na</strong>vio, para que os ratos<br />
não prejudicassem as mercadorias. O nosso Código não obriga a tanto<br />
(...)”.<br />
15. Ao invés do que é suposto, Cunha Gonçalves não é tão apodítico<br />
como Adriano Antero. O que no vol. III do seu Comentário ao Código<br />
Comercial diz que no tocante ao seguro é barataria todo o acto ilícito e<br />
danoso cometido no intuito <strong>de</strong> receber uma in<strong>de</strong>mnização do segurador ou,<br />
que se não existido o seguro, não teria sido praticado.<br />
16. É, pois, <strong>de</strong> concluir que o magno <strong>de</strong>fensor da barataria – acto<br />
meramente culposo foi, no nosso Direito, Adriano Antero. Este cita, como<br />
argumento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, Vidari, que publicou no início dos anos 80 do<br />
séc. XIX um hoje esquecido Corso di Diritto Commerciale. Só que Vidari,<br />
ao falar <strong>de</strong> barataria, equiparava-a à “<strong>de</strong>sobediência, insubordi<strong>na</strong>ção,<br />
motim, conspiração ou revoltas da equipagem”. Isto ao que refere o<br />
próprio... Adriano Antero (ob. e loc. cits).<br />
17. Na 2ª meta<strong>de</strong> do século passado é encontrável um prestigioso<br />
autor – Ripert – que figura que a barataria correspon<strong>de</strong>rá não ape<strong>na</strong>s a um<br />
acto intencio<strong>na</strong>l, mas também, no direito continental, a qualquer falta –<br />
mesmo culposa – do capitão ou da tripulação 17 . Reconhece, no entanto, que<br />
as leis mais mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s, entre as quais a italia<strong>na</strong> vão no sentido da lei<br />
inglesa. E hoje a posição <strong>de</strong> Ripert não tem um único seguidor. Assim, por<br />
ex., Antoine Vialard, resumindo a doutri<strong>na</strong> e as leis actuais, faz equivaler,<br />
se por acaso ela ainda fôr referida, a barateria du patron (assim chamada<br />
“improprement”) à falta intencio<strong>na</strong>l 18 .<br />
17 Droit Maritime, III, 4ª ed., Rousseau, 1953, p. 680 e seguintes.<br />
18 Droit Maritime, ed. Puf, 1997, p. 93.<br />
6
18. Mas, a ser assim, não tem sustentação possível a posição<br />
conceitual a que o Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça - tradicio<strong>na</strong>l e sempre<br />
afirmado garante da boa aplicação das leis – irremovivelmente assumiu.<br />
Estou em crer que estará em causa um pouco habitual apego aos<br />
prece<strong>de</strong>ntes.<br />
E a doutri<strong>na</strong> juridica <strong>portuguesa</strong> até há escassos anos não esteve ela própria,<br />
ao longo das três últimas quartas partes do séc. XX, atenta à evolução do<br />
problema. Quedou-se nos generalistas Adriano Antero e Cunha Gonçalves,<br />
no impreciso e frequentas vezes contraditório Azevedo Matos e num único<br />
nome verda<strong>de</strong>iramente significativo em matéria <strong>de</strong> direito marítimo: Ripert.<br />
Mas o certo é que Ripert, que se distinguira como jurista <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
prestígio e como político activo numa linha conservadora (ministro da<br />
Educação no Governo <strong>de</strong> Vichy) foi, sem discrepância, contraditado, neste<br />
concreto segmento do Direito Marítimo, por todos os seus seguidores.<br />
A já citada Martine Remond – Gouilloud diz em esclarecedora síntese:<br />
“ <strong>Barataria</strong> será, em súmula, a conduta <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da por frau<strong>de</strong>. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
que po<strong>de</strong>ria equivaler a uma mera negligência “bénigne ou grave” (sic) do<br />
capitão não tem hoje razão <strong>de</strong> ser” 19 .<br />
19. E <strong>de</strong> tal modo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ter relevo que em Itália, como dissemos,<br />
