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regime democrático, regime autoritário ea revolução de 1964 - pucrs

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REGIME DEMOCRÁTICO, REGIME AUTORITÁRIO E A<br />

REVOLUÇÃO DE <strong>1964</strong><br />

Mateus José <strong>de</strong> Lima Wesp 1<br />

Orientador: Prof. Me. Elton Somensi <strong>de</strong> Oliveira<br />

Sumário: Introdução; 1 Regimes Políticos; 1.1 Classificação; 11.1. O Regime<br />

Democrático; 1.1.2. O Regime Autoritário; 1.2 Instituições Políticas Brasileiras; 2 A<br />

Revolução <strong>de</strong> 64; 2.1 Revoluções e Reformas; 2.2 Revolução e Reforma na R<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong><br />

Brasileira; 2.3 Antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> 31 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>1964</strong>; 3 Conclusão; 4 Obras<br />

Consultadas.<br />

Introdução: Buscaremos, por meio <strong>de</strong>ste artigo, explicar a correlação existente entre<br />

<strong>regime</strong>s políticos e a eclosão dos movimentos revolucionários, em particular analisando<br />

o <strong>de</strong> <strong>1964</strong> no Brasil. Para tanto, faz-se necessário discorrer sobre o que são <strong>regime</strong>s<br />

políticos, suas características e consequências. Evi<strong>de</strong>nciaremos o <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> e<br />

o <strong>autoritário</strong>, os quais se fizeram presentes na história política e institucional do país.<br />

Perceberemos que os diversos <strong>regime</strong>s políticos e suas construções<br />

institucionais, favorecem a ocorrência <strong>de</strong> revoluções. E que, se quisermos estabelecer<br />

um <strong>regime</strong> político em que o Estado respeite a pluralida<strong>de</strong> inerente ao comportamento<br />

humano, <strong>de</strong>vemos assegurar meios institucionais que impeçam o florescimento <strong>de</strong><br />

revoluções, possibilitando ao Estado transformar sua r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> sócio-política<br />

implantando reformas <strong>de</strong> forma pacífica.<br />

Assim, tentaremos justificar os fatos que antece<strong>de</strong>ram a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong> como<br />

sendo causados pela inexistência <strong>de</strong> uma instituição política apta a zelar pelo bem<br />

comum em vista <strong>de</strong> as esferas <strong>de</strong> Estado e Governo estarem atribuídas a mesma pessoa<br />

que, imbuída <strong>de</strong> uma representativida<strong>de</strong> política limitada, não possui a imparcialida<strong>de</strong><br />

necessária para a existência <strong>de</strong> um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>.<br />

1 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica do Rio Gran<strong>de</strong> Do Sul<br />

(PUCRS). E-mail: mateuswesp@hotmail.com


1 REGIMES POLÍTICOS<br />

O <strong>regime</strong> político é produto da história, pois, a rigor, é a regulamentação, em<br />

forma <strong>de</strong> instituições, daquilo que a socieda<strong>de</strong> enten<strong>de</strong> por ser seu “gênio”, conforme<br />

nos ensina Oliveira Martins:<br />

Quando as nações, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma lenta e longa elaboração,<br />

atingem o momento em que se acham equilibradas e todos os homens<br />

compenetrados por um pensamento, ao que se po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve chamar <strong>de</strong> alma<br />

nacional – porque o mesmo caráter tem nos indivíduos aquilo a que<br />

chamamos alma- é então que se dá um fenômeno a que também chamaremos<br />

síntese da energia coletiva. A nação aparece como um ser não apenas<br />

mecânico; quais são as primeiras agregações; somente biológico, como nas<br />

épocas <strong>de</strong> mais complexa e adiantada organização; mas sim humano - isto é,<br />

além <strong>de</strong> vivo, animado por uma idéia. Nestes momentos sublimes em que a<br />

árvore nacional rebenta em frutos, o gênio coletivo já <strong>de</strong>finido nas<br />

consciências, r<strong>ea</strong>liza esse mistério que as religiões simbolizaram na<br />

encarnação dos <strong>de</strong>uses (1946, p. 213).<br />

Desse modo percebemos que um <strong>regime</strong> político <strong>de</strong>ve estar sempre ligado a<br />

idéia e aos fins formadores da socieda<strong>de</strong>, permitindo que todos seus cidadãos sintam<br />

que o Estado nada mais é que a encarnação do espírito da socieda<strong>de</strong> em uma instituição<br />

política.<br />

Nas palavras do Souza Junior, po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>finir <strong>regime</strong> político “como a<br />

encarnação concreta da or<strong>de</strong>m política, em seu dinamismo, e segundo <strong>de</strong>terminados<br />

princípios <strong>de</strong> organização referentemente às relações entre a comunida<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r”<br />

(2002a, p. 95).<br />

É a forma <strong>de</strong> exercer a dimensão política do ser humano organizando as relações<br />

entre o po<strong>de</strong>r institucionalizado e a comunida<strong>de</strong>, os fins a que esta comunida<strong>de</strong> propõe-<br />

se a alcançar e os meios utilizados para tanto, <strong>de</strong> modo a atingir o bem <strong>de</strong> todos naquilo<br />

que todos têm em comum <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta mesma comunida<strong>de</strong>.<br />

É <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m concreta, bas<strong>ea</strong>da em um consenso em torno <strong>de</strong> valores e<br />

objetivos aceitos por toda a comunida<strong>de</strong>, que o po<strong>de</strong>r irá atuar. Para tanto são utilizados<br />

instrumentos e procedimentos, como o direito e as instituições, para garantir o<br />

cumprimento na prática <strong>de</strong>ste consenso que <strong>de</strong>u origem a comunida<strong>de</strong> como corpo<br />

político. Vale dizer que primeiramente há um consenso em torno <strong>de</strong> fins e objetivos, no<br />

momento da criação da or<strong>de</strong>m política, e que, posteriormente se constrói pela<br />

racionalida<strong>de</strong> humana instrumentos que garantam que esses fins que lograram constituir<br />

o corpo político e congregar as pessoas em socieda<strong>de</strong> sejam cumpridos na r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>. Do


mesmo modo que para um cristão Deus criou as leis da natureza, assim faz o rei no seu<br />

reino, estabelecendo as leis e os princípios que irão regular a vida <strong>de</strong> todos.<br />

Segundo Carl Schmitt “O construtor do mundo é, simultan<strong>ea</strong>mente, autor e<br />

legislador, ou seja, autorida<strong>de</strong> legitimadora” (2006, p. 44). Desse modo percebe-se que<br />

existe uma idéia anterior ao estabelecimento do próprio direito e das instituições<br />

políticas, e que é esta idéia, soberana, que é a legitimadora do <strong>regime</strong> político e da<br />

institucionalização do po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> modo a fazer com que a comunida<strong>de</strong> convirja suas<br />

forças em direção aqueles objetivos os quais todos os seus membros se propuseram a<br />

respeitar e atingir.<br />

O <strong>regime</strong> político, portanto, é o modo <strong>de</strong> concretizar uma idéia, um fim, através<br />

<strong>de</strong> opiniões, aqui entendidas como o uso da inteligência e da razão para atingir o bem<br />

comum, ou seja, a melhor forma, caminho ou resposta que uma pessoa po<strong>de</strong> dar para a<br />

r<strong>ea</strong>lização dos fins que são comuns a todos.<br />

1.1 CLASSIFICAÇÃO<br />

1.1.1 O <strong>regime</strong> Democrático<br />

É difícil classificarmos os <strong>regime</strong>s políticos <strong>de</strong> forma estática, pois estes variam<br />

muito em suas características e peculiarida<strong>de</strong>s. Porém, <strong>de</strong> maneira geral, apesar das<br />

diversas formas e nomenclaturas existentes para <strong>de</strong>fini-los, po<strong>de</strong>ríamos resumi-los a três<br />

tipos: <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>, <strong>autoritário</strong> e totalitário. Sendo que para a r<strong>ea</strong>lização <strong>de</strong>ste trabalho,<br />

utilizaremos o <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> e <strong>autoritário</strong>, pois foram os que, entre os três citados,<br />

se fizeram presentes no período anterior a <strong>1964</strong>.<br />

O <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> é voltado para a r<strong>ea</strong>lização da pessoa humana. Busca o<br />

bem comum e possibilita a amiza<strong>de</strong> que segundo Aristóteles “é a motivação do<br />

convívio” (1988, p. 1281), pois sendo todos os homens iguais na sua dignida<strong>de</strong> humana,<br />

viver para o bem comum, reconhecer o outro como aquele que é o próximo 2 da doutrina<br />

cristã, é reconhecer a si mesmo.<br />

É, acima <strong>de</strong> tudo, um id<strong>ea</strong>l, um princípio fundamental, algo que <strong>de</strong>ve ser aceito<br />

por todos os participantes. No <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> esse id<strong>ea</strong>l não é <strong>de</strong>terminado, é<br />

2 Para a doutrina católica o próximo é aquele ao qual eu me assemelho, não em características<br />

específicas e particulares como cor ou i<strong>de</strong>ologia, mas sim, aquele que compartilha comigo o fato <strong>de</strong> ser<br />

humano isto significa, em outras palavras, consi<strong>de</strong>rar todas as pessoas <strong>de</strong> carne e osso como sendo<br />

iguais na sua humanida<strong>de</strong>.


abstrato, no sentido <strong>de</strong> permitir uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações. Se este dogma ou fim<br />

for <strong>de</strong>terminado, ensejará uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento do próximo, pois,<br />

sendo as opiniões da comunida<strong>de</strong> diversas e conflituosas, um estabelecimento fixo <strong>de</strong><br />

como este dogma <strong>de</strong>ve ser atingido, excluí da comunida<strong>de</strong> e do bem comum todos<br />

aqueles que têm uma interpretação diferente <strong>de</strong>ste fim, substituindo assim a dignida<strong>de</strong><br />

da pessoa humana pela dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um grupo específico. Percebemos com isso a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> em um <strong>regime</strong> verda<strong>de</strong>iramente <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>, separarmos os fins do<br />

Estado dos meios que serão utilizados para atingir esses fins.<br />

Devemos também compreen<strong>de</strong>r que o <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> possui dois aspectos.<br />

Um substancial e outro formal. O primeiro po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado pela substância<br />

valorativa que um Estado possui. O conjunto <strong>de</strong> regras, costumes e valores que os<br />

membros <strong>de</strong> um Estado respeitam e buscam praticar no seu dia a dia. Já o aspecto<br />

formal se caracteriza pelas ferramentas utilizadas para expressar o aspecto substancial.<br />

Entre esses po<strong>de</strong>mos citar as eleições, os direitos políticos e todos os instrumentos<br />

jurídicos que possibilitam aos cidadãos praticarem os valores e fins aos quais estão<br />

submetidos enquanto membros do Estado.<br />

Colocando esta idéia no campo das instituições políticas po<strong>de</strong>ríamos dizer que<br />

<strong>de</strong>vemos separar o campo do consenso, soberano e criador da or<strong>de</strong>m, do campo do<br />

conflito, ár<strong>ea</strong> natural das opiniões humanas. Um consenso só existe quando bas<strong>ea</strong>do em<br />

valores e objetivos abstratos, pois sendo cada ser humano único e diferente do outro,<br />

comporta em si uma visão diferente do que aqueles fins significam quando<br />

transportados para a r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>. Em termos futebolísticos diríamos separar o juiz, que<br />

dita às regras as quais todos os jogadores estão dispostos a seguir, dos próprios<br />

jogadores, que visam cada um a vitória do seu time e a <strong>de</strong>rrota do outro.<br />

Não existe um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> perfeito, que possibilite ao cidadão alcançar<br />

uma interpretação perfeita dos fins do Estado. Se assim fosse, não haveria mais espaço<br />

para a liberda<strong>de</strong>, pois, o único caminho a ser seguido seria aquele verda<strong>de</strong>iro e perfeito,<br />

alcançado por uma mente brilhante que imporia a todos esse caminho. Não obe<strong>de</strong>cê-lo<br />

seria pura estupi<strong>de</strong>z. Desse modo o fenômeno político acabaria.<br />

O <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> consiste na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que todas as pessoas que<br />

vivem <strong>de</strong>ntro da comunida<strong>de</strong> possam, utilizando sua razão, interpretar os fins do Estado<br />

e aplicar esta interpretação na r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>. Porém essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação não é<br />

ilimitada, <strong>de</strong>ve consistir em uma interpretação <strong>de</strong>sses fins consensuais, caso contrário os<br />

participantes do <strong>regime</strong> estarão quebrando as regras do jogo.


