Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a ...

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épocas, como vício, pecado, crime, doença, perversão ou como um desvio no desenvolvimento sexual. Evidentemente, uma história que não deixou de marcar os espíritos... mesmo daqueles bem intencionados. E se sabemos que, desde a metade do século XIX, a homossexualidade não é mais tratada como “contrária à natureza” – a não ser em certos tratados de medicina legal, artigos de códigos penais ou discursos religiosos – permanece até hoje a mesma sempiterna visão de que se trata de uma “tendência sexual” para cuja causa certos fatores devem ter influído, tornando-se matéria de etiologia médica, objeto de arqueologias do “inconsciente” ou, recentemente, assunto de especialistas das áreas da biologia, neuroanatomia, neurociência. Num ou noutro caso, estamos no reino das pretendidas causas. O reino da ideologia e do preconceito. As teorias variam – entre idéias propostas por religiões como o espiritismo (a homossexualidade seria cármica) e teses sustentadas por correntes das psicologias, passando por opiniões de biólogos – mas a conclusão é sempre a mesma: a homossexualidade seria um fato, na vida do indivíduo afetado, que se tornaria possível explicar por alguma causa específica. Nossa reflexão é igual, em conclusão, à 1 Neste artigo, utilizo o termo ideologia no sentido próprio de “inversão da realidade” e de “idéias da dominação”, sentido outorgado ao termo desde Marx (1845 [1986]). Contudo, deve-se assinalar, nas reflexões deste último, como inversão e dominação, a ideologia corresponderia ao modo particular do imaginário da sociedade capitalista. A ideologia seria a representação da realidade que a classe dominante nesta sociedade produz e procura impor a todas as demais classes, com o objetivo de garantir sua posição de classe dominante. Objetivo que realiza, ao dissimular, justo através da representação ideológica que oferece da realidade, a dominação que pratica sobre as outras classes. Embora o fenômeno da ideologia tome essa forma específica, e não há que se esquecer isso, é importante assinalar que se torna necessário, hoje, acrescentar à elaboração pioneira de Marx novas considerações sobre o fenômeno da ideologia. Em meus textos, somando à minha própria reflexão as contribuições de Louis Althusser (1974; 1985), Maurice Godelier (1980; 1996), John Thompson (1995) e Marilena Chauí (1980; 1981), tenho insistido em formulações na direção de um conceito de ideologia que não fique restrito à dimensão da dominação de classe, e que torne possível pensar o dado antropológico da dominação que sempre-já implica a sujeição do indivíduo humano à Cultura, através de sua sujeição a normas, costumes, padrões, crenças, mitos, instituições. Nesse sentido, deve-se entender que a ideologia torna possível a dominação pela via simbólica, desde logo a sujeição do indivíduo à linguagem, via pela qual ocorre de toda estruturação social se constituir, tornando-se uma ordem que se ratifica no simbólico, e constituindo-se ela própria numa ordem simbólica. A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a qualquer outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto também uma Ordem Simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas idéias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia procura obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e convencional de toda ordem social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de qualquer cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito à ciência moderna) que oferecem as significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído. Podemos apontar que a eficácia da ideologia, entre outras formas, realiza-se na sua ancoragem nas esferas psíquica, emocional e cognitiva (a subjetividade de cada um; uma parte dela inconsciente) dos indivíduos. O estigma da homossexualidade como prática cuja causa específica deve se desvendar, ainda perdurante em muitas cabeças, que transforma os homossexuais em indivíduos-portadores-de-um-enigma-a-esclarecer (e, assim, objetos a dominar no trabalho da ciência, das religiões, da lei etc.), é um entre vários exemplos que se podem oferecer da dominação dos indivíduos por meio do trabalho da ideologia no espaço da cultura. Na ideologia, a homossexualidade é um fenômeno estranho a ser esclarecido na vida dos indivíduos, e o homossexual é portador de uma causa determinante que o torna sujeito de uma sexualidade particular. Sobre o conceito de ideologia, ver meus “Medos, mitos e castigos” (SOUSA FILHO, 2001); “Cultura, ideologia e representações” (id., 2003) e “Mito e ideologia” (id., 2006). 96