foi por completo excluida do âmbito do Direito Marítimo sendo tida e<br />
exclusivamente como um crime 20 .<br />
20. Face a este contexto estou em crer que se per<strong>de</strong>u uma excelente<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> começar a esclarecer esta questão – que ape<strong>na</strong>s existe em<br />
19 ob. cit., p. 156.<br />
20 Riccardo Mancuso, Istituzioni di Diritto <strong>de</strong>lla Navigazione, ed. Giappichelli, 2002, p. 313.<br />
Para Righetti a barataria, excluida que foi do Código da Navegação italiano <strong>de</strong> 1942,<br />
constitui, pura e simplesmente, um crime, do mesmo nível da pirataria. Adoptando a<br />
<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Carver é “any wilful, fraudulent, conscionsly illegal act which exposes the ohip<br />
or goods to danger of or damage, <strong>de</strong>struction, confiscation, done by the master or crew<br />
without the consent of the shipowner” (Righetti, ob. e loc. cits.). Cfr. Giorgio Berlingieri,<br />
Sul concettto di baratteria, em Il Diritto Marittimo, 1943, p. 3). A caracterização <strong>de</strong> Carver<br />
era já a dos clássicos Pothier, Emerigon, Valin e Casaregi. Na perspectiva <strong>de</strong> Righetti (ob. e<br />
loc. cits) a barataria é um comportamento da <strong>na</strong>tureza da pirataria, embora com um diverso<br />
iter crimi<strong>na</strong>l (ob. e loc. cits.) É, como dissemos, o entendimetno <strong>de</strong> Martine Remond –<br />
Gouilloud (ob. e loc. cits). Só que, enquanto a pirataria marítima está hoje <strong>na</strong> or<strong>de</strong>m do dia,<br />
a barataria está esquecida, sendo, quando dirigida contra a proprieda<strong>de</strong> do <strong>na</strong>vio ou da sua<br />
carga tida, pura e simplesmente, como um crime contra o património. E se visar<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ntemente um acto <strong>de</strong>liberado contra a segurança da <strong>na</strong>vegação, po<strong>de</strong> ingressar no<br />
âmbito do terrorismo (cfr., em geral, Filippo Torresi, La pirateria marittima <strong>de</strong>l XXI secolo,<br />
em Il Diritto Marittimo, 2007, p. 598 s.).<br />
7
Portugal – quando da publicação do Dec.-Lei 384/99, <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> Setembro,<br />
sobre tripulação do <strong>na</strong>vio e acontecimentos <strong>de</strong> mar.<br />
Realmente, o diploma, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> reconhecer no preâmbulo que o Código<br />
Comercial <strong>de</strong> 1888 se encontra <strong>de</strong>sactualizado, continua a incluir a<br />
barataria entre os acontecimentos <strong>de</strong> mar (art. 13,2).<br />
Acontecimento <strong>de</strong> mar será “todo o facto extraordinário que ocorre no mar,<br />
ou em águas sob jurisdição racio<strong>na</strong>l, que tenha causado ou possa causar<br />
danos a <strong>na</strong>vios, engenhos flutuantes, pessoas ou coisas que neles se<br />
encontrem ou por eles sejam transportadas”.<br />
Ora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, a barataria (que figurará no nosso léxico juridico enquanto<br />
não for alterado o art. 604 do Código Comercial) é um conceito <strong>de</strong> direito,<br />
e não um acontecimento <strong>de</strong> mar ou uma fortu<strong>na</strong> <strong>de</strong> mar, <strong>na</strong> acepção que<br />
advem precisamente do corpo do artigo.<br />
Isto mesmo é sublinhado pelo Prof. Manuel Januário Gomes, que rege a<br />
ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Direito Marítimo <strong>na</strong> Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Lisboa 21 .<br />
II<br />
21. O Acordão do S.T.J. <strong>de</strong> 27.1.2004 assenta, num ponto <strong>de</strong> vista<br />