De modo que o bom exercício do <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> ocorrerá com a<br />

harmonização entre as diversas opiniões existentes e os fins do Estado, visando sempre<br />

um aperfeiçoamento da r<strong>ea</strong>lização do bem comum.<br />

Portanto o <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> caracteriza-se pela participação dos cidadãos no<br />

po<strong>de</strong>r através do consentimento, o que pressupõe um po<strong>de</strong>r com legitimida<strong>de</strong> perante<br />

todos os membros da comunida<strong>de</strong>. Para Seymour Lipset “os grupos encaram um <strong>regime</strong><br />

político, como legítimo ou ilegítimo segundo o modo como os seus valores se justam<br />

aos <strong>de</strong>les” (1967, p. 78). O consentimento se efetiva pelo Estado <strong>de</strong> Direito, isto é,<br />

obediência à constituição que organizou o Estado e que estabelece as regras a serem<br />

seguidas pelos membros da comunida<strong>de</strong> com o intuito <strong>de</strong> fazer com que se concretize o<br />

espírito <strong>de</strong> valores que originou a amiza<strong>de</strong> política inicial. Esse consentimento dos<br />

cidadãos se efetiva no exercício dos direitos políticos a eles concedidos.<br />

Apenas o <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> exige o consentimento <strong>de</strong> seus cidadãos, sendo<br />

este seu pressuposto principal. João Camilo <strong>de</strong> Oliveira Tôrres afirma que <strong>regime</strong><br />

<strong><strong>de</strong>mocrático</strong> é aquele que “tem como fundamento e condições <strong>de</strong> exercício o<br />

consentimento dos cidadãos” (1968, p. 113). Não há como falar em <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong><br />

se não houver autonomia <strong>de</strong> seus cidadãos diante do po<strong>de</strong>r, liberda<strong>de</strong> para <strong>de</strong>terminar os<br />

caminhos que tal <strong>regime</strong> <strong>de</strong>ve seguir.<br />

1.1.2 O Regime Autoritário<br />

O tipo <strong>autoritário</strong> <strong>de</strong> <strong>regime</strong> foi primeiramente tratado por Juan Linz, que<br />

sugeriu a existência <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> <strong>regime</strong> político diverso dos tipos <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> e<br />

totalitário (1970).<br />

O <strong>regime</strong> <strong>autoritário</strong>, nas palavras do próprio Linz é:<br />

Regime político com pluralismo político limitado, não<br />

responsável, sem i<strong>de</strong>ologia orientadora e elaborada, mas com mentalida<strong>de</strong><br />

distintas, sem mobilização política extensiva ou intensiva, exceto em alguns<br />

pontos do seu <strong>de</strong>senvolvimento, e no qual um lí<strong>de</strong>r ou, ocasionalmente, um<br />

pequeno grupo exerce o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites formalmente mal <strong>de</strong>finidos,<br />

mas, na r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>, bem previsíveis (1979, p. 121).<br />

A diferença do <strong>regime</strong> <strong>autoritário</strong> para o totalitário, é que naquele, a i<strong>de</strong>ologia do<br />

<strong>regime</strong> é uma mentalida<strong>de</strong>, uma visão (opinião) parcial <strong>de</strong> valores ou <strong>de</strong> interesses (por<br />

exemplo, o nacionalismo, patriotismo, <strong>de</strong>senvolvimentismo, segurança nacional, etc...)


<strong>de</strong> conteúdo vago, apoiado mais em emoções do que em uma visão racional como<br />

ocorre no totalitarismo. São idéias mais restritas e peculiares, <strong>de</strong> difícil exportação para<br />

outros Estados que não aqueles on<strong>de</strong> elas lograram surgir, diferente dos <strong>regime</strong>s<br />

totalitários que por visarem uma i<strong>de</strong>ologia total ten<strong>de</strong>m a exportar sua idéia a todos os<br />

povos.<br />

No autoritarismo não há necessariamente um partido institucionalizado, pois o<br />

partido ou grupo que exerce o po<strong>de</strong>r, o faz e maneira irresponsável e não competitiva.<br />

Permite ainda um pluralismo social, embora limitado, salvo naquilo que direta ou<br />

indiretamente am<strong>ea</strong>ce o controle político da pessoa ou da elite que <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r. É<br />

ainda geralmente <strong>de</strong>smobilizador da participação das massas salvo em casos<br />

excepcionais, no que também difere do totalitarismo que é altamente mobilizador das<br />

massas no sentido <strong>de</strong> mantê-las em ação praticando a idéia totalitária.<br />

No autoritarismo o po<strong>de</strong>r não se funda em todos os coros intermediários da<br />

socieda<strong>de</strong>, mas principalmente na tecno-burocracia civil e militar (administração<br />

pública), a qual, por isso, adquire po<strong>de</strong>r estratégico <strong>de</strong>cisivo por ser a ár<strong>ea</strong> <strong>de</strong> execução<br />

das <strong>de</strong>terminações políticas.<br />

No <strong>regime</strong> <strong>autoritário</strong> não há um único fim <strong>de</strong>terminado, mas uma limitação da<br />

interpretação dos fins. Um grupo aceita os fins em abstrato, mas apenas acredita que em<br />

<strong>de</strong>terminado momento há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretá-los <strong>de</strong>ssa ou daquela maneira. Não<br />

há uma i<strong>de</strong>ologia através da qual <strong>de</strong>vemos pensar o mundo, mas apenas uma opinião<br />

dos fins que se consi<strong>de</strong>ra mais correta que as <strong>de</strong>mais, ten<strong>de</strong>ndo a condicionar o Estado a<br />

um <strong>de</strong>terminado caminho que é <strong>de</strong> prerrogativa <strong>de</strong> um grupo.<br />

O Autoritarismo também não possui o consentimento como seu fundamento<br />

principal. Porém diferentemente do totalitarismo, não exige a concordância da idéia<br />

imposta pelo grupo que <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r, pelo contrário, incentiva até certo ponto uma<br />

<strong>de</strong>spolitização da socieda<strong>de</strong>. O <strong>regime</strong> possibilita que os cidadãos busquem livremente<br />

sua satisfação individual, procurando atingir seus fins da maneira que <strong>de</strong>sejarem <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que esses fins não estejam relacionados com a dimensão política do homem, mas sim<br />

com as <strong>de</strong>mais dimensões humanas como a religiosa, artística, econômica. O que o<br />

<strong>regime</strong> quer evitar é que o cidadão i<strong>de</strong>ntifique seus fins individuais com os fins do<br />

Estado, <strong>de</strong> modo a exigir que este r<strong>ea</strong>lize suas aspirações. A oposição neste tipo <strong>de</strong><br />

<strong>regime</strong> surge quando um grupo questiona a maneira política <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar os fins do<br />

Estado. Quem não discorda da maneira como o grupo conduz o Estado e interpreta seus<br />

fins, acaba aceitando o <strong>regime</strong>. É por isso que a repressão do <strong>regime</strong> ocorre na ár<strong>ea</strong> dos


direitos políticos, <strong>de</strong> modo a inibir a participação daqueles que não concordam com a<br />

visão imposta pelos <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r.<br />

A legitimida<strong>de</strong> aqui não existe porque o grupo que exerce o po<strong>de</strong>r, apesar <strong>de</strong><br />

concordar com os fins que justificam a existência do Estado, não o busca com a<br />

concordância da comunida<strong>de</strong>, mas pela simples imposição <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> sobre todos<br />

os segmentos da socieda<strong>de</strong>. Por isso os grupos <strong>autoritário</strong>s sejam eles formados por<br />

partidos políticos ou por corporações como Forças Armadas, necessitam <strong>de</strong> toda a<br />

máquina administrativa para r<strong>ea</strong>lizar com eficácia a imposição <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> a todos<br />

os cidadãos.<br />

Neste <strong>regime</strong> quando a pessoa que <strong>de</strong>ve representar o Estado é a mesma que<br />

ocupa o cargo <strong>de</strong> Governo, a oposição (pessoas que não concordam com a maneira<br />

única e específica <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lização dos fins que é imposta pelos <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r), vira<br />

claramente subversão, fazendo com que o grupo que <strong>de</strong>tém as réd<strong>ea</strong>s do po<strong>de</strong>r elimine<br />

os dissi<strong>de</strong>ntes que serão vistos como inimigos o Estado. De modo que oposição só<br />

haverá quando esta não discordar da maneira como os fins <strong>de</strong>vem ser interpretados. O<br />

<strong>regime</strong> assim se torna muito previsível.<br />

1.2 O Presi<strong>de</strong>ncialismo Brasileiro<br />

É sabido que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a proclamação da República, adotamos o sistema<br />

presi<strong>de</strong>ncialista <strong>de</strong> Governo, on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r político é exercido por uma única instituição,<br />

o “Executivo”.<br />

Nas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> massas, muito bem explicitadas por Ortega y Gasset (1959),<br />

há uma enorme divergência <strong>de</strong> opiniões, on<strong>de</strong> grupos lutam intensamente <strong>de</strong> modo a<br />

impor aos outros que tenham uma opinião diversa, a sua opinião. Assim, percebemos a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> termos uma instituição neutra, nos mol<strong>de</strong>s estabelecidos por Benjamim<br />

Constant, que permita a atuação regular e estável dos outros po<strong>de</strong>res, <strong>de</strong> modo a não<br />

possibilitar a utilização dos fins do Estado para benefício <strong>de</strong> um grupo (1872). Ou seja,<br />

a separação em instituições políticas, da ár<strong>ea</strong> do consenso, que represente os valores<br />

abstratamente concebidos (Chefe <strong>de</strong> Estado), da ár<strong>ea</strong> do conflito que é on<strong>de</strong> as diversas<br />

opiniões, i<strong>de</strong>ologias e forças da socieda<strong>de</strong> lutam para fazer com que sua resposta sobre<br />

o bem comum seja r<strong>ea</strong>lizada.<br />

Em um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>, as diversas opiniões existentes concorrerão<br />

livremente em eleições, nas quais sairá vencedora uma opinião majoritária sobre como


<strong>de</strong>vem ser r<strong>ea</strong>lizados os fins do Estado. Essa corrente majoritária constituirá uma<br />

instituição ativa (Chefe <strong>de</strong> Governo) que terá formas específicas <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar políticas<br />

públicas.<br />

A pessoa situada na ár<strong>ea</strong> do consenso <strong>de</strong>ve ser imparcial e preservar as regras do<br />

jogo político. Quando essa mesma pessoa que <strong>de</strong>ve ser neutra, tem a prerrogativa <strong>de</strong><br />

adotar uma postura ativa e parcial, <strong>de</strong>terminando e estabelecendo políticas públicas com<br />

uma forte conotação i<strong>de</strong>ológica, fica difícil para os cidadãos que não comungam da<br />

mesma i<strong>de</strong>ologia e que não venceram as eleições, verem a opinião vencedora como<br />

legítima, pois, o Estado e conseqüentemente seus fins como essencialmente agregadores<br />

e abstratos estarão caracterizados por uma opinião política específica e <strong>de</strong>terminada,<br />

diversa das outras existentes na socieda<strong>de</strong>.<br />

Novamente utilizando-se da linguagem comum, é como se o juiz da partida <strong>de</strong><br />

futebol fosse jogador e capitão <strong>de</strong> um dos times participantes. Mesmo que este grupo<br />

que possui uma opinião única vise o bem comum e sua concretização, ou no caso do<br />

juiz, busque r<strong>ea</strong>lizar um bom jogo, <strong>de</strong> forma imparcial, irá buscá-lo conforme sua visão<br />

dos fins, que necessariamente é diversa das outras existentes em socieda<strong>de</strong>.<br />

