POLIARQUIAS E A (IN)EFETIVIDADE DA LEI NA AMÉRICA LATINA1 ...
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GUILLERMO O'DONNELL<br />
e, portanto, favorece o autoritarismo — na América Latina, aprendemos<br />
isso por esforço próprio nas décadas de 60 e 70. Por outro lado, estou<br />
convencido de que um componente "politicista", ou baseado unicamente<br />
no regime, é necessário mas insuficiente para uma definição adequada de<br />
democracia. A prática acadêmica não pode ignorar completamente as<br />
origens históricas e as conotações normativas do termo que adota. O ponto<br />
fundamental que vou desenvolver aqui é que há uma ligação estreita entre<br />
democracia e certos aspectos da igualdade entre indivíduos que são<br />
postulados não apenas como indivíduos, mas como pessoas legais, e<br />
conseqüentemente como cidadãos — isto é, como portadores de direitos<br />
e obrigações que derivam de seu pertencimento a uma comunidade<br />
política e de lhes ser atribuído certo grau de autonomia pessoal e,<br />
conseqüentemente, de responsabilidade por suas ações. Sejam quais forem<br />
as definições de democracia, desde Atenas até hoje, esse é um cerne<br />
histórico comum.<br />
Nas democracias, ou poliarquias, contemporâneas os cidadãos têm,<br />
pelo menos, o direito de votar em eleições competitivas. Isso significa que<br />
se supõe que eles fazem uma escolha entre no mínimo cinco opções 7 . Essa<br />
escolha não teria sentido se eles não tivessem (ou, mais precisamente, se<br />
a estrutura legal/institucional existente não lhes concedesse) um grau<br />
suficiente de autonomia pessoal para fazê-la conscientemente 8 . Nesse<br />
sentido, a democracia é uma aposta coletiva: ainda que de má vontade,<br />
cada ego aceita 9 que todos os outros alter tenham o mesmo direito de (isto<br />
é, sejam iguais em relação a) participar na crucial decisão coletiva que<br />
determina quem os governará durante certo tempo. A despeito do peso<br />
infinitesimal de cada voto nessa decisão, a sensação de não serem mais<br />
meros súditos, mas cidadãos que exercem seu direito eqüitativo de<br />
escolher quem os governará, contribui muito para explicar o enorme<br />
entusiasmo que costuma acompanhar as primeiras eleições depois do fim<br />
do governo autoritário 10 .<br />
Isso é ainda mais claro em relação a outros direitos políticos. Se,<br />
como decorre da definição de poliarquia, recebo o direito de expressar<br />
livremente opiniões sobre assuntos públicos, pressupõe-se que eu tenha<br />
autonomia suficiente para ter tais opiniões (mesmo que eu esteja imitando<br />
as opiniões de outros, ainda assim sou eu quem as adota); essa mesma<br />
autonomia me torna responsável por essas opiniões, por exemplo, se elas<br />
me tornarem sujeito a um processo por calúnia. Isso nos leva a um<br />
segundo ponto: não apenas a poliarquia enquanto regime político, mas<br />
todo o sistema legal das sociedades ocidentais (e das ocidentalizadas) é<br />
construído sobre a premissa de que todos são dotados de um grau básico<br />
de autonomia e responsabilidade, salvo uma conclusiva e altamente<br />
elaborada prova em contrário. Este é o pressuposto que torna todo<br />
indivíduo uma pessoa legal, um portador de direitos e obrigações formalmente<br />
iguais não só no domínio político mas também nas obrigações<br />
contratuais, civis, criminais e tributárias, nas relações com órgãos estatais<br />
e em muitas outras esferas da vida social. Esse fato, que faz parte tanto da<br />
JULHO DE 1998 39<br />
significados variáveis da democracia<br />
num determinado<br />
contexto, a França, que em<br />
vários sentidos está mais próxima<br />
do que os Estados Unidos<br />
da tradição latino-amercana,<br />
ver Rosanvallon, 1991.<br />
(7) Supondo que para que essas<br />
eleições sejam competitivas<br />
sejam necessários no mínimo<br />
dois partidos políticos, essas<br />
opções são: votar no partido<br />
A, votar no partido B, votar<br />
em branco, votar nulo e não<br />
votar.<br />
(8) O tema da autonomia pessoal<br />
e seus correlates suscitaram<br />
recentemente muita atenção<br />
na filosofia política, mas<br />
até agora não influenciaram<br />
muito a teoria da democracia.<br />
A bibliografia básica e uma discussão<br />
ponderada sobre esse<br />
tema podem ser encontradas<br />
em Crittenden, 1992. Para contribuições<br />
que considero particularmente<br />
esclarecedoras sobre<br />
esse assunto, ver Raz, 1986<br />
e 1984; Waldron, 1993.<br />
(9) A história dessa aceitação<br />
freqüentemente de má vontade<br />
é a da incorporação à cidadania<br />
de trabalhadores urbanos,<br />
camponeses, mulheres e<br />
outros. Inversamente, sua recusa<br />
é o ponto de partida do<br />
governo autoritário: guardiães,<br />
vanguardas iluminadas, juntas<br />
militares, teocracias e coisas<br />
semelhantes têm em comum a<br />
negação, pelo menos na esfera<br />
política, da autonomia de seus<br />
súditos.<br />
(10) Para uma discussão dessas<br />
eleições e do estado de espírito<br />
coletivo que normalmente as<br />
cerca, ver O'Donnell e Schmiter,<br />
1986. Examinei as micromotivações<br />
subjacentes a esses<br />
fenômenos em O'Donnell,<br />
1986.