dogmático, <strong>na</strong> distinção entre falta náutica e barataria (simples).<br />
“A falta náutica do capitão, tripulação ou piloto reporta-se aos simples<br />
erros ou faltas técnicas <strong>de</strong> <strong>na</strong>vegação, enquanto que a barataria o capitão<br />
ou <strong>de</strong> qualquer membro da tripulação abrange as faltas, ligeiras ou graves,<br />
intencio<strong>na</strong>is ou meramente culposas do capitão, da tripulação e dos<br />
próprios passageiros, sempre que, quanto a estes, elas reflictam ou<br />
envolvam a responsabilida<strong>de</strong> do próprio capitão”.<br />
Como suporte jurídico para a sua <strong>de</strong>cisão pon<strong>de</strong>rou o Acordão que, não<br />
obstante a conduta do capitão do <strong>na</strong>vio ter correspondido a uma falta<br />
meramente culposa, ela <strong>de</strong>ve ser qualificada <strong>de</strong> barataria. E refere a<br />
doutri<strong>na</strong> “largamente” maioritária: a <strong>de</strong> Adriano Antero, Cunha Gonçalves,<br />
21 em Acontecimentos e relatório <strong>de</strong> mar..., <strong>na</strong> revista O Direito, 139 (2007) p. 89 e s.,<br />
maxime p. 93. Como aci<strong>de</strong>nte marítimo é aí invocada a posição que em 1983 eu próprio<br />
referira. A fortu<strong>na</strong> do mar implicando a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> risco do mar. “Era o mar lírico e dramático,<br />
que salgava as lágrimas, como no poema <strong>de</strong> Pessoa; o mar persistentemente quinhentista,<br />
em que os marinheiros não se po<strong>de</strong>riam classificar entre os vivos já que ape<strong>na</strong>s “quatro<br />
<strong>de</strong>dos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira os separavam da morte” (Mário Raposo, Direito Marítimo..., <strong>na</strong> Revista da<br />
Or<strong>de</strong>m dos Advogados, 1983, p. 347 e s., maxime p. 369). Cfr. Massimiliano Grimaldi,<br />
Sulla fortu<strong>na</strong> di mare, em Il Diritto Marittimo, 2007, p. 205 s.<br />
8
Azevedo Matos e... Sampaio Pimental, em Anotações ao Código <strong>de</strong><br />
Comércio, 1886 22 . E uma jurisprudência i<strong>na</strong>lterada.<br />
Argumenta ainda o ilustre Conselheiro relator do Acordão que, tendo o<br />
Cód. Comercial vindo a ser “retalhado” ao longo da sua vigência, nunca o<br />
legislador introduziu qualquer alteração ao art. 604, § 1º, esclarecendo-se<br />
que nele está prevista ape<strong>na</strong>s a barataria dolosa, e não a simples.<br />
Embora, como atrás referi, o Dec.-Lei 384/99 tivesse podido remover um<br />
impasse jurispru<strong>de</strong>ncial que parece irremovível a verda<strong>de</strong> é que, com muito<br />
respeito pelo nosso mais alto Tribu<strong>na</strong>l, este próprio po<strong>de</strong>ria, com o apoio <strong>de</strong><br />
uma posição doutri<strong>na</strong>l que é comum a todos os sistemas jurídicos actuais,<br />
ter posto termo à sua i<strong>na</strong>lterabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória.<br />
E que tal po<strong>de</strong>ria acontecer é revelado pelo voto <strong>de</strong> vencido <strong>de</strong> um dos três<br />
ilustres Conselheiros que intervieram nesse Acordão <strong>de</strong> 27.1.2004.<br />
Consi<strong>de</strong>rou ele que a barataria é um acto fraudulento, correspon<strong>de</strong>ndo<br />
aquilo a que se chama barataria “simples”, pura e simplesmente, à falta<br />
náutica.<br />
Não obstante a sua firmeza e concludência este voto <strong>de</strong> vencido não<br />
interferiu <strong>na</strong> incolumida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa figura estranha por completo <strong>de</strong>saparecida<br />
do Direito Marítimo. O único autor <strong>de</strong> prestígio doutri<strong>na</strong>l foi, como disse,<br />
Ripert – logo contraditado, u<strong>na</strong> voce por todos os seus seguidores<br />