Tratando-se do presi<strong>de</strong>ncialismo brasileiro, esse efeito torna-se mais aberrante,<br />

pois se entrega a um partido toda a máquina administrativa que <strong>de</strong>ve ser neutra e<br />

imparcial. É como se os grupos que concorressem às eleições, lutassem não pela<br />

r<strong>ea</strong>lização do bem comum, mas do bem <strong>de</strong> seus correligionários. Não é a toa que nos<br />

EUA o presi<strong>de</strong>ncialismo é chamado <strong>de</strong> spoil system 3 .<br />

A aplicação na r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal sistema político leva as forças per<strong>de</strong>doras a não<br />

consi<strong>de</strong>rarem os vencedores das eleições e suas respectivas opiniões como legítimas,<br />

criando uma espécie <strong>de</strong> luta até a morte on<strong>de</strong>, cada pessoa, grupo e entida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ram<br />

sua opinião como a única verda<strong>de</strong>ira e correta, enquanto vê a opinião adversa como<br />

inimiga, necessitando nesse caso ser <strong>de</strong>struída por ser errada. Não por acaso no Brasil<br />

presenciamos sempre uma aceitação total do Presi<strong>de</strong>nte do dia por parte da população,<br />

enquanto a outra parte da socieda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ra-o o inimigo a ser combatido. Muitas<br />

vezes, mesmo não estando contentes com as políticas adotadas por seus candidatos,<br />

muitos eleitores se negam a trocar <strong>de</strong> partido por enten<strong>de</strong>rem que as diferentes siglas e<br />

3 Sistema do espólio. O espólio era consi<strong>de</strong>rado tudo aquilo que após uma batalha ficasse ao vencedor<br />

<strong>de</strong>sta. No aspecto político, possibilita ao vencedor da disputa eleitoral utilizar o po<strong>de</strong>r para se beneficiar.


suas respectivas conotações i<strong>de</strong>ológicas são formadas por inimigos, que não po<strong>de</strong>rão<br />

nunca r<strong>ea</strong>lizar o bem comum.<br />

Uma instituição neutra possibilitaria curar as feridas da <strong>de</strong>rrota eleitoral, no<br />

sentido <strong>de</strong> permitir que os per<strong>de</strong>dores aceitem a opinião vencedora como legítima, não<br />

porque conseguiu convergir o maior número <strong>de</strong> pessoas para o seu lado, através da<br />

disputa eleitoral, mas porque, apesar <strong>de</strong> diferente, essa opinião está <strong>de</strong> acordo com os<br />

fins do Estado. Um Chefe <strong>de</strong> Estado, por ser imparcial e estar acima das diferenças <strong>de</strong><br />

opiniões, po<strong>de</strong> dizer que essa ou aquela maneira <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar os fins está <strong>de</strong> acordo com<br />

eles e, portanto, se <strong>de</strong> acordo com os fins, <strong>de</strong> acordo com algo que consensualmente foi<br />

aceito pelos participantes do jogo. Ele dá a certeza <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r não será utilizado<br />

para proveito <strong>de</strong> apenas um grupo e sua respectiva opinião, mas que será utilizado para<br />

r<strong>ea</strong>lização do bem comum.<br />

O executivo cria um impasse no exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Se a pessoa que ocupa seu<br />

cargo resolve agir ativamente e r<strong>ea</strong>lizar as idéias e propostas para as quais foi eleita,<br />

será reprovada por gran<strong>de</strong> parte da nação. Se resolver ser imparcial, se compromete com<br />

a base eleitoral que o elegeu e que espera que sejam cumpridas opiniões que lograram<br />

vencer a eleição.<br />

Desse modo o Presi<strong>de</strong>nte encontra-se em uma encruzilhada, ou opta por ser<br />

partidário e então r<strong>ea</strong>liza a função <strong>de</strong> Governo, ou se torna imparcial r<strong>ea</strong>lizando a<br />

função <strong>de</strong> Chefia <strong>de</strong> Estado, o que, nesse caso, impedirá que ele atue politicamente<br />

<strong>de</strong>terminando os fins que <strong>de</strong>vem possibilitar uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> concretu<strong>de</strong>,<br />

não apenas uma única visão. Visto que ninguém po<strong>de</strong> ser partidário e suprapartidário ao<br />

mesmo tempo, fica o Presi<strong>de</strong>nte em um beco sem saída.<br />

É claro que como Governo a pessoa <strong>de</strong>ve agir ativamente, pois foi colocada ali<br />

para r<strong>ea</strong>lizar políticas que foram aceitas pela maioria das pessoas. Agora essas políticas<br />

não po<strong>de</strong>m se r<strong>ea</strong>lizadas em prol <strong>de</strong> uma parte da nação e em <strong>de</strong>trimento do resto, pois<br />

isso seria contra o bem comum. Porém, como exercerá essa mesma pessoa, que possui<br />

opiniões próprias, e uma forma específica <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lização dos fins, a função mo<strong>de</strong>radora e<br />

neutra <strong>de</strong> Chefe <strong>de</strong> Estado? Mesmo que queira agir <strong>de</strong> maneira imparcial, isso ficará na<br />

prática bastante difícil <strong>de</strong> ser r<strong>ea</strong>lizado, pois esta pessoa já traz em seu bojo concepções<br />

próprias <strong>de</strong> ver os fins que necessariamente são diversas <strong>de</strong> outras existentes na<br />

socieda<strong>de</strong>.


2 A REVOLUÇÃO DE 64<br />

2.1 REVOLUÇÕES E REFORMAS<br />

Para melhor compreen<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong> que maneira se <strong>de</strong>u a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong>,<br />

<strong>de</strong>vemos ver a diferença entre os termos <strong>revolução</strong> e reforma. De acordo com Oliveira<br />

Torres, “as reformas pressupõem a presença do mesmo espírito, uma certa continuida<strong>de</strong>,<br />

a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a uma tradição. A <strong>revolução</strong> é a subversão, a substituição da or<strong>de</strong>m atual”<br />

(1981, p. 173)<br />

Por estas palavras po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r que a reforma busca evoluir, progredir<br />

e aprimorar a atual r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>, bas<strong>ea</strong>ndo-se nos princípios fundadores da or<strong>de</strong>m política,<br />

vinculando-se com o passado e a tradição. Já a <strong>revolução</strong> pressupõe a <strong>de</strong>struição dos<br />

princípios e valores existentes, e a sua substituição por outros novos, criados e impostos<br />

pelos executores da <strong>revolução</strong>.<br />

As reformas são como uma injeção <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> e atualida<strong>de</strong> nos princípios<br />

fundadores das or<strong>de</strong>ns políticas. Buscam adaptar os valores <strong>de</strong> um Estado com a<br />

r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste. Utilizam as instituições políticas existentes para r<strong>ea</strong>lizar as mudanças<br />

necessárias, fazendo com que os valores e princípios sirvam <strong>de</strong> guia para as ações<br />

<strong>de</strong>ntro da comunida<strong>de</strong>. Assim, um Estado será estável quando a interpretação dos<br />

valores pelos partidos políticos, grupos e <strong>de</strong>mais cidadãos, possa gerar resultados<br />

positivos na vida da socieda<strong>de</strong>.<br />

As revoluções, por outro lado, são feitas quando um Estado não consegue<br />

adaptar seus valores e princípios às necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> sua população, seja<br />

porque a r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> evoluiu e os valores estatais não a acompanharam 4 , ou porque os<br />

valores estatais não possibilitam uma interpretação plural, condicionando a um único<br />

meio <strong>de</strong> fazer política. 5<br />

4 O caso mais a<strong>de</strong>quado a este caso é o da Revolução Francesa. Os valores do Antigo Regime ao serem<br />

transportados para a prática através da política impediam a participação política das forças sociais que<br />

estavam surgindo. A opressão causada às forças emergentes pelos valores do Antigo <strong>regime</strong> e a<br />

incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> se adaptar a nova r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> criaram uma situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scompasso entre os valores<br />

(guia <strong>de</strong> todas as ações políticas) e a necessida<strong>de</strong> buscada pelos cidadãos, <strong>de</strong> modo que as forças<br />

emergentes buscaram novos valores que correspon<strong>de</strong>ssem as suas necessida<strong>de</strong>s, substituindo-os pelos do<br />

Antigo Regime.<br />

5 Se os valores estatais forem <strong>de</strong> tal modo específicos que a sua aceitação pressuponha a negação ou a<br />

<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um grupo ou força prepon<strong>de</strong>rante <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um Estado, não restará meios plurais <strong>de</strong> fazer<br />

política, visto que os valores indicam uma única possibilida<strong>de</strong> específica. Seja a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us, a<br />

aniquilação das classes abastadas ou a negação <strong>de</strong> um partido político do cenário parlamentar. Um Estado<br />

formado por estes valores específicos impe<strong>de</strong> que certos grupos participem da política. De modo que a


Em ambos os casos, a <strong>revolução</strong> surge pela incapacida<strong>de</strong> do Estado em<br />

possibilitar uma interpretação plural <strong>de</strong> seus valores. Tal maneira específica e<br />

exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar a política faz com que os grupos afetados negativamente não<br />

vejam outra saída a não ser buscar novos valores que os permitam atingir o po<strong>de</strong>r e<br />

r<strong>ea</strong>lizar assim a sua concepção <strong>de</strong> política. Já dizia Aristóteles: “Em toda a parte as<br />

revoluções são causadas pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, mas uma <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> em que as classes<br />

<strong>de</strong>siguais não participam proporcionalmente do po<strong>de</strong>r, pois geralmente o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

igualda<strong>de</strong> leva às revoluções” (1988, p. 1302ª).<br />

Tal <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> significa a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que todos os grupos<br />

existentes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um Estado tenham condições <strong>de</strong> atingir o po<strong>de</strong>r e r<strong>ea</strong>lizar a sua<br />

opinião <strong>de</strong> como a política <strong>de</strong>ve ser feita.<br />

Portanto, a diferença principal entre <strong>revolução</strong> e reforma po<strong>de</strong>ria ser resumida<br />

num exemplo <strong>de</strong> fácil compreensão. Muitas vezes necessitamos mudar nossa casa,<br />

adaptá-la às nossas necessida<strong>de</strong>s, seja porque precisamos <strong>de</strong> mais um quarto ou porque<br />

simplesmente ela não nos traz uma felicida<strong>de</strong> plena. Se preservarmos as bases e<br />

estruturas existentes, mudando apenas a disposição dos cômodos e divisórias, estaremos<br />

fazendo uma reforma. Se colocarmos tudo abaixo, para construirmos uma nova casa,<br />

com novas bases e estruturas, estaremos fazendo uma <strong>revolução</strong>.<br />

Assim compreen<strong>de</strong>mos que uma pessoa que <strong>de</strong>seja reformar, não po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r<br />

revolucionar, visto que são conceitos e maneiras opostas <strong>de</strong> se r<strong>ea</strong>lizar mudanças. Sobre<br />

o tema, o Papa João XXIII <strong>de</strong>clara que “nas instituições humanas, nada se po<strong>de</strong> renovar,<br />

senão agindo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, passo a passo” (2000), <strong>de</strong>ixando claro que por não ser será<br />

pessoa humana uma casa, as revoluções não são meios a<strong>de</strong>quados <strong>de</strong> mudanças.<br />

A principal dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> êxito das revoluções provém <strong>de</strong> que, sendo elas feitas<br />

por grupos que não são consensuais, já nascem limitadas aos homens e a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

grupos existentes no Estado. A não ser que a <strong>revolução</strong> seja feita por todos os cidadãos<br />

e grupos existentes na socieda<strong>de</strong>, o que <strong>de</strong>veras é muito difícil, pois nenhum Estado<br />

subsiste sem apoio <strong>de</strong> algum grupo ou força prepon<strong>de</strong>rante na socieda<strong>de</strong>, a imposição <strong>de</strong><br />

novos valores através <strong>de</strong> uma <strong>revolução</strong> vitoriosa será feita por um ou alguns grupos da<br />

socieda<strong>de</strong>, o que obviamente não é consensual. Para Souza Junior:<br />

[...] nenhum <strong>regime</strong> po<strong>de</strong> subsistir amparando-se unicamente na<br />

força, para compelir a comunida<strong>de</strong> à obediência. É indispensável à<br />

simples aceitação <strong>de</strong> tais valores por estes mesmos grupos pressupõe a concordância dos mesmos em não<br />

existir politicamente. Em tais casos apenas uma <strong>revolução</strong> ou outro fator externo, fora dos meios legais<br />

habituais, possibilitará uma mudança.


