A ruptura dos direitos humanos na filosofia política de ... - UFMG
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TEXTO PARA DISCUSSÃO N 402<br />
A RUPTURA DOS DIREITOS HUMANOS<br />
NA FILOSOFIA POLÍTICA DE HANNAH ARENDT<br />
Fausto Brito<br />
Setembro <strong>de</strong> 2010<br />
1
Ficha catalográfica<br />
323.4<br />
B862r<br />
2010<br />
Brito, Fausto.<br />
A <strong>ruptura</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>na</strong> <strong>filosofia</strong> <strong>política</strong><br />
<strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt / Fausto Brito. - Belo Horizonte:<br />
<strong>UFMG</strong>/Ce<strong>de</strong>plar, 2010.<br />
27p. (Texto para discussão ; 402)<br />
1. Arendt, Han<strong>na</strong>h, 1906-1975. 2. Direitos <strong>humanos</strong>.<br />
3. Migração – Aspectos sociais. I. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>de</strong> Mi<strong>na</strong>s Gerais. Centro <strong>de</strong> Desenvolvimento e<br />
Planejamento Regio<strong>na</strong>l. II. Título. III. Série.<br />
CDD<br />
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS<br />
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS<br />
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E PLANEJAMENTO REGIONAL<br />
A RUPTURA DOS DIREITOS HUMANOS<br />
NA FILOSOFIA POLÍTICA DE HANNAH ARENDT *<br />
CEDEPLAR/FACE/<strong>UFMG</strong><br />
BELO HORIZONTE<br />
2010<br />
Fausto Brito<br />
Professor do Departamento <strong>de</strong> Demografia da <strong>UFMG</strong>.<br />
* Agra<strong>de</strong>ço a leitura atenta e as observações feitas pelo professor Newton Bignotto, meu orientador no pós-doutorado em<br />
Filosofia Política no Departamento <strong>de</strong> Filosofia da <strong>UFMG</strong>. Agra<strong>de</strong>ço, também, a mestranda em Filosofia, Junia Magalhães<br />
Tavares, minha colega no curso <strong>de</strong> Filosofia Política do professor Newton, com quem iniciei as reflexões sobre a <strong>filosofia</strong><br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Os agra<strong>de</strong>cimentos não retiram a minha inteira responsabilida<strong>de</strong> sobre as idéias expostas neste<br />
artigo.<br />
3
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................6<br />
A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DOS DIREITOS HUMANOS E A CONSTRUÇÃO DA<br />
SOCIEDADE POLÍTICA...................................................................................................................8<br />
A CRÍTICA DE HANNAH ARENDT: A EMERGÊNCIA DOS APÁTRIDAS E A RUPTURA DOS<br />
DIREITOS HUMANOS ...................................................................................................................16<br />
OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS CIVIS.......................................................................20<br />
CONCLUSÕES: A RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, O DIREITO A TER<br />
DIREITOS........................................................................................................................................23<br />
BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................................27<br />
4
RESUMO<br />
O objetivo <strong>de</strong>ste artigo é discutir a crítica <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt ao <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> conforme a<br />
tradição oci<strong>de</strong>ntal. Com este objetivo, a<strong>na</strong>lisa-se a sua fundamentação nos filósofos contratualistas,<br />
Hobbes, Locke e Rousseau, além da sua efetivação <strong>política</strong> <strong>na</strong>s <strong>de</strong>clarações das revoluções america<strong>na</strong><br />
e francesa. Os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> ten<strong>de</strong>ram a ser confundi<strong>dos</strong> com os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos,<br />
particularmente, <strong>dos</strong> cidadãos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Arendt vai propor a existência <strong>de</strong> um espaço político<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que garanta a tutela <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, ou seja,<br />
um espaço on<strong>de</strong> cada indivíduo tenha, por pertencer à humanida<strong>de</strong>, o direito a ter direito.<br />
ABSTRACT<br />
The aim of this paper is to discuss Han<strong>na</strong>h Arendt's critique of human rights according to the<br />
Western tradition. With this objective, we a<strong>na</strong>lyze its foundations from the social contract<br />
philosophers such as Hobbes, Locke, and Rousseau, as well as its implementation in policy statements<br />
of the American and French revolutions. Human rights ten<strong>de</strong>d to be confused with the rights of<br />
citizens, particularly the within <strong>na</strong>tions. Arendt will propose the existence of an inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l political<br />
are<strong>na</strong> to ensure the protection of human rights regardless of <strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l states, a space where each<br />
individual, for belonging to humanity, has the right to have rights.<br />
Palavras chaves: <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, migrações inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />
5
INTRODUÇÃO<br />
O tema <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> tem acompanhado a história contemporânea <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />
Revoluções America<strong>na</strong> e Francesa e, especialmente, a <strong>filosofia</strong> <strong>política</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Thomas<br />
Hobbes. A Declaração da In<strong>de</strong>pendência <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong>, 1776, e a Declaração <strong>dos</strong> Direitos do<br />
Homem e do Cidadão, 1789, enunciaram efetivamente a universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes <strong>direitos</strong>.<br />
Essa novida<strong>de</strong> marcante das duas gran<strong>de</strong>s revoluções fez do homem não só fonte do direito,<br />
mas também portador <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis. E a <strong>política</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> adquiriu um novo fundamento no<br />
século XVIII, o absoluto não era mais um <strong>de</strong>us ou um rei, o absoluto era o indivíduo com os seus<br />
<strong>direitos</strong> fundamentais.<br />
O itinerário <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> vai encontrar muitos obstáculos ainda nos seus primeiros<br />
anos, logo após as duas mais importantes revoluções burguesas. A contribuição <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt<br />
para a análise <strong>de</strong>sse itinerário foi <strong>de</strong>cisiva. Ela reconhece as suas virtu<strong>de</strong>s e as suas vicissitu<strong>de</strong>s,<br />
procurando o caminho que permite compreendê-lo no seu verda<strong>de</strong>iro significado para a <strong>filosofia</strong> e para<br />
a <strong>política</strong>.<br />
A chave conceitual para essa compreensão é o que Arendt consi<strong>de</strong>ra como a <strong>ruptura</strong> <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> 1 . Na verda<strong>de</strong>, esta é a ponta mais insinuante do iceberg que tor<strong>na</strong> evi<strong>de</strong>nte a <strong>ruptura</strong>,<br />
não só do direito, mas do fluxo da história e a da tradição do pensamento oci<strong>de</strong>ntal. Ela começa a se<br />
configurar <strong>de</strong> modo contun<strong>de</strong>nte no período do imperialismo, principalmente, <strong>na</strong>s três décadas entre<br />
1884-1914, quando se expan<strong>de</strong>m as i<strong>de</strong>ologias raciais que se transformaram, muitas vezes, em<br />
<strong>política</strong>s <strong>de</strong> Estado.<br />
A cristalização histórica da <strong>ruptura</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> se dá, entre as duas gran<strong>de</strong>s guerras,<br />
com a barbárie totalitária do <strong>na</strong>zismo e do stalinismo. Essa tragédia sem prece<strong>de</strong>ntes cria uma massa<br />
<strong>de</strong> homens supérfluos, excluída socialmente, <strong>de</strong>spida <strong>de</strong> qualquer direito, posta em sua cruel<br />
<strong>na</strong>turalida<strong>de</strong> nos campos <strong>de</strong> concentração e <strong>de</strong> trabalho.<br />
Entre a expansão das i<strong>de</strong>ologias raciais e o momento do totalitarismo, a <strong>ruptura</strong> começa a<br />
tor<strong>na</strong>-se evi<strong>de</strong>nte <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> <strong>política</strong> com o aparecimento <strong>dos</strong> “displaced persons”, os apátridas e as<br />
minorias, que não tinham mais aqueles <strong>direitos</strong> consagra<strong>dos</strong> como i<strong>na</strong>lienáveis. De acordo com<br />
Arendt, a <strong>filosofia</strong> contratualista e as <strong>de</strong>clarações <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>de</strong> 1776 e <strong>de</strong> 1789 tiveram a<br />
virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer do homem a fonte <strong>de</strong>stes <strong>direitos</strong> e torná-los i<strong>na</strong>lienáveis. Entretanto, os displaced<br />
persons, homens sem lugar <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, afrontavam a fundamentação metafísica <strong>de</strong>sses<br />
<strong>direitos</strong> ancorada <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>.<br />
Esta é a primeira crítica <strong>de</strong> Arendt aos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Justifica<strong>dos</strong> como inerentes à pessoa<br />
huma<strong>na</strong> eles <strong>de</strong>svelam uma paradoxal dimensão pré-<strong>política</strong>. Os homens não são iguais nem livres por<br />
<strong>na</strong>tureza, se assim fossem os apátridas e as minorias não teriam perdi<strong>dos</strong> seus <strong>direitos</strong>. Per<strong>de</strong>ram-nos,<br />
justamente, porque ficaram reduzi<strong>dos</strong> à mera <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, sem inserção no mundo, em especial,<br />
no mundo da <strong>política</strong>. A igualda<strong>de</strong> huma<strong>na</strong> só tem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acontecer no espaço público, ou da<br />
<strong>política</strong>, construído pelos próprios homens e fundado no princípio da isonomia. É <strong>na</strong> <strong>política</strong>, e não <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, on<strong>de</strong> se fundamentam os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>.<br />
1 DUARTE, André : 2000<br />
6
A segunda crítica <strong>de</strong> Arendt se refere às revoluções america<strong>na</strong> e francesa, quando os <strong>direitos</strong><br />