posição dos antropólogos Peter Fry e Edward MacRae quando, em texto em que trataram do tema “o que é a homossexualidade”, referindo-se brevemente ao assunto das “causas”, escreveram: “nenhuma das teorias existentes sobre as causas da homossexualidade nos convence e a nossa tendência é de tratá-las todas, sem exceção, como produções ideológicas” (FRY e MACRAE, 98 : ). Neste trabalho, faremos a crítica a teorias que, de tão difundidas, tornaram-se verdadeiro senso comum social: as teorias das psicologias – a psicanálise aí incluída – e as produzidas na onda contemporânea do determinismo biológico em suas versões mais atuantes: a sociobiologia e a psicologia evolucionista. Trata-se, necessariamente, da visão de um cientista social, mas igualmente subjetiva e que não se esconde como uma visão política do problema. No combate ao preconceito (na ciência ou fora dela) e à violência que ele implica, nenhum cientista pode reivindicar objetividade e neutralidade científicas. Poder-se-á objetar nossa crítica dizendo que nenhum preconceito há em se pensar uma gênese específica da homossexualidade – Freud já tratava do assunto, acreditando numa “gênese psíquica da homossexualidade” (FREUD, 9 0 [ 970: 9 e segs.]) – assim como se admitiria uma gênese também particular para a heterossexualidade. Nos dois casos, tratar-se-ia sempre de escolha objetal e, igualmente, existiriam aí causas implicadas: para cada um dos casos, as escolhas estariam fundadas em determinações (inconscientes), ignoradas pelo próprio sujeito, que se diferenciariam quanto apenas aos objetivos sexuais, julgamentos de valor não podendo ser aplicados a nenhum dos casos. Em outra ocasião (SOUSA FILHO, 00 b), já nos valemos deste argumento, mas ele é frágil. Ora, a questão que não aparece aí é que, como a priori o preconceito sobreatua em certas visões teóricas, as supostas determinações (inconscientes, sociais, culturais) da homossexualidade já são, de antemão, encaradas como determinações de um “problema”, de uma “inversão”, de um “desvio”, de uma “perversão”, isto é, de uma escolha não conforme à ideologia da “normalidade”. Simples é ver que o preconceito age em círculo: como a homossexualidade é a priori encarada como “inversão”, “desvio”, “anormalidade”, perversão” etc., suas supostas “determinações” não são compreendidas como determinações de uma escolha objetal normal e saudável (uma escolha entre outras, supostamente quando haveria uma compreensão sem juízo de valor), mas, diferentemente, como “causa” de um “problema”, de um “desvio” no âmbito da sexualidade dos indivíduos. Até aqui, de todo modo, é o que se pode depreender do discurso de muitos nos diversos modelos teóricos das psicologias, na pedagogia, e mesmo nas ciências sociais. Descontadas as dificuldades de sua época e não deixando de se reconhecer seus autênticos propósitos emancipatórios, os enredamentos de Freud em torno do tema da homossexua- 97

épocas, como vício, pecado, crime, doença, perversão ou como um desvio no desenvolvimento<br />

sexual. Evidentemente, uma história que não deixou de marcar os espíritos...<br />

mesmo daqueles bem intencio<strong>na</strong>dos. E se sabemos que, desde a metade do<br />

século XIX, a homossexualidade não é mais tratada como “contrária à <strong>na</strong>tureza” – a<br />

não ser em certos tratados de medici<strong>na</strong> legal, artigos de códigos pe<strong>na</strong>is ou discursos<br />

religiosos – permanece até hoje a mesma sempiter<strong>na</strong> visão de que se trata de uma<br />

“tendência sexual” para cuja causa certos fatores devem ter influído, tor<strong>na</strong>ndo-se<br />

matéria de etiologia médica, objeto de arqueologias do “inconsciente” ou, recentemente,<br />

assunto de especialistas das áreas da biologia, neuroa<strong>na</strong>tomia, neurociência.<br />

Num ou noutro caso, estamos no reino das pretendidas causas. O reino da ideologia<br />

e do preconceito. As teorias variam – entre idéias propostas por religiões como o<br />

espiritismo (a homossexualidade seria cármica) e teses sustentadas por correntes das<br />

psicologias, passando por opiniões de biólogos – mas a conclusão é sempre a mesma:<br />

a homossexualidade seria um fato, <strong>na</strong> vida do indivíduo afetado, que se tor<strong>na</strong>ria<br />

possível explicar por alguma causa específica. Nossa reflexão é igual, em conclusão, à<br />