obediência um mínimo <strong>de</strong> aceitação espontân<strong>ea</strong> e livre. Nesse ponto, os<br />

valores se tornam fundamentais: eles são capazes <strong>de</strong> fornecer justificativas<br />

éticas e, até religiosas, que, erigidas em i<strong>de</strong>ologia, consigam obter a a<strong>de</strong>são<br />

espontân<strong>ea</strong> da Comunida<strong>de</strong> ao <strong>regime</strong> (2002a, p. 42).<br />

A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um grupo não é a vonta<strong>de</strong> do povo. Para que se coloque a política<br />

em termos verda<strong>de</strong>iramente nacionais, importa que se forme uma vonta<strong>de</strong> além dos<br />

grupos, impedindo que <strong>de</strong>cisões parciais comprometam o todo.<br />

A reforma pressupõe o reconhecimento <strong>de</strong> valores consensuais, <strong>de</strong> princípios<br />

irrevogáveis que <strong>de</strong>vem orientar o sentido da reforma, seja ela proposta pela esquerda<br />

ou pela direita. A reforma conserva algo, não se contenta em <strong>de</strong>struir. Consiste em<br />

substituir o que vai mal, seja uma peça num carro, uma instalação numa casa ou uma<br />

instituição política. Mesmo no caso <strong>de</strong> haver necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reforma geral, o que<br />

muitas vezes ocorre, sempre permanece alguma coisa.<br />

Em se tratando <strong>de</strong> instituições políticas, <strong>de</strong>struí-las para erigir novas instituições,<br />

com diferentes finalida<strong>de</strong>s para o Estado, é sempre perigoso. Geralmente as novas<br />

instituições e os novos valores são impostos por grupos específicos, assim, há a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais valores não conduzirem ao consenso, mas ao dissenso e a divisão.<br />

“A <strong>revolução</strong> Russa, tendo sido r<strong>ea</strong>lizada por uma minoria enérgica, <strong>de</strong>struiu os valores<br />

consensuais do Estado Russo, aplicando novas concepções dos fins do Estado”<br />

(Oliveira Torres, <strong>1964</strong>, p. 272). Como os novos valores foram criados por um partido,<br />

os fins do Estado, que em um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> <strong>de</strong>vem sempre ser plurais, foram<br />

<strong>de</strong>terminados e específicos, excluindo da vida política quem não se enquadrava na nova<br />

gama <strong>de</strong> valores estatais.<br />

As reformas <strong>de</strong>vem ser gradativas, progredindo com cautela, <strong>de</strong> modo a permitir<br />

que os novos mecanismos adotados se adaptem ao corpo social, possibilitando às<br />

pessoas aceitarem as mudanças. Devem, acima <strong>de</strong> tudo, serem equilibradas, mantendo<br />

um espaço para outras interpretações dos fins estatais, reconhecendo o direito alheio <strong>de</strong><br />

participar do po<strong>de</strong>r. Cria-se assim, uma cooperação mútua em torno do Estado,<br />

favorecendo a união e o progresso em prol do bem comum, ao invés <strong>de</strong>sestimular a<br />

divisão e a intolerância. Já dizia Oliveira Torres:<br />

Não po<strong>de</strong>mos dividir as posições políticas segundo critérios<br />

radicais - os puros <strong>de</strong> um lado, “os inimigos do povo do outro”. Há<br />

contaminações impuras e sublimadas <strong>de</strong> parte a parte. É muito perigoso<br />

querer arrancar o joio no trigal- sai sempre, muito trigo <strong>de</strong> permeio. Ai <strong>de</strong><br />

quem acha que só o seu lado está com a verda<strong>de</strong> e a Justiça” Os piores<br />

<strong>de</strong>spotismos do mundo surgiram <strong>de</strong> homens puros que se tinham como<br />

únicos <strong>de</strong>tentores da Verda<strong>de</strong>!”. Mais adiante continua explicando que “... há<br />

pessoas que consi<strong>de</strong>ram El paredón o único <strong>de</strong>stino conveniente a todos os


homens que não estejam empenhados na <strong>revolução</strong> comunista; há outros que<br />

gritam “perigo comunista” a qualquer manifestação <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> à or<strong>de</strong>m<br />

vigente. (<strong>1964</strong>, p. 270).<br />

Os revolucionários da <strong>revolução</strong> francesa, acreditando que estavam <strong>de</strong> posse da<br />

verda<strong>de</strong>, mataram reis, nobres e quaisquer inimigos dos princípios revolucionários, que,<br />

para eles, simbolizavam a verda<strong>de</strong>. Assim também os nazistas, acreditando estarem<br />

r<strong>ea</strong>lizando um gran<strong>de</strong> bem para a humanida<strong>de</strong>, exterminaram milhões para atingir sua<br />

concepção <strong>de</strong> Justiça.<br />

Todas as pessoas, partidos e grupos possuem uma maneira peculiar <strong>de</strong> enxergar<br />

os fins do Estado. Se fosse concedido a um homem r<strong>ea</strong>lizar sua opinião sem limites,<br />

r<strong>ea</strong>lizá-la-ia na sua totalida<strong>de</strong>, sem restrições, visto que estaria fazendo aquilo que<br />

acredita ser o certo. A vantagem do <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> é que, situando os fins do<br />

Estado em uma instituição política imparcial e mo<strong>de</strong>radora, possibilita que as diferentes<br />

opiniões refreiem seus impulsos, impossibilitando-as <strong>de</strong> ao assumirem o po<strong>de</strong>r,<br />

r<strong>ea</strong>lizarem suas opiniões <strong>de</strong> maneira literal.<br />

Se os homens fossem perfeitos, o melhor seria a monarquia absoluta, mas como<br />

os homens são falhos, <strong>de</strong>vemos ter Constituições, Parlamentos e limites para a atuação<br />

do po<strong>de</strong>r.<br />

Os revolucionários sentem que os fins do Estado não correspon<strong>de</strong>m aos seus<br />

anseios, e, portanto, almejam colocar abaixo as regras políticas vigentes, estabelecendo<br />

novas, mais a<strong>de</strong>quadas àquilo que eles enten<strong>de</strong>m como correto. Porém, ao<br />

estabelecerem os novos fins estatais, fazem-no segundo a sua concepção e opinião, o<br />

que cria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nova <strong>revolução</strong> por parte dos grupos que não ajudaram a<br />

estabelecer os novos valores. É um círculo vicioso. Os grupos que não conseguem<br />

<strong>de</strong>terminar os fins do Estado a sua maneira, seja porque o Estado não oferece saídas<br />

legais para o exercício do po<strong>de</strong>r ou porque os fins pressupõem a negação dos grupos<br />

como forças políticas válidas, fazem uma <strong>revolução</strong> para que a sua concepção <strong>de</strong><br />

política seja efetivamente executada. Ao criarem a nova or<strong>de</strong>m política, com novos<br />

valores e objetivos, o fazem segundo sua concepção, o que novamente exclui alguns<br />

grupos do exercício do po<strong>de</strong>r. O resultado é que esses grupos agora excluídos do po<strong>de</strong>r,<br />

também se ressentirão da exclusão política, tentando assim, <strong>de</strong>struir os fins do Estado e<br />

estabelecer valores que eles possam obe<strong>de</strong>cer.<br />

Portanto, o drama das revoluções é que, para se firmarem, <strong>de</strong>vem restabelecer<br />

um ponto <strong>de</strong> consenso pré-existente ou estabelecer um novo consenso, através da


aceitação <strong>de</strong> todos, <strong>de</strong> novas diretrizes para a vida pública. Se buscarem estabelecer<br />

valores e fins para o Estado, sem a participação <strong>de</strong> todas as forças e grupos sociais,<br />

estarão criando condições para novas revoluções. Caso estabeleçam como regra do jogo<br />

político valores e princípios aos quais todos obe<strong>de</strong>çam livremente, estarão criando as<br />

bases para um Estado estável e reformista.<br />

2.2 REVOLUÇÃO E REFORMA NA REALIDADE BRASILEIRA<br />

A cumulação <strong>de</strong> Estado e Governo na figura do Presi<strong>de</strong>nte acarreta na<br />

i<strong>de</strong>ntificação dos valores (fins) do Estado com um partido ou grupo específico. Esta<br />

cumulação leva à exclusão <strong>de</strong> certos grupos do cenário político enquanto durar o<br />

mandato do Presi<strong>de</strong>nte ou enquanto o partido ou grupo se mantiver no po<strong>de</strong>r. Desse<br />

modo, o germe da Revolução está plantado no Brasil.<br />

No caso brasileiro, o consenso inicial, criador da or<strong>de</strong>m política, foi o 7 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1822, data da proclamação da In<strong>de</strong>pendência pela espada <strong>de</strong> D Pedro I 6 ,<br />

aceito como fundador da or<strong>de</strong>m política brasileira por todos os cidadãos. Destruído esse<br />

consenso, pelo golpe <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1889 que proclamou a República, cabiam<br />

aos militares que r<strong>ea</strong>lizaram a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong> duas saídas para restabelecer um<br />

<strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>. Restabelecer os valores e o consenso criado a 7 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1822 ou convocar todas as forças e grupos sociais para elaborarem um novo consenso,<br />

estabelecendo, assim, novas regras do jogo político, que fossem imparciais e gerassem a<br />

obediência espontân<strong>ea</strong> <strong>de</strong> todos.<br />

A República criada a 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1889 não pô<strong>de</strong> formar um consenso<br />

porque lhe faltava o caráter agregador que se faz necessário para a estabilida<strong>de</strong> dos<br />

Estados. Sendo imposta por minorias, não po<strong>de</strong>ria representar todos os valores comuns<br />

aos brasileiros, apenas os valores comungados pelos grupos minoritários que fundaram<br />

a República. Os militares da Revolução <strong>de</strong> 64 enfrentaram o mesmo dilema, pois ao não<br />

restaurarem o consenso inicial criado na in<strong>de</strong>pendência brasileira, cuja anteriorida<strong>de</strong><br />

6 D. Pedro I, regente do reino do Brasil, lugar-tenente <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> D. João VI, rei <strong>de</strong> Portugal, era o<br />

representante do princípio monárquico nascido em Portugal, reino criador e <strong>de</strong>scobridor do Brasil. Em<br />

Lisboa no ano <strong>de</strong> 1822 havia uma assembléia constituinte revolucionária que queria substituir o<br />

princípio monárquico existente em todas as terras portuguesas, por um princípio republicano,<br />

inteiramente novo e <strong>de</strong>svinculado das raízes portuguesas. D. Pedro I coerentemente rompe com esse<br />

republicanismo português e mantém o Brasil ligado ao princípio que o havia regido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

<strong>de</strong>scobrimento, r<strong>ea</strong>firmando sobre a América portuguesa a Autorida<strong>de</strong> da Coroa.


naturalmente transcendia aos interesses políticos da época, correram o risco <strong>de</strong>, ao<br />

implantar uma nova or<strong>de</strong>m, faz-la sob a ótica <strong>de</strong> uma minoria.<br />

Para r<strong>ea</strong>lizarmos reformas, seria pru<strong>de</strong>nte a criação <strong>de</strong> uma instituição política<br />

permanente, <strong>de</strong>svinculada <strong>de</strong> grupos e que representasse as bases e estruturas do Estado<br />

brasileiro, <strong>de</strong> modo a permitir que mudanças fossem feitas tomando tais bases e<br />

estruturas como ponto <strong>de</strong> partida.<br />

Na atual conjuntura institucional, qualquer proposta <strong>de</strong> mudança feita pelos<br />

<strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r será vista com suspeita pela oposição, visto que, sendo o Governo<br />

um órgão ilimitado na interpretação dos valores, tudo se torna possível. Não havendo<br />

um órgão imparcial que limite as propostas políticas, os valores do Estado po<strong>de</strong>m ser<br />

interpretados <strong>de</strong> qualquer maneira, relegando ao subjetivismo humano as reformas e<br />

mudanças. Assim, oposição que se presta não consi<strong>de</strong>rará legítima as propostas <strong>de</strong><br />

mudança oferecidas pelo Governo.<br />

Na hipótese da oposição assumir o Governo, o grupo que antes era Governo e<br />

agora é oposição combaterá quaisquer propostas <strong>de</strong> reformas e mudanças. Mesmo que<br />

um Governo tenha r<strong>ea</strong>lmente uma boa intenção e <strong>de</strong>seje r<strong>ea</strong>lizar reformas a<strong>de</strong>quadas, a<br />

oposição nunca po<strong>de</strong>rá ter certeza e confiança nos <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r, pois sendo o<br />