realmente maritimistas.<br />
Retoma o Acordão a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o § 1º do art. 604 do Código Comercial<br />
não distingue entre a barataria dolosa e a barataria simples. Não distingue<br />
nem teria que distinguir pois a barataria é um conceito <strong>de</strong> direito,<br />
indisputadamente entendido como um acto fraudulento, que tem tanto a ver<br />
com o Direito Marítimo como a pirataria.<br />
O último Acordão do S.T.J. que persiste no mesmo entendimento do art.<br />
604, § 1º, do Código Comercial, no tocante à existência <strong>de</strong> uma hoje por<br />
completa arredada e em muitos or<strong>de</strong><strong>na</strong>mentos jurídicos <strong>de</strong>sconhecida<br />
barataria simples, não intencio<strong>na</strong>l, não dolosa – mas ape<strong>na</strong>s negligente – é<br />
<strong>de</strong> 15.1.2009.<br />
22 Diogo Pereira Forjaz <strong>de</strong> Sampaio Pimental <strong>na</strong>scera em 1817 (Coimbra) regeu Direito<br />
Comercial em 1845-46, Direito Natural em 1851-52 (e <strong>de</strong>pois até 1855). Foi sobretudo um<br />
político (Diogo Pereira Forjaz), tendo-se jubilado em 1880. A obra mencio<strong>na</strong>da no Acordão<br />
foi publicada em 1866 e não em 1886.<br />
9
III<br />
22. O que está fundamentalmente em causa é o relevo que <strong>de</strong>ve<br />
justificar a jurisprudência do Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça. Sempre vi nele<br />
o “tribu<strong>na</strong>l dos tribu<strong>na</strong>is”, ao qual se espera a “pedagogia jurispru<strong>de</strong>ncial” a<br />
que referiu Pierre Bellet, então como presi<strong>de</strong>nte da Cour <strong>de</strong> Cassation. “É o<br />
tribu<strong>na</strong>l paradigmático, o necessário ponto <strong>de</strong> referência institucio<strong>na</strong>l da<br />
Administração da Justiça” – para lembrar uma frase que disse, como<br />
ministro da Justiça, em Julho <strong>de</strong> 1985, <strong>na</strong> sessão solene <strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem ao<br />
Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça” 23<br />
Lembrei aí que o Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça é a “suprema autorida<strong>de</strong> <strong>na</strong><br />
aplicação do Direito”.<br />
Disse <strong>na</strong> ocasião, além do mais:<br />
“ Pressentiam já os romanos que não há direito sem juiz possível; é através<br />
<strong>de</strong>le – e hoje mais do que nunca – que a lei se transmuda <strong>de</strong> fórmula<br />
nomi<strong>na</strong>l em acto <strong>de</strong> Direito e que, a partir <strong>de</strong>ste, a Justiça se tor<strong>na</strong><br />
apreensível e compreensível. Os tribu<strong>na</strong>is, pela activida<strong>de</strong> judiciária, dão<br />
força <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> ao texto legislativo; re-dimensio<strong>na</strong>m. à medida das<br />
pessoas, as categorias friamente lógicas e abstractas. É <strong>de</strong>ssa mediação<br />
promocio<strong>na</strong>l que advém, coerentemente, a or<strong>de</strong>m jurídica. Se ao juiz não<br />
pertencerá, por certo, criar a lei, caber-lhe-á, seguramente, justificar o<br />
Direito, numa intransferível vocação <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scoberta” (Rechtsfindung) da<br />
sua <strong>de</strong>finitiva intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>.<br />
Resulta a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da norma da <strong>de</strong>cisão judicial; precisarei, por isso, que<br />
esta será o acto normativo mais imediato, enquanto mais próximo das<br />
pessoas que são a semente e o <strong>de</strong>stino da actuação do legislador. Ao<br />
transpor as normas gerais para os casos da vida, o juiz configura normas<br />