<strong>humanos</strong>, efetiva<strong>dos</strong> politicamente, foram subordi<strong>na</strong><strong>dos</strong> à soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e i<strong>de</strong>ntifica<strong>dos</strong> com os<br />
<strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. As duas primeiras críticas <strong>de</strong> Arendt reconsi<strong>de</strong>ram não só as <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong><br />
<strong>direitos</strong> das duas revoluções, mas também o pensamento contratualista <strong>dos</strong> séculos XVII e XVIII.<br />
Muitos <strong>dos</strong> seus conceitos se espalharam pelas revoluções america<strong>na</strong> e francesa e aparecem <strong>na</strong>s suas<br />
respectivas <strong>de</strong>clarações. Po<strong>de</strong>-se encontrar em Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704)<br />
e Jean-Jacques Rousseau (1712-1779) a compreensão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> como intrínsecos à<br />
<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> e <strong>dos</strong> seus limites impostos pela constituição da socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>.<br />
A terceira crítica <strong>de</strong> Arendt, construída, também, a partir <strong>de</strong>ssas revoluções que<br />
i<strong>na</strong>uguraram a socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> contemporânea, distingue os <strong>direitos</strong> homens <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> civis. O<br />
essencial <strong>de</strong>ssa diferença é a própria concepção <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Arendt faz uma diferença entre liberda<strong>de</strong><br />
e liberda<strong>de</strong> negativa. A última se institucio<strong>na</strong>liza nos <strong>direitos</strong> civis consagra<strong>dos</strong> constitucio<strong>na</strong>lmente<br />
que estabelecem limites à ação do Estado. Trata-se <strong>de</strong> uma liberda<strong>de</strong> negativa, pois não se constitui,<br />
necessariamente, <strong>na</strong> inserção essencial do homem no mundo, que se dá através do acesso à<br />
participação <strong>na</strong> gestão do espaço público comum. Neste espaço, construído pelo próprio homem, é que<br />
se realiza a liberda<strong>de</strong>, <strong>na</strong> sua dimensão positiva, ou seja, no exercício do direito fundamental do<br />
homem <strong>de</strong> participar <strong>na</strong> <strong>política</strong>.<br />
A análise <strong>de</strong>ssas três críticas, introduzidas por uma reflexão sobre o pensamento contratualista<br />
sobre a liberda<strong>de</strong> e os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, se constitui no objetivo fundamental <strong>de</strong>ste artigo. Contudo ele<br />
ficaria incompleto sem a avaliação da proposta <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt para a superação das suas próprias<br />
críticas, isto é, a reconstrução <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> através do reconhecimento que cada indivíduo tem<br />
direito a ter <strong>direitos</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das fronteiras do Estado-<strong>na</strong>ção.<br />
A fundamentação do direito a ter <strong>direitos</strong> não é a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, segundo os contratualistas<br />
ou as revoluções america<strong>na</strong> e francesa, mas sim a sua concepção <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>. Arendt vai buscar <strong>na</strong><br />
moral universalista e cosmopolita kantia<strong>na</strong> o conceito <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e dá a ele a dimensão <strong>política</strong><br />
necessária para se construir um espaço público inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l on<strong>de</strong> o direito a ter direito seja <strong>de</strong>corrente<br />
do mero pertencimento à ela, não se dissolvendo nos limites <strong>de</strong> cada <strong>na</strong>ção. A própria humanida<strong>de</strong><br />
seria a garantia <strong>de</strong> uma tutela universal <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Essa concepção <strong>de</strong> um espaço político<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l on<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> essencial <strong>dos</strong> indivíduos se realiza, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da sua <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>,<br />
não é <strong>na</strong>da trivial, porém, a sugestão <strong>de</strong> Arendt é instigante e propõe uma séria reflexão inovadora.<br />
Nas conclusões, ainda sob a inspiração arendtia<strong>na</strong>, abre-se um tema <strong>de</strong>cisivo: como conciliar<br />
uma proposta <strong>de</strong> tutela inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, a construção <strong>de</strong> um espaço político<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, com a soberania <strong>de</strong> cada país. Consi<strong>de</strong>rando que as <strong>de</strong>mocracias liberais<br />
contemporâneas, com seus resíduos totalitários, cada vez mais reduzem os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> homens aos<br />
<strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos em seus respectivos países.<br />
7
A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DOS DIREITOS HUMANOS E A CONSTRUÇÃO DA<br />
SOCIEDADE POLÍTICA<br />