Governo composto <strong>de</strong> membros <strong>de</strong> partido <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia específica (i<strong>de</strong>ologia esta que é<br />

contrária e inimiga da concepção i<strong>de</strong>ológica da oposição), não existem garantias <strong>de</strong> que<br />

tal Governo r<strong>ea</strong>lizará o bem comum e não a visão que o partido tem <strong>de</strong> bem comum.<br />

Nesta situação o medo está sempre presente, conforme a lição <strong>de</strong> Ferrero:<br />

Cada princípio <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> fixa um certo número <strong>de</strong> regras para a<br />

aquisição do exercício do po<strong>de</strong>r: o contrato subentendido estabelece por essas<br />

regras e pelo convênio recíproco que, enquanto o po<strong>de</strong>r for adquirido e<br />

exercido por aqueles que mandam <strong>de</strong> acordo com as regras, os súditos os<br />

obe<strong>de</strong>cerão. Cada princípio <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> comporta, em conseqüência, um<br />

compromisso <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer, submetido à condição <strong>de</strong> observância <strong>de</strong> certas<br />

regras ou disposições, que o convertem em verda<strong>de</strong>iro contrato. No momento<br />

em que uma das partes <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> respeitá-lo, o princípio <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> per<strong>de</strong><br />

a sua força e <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a garantia da segurança do po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> seus súditos.<br />

Aí então, aparece o medo (1945, p. 55).<br />

No Governo <strong>de</strong> João Goulart, a incompatibilida<strong>de</strong> entre Estado e Governo e a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se propor reformas pelo Executivo se tornou latente. João Goulart era o<br />

Governo e, portanto, estava vinculado a uma posição política partidária. Como Governo<br />

<strong>de</strong>veria <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r as idéias, opiniões e propostas <strong>de</strong> políticas públicas propostas por seus<br />

correligionários. Nada mais normal. Porém, como Estado, <strong>de</strong>veria o Presi<strong>de</strong>nte manter a<br />

imparcialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os valores consensuais da nação impedindo-os <strong>de</strong> se


contaminarem com conotações i<strong>de</strong>ológicas. O que <strong>de</strong>veria ser feito? Se agisse como<br />

Governo, estaria comprometendo o cargo <strong>de</strong> Chefe <strong>de</strong> Estado. Se agisse como Chefe <strong>de</strong><br />

Estado estaria <strong>de</strong>scumprindo seu <strong>de</strong>ver como Governo.<br />

O Presi<strong>de</strong>nte que tenta r<strong>ea</strong>lizar reformas significativas tem contra si as forças<br />

conservadoras e os que são a favor da manutenção do status quo, exemplo claro do<br />

Presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas e <strong>de</strong> seu pupilo João Goulart 7 . Assim, restaria a João Goulart<br />

duas alternativas: fazer concessões aos interesses corporativos, mantendo o status quo e<br />

evitando reformas significativas, ou, continuar sua política <strong>de</strong> reformas, o que o<br />

colocaria contra as forças conservadoras. Sendo suas propostas <strong>de</strong> reformas partidária e<br />

i<strong>de</strong>ologicamente comprometidas com um grupo social específico, seriam elas<br />

consi<strong>de</strong>radas ilegítimas por todos os outros grupos políticos divergentes. Como não<br />

havia uma instituição política imparcial que <strong>de</strong>sse garantia à oposição <strong>de</strong> que as<br />

reformas <strong>de</strong> João Goulart eram voltadas ao bem comum e não a um interesse partidário,<br />

permanecia a insegurança e a dúvida quanto às verda<strong>de</strong>iras intenções do Presi<strong>de</strong>nte.<br />

Percebe-se que, estando o Governo vinculado ao Estado, qualquer proposta <strong>de</strong><br />

reforma po<strong>de</strong> ser interpretada como <strong>revolução</strong>. Como os Governos são formados através<br />

do apoio das gran<strong>de</strong>s corporações e das forças conservadoras, e estes encarnam o<br />

Estado, há uma tendência a consi<strong>de</strong>rar os interesses das gran<strong>de</strong>s corporações como os<br />

interesses do Estado. É evi<strong>de</strong>nte que as forças conservadoras têm direitos legítimos <strong>de</strong><br />

possuírem seus interesses representados e executados pelo po<strong>de</strong>r, mas também os têm as<br />

classes trabalhadoras, os sindicatos e as minorias na mesma proporção. A prevalência <strong>de</strong><br />

políticas públicas voltadas aos interesses das gran<strong>de</strong>s corporações também po<strong>de</strong> ser<br />

vista pelos trabalhadores, sindicatos e minorias como algo ilegítimo. Tal é a confusão<br />

institucional brasileira, que faz com que os interesses dos grupos mais fortes existentes<br />

na socieda<strong>de</strong> sejam i<strong>de</strong>ntificados com o bem comum. No entanto, o bem comum é o<br />

bem <strong>de</strong> todos, e não <strong>de</strong> um grupo específico, seja ele composto da maioria ou não.<br />

Portanto, o problema não eram as reformas propostas pelo Governo João Goulart,<br />

mas sim as propostas <strong>de</strong> mudanças feitas por João Goulart, enquanto Estado. No<br />

<strong>de</strong>correr dos meses iniciais <strong>de</strong> <strong>1964</strong>, o Presi<strong>de</strong>nte tomou algumas posições como<br />

Governo que comprometiam sua posição como Chefe <strong>de</strong> Estado. Para sobreviver<br />

politicamente, o ele precisaria abandonar sua concepção partidária e i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong><br />

7 João Goulart foi Ministro do Trabalho no governo Vargas, e se apoiava principalmente nas classes<br />

populares e emergentes.


governar e ser unicamente Estado, o que pressupunha ser imparcial e, portanto, ser<br />

imóvel, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> aplicar reformas significativas e mantendo o status quo.<br />

A dificulda<strong>de</strong> criada pelas atuais instituições políticas brasileiras provém <strong>de</strong> que o<br />

Estado no Brasil é parcial, pois é vinculado ao partido que vence as eleições. Um<br />

partido vence as eleições porque se alia aos grupos e corporações mais fortes. Assim,<br />

po<strong>de</strong>mos afirmar que o Estado está ligado aos interesses dos grupos e das corporações<br />

mais fortes. Qualquer política pública, reforma ou Governo que for contra as<br />

corporações mais fortes e a manutenção do status quo, será consi<strong>de</strong>rado contra o Estado<br />

e seus valores, pois estes estão contaminados pelas opiniões e interesses <strong>de</strong> tais<br />

corporações.<br />

Po<strong>de</strong>mos perceber que, no período anterior a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong>, o nosso <strong>regime</strong><br />

político po<strong>de</strong>ria ser caracterizado como um <strong>regime</strong> <strong>autoritário</strong>, pois, sempre houve a<br />

prepon<strong>de</strong>rância <strong>de</strong> uma vertente política sobre o bem comum, <strong>de</strong> modo que, o Estado<br />

brasileiro aten<strong>de</strong>u primeiramente aos interesses corporativos e partidários dos <strong>de</strong>tentores<br />

do po<strong>de</strong>r ao invés <strong>de</strong> buscar atingir o bem da pluralida<strong>de</strong> política existente no<br />

Brasil.Tampouco obtivemos nos períodos anteriores a 64 um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>. Para<br />

a existência <strong>de</strong> tal <strong>regime</strong> a esfera estatal responsável por preservar os valores <strong>de</strong> um<br />

povo <strong>de</strong>veria estar imune a influências i<strong>de</strong>ológicas que sempre <strong>de</strong>formam o bem comum<br />

visando utilizar o Estado em prol <strong>de</strong> interesses menos nobres e altruístas.<br />

2.3 ANTECEDENTES DE 31 DE MARÇO DE <strong>1964</strong><br />

Nas palavras <strong>de</strong> Souza Junior, é flagrante “a incapacida<strong>de</strong> do sistema presi<strong>de</strong>ncial<br />

em funcionar à altura das exigências do Estado Social, ou seja, em permitir um Governo<br />

capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver, com eficiência e consistência, políticos intervencionistas <strong>de</strong><br />

conteúdo econômico e social” (2002b, p. 133). Sendo o parlamento dominado pelas<br />

elites e corporações, as reformas não conseguem passar pelo congresso.<br />

Parafras<strong>ea</strong>ndo Afonso Arinos, explica Souza Junior que<br />

[...] só na República Velha coronelista o Presi<strong>de</strong>nte podia contar <strong>de</strong><br />

antemão com débeis maiorias parlamentares, dando azo a seu “po<strong>de</strong>r<br />

pessoal”. No <strong>regime</strong> <strong>de</strong> 46, um Presi<strong>de</strong>nte inovador encontrava muitas<br />

dificulda<strong>de</strong>s em comandar a indispensável maioria parlamentar, a fim <strong>de</strong><br />

aprovar medidas legislativas reformistas e, assim mesmo, à custa <strong>de</strong><br />

concessões e <strong>de</strong> patronagem (2002, p. 134) [grifo do autor].


Para ele resultaria daí “um sistema moroso, ineficiente e hostil à Presi<strong>de</strong>ntes não<br />

conservadores e contrários às elites e corporações mais fortes presentes no<br />

Estado”(Souza Junior, 2002b, p. 134).<br />

Adiante, continua dizendo que “o presi<strong>de</strong>ncialismo carece <strong>de</strong> mecanismos<br />

a<strong>de</strong>quados para remediar os impasses e as crises normais no funcionamento regular <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>mocracia” (Souza Junior, 2002b, p. 134-135). Apesar <strong>de</strong> alguns aspectos<br />

<strong><strong>de</strong>mocrático</strong>s, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que o <strong>regime</strong> político existente no período anterior a<br />

64 era <strong>de</strong> fato <strong>autoritário</strong>, pois, colocava o interesse <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados grupos acima do<br />

bem da comunida<strong>de</strong> que, excluída do po<strong>de</strong>r não obtinha do Estado políticas públicas<br />

voltadas ao bem da comunida<strong>de</strong>. Vemos assim que, inexistindo meios políticos para que<br />

um grupo assuma o po<strong>de</strong>r r<strong>ea</strong>lizando os fins do Estado <strong>de</strong> sua maneira, a tendência é<br />

que tal grupo buscará atingir seus fins, por meios estranhos as instituições, como as<br />

revoluções.<br />

Segundo Stepan:<br />

No período entre 1961 e <strong>1964</strong>, <strong>de</strong>senvolveu-se no Brasil uma<br />

crescente sensação <strong>de</strong> crise, à medida que maiores ônus econômicos e a<br />

mobilização social levaram muitos políticos da direita e da esquerda a achar<br />

que o próprio <strong>regime</strong> era inoperante (1975, p. 101).<br />

Na década <strong>de</strong> 1950 a 1960, a população rural do Brasil aumentou <strong>de</strong> 33 milhões<br />

para apenas 39 milhões, enquanto a urbana aumentou mais rapidamente, <strong>de</strong> 19 para 32<br />

milhões (Anuário Estatístico do Brasil, 1962, p. 72). Evi<strong>de</strong>nte que o aumento <strong>de</strong>ssa<br />

população urbana criou uma série <strong>de</strong> novas exigências em matéria <strong>de</strong> transporte,<br />

empregos, distribuição <strong>de</strong> alimentos e moradia. Exigências que, necessitando <strong>de</strong><br />

reformas para serem supridas, não po<strong>de</strong>riam ser feitas por um Governo limitado por um<br />

parlamento conservador.<br />

Outros fatores, além dos acima citados, contribuíram para acirrar os ânimos<br />

populares, levando à Revolução <strong>de</strong> 64. Por exemplo, a criação, pelo Governo, <strong>de</strong><br />

sindicatos rurais 8 , que, adotando uma linha agressiva contra os fazen<strong>de</strong>iros, começaram<br />

a provocar uma série <strong>de</strong> conflitos e protestos. Para Stepan, “[...] essa lei acelerou a<br />

competição, entre lí<strong>de</strong>res políticos individuais, a igreja e o órgão altamente político <strong>de</strong><br />