jurídicas individuais; ao julgar juridicamente, ao interpretar a lei e ao<br />
qualificar os factos, faz o juiz apelo à mais operante vertente da<br />
jurisprudência; e esta, quer se queira, quer não, sempre continuará a ser,<br />
como <strong>na</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Ulpiano, a “ciência do justo e do injusto”. Ou, como<br />
argutamente reflectiu Castanheira Neves, “o direito que históricosocialmente<br />
se realiza é bem mais vasto e rico do que aquele que ape<strong>na</strong>s a<br />
legalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>fi<strong>na</strong> no seu sistema formalmente positivo”.<br />
23 em Os Juizes, a Lei e o Direito, B.M.J., nº 348, p. 5-10. Estavam presentes o Presi<strong>de</strong>nte da<br />
República, General Ramalho Eanes, o Primeiro-Ministro, Dr. Mário Soares, o Presi<strong>de</strong>nte do<br />
S.T.J., o Procurador-Geral da Republica, o Provedor <strong>de</strong> Justiça, os Presi<strong>de</strong>ntes do Tribu<strong>na</strong>l<br />
Administrativo e do Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Contas, o Bastonário da Or<strong>de</strong>m dos Advogados, o Reitor da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra e muitos outras perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s ligadas ao mundo da Justiça.<br />
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Ora é exactamente nesta perspectiva que o Supremo Tribu<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Justiça<br />
melhor se assumirá como o “tribu<strong>na</strong>l dos tribu<strong>na</strong>is” e como o padrão <strong>de</strong><br />
referência <strong>de</strong> toda a activida<strong>de</strong> jurispru<strong>de</strong>ncial. Será esta sempre a<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>nte garantia da certeza jurídica, e esta tor<strong>na</strong>rá mais producente a<br />
intervenção individual do juiz, “suprema autorida<strong>de</strong> <strong>na</strong> aplicação do<br />
Direito”, como explicitou Manuel <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. E nela se enraizará o que o<br />
gran<strong>de</strong> Mestre <strong>de</strong> Coimbra chamou <strong>de</strong> “espírito <strong>de</strong> jurisprudência”, o<br />
persistente intuito <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar valores novos “sem perdição <strong>de</strong> antigos<br />
valores”.<br />
Será com todo este envolvimento que <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rá o ditame<br />
constitucio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> que os juízes “estão sujeitos à lei” (artigo 208º). Ninguém<br />
duvidará <strong>de</strong> que não se preten<strong>de</strong> repor o “ingénuo princípio do legalismo<br />
post-revolucionário <strong>de</strong> oitocentos”. Os rigores <strong>de</strong> uma jurisprudência<br />
“mecânica” (mechanical jurispru<strong>de</strong>nce, <strong>na</strong> expressão <strong>de</strong> Roscöe Pound) em<br />
<strong>de</strong>finitivo estão arquivados; o aviso que, em 1846, Mourlon acautelava <strong>de</strong><br />
que “un bon magistrat humilie sa raison <strong>de</strong>vant celle <strong>de</strong> la loi”, remete hoje<br />
para uma imagem por completo <strong>de</strong>sfocada.<br />
23. Esta uma das razões <strong>de</strong>sta minha intervenção, numa área tão<br />
relevante da imagem inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l do Direito Marítimo português.<br />
Hoje as or<strong>de</strong>ns jurídicas não po<strong>de</strong>m ter compartimentos estanques. Tudo<br />
que é <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, sobretudo neste domínio, ten<strong>de</strong> a ser trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
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