1 Neste artigo, utilizo o termo ideologia no sentido próprio de “inversão da realidade” e de “idéias da domi<strong>na</strong>ção”,<br />

sentido outorgado ao termo desde Marx (1845 [1986]). Contudo, deve-se assi<strong>na</strong>lar, <strong>na</strong>s reflexões<br />

deste último, como inversão e domi<strong>na</strong>ção, a ideologia corresponderia ao modo particular do imaginário da<br />

sociedade capitalista. A ideologia seria a representação da realidade que a classe domi<strong>na</strong>nte nesta sociedade<br />

produz e procura impor a todas as demais classes, com o objetivo de garantir sua posição de classe<br />

domi<strong>na</strong>nte. Objetivo que realiza, ao dissimular, justo através da representação ideológica que oferece da<br />

realidade, a domi<strong>na</strong>ção que pratica <strong>sobre</strong> as outras classes. Embora o fenômeno da ideologia tome essa<br />

forma específica, e não há que se esquecer isso, é importante assi<strong>na</strong>lar que se tor<strong>na</strong> necessário, hoje,<br />

acrescentar à elaboração pioneira de Marx novas considerações <strong>sobre</strong> o fenômeno da ideologia. Em meus<br />

textos, somando à minha própria reflexão as contribuições de Louis Althusser (1974; 1985), Maurice Godelier<br />

(1980; 1996), John Thompson (1995) e Marile<strong>na</strong> Chauí (1980; 1981), tenho insistido em formulações<br />

<strong>na</strong> direção de um conceito de ideologia que não fique restrito à dimensão da domi<strong>na</strong>ção de classe, e que<br />

torne possível pensar o dado antropológico da domi<strong>na</strong>ção que sempre-já implica a sujeição do indivíduo<br />

humano à Cultura, através de sua sujeição a normas, costumes, padrões, crenças, mitos, instituições.<br />

Nesse sentido, deve-se entender que a ideologia tor<strong>na</strong> possível a domi<strong>na</strong>ção pela via simbólica, desde<br />

logo a sujeição do indivíduo à linguagem, via pela qual ocorre de toda estruturação social se constituir,<br />

tor<strong>na</strong>ndo-se uma ordem que se ratifica no simbólico, e constituindo-se ela própria numa ordem simbólica.<br />

A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção<br />

(capitalistas ou outras) e da domi<strong>na</strong>ção política de classe, como ainda entendem diversos autores<br />

(marxistas ou não). Anterior a qualquer outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade,<br />

mesmo <strong>na</strong>queles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto também uma Ordem<br />

Simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas idéias sociais,<br />

como uma ordem <strong>na</strong>tural, única, universal, imutável, divi<strong>na</strong>. Resultado que a ideologia procura obter invertendo<br />

e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e convencio<strong>na</strong>l de toda ordem social e suas<br />

instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua domi<strong>na</strong>ção <strong>sobre</strong> os indivíduos, engendrada e reproduzida<br />

sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de qualquer cultura (enquanto sistema de<br />

sociedade), ao procurar <strong>na</strong>turalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do<br />

mito à ciência moder<strong>na</strong>) que oferecem as significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído.<br />

Podemos apontar que a eficácia da ideologia, entre outras formas, realiza-se <strong>na</strong> sua ancoragem <strong>na</strong>s<br />

esferas psíquica, emocio<strong>na</strong>l e cognitiva (a subjetividade de cada um; uma parte dela inconsciente) dos<br />

indivíduos. O estigma da homossexualidade como prática cuja causa específica deve se desvendar, ainda<br />

perdurante em muitas cabeças, que transforma os homossexuais em indivíduos-portadores-de-um-enigma-a-esclarecer<br />

(e, assim, objetos a domi<strong>na</strong>r no trabalho da ciência, das religiões, da lei etc.), é um entre<br />

vários exemplos que se podem oferecer da domi<strong>na</strong>ção dos indivíduos por meio do trabalho da ideologia<br />

no espaço da cultura. Na ideologia, a homossexualidade é um fenômeno estranho a ser esclarecido <strong>na</strong><br />

vida dos indivíduos, e o homossexual é portador de uma causa determi<strong>na</strong>nte que o tor<strong>na</strong> sujeito de uma<br />

sexualidade particular. Sobre o conceito de ideologia, ver meus “Medos, mitos e castigos” (SOUSA FILHO,<br />

2001); “Cultura, ideologia e representações” (id., 2003) e “Mito e ideologia” (id., 2006).<br />

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