8 Foi concedido aos trabalhadores rurais o direito <strong>de</strong> se organizarem em sindicatos, e a proteção da lei<br />

do salário mínimo. Ara maiores <strong>de</strong>talhes ver Caio Prado Júnior, “O Estatuto do Trabalhador Rural”,<br />

Revista Brasilense (Maio-Junho <strong>de</strong> 1963), p 1-13.


eforma agrária do Governo (SUPRA 9 ), para organizar os camponeses em cooperativas,<br />

ligas camponesas e sindicatos rurais” (1975, p. 103). Para ele, houve um excesso na<br />

avaliação e divulgação da natureza revolucionária <strong>de</strong> Francisco Julião 10 e da consciência<br />

<strong>de</strong> classe <strong>de</strong> tais ligas camponesas. 11 Porém, as reivindicações dos camponeses haviam<br />

crescido nos últimos anos, assim como havia aumentado o ônus dos produtores rurais<br />

em abastecer os gran<strong>de</strong>s centros populacionais. Tais reivindicações <strong>de</strong>sestabilizavam a<br />

proposta <strong>de</strong> reforma agrária, dificultando um entendimento entre fazen<strong>de</strong>iros e<br />

camponeses.<br />

A taxa <strong>de</strong> crescimento do produto nacional brasileiro per capita (PNB) brasileiro,<br />

que durante a década <strong>de</strong> 50 foi uma das mais altas do mundo, conforme relatórios do<br />

FMI dos anos <strong>de</strong> 1966 e 1967, teve redução drástica a partir <strong>de</strong> 1962. Tal queda trouxe<br />

um ônus ao Governo que não po<strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>mandas sociais do seu tempo:<br />

E continua o autor:<br />

Em termos <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> política, o aumento <strong>de</strong> mobilização<br />

social e, mais tar<strong>de</strong>, a queda do crescimento econômico, ampliaram as<br />

exigências feitas à capacida<strong>de</strong> distributiva do Governo no tocante à bens,<br />

serviços e pagamentos. Em resposta a estas exigências e num esforço<br />

populista para angariar maior apoio, o Governo Goulart aumentou os gastos.<br />

No entanto, ao mesmo tempo, as receitas do Governo, que <strong>de</strong> 1955 a 1959<br />

haviam aumentado <strong>de</strong> 17% para 23% do PIB, caíram para 20% por volta <strong>de</strong><br />

1963. Uma das conseqüências disso, foi o rápido aumento do déficit<br />

orçamentário do Governo, que acelerou a inflação, chegando a 75% em 1963,<br />

com uma taxa <strong>de</strong> subida anual <strong>de</strong> 140% nos meses anteriores ao<br />

<strong>de</strong>sencad<strong>ea</strong>mento da <strong>revolução</strong> (Stepan, 1975, p. 104-105).<br />

Este brusco aumento <strong>de</strong> preços <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou disputas salariais cada<br />

vez mais ásperas e ten<strong>de</strong>u a aprofundar a hostilida<strong>de</strong> das classes médias em<br />

relação à classe trabalhista e ao Governo. Os militares se viram profunda e<br />

ambivalente mente envolvidos. As greves engendraram um aumento <strong>de</strong><br />

violência, e os militares foram muitas vezes solicitados a proteger os<br />

grevistas contra Governos estaduais ou empregadores hostis e, em alguns<br />

casos, para proibir as greves. Entre os militares generalizou-se a crença <strong>de</strong><br />

que o estímulo do Governo às greves e a concessão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s aumentos<br />

salariais contribuíram para a inflação, a violência e a erosão <strong>de</strong> seu próprio<br />

status e salários. Os periódicos militares, em número crescente, reclamaram<br />

da inflação e da am<strong>ea</strong>ça que ela representava (Stepan, 1975, p. 106).<br />

O executivo teve que enfrentar várias reivindicações bem articuladas, <strong>de</strong> vários<br />

setores com interesses divergentes. Contudo, <strong>de</strong>vido ao presi<strong>de</strong>ncialismo e a prevalência<br />

9<br />

Superintendência Regional <strong>de</strong> Política Agrária, criada em 1962 com o objetivo <strong>de</strong> promover a reforma<br />

agrária.<br />

10<br />

Francisco Julião foi um político brasileiro, advogado e lí<strong>de</strong>r das ligas camponesas.<br />

11<br />

Para uma análise dos aspectos não revolucionários <strong>de</strong> Francisco Julião ver “Brazil and the Myth of<br />

Francisco Julião”, in Politics of Change in Latin America. Editora Joseph Maier e Richard W<strong>ea</strong>therh<strong>ea</strong>d.<br />

New York, <strong>1964</strong>. P 109-204.


<strong>de</strong> grupos comprometidos com interesses privados ao invés do bem comum, o<br />

Presi<strong>de</strong>nte não pô<strong>de</strong> reunir uma maioria parlamentar capaz <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar um programa<br />

<strong>de</strong>senvolvimentista. A tentativa <strong>de</strong> estabilização do plano “Dantas-Furtado” 12 fracassou<br />

pela impossibilida<strong>de</strong> legislativa <strong>de</strong> maioria parlamentar. Consequentemente o Presi<strong>de</strong>nte<br />

se curvou diante dos grupos <strong>de</strong> interesse e das reivindicações corporativas <strong>de</strong>struindo<br />

qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reforma.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, um Governo que buscava o apoio nas massas não po<strong>de</strong>ria suprir<br />

as exigências <strong>de</strong>stas, seja pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar reformas <strong>de</strong> peso por causa do<br />

congresso conservador, seja pela falta <strong>de</strong> recursos econômicos.<br />

A crise causada pela revolta dos sargentos também foi um dos fatores que<br />

contribuíram para a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong>. Tal crise foi o ápice <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong><br />

politização dos sargentos e a sua utilização como apoio a certos grupos políticos que se<br />

utilizavam <strong>de</strong> ressentimentos 13 dos sargentos para com o oficialato para utilizá-los a<br />

manobras políticas. Pela maior proximida<strong>de</strong> que possui com a tropa em comparação aos<br />

oficiais, os sargentos po<strong>de</strong>riam facilmente mobilizar seus soldados para <strong>de</strong>terminados<br />

fins políticos. A politização dos sargentos e sua proximida<strong>de</strong> com os sindicatos<br />

colocavam em risco a hierarquia necessária a sobrevivência das forças armadas.<br />

Um político importante que tentou usar os sargentos foi Leonel Brizola. Sobre a<br />

atitu<strong>de</strong> do então governador do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul 14 para com os sargentos, disse o<br />

general George Rocha, membro do Estado Maior do Exército em 1963 e <strong>1964</strong>: “A idéia<br />

<strong>de</strong> Brizola era que os sargentos podiam ser a chave. O impacto <strong>de</strong> 1961 foi muito<br />

importante. Persuadiu Brizola <strong>de</strong> que, se pu<strong>de</strong>sse conquistar os sargentos, po<strong>de</strong>ria<br />

mobilizar os generais” (Rocha apud Stepan, 1975).<br />

[...] à medida que se intensificava a crise <strong>de</strong> 1961-<strong>1964</strong>, tanto Goulart quanto<br />

Brizola procuraram abertamente o apoio dos sargentos em troca do endosso<br />

às suas reivindicações por maiores direito políticos. A oficialida<strong>de</strong><br />

12 Também conhecido como Plano Trienal (1963-1965), elaborado por Celso Furtado e San Tiago Dantas<br />

(ministro da Fazenda) em fins <strong>de</strong> 1962 e efetivamente implementado nos primeiros trimestres <strong>de</strong> 1963,<br />

visando combinar o crescimento econômico, as reformas sociais e o combate à inflação. Para uma<br />

análise da articulação das reivindicações e do fracasso total em reunir apoio parlamentar ver Robert T.<br />

Daland, brazilian Planning: Development politics and Administration. Chapel Hill: Universityof North<br />

Carolina Press, 1967.<br />

13 O foco <strong>de</strong> seu ressentimento era a aguda diferença entre o status legal dos oficiais e o dos sargentos e<br />

praças em geral. Os oficiais podiam votar e ocupar vários cargos políticos eletivos e nom<strong>ea</strong>dos, sem<br />

abandonar sua patente. Aos sargentos e soldados, no entanto, a Constituição <strong>de</strong> 1946 negava o direito<br />

<strong>de</strong> voto. Esta negação <strong>de</strong> direitos políticos tornou-se fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento entre os sargentos,<br />

contribuindo para aumentar sua consciência política.<br />

14 Leonel Brizola foi governador do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1959 a 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1963.


interpretou estes acontecimentos como uma am<strong>ea</strong>ça à sua ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comando<br />

(Stepan, 1975, p. 119)<br />

Nesta atmosfera <strong>de</strong> disputas políticas em torno dos oficiais e dos sargentos,<br />

eclodiu em Brasília a revolta dos sargentos. A 12 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1963, os sargentos e<br />

os cabos da Aeronáutica e da Marinha insurgiram-se em protesto contra o Supremo<br />

Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, que negava aos praças o direito a ocupar funções legislativas. Os<br />

revoltosos ocuparam a força centros estratégicos na capital Fe<strong>de</strong>ral, capturaram um juiz<br />

do Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, o Presi<strong>de</strong>nte em exercício da Câmara dos Deputados e<br />

alguns oficiais. Em 12 horas a revolta era sufocada, porém suas repercussões não<br />

<strong>de</strong>sapareceram do cenário político. O Presi<strong>de</strong>nte João Goulart tomou uma <strong>de</strong>cisão<br />

ambígua, argumentando que a revolta constituía “uma explosão emocional sem<br />

qualquer base política r<strong>ea</strong>l” (O Estado <strong>de</strong> São Paulo, periódico, 15 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1963.<br />

Entrevista). Leonel Brizola, lí<strong>de</strong>r da esquerda radical, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u intensamente a justiça<br />

da revolta, como o fizeram muitos dos lí<strong>de</strong>res sindicais.<br />

A posição altamente parcial do Presi<strong>de</strong>nte acelerou a <strong>de</strong>scrença na legitimida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seu <strong>regime</strong>, visto que como Chefe <strong>de</strong> Estado e das forças armadas, <strong>de</strong>veria ser o<br />

primeiro a zelar pela integrida<strong>de</strong> da instituição. A repercussão da atitu<strong>de</strong> do Presi<strong>de</strong>nte<br />

foi negativa nos meios militares, principalmente nos altos escalões, que viam com razão<br />

que o Governo partidário e i<strong>de</strong>ológico, altamente parcial, não zelava pela or<strong>de</strong>m e pelos<br />

valores políticos consensuais existentes no Estado. A sensação <strong>de</strong> crise era tanta que nos<br />

elucida sobre o período Oliveira Torres:<br />

[...] Belo Horizonte foi <strong>de</strong>signada para ser o local <strong>de</strong> um comício<br />

sobre as reformas, no qual falaria o sr. Leonel Brizola, cuja pregação<br />

revolucionária era conhecida... No dia do comício a situação foi às últimas<br />

conseqüências. Antes <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lizar-se o comício, o local foi tomado por<br />

senhoras munidas <strong>de</strong> rosários, a mesa <strong>de</strong> presidência, ocupada por elas, que<br />

se puseram a rezar. Quando os organizadores do comício chegararm<br />

encontraram aquela situação. Tentaram afastar as senhoras e surgiu um<br />

conflito generalizado entre jovens <strong>de</strong> várias tendências, ca<strong>de</strong>iras servindo <strong>de</strong><br />

armas... A polícia compareceu, atirando bombas <strong>de</strong> gás...Na avenida à frente<br />

a multidão se aglomerara, surgindo tremenda bagarre entre manifestantes <strong>de</strong><br />

uma parte a outra.... o povo lançou mão <strong>de</strong> melancias, abóboras e tomates que<br />

foram usados como projéteis na batalha campal (<strong>1964</strong>. p. 171) [grifo do<br />

autor.<br />

Tal episódio ficou conhecido como a noite das melancias, não somente por alusão<br />

às armas adotadas, como também pelo apodo geralmente adotado ao tipo <strong>de</strong><br />

nacionalismo <strong>de</strong> certos políticos, ver<strong>de</strong> por fora, vermelho por <strong>de</strong>ntro.


