Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a ...

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18.08.2013 Views

O confronto entre memória e olhar, central para a obra de Silviano Santiago e para repensar as possibilidades da narrativa contemporânea, é encenado uma vez mais: o personagem que lembra/o mundo que o esquece. Stella é um personagem entre a melancolia e um jogo de máscaras. A consciência se torna olhar em crise diante de um mundo simulacral. O drama do efêmero completa-se com o da experiência sexual, na voz de Marcelo: “a principal característica da bicha hoje (entendamos 9 9) é a de uma constante busca de estilo próprio” (p. ). A falta de identidade leva à procura de uma subjetividade via espetacularização de si mesmo, sempre, no entanto, precária, posto que mutante. Acentua-se a fragilidade do protagonista pelo desafio do deslocamento entre as malhas da repressão cotidiana. Não devemos esquecer que ele foi “exilado” em Nova Yorke pela família e dos ecos vindos da ditadura militar no Brasil. Stella/Eduardo memoriosa, sentimental, confirma sua diferença em face da maioria silenciosa e da minoria inserida numa prática política de esquerda tradicional. Jogado no cotidiano, cada dia é cada dia. Stella Manhattan representa o predomínio da fantasia, da ficcionalização do real em contraste com escleroses políticas e sexuais que assumem posições rígidas, imobilizadoras. Stella está livre da prisão de outros olhares, mas sofre num mundo de fugacidades. O momento de seu corpo é anti-histórico, o agora concreto. O imagético contra o discursivo. No decorrer da narrativa, Eduardo desaparece gradualmente. Corpo de neon. Os vínculos com outros personagens vão se rompendo. A perda completa das referências vem simbolicamente com o telefonema do Cel. Vianna, adido militar no consulado brasileiro, mais conhecido como Viúva Negra, que afirma Sérgio não ser pai de Eduardo. Aí se dá a ruptura definitiva da comunicação entre Eduardo e o mundo. No desenraizamento, na última perda do vínculo com a família, a leveza da solidão mais plena. 360 Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado. Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. [...]. O doce prazer de deixar o nada existir. A pluma ao vento não quer saber dos quatro pontos cardeais, e se quisesse, de nada adiantaria (p. ).

O fim de Eduardo é o vazio, a rarefação. No entanto, o mistério de Stella não é o de seu simples desaparecimento, em suas várias versões, mas de como o visível se torna opaco, uma máscara na frente do nada. O desaparecimento de Stella revela a dificuldade da encenação social e do simulacro na sociedade de massas, no qual a intimidade se vê invadida e o espaço público desvalorizado. As possibilidades do jogo que vivificam a subjetividade pelo uso de máscaras residem na compreensão da natureza imagética da sociedade contemporânea. A máscara não é disfarce de um vazio existencial, mas uma tática de coexistir em que o primado é o da velocidade. Há um confronto permanente entre o desejo de pertencimento e a deriva, entre narcisismo e tribalismo. Seu centramento na vida pessoal é difícil de ser mantido diante de às mudanças do mundo exterior. Stella Manhattan é uma Mme. Bovary contemporânea. Em Nova York deseja a praia, o sol do Rio de Janeiro, e Ricky, em quem ela vê um James Dean reencarnado, a possibilidade de uma grande paixão e não um mero michê. Stella Manhattan é um romance de ilusões perdidas, de uma formação (Bildung) frustrada, ou talvez de uma impossibilidade contemporânea de articular satisfatoriamente o efêmero e o durável nas relações intersubjetivas. Stella, no fim, pode dizer “agora sou uma estrela”, ainda que ela tivesse morrido numa prisão norte-americana, violentada pelos presos (uma das versões do fim). Stella de fato não morre, ela desaparece nas palavras dos outros personagens. Seu corpo se dispersa. “Viado não morre, vira purpurina” (Laura de Vison). Seu desaparecimento pode nos oferecer senão um caminho, pelo menos uma pista para reavaliar a invisibilidade. Se a invisibilidade comumente tem um sentido negativo num primeiro momento de uma política de identidades, talvez agora ela possa significar algo diferente. Ser invisível numa sociedade consumista pode ser uma maneira de fazer uma diferença pela pausa e pela sutileza. Numa sociedade na qual tudo, todos devem ser visíveis a qualquer custo, incluindo mais e mais diversos grupos minoritários, mesmo a transgressão e a diferença são apenas estratégias de marketing. Por certo, invisibilidade não significa se esconder, fugir da realidade, mas simplesmente uma forma de enfrentar o poder corrosivo do simulacro, o excesso de imagens e signos cada vez mais desprovidos de sentido. A desaparição em Stella Manhattan pode ser melhor compreendida não exatamente por razões políticas relacionadas aos regimes autoritários latino-americanos. É algo mais comum. As pessoas desaparecem todo dia, se perdem, não voltam pra casa. Basta ler os jornais ou as estórias de Paul Auster, repletas de personagens anônimos, sempre a ponto de desaparecerem. A desaparição seria, então, uma outra maneira de viver, de se reinventar e de pertencer. A desaparição está sempre em constante tensão com a visibilidade, nos 361