Este episódio invadiu a ár<strong>ea</strong> religiosa. A Ação Católica <strong>de</strong> Belo Horizonte 15<br />

lançou um manifesto contra a utilização política <strong>de</strong> sentimentos religiosos, o que foi<br />

consi<strong>de</strong>rado por muitos como uma omissão da parte da referida Ação Católica, por esta<br />

não ter tomado posição política <strong>de</strong>finida. A confusão reinante era tanta, que<br />

contaminava todos os setores da socieda<strong>de</strong>, políticos ou apolíticos.<br />

Contudo, os dois fatos <strong>de</strong>cisivos que precipitaram a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong> foram o<br />

comício <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>1964</strong> na Central do Brasil e o motim dos marinheiros, <strong>de</strong> 27<br />

a 29 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>1964</strong>. A respeito do motim dos marinheiros, esclarece Oliveira Torres<br />

que:<br />

Na Semana Santa a situação se agravou irremediavelmente.<br />

Fuzileiros navais, mandados a pren<strong>de</strong>r marinheiros que haviam se reunido<br />

num sindicato, a<strong>de</strong>riram aos que lá se achavam, numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> franco<br />

motim. O Ministro da Marinha não encontrando apoio por parte do Governo,<br />

para restabelecer as bases da disciplina militar, <strong>de</strong>mitiu-se. Configurou-se<br />

uma situação paradoxal - o Presi<strong>de</strong>nte da república estava tomando partido<br />

numa luta <strong>de</strong>ntro da Marinha. Daí por diante ninguém mais se iludiu: a sorte<br />

estava lançada. O Brasil já estava fora dos quadros usuais. Po<strong>de</strong>mos dizer que<br />

os princípios da legitimida<strong>de</strong> estavam <strong>de</strong>finitivamente rompidos - a situação<br />

ficaria, doravante, entregue à <strong>de</strong>cisão da força. Quem vencesse daria sua<br />

palavra. A legitimida<strong>de</strong> é eminentemente subjetiva, é uma crença no direito<br />

<strong>de</strong> mandar – os acontecimentos haviam sido <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que esta crença se<br />

per<strong>de</strong>ra completamente. Mandaria quem tivesse força para tal (<strong>1964</strong>, p. 209).<br />

Sobre o comício ocorrido na Central do Brasil, explica Stepan que:<br />

[...] Goulart lançou uma campanha em favor <strong>de</strong> amplas reformas<br />

estruturais e políticos que vieram a ser conhecidos pelo termo “reforma <strong>de</strong><br />

base”. Nele, anunciou que acabava <strong>de</strong> assinar um <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> reforma agrária<br />

que <strong>de</strong>clarava sujeitas à expropriação todas as proprieda<strong>de</strong>s subutilizadas <strong>de</strong><br />

cerca <strong>de</strong> 500 hectares, situadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 10 quilômetros das rodovias,<br />

ferrovias públicas, e terras <strong>de</strong> 30 hectares localizadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 10<br />

quilômetros das represas fe<strong>de</strong>rais ou projetos <strong>de</strong> drenagem. Também<br />

nacionalizou todas as refinarias <strong>de</strong> petróleo particulares que ainda restavam<br />

no Brasil. Anunciou planos futuros <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r aos analfabetos o direto <strong>de</strong><br />

voto, legalizar o partido comunista. Exigiu que a constituição fosse<br />

reformada por ser obsoleta, pois “legalizava uma estrutura econômica injusta<br />

e <strong>de</strong>sumana (1975, p. 143).<br />

Se analisarmos os efeitos dos <strong>de</strong>cretos presi<strong>de</strong>nciais, veremos que eram mais<br />

ousados na intenção do que <strong>de</strong> fato. Sobre o assunto, nos elucida Oliveira Torres:<br />

O famoso <strong>de</strong>creto da SUPRA, a rigor, não iria r<strong>ea</strong>lmente, trazer<br />

resultados sensíveis, ou ter gran<strong>de</strong>s efeitos práticos. Simplesmente<br />

consi<strong>de</strong>rava <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública, para fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação, uma faixa<br />

indiscriminada, e, portanto, in<strong>de</strong>finida. Depois, com as especificações<br />

constantes, raras as proprieda<strong>de</strong>s seriam efetivamente atingidas. Na prática,<br />

criava um clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança e <strong>de</strong>sassossego, sem que, <strong>de</strong> fato, resultasse<br />

em qualquer efeito prático. Mas o comício, em que o Chefe <strong>de</strong> Estado<br />

proferiu várias palavras impru<strong>de</strong>ntes, e em que se viu envolvido numa gran<strong>de</strong><br />

15 A Ação Católica Brasileira foi criada em 1935 pelo card<strong>ea</strong>l Sebastião Leme da Silveira Cintra no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro.


maré e propaganda comunista expressa, causa a maior emoção no seio do<br />

povo. Por outro lado, o Presi<strong>de</strong>nte reduziu a reforma eleitoral ao voto do<br />

analfabeto, contra o qual se levantam várias objeções, por exemplo, a <strong>de</strong> que<br />

o voto e o direito político ao exercício da função pública <strong>de</strong> escolher<br />

representantes, o que exige habilitações. Seja lá como for, nas cida<strong>de</strong>s o<br />

eleitorado analfabeto será presa <strong>de</strong> <strong>de</strong>magogos, e no campo, dos “coronéis”.<br />

Melhor seria que o Governo <strong>de</strong>sse escolas aos analfabetos (<strong>1964</strong>, p. 195-<br />

196).<br />

O ponto mais perigoso do discurso presi<strong>de</strong>ncial foi o qual ele exigiu uma reforma<br />

constitucional para r<strong>ea</strong>lizar mudanças. No caso particular <strong>de</strong> João Goulart, a situação se<br />

tornara mais estranha. Em 1961, após a renúncia do Presi<strong>de</strong>nte Janio Quadros 16 , ocorreu<br />

à chamada campanha da Legalida<strong>de</strong> 17 , para garantir o direito constitucional <strong>de</strong> João<br />

Goulart, Vice-Presi<strong>de</strong>nte à época, <strong>de</strong> assumir a Presidência. Porém, quando o Presi<strong>de</strong>nte<br />

João Goulart sentiu que não conseguiria r<strong>ea</strong>lizar as mudanças a que se propunha através<br />

da Constituição vigente, propôs que a mesma fosse modificada, indo contra a<br />

Legalida<strong>de</strong> que garantiu sua subida ao po<strong>de</strong>r em 1961.<br />

Oliveira Torres explica a atitu<strong>de</strong> do Presi<strong>de</strong>nte para com a Constituição nos<br />

seguintes termos:<br />

A hostilida<strong>de</strong> do Presi<strong>de</strong>nte ao <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> é explicável.<br />

Constitui um capítulo <strong>de</strong> longa história <strong>de</strong> lutas, que vem dos dias inicias da<br />

República e da Revolução Fe<strong>de</strong>ralista. O Rio Gran<strong>de</strong> do Sul caiu nas mãos<br />

dos positivistas <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos, que conseguiram vencer os maragatos<br />

<strong>de</strong> Silveira Martins 18 . Daí surgiu a constituição ditatorial que regeu o rio<br />

gran<strong>de</strong> até 1930. Entre outros dispositivos, permitia a reeleição in<strong>de</strong>finida do<br />

Presi<strong>de</strong>nte. Com isso, Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros 19 foi Presi<strong>de</strong>nte em vários<br />

períodos governamentais. Em 1937, o Sr. Getúlio Vargas aplicou a todo o<br />

Brasil o <strong>regime</strong> castilhista, até que fosse ap<strong>ea</strong>do do po<strong>de</strong>r em 1946. Hoje<br />

(<strong>1964</strong>), assistimos à tentativa <strong>de</strong> retorno do fascismo Estadonovista.<br />

Juridicamente falando, o Presi<strong>de</strong>nte da República cometeu suicídio em plena<br />

praça pública. Porque <strong>de</strong>struiu as bases <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong> (O<br />

Diário <strong>de</strong> Notícias, periódico, 17 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>1964</strong>. Artigo).<br />

Em qualquer <strong>regime</strong>, o Chefe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong>ve ser o mais ardoroso <strong>de</strong>fensor da<br />

Constituição, o guardião por excelência da Carta Magna, já que ela manifesta através <strong>de</strong><br />

normas e princípios aquilo que uma comunida<strong>de</strong> busca como fim. A Constituição é a<br />

síntese escrita dos valores políticos adotados por um Estado. Valores políticos que<br />

aceitos por todos, <strong>de</strong>verão ser transpostos em uma constituição, pois nos lembra bem<br />

Ferreira Filho que:<br />

16<br />

Renunciou a presidência em 25/08/1961.<br />

17<br />

Nesta campanha se <strong>de</strong>stacou Leonel Brizola, governador do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e cunhado <strong>de</strong> João<br />

Goulart.<br />

18<br />

Silveira Martins foi parlamentar durante o império e articulador político da <strong>revolução</strong> fe<strong>de</strong>ralista.<br />

19<br />

Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros governador do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul nos períodos <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1898<br />

a 25 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1908 e <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1913 a 25 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1928.


[...] a ignorância, o esquecimento, bem como o <strong>de</strong>srespeito por elas<br />

(valores) são as causas – únicas - das <strong>de</strong>sgraças públicas e da corrupção dos<br />

Governos, segundo está no conhecido preâmbulo da Declaração dos direitos<br />

do homem e do Cidadão, <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1789 (2007, p. 14).<br />

Ora, em qualquer <strong>regime</strong> um Chefe <strong>de</strong> Estado não po<strong>de</strong> propor a mudança<br />

constitucional sem estar solapando as raízes <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r. Os valores políticos que<br />

formam o Estado são anteriores ao direito, que visa garantir o cumprimento do contrato<br />

que se fez entre os cidadãos na criação do Estado conforme explica Rommen:<br />

É o fato <strong>de</strong> existir um po<strong>de</strong>r que, apelando-se para ele, faz vigorarem os<br />

hábitos (valores), os quais, por sua vez, obrigam a conduta <strong>de</strong> todos a<br />

concordar com as normas. Bas<strong>ea</strong>mos a nossa segurança na socieda<strong>de</strong>, na<br />

certeza <strong>de</strong> que as regras dos membros serão observadas voluntariamente [...]<br />

(Rommen, 1967, p. 218).<br />

Um governante, fruto <strong>de</strong>ste contrato, e existindo através e para ele, não po<strong>de</strong><br />

querer alterá-lo visto que é submetido a ele. Se um governante advoga mudanças na Lei<br />

Maior, se critica em público a Constituição, tal qual fez o então Presi<strong>de</strong>nte da época,<br />

João Goulart, com muita imprudência e parcialida<strong>de</strong>, possibilita que os valores<br />

consensuais que regem a vida dos cidadãos sejam substituídos por valores saídos da<br />

vonta<strong>de</strong> e arbítrio do governante.<br />

Defen<strong>de</strong>ndo a ruptura com a constituição que legitimava o seu po<strong>de</strong>r, João<br />

Goulart dava azo para que as forças armadas consi<strong>de</strong>rassem seu Governo subversivo, e<br />

portanto, apto a ser <strong>de</strong>posto. Os artigos 176 e 177 da Constituição <strong>de</strong> 1946 <strong>de</strong>finem as<br />

atribuições das forças armadas da seguinte maneira:<br />

[...] artigo 176: A forças Armadas, constituídas essencialmente<br />

pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais<br />

permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a<br />

autorida<strong>de</strong> suprema do Presi<strong>de</strong>nte da república e <strong>de</strong>ntro dos limites da lei [...]<br />

Artigo 177: Destinam-se as forças armadas a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a Pátria e a garantir os<br />

po<strong>de</strong>res constitucionais, a lei e a or<strong>de</strong>m (Campanhole, p. 496).<br />

O Artigo 177, ao se referir à manutenção e à garantia da lei e da or<strong>de</strong>m,<br />

pressupõe-se a <strong>de</strong>fesa dos valores plurais do Estado, consensualmente aceitos por todos<br />

os cidadãos. Mas como visto, os valores do Estado no presi<strong>de</strong>ncialismo brasileiro são,<br />

muitas vezes, <strong>de</strong>terminados pelo grupo que assume o po<strong>de</strong>r. Então, como po<strong>de</strong>riam os<br />

militares distinguir aquilo que era a lei, a or<strong>de</strong>m e os valores plurais do Estado se não<br />

havia uma instituição política que diferenciasse o que era plural e consensual (Estado)<br />

daquilo que era particular e específico (Governo)? Se acreditarmos que os valores do<br />

Estado só permanecem plurais e abrangentes quando não estão vinculados a uma


concepção política parcial, então, aos valores do Estado brasileiro não se aplicam estas<br />

premissas, visto que estão vinculados ao Governo existente na figura do Presi<strong>de</strong>nte.<br />

Portanto, os militares, ao <strong>de</strong>rrubar o Governo João Goulart por acreditar que este<br />

era subversivo, apenas substituíram uma <strong>de</strong>terminada opinião por outra, resultando,<br />

igualmente, em uma limitação do Estado, abrindo-o a apenas uma parcela da socieda<strong>de</strong>.<br />

Vemos que qualquer conotação política dada aos valores que não fosse idêntica a<br />

concepção que os militares tinham <strong>de</strong>stes mesmos valores, po<strong>de</strong>ria ensejar as Forças<br />

Armadas a <strong>de</strong>porem o Presi<strong>de</strong>nte por estar este substituindo os valores do Estado por<br />

uma opinião particular. O Presi<strong>de</strong>nte João Goulart, vinculado a uma corrente partidária,<br />

claramente não seguia a concepção militar <strong>de</strong> interpretação dos valores do Estado,<br />

possibilitando que fosse consi<strong>de</strong>rado subversivo.<br />

A dificulda<strong>de</strong>, porém, <strong>de</strong> cumprir tal preceito constitucional provém <strong>de</strong> que,<br />

qualquer Presi<strong>de</strong>nte, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do partido, da doutrina ou da i<strong>de</strong>ologia que siga, por<br />

ser ao mesmo tempo Governo e Estado, estará contaminando os valores plurais com<br />

valores específicos <strong>de</strong> um grupo ou partido. O interessante é que a intervenção militar<br />

vai <strong>de</strong> encontro a um Governo reconhecidamente <strong>de</strong> esquerda. Se o Governo fosse <strong>de</strong><br />

direita, as propostas políticas, que também seriam i<strong>de</strong>ológicas e partidárias, seriam<br />

parciais, e também estariam transformando os valores plurais em valores específicos e<br />

parciais.<br />

Sendo a política r<strong>ea</strong>lizada em torno <strong>de</strong> interesses corporativos e privados, existia,<br />

como ainda existe, a tendência <strong>de</strong> confundir os fins do Estado, com os fins <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminados grupos. João Goulart foi consi<strong>de</strong>rado subversivo porque propunha uma<br />

política que ia <strong>de</strong> encontro aos interesses corporativos. I<strong>de</strong>ologia por i<strong>de</strong>ologia, todas<br />

são parciais e, ao assumirem o Estado junto ao Governo, todas passam aos cidadãos sua<br />

visão própria da r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da aceitação do povo. Como o Governo é<br />

formado pelas corporações mais fortes, e estas são sempre conservadoras, há a<br />

i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>stas corporações com a direita, o que leva a população brasileira a<br />

aceitar os valores da direita como os valores do Estado, visto que Estado e Governo se<br />

fun<strong>de</strong>m na figura do Presi<strong>de</strong>nte. Essa r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> proporciona uma confusão entre visão<br />

partidária da política e uma visão voltada para o bem comum.<br />

Voltando ao caso brasileiro, compreen<strong>de</strong>mos que não existindo um Governo<br />

legítimo, 20 <strong>de</strong>vido à parcialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos, a política é feita em torno <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong><br />

20 A Legitimida<strong>de</strong> é a capacida<strong>de</strong> que o <strong>de</strong>tentor do po<strong>de</strong>r possui <strong>de</strong> fazer com que suas or<strong>de</strong>ns sejam<br />

aceitas por toda a comunida<strong>de</strong> espontan<strong>ea</strong>mente, por perceber que esta é calcada no bem da


forças, on<strong>de</strong> as mais preparadas vencem. É evi<strong>de</strong>nte que uma política voltada a aten<strong>de</strong>r<br />

os interesses da esquerda, principalmente se intencionada a construir um <strong>regime</strong><br />

comunista, claramente totalitário, <strong>de</strong>ve ser combatida em prol do bem comum. Mas<br />

impedir o exercício do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> um Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>vido a sua parcialida<strong>de</strong>, para substituir<br />

por outro Presi<strong>de</strong>nte igualmente parcial, não atinge o verda<strong>de</strong>iro problema, que é<br />

institucional.<br />

Segundo o general Olympio Mourão Filho, os militares não pretendiam<br />

permanecer in<strong>de</strong>finidamente no po<strong>de</strong>r por meio <strong>de</strong> uma ditadura:<br />

É preciso ressaltar que, em todas as ár<strong>ea</strong>s militares envolvidas na ação<br />

não se admitia ditadura <strong>de</strong> nenhuma espécie. Foi à luta contra possíveis<br />

ditaduras que motivou a tropa. Ninguém jamais pensou em ditadura militar.<br />

Não vi nenhum militar, <strong>de</strong> qualquer patente, engajar-se no movimento por<br />

ambição pessoal ou estimulado por qualquer pensamento mesquinho<br />

(Mourão Filho apud Oliveira Torres, <strong>1964</strong>, p. 218).<br />

Também é evi<strong>de</strong>nte que uma minoria partidária, no caso da que apoiava o<br />

Presi<strong>de</strong>nte João Goulart, não po<strong>de</strong> obrigar a maioria a r<strong>ea</strong>lizar aquilo que esta minoria<br />

enten<strong>de</strong> por política. Assim como não po<strong>de</strong> a maioria r<strong>ea</strong>lizar um política que exclua a<br />

minoria do cenário político. As reformas e as políticas públicas <strong>de</strong>vem correspon<strong>de</strong>r à<br />

aspiração do povo, resultando do consenso <strong>de</strong> todas as forças existentes na socieda<strong>de</strong>, e<br />

não provindas do arbítrio <strong>de</strong> um governante, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que partido seja.<br />

Então, nos perguntamos, como foi possível a uma <strong>revolução</strong> que queria impedir<br />

uma ditadura, ter estabelecido um <strong>regime</strong> <strong>autoritário</strong>? A resposta é clara: <strong>de</strong>ntro das<br />

instituições presi<strong>de</strong>ncialistas há a i<strong>de</strong>ntificação dos interesses <strong>de</strong> um partido com os<br />

interesses do Estado. Os partidos não têm limites valorativos para r<strong>ea</strong>lizar a política,<br />

visto que os fins do Estado são aquilo que um partido <strong>de</strong>termina. Com esses po<strong>de</strong>res<br />

ilimitados um partido vai sempre agir no sentido <strong>de</strong> fazer aquilo que acredita ser o certo,<br />

excluindo idéias opostas e adversárias do cenário político.<br />

A <strong>revolução</strong> é consi<strong>de</strong>rada como uma tentativa <strong>de</strong> forçar a história em um<br />

<strong>de</strong>terminado sentido, já a reforma é a continuação histórica, sem quebra da or<strong>de</strong>m<br />

estabelecida, respeitando os princípios <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>. No presi<strong>de</strong>ncialismo, há a fusão<br />

entre o Estado e o Governo, os grupos que assumem o po<strong>de</strong>r e imprimem ao Estado sua<br />

comunida<strong>de</strong>. Portanto para haver a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve haver um conjunto <strong>de</strong> valores aceitos por todos<br />

os membros do corpo político <strong>de</strong> modo que os <strong>de</strong>tentores das funções <strong>de</strong> mando exerçam seus cargos<br />

com a intenção <strong>de</strong> concretizar tais valores. Percebemos assim que o consenso é essencial para a<br />

existência da legitimida<strong>de</strong>.


opinião nunca são consi<strong>de</strong>rados legítimos pelos grupos divergentes. Está aí uma das<br />

causas da <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> <strong>1964</strong>, como uma tentativa <strong>de</strong> impedir a i<strong>de</strong>ntificação do Estado<br />

com um grupo específico.<br />

Os militares r<strong>ea</strong>lizaram um gran<strong>de</strong> feito ao impedir a i<strong>de</strong>ntificação dos valores<br />

Estatais com a i<strong>de</strong>ologia comunista, porém, fracassaram na chance <strong>de</strong> criar um <strong>regime</strong><br />

<strong><strong>de</strong>mocrático</strong>, pois <strong>de</strong>ixaram o Estado que <strong>de</strong>ve ser plural, vinculado a um Governo, <strong>de</strong><br />

posição política específica.<br />

3 CONCLUSÃO<br />

Consi<strong>de</strong>rando a ilegitimida<strong>de</strong> dos <strong>regime</strong>s <strong>autoritário</strong>s, a repetição do ciclo<br />

intervencionista na or<strong>de</strong>m vigente torna-se latente. Na medida em que grupos <strong>de</strong><br />

opiniões políticas ficam excluídos do manto protetor do Estado e <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> toda a<br />

sua assistência, normalmente agem também <strong>de</strong> forma revolucionária no intento <strong>de</strong><br />

alcançar o po<strong>de</strong>r para implantar suas concepções. Grupos excluídos da ativida<strong>de</strong><br />

política, ao assumirem revolucionariamente o po<strong>de</strong>r, geralmente impõem ao Estado uma<br />

or<strong>de</strong>m valorativa político partidária em sua totalida<strong>de</strong>, implantando opiniões que antes<br />

estavam impossibilitadas <strong>de</strong> serem concretizadas. Desse modo geram novos riscos <strong>de</strong><br />

revoluções, pois igualmente excluem da política os adversários outrora no po<strong>de</strong>r,<br />

fazendo com que esses pa<strong>de</strong>çam dos mesmos males que os <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r já<br />

enfrentaram.<br />

Para evitar a sucessiva repetição <strong>de</strong> ciclos revolucionários, fica clara a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se criar uma autorida<strong>de</strong> política imparcial, zeladora dos valores comuns<br />

dos cidadãos. Esta só po<strong>de</strong>rá agregar os partidos políticos divergentes e faze-los<br />

trabalhar para o bem comum se estiver livre <strong>de</strong> pressões e conotações i<strong>de</strong>ológicas que,<br />

se observadas na sua totalida<strong>de</strong>, automaticamente excluem da política as opiniões<br />

divergentes. Para a existência <strong>de</strong> um <strong>regime</strong> <strong><strong>de</strong>mocrático</strong>, o único capaz <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a<br />

pluralida<strong>de</strong> natural da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve-se estabelecer uma instituição política que<br />

represente o Estado a qual <strong>de</strong>verá sancionar as políticas públicas que estiverem <strong>de</strong><br />

acordo com o bem comum e possui legitimida<strong>de</strong> para vetar aquelas que visam ferir o<br />

mesmo por serem feitas com a intenção <strong>de</strong> beneficiar grupos, partidos e corporações<br />

específicas.<br />

Concluímos afirmando que a <strong>revolução</strong> <strong>de</strong> 64 se <strong>de</strong>u, sobretudo pela<br />

incapacida<strong>de</strong> do nosso <strong>regime</strong> político zelar pelo bem comum, pois, estando o Estado a


serviço <strong>de</strong> setores da socieda<strong>de</strong>, fez com que os grupos políticos não atendidos pelo<br />

Estado se revoltassem e buscassem r<strong>ea</strong>lizar por meios não convencionais as suas<br />

opiniões políticas. Percebemos também que a tendência revolucionária se atenua<br />

quando a opinião política da maioria se concretiza. Por outro lado, um <strong>regime</strong><br />

plenamente <strong><strong>de</strong>mocrático</strong> não <strong>de</strong>ve buscar apenas a felicida<strong>de</strong> da maioria, mas sim o bem<br />

comum, que é o bem <strong>de</strong> todos naquilo que todos têm em comum.<br />

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