O confronto entre memória e olhar, central para a obra de Silviano Santiago e<br />

para repensar as possibilidades da <strong>na</strong>rrativa contemporânea, é ence<strong>na</strong>do uma vez<br />

mais: o perso<strong>na</strong>gem que lembra/o mundo que o esquece. Stella é um perso<strong>na</strong>gem<br />

entre a melancolia e um jogo de máscaras. A consciência se tor<strong>na</strong> olhar em crise<br />

diante de um mundo simulacral.<br />

O drama do efêmero completa-se com o da experiência sexual, <strong>na</strong> voz de<br />

Marcelo: “a principal característica da bicha hoje (entendamos 9 9) é a de uma<br />

constante busca de estilo próprio” (p. ). A falta de identidade leva à procura de<br />

uma subjetividade via espetacularização de si mesmo, sempre, no entanto, precária,<br />

posto que mutante. Acentua-se a fragilidade do protagonista pelo desafio do deslocamento<br />

entre as malhas da repressão cotidia<strong>na</strong>. Não devemos esquecer que ele<br />

foi “exilado” em Nova Yorke pela família e dos ecos vindos da ditadura militar no<br />

Brasil. Stella/Eduardo memoriosa, sentimental, confirma sua diferença em face da<br />

maioria silenciosa e da minoria inserida numa prática política de esquerda tradicio<strong>na</strong>l.<br />

Jogado no cotidiano, cada dia é cada dia.<br />

Stella Manhattan representa o predomínio da fantasia, da ficcio<strong>na</strong>lização do<br />

real em contraste com escleroses políticas e sexuais que assumem posições rígidas,<br />

imobilizadoras. Stella está livre da prisão de outros olhares, mas sofre num mundo<br />

de fugacidades. O momento de seu corpo é anti-histórico, o agora concreto. O imagético<br />

contra o discursivo.<br />

No decorrer da <strong>na</strong>rrativa, Eduardo desaparece gradualmente. Corpo de<br />

neon. Os vínculos com outros perso<strong>na</strong>gens vão se rompendo. A perda completa<br />

das referências vem simbolicamente com o telefonema do Cel. Vian<strong>na</strong>, adido<br />

militar no consulado brasileiro, mais conhecido como Viúva Negra, que afirma<br />

Sérgio não ser pai de Eduardo. Aí se dá a ruptura definitiva da comunicação entre<br />

Eduardo e o mundo. No desenraizamento, <strong>na</strong> última perda do vínculo com a<br />

família, a leveza da solidão mais ple<strong>na</strong>.<br />

360<br />

Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse,<br />

o bobo. Pensou errado. Ninguém tem Eduardo. Ninguém<br />

teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto que todo o<br />

ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro<br />

ar. Uma pedra no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata<br />

liberado da gravidade. Nada o puxa mais para a terra. Um corpo<br />

que não atrai e que não é atraído. Solto. [...]. O doce prazer de<br />

deixar o <strong>na</strong>da existir. A pluma ao vento não quer saber dos quatro<br />

pontos cardeais, e se quisesse, de <strong>na</strong>da adiantaria (p. ).

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