A breve análise <strong>de</strong> alguns filósofos contratualistas merece uma advertência<br />
prelimi<strong>na</strong>r. A contribuição <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les, Hobbes, Locke e Rousseau é por <strong>de</strong>mais importante e,<br />
certamente, está muito além do que está <strong>de</strong>senvolvido neste artigo. O objetivo, vale sublinhar, é<br />
exclusivamente a<strong>na</strong>lisar o tema da liberda<strong>de</strong> e <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> fundamentais para se compreen<strong>de</strong>r as<br />
<strong>de</strong>clarações america<strong>na</strong>s e francesa, assim como possibilitar um diálogo mais sistemático com o<br />
pensamento <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt. As três críticas <strong>de</strong> Arendt referentes à justificativa <strong>na</strong>turalista <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, as suas relações com a soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e a ambigüida<strong>de</strong> entre os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong><br />
homens e <strong>dos</strong> cidadãos, já po<strong>de</strong>riam ser observadas antes das <strong>de</strong>clarações revolucionárias no fi<strong>na</strong>l do<br />
século XVIII, nos próprios contratualistas.<br />
Pensar os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>na</strong> obra <strong>de</strong> Hobbes po<strong>de</strong> parecer um difícil <strong>de</strong>safio hermenêutico,<br />
afi<strong>na</strong>l sua preocupação teórica fundamental foi construir a<strong>na</strong>liticamente uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> <strong>na</strong> qual<br />
o po<strong>de</strong>r soberano do Estado é absoluto e, portanto, sem espaço público para a realização efetiva <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>. Contudo, apesar <strong>de</strong> ser um teórico do Estado forte, foi o primeiro, entre os<br />
contratualistas, a afirmar a existência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis do indivíduo à preservação da vida e à<br />
resistência à opressão. O que a princípio po<strong>de</strong>ria sugerir um aparente paradoxo, suscita um campo <strong>de</strong><br />
investigação que atravessa a <strong>filosofia</strong> <strong>política</strong> <strong>dos</strong> contratualistas: as relações entre o a soberania do<br />
Estado, resultado do contrato social, e os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos. Em Hobbes, como<br />
nos <strong>de</strong>mais contratualistas, o ponto <strong>de</strong> partida para se compreen<strong>de</strong>r os <strong>direitos</strong> do homem é o conceito<br />
<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza. Ele consi<strong>de</strong>ra que há uma igualda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural entre os<br />
homens, não <strong>na</strong> posse <strong>de</strong> bens, mas <strong>na</strong>s faculda<strong>de</strong>s do corpo e do espírito que dá aos homens a mesma<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aspirar qualquer benefício que o outro possa aspirar · . A igualda<strong>de</strong> <strong>na</strong>s aspirações e<br />
<strong>de</strong>sejos é a razão principal <strong>dos</strong> conflitos entre os homens no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza. Dela surgem a<br />
competição e o confronto sem limites e as relações sociais são corrompidas. E, como diz Hobbes,<br />
emerge “o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo <strong>de</strong> morte violenta. E a vida do homem é<br />
solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”. 2<br />
Neste contexto <strong>de</strong> conflito e instabilida<strong>de</strong> social no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza, on<strong>de</strong> o medo e o perigo<br />
da morte acompanham o indivíduo, a liberda<strong>de</strong> é um direito <strong>na</strong>tural, a Jus Naturale, “que cada homem<br />
possui <strong>de</strong> usar <strong>de</strong> seu próprio po<strong>de</strong>r, da maneira que quiser, para a preservação <strong>de</strong> sua própria <strong>na</strong>tureza,<br />
ou seja, <strong>de</strong> sua vida; e conseqüentemente <strong>de</strong> fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe<br />
indiquem como meios mais a<strong>de</strong>qua<strong>dos</strong> a esse fim”. 3<br />
Todavia, no próprio exercício da liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural buscando a conservação da vida, os homens<br />
mergulha<strong>dos</strong> <strong>na</strong> competição e conflito geram obstáculos à própria conservação da vida o que lhes<br />
suscitam sentimentos que pe<strong>de</strong>m a paz. Não somente o medo da morte, mas o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uma vida<br />
confortável e a vonta<strong>de</strong> consegui-la por meio do trabalho. 4<br />
2 HOBBES, 2003: pg.108<br />
3 HOBBES, 2003: pg..112.<br />
4 HOBBES, 2003: pg..143.<br />
8
A igualda<strong>de</strong> e a liberda<strong>de</strong>, regras gerais estabelecidas pela razão para a manutenção da própria<br />
vida ou do movimento vital, são insuficientes para garantir a paz se não for instituído um po<strong>de</strong>r<br />
superior que garanta, pelo temor, o respeito a elas 5 . Pois, as paixões, a parcialida<strong>de</strong>, o orgulho, o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança, fazem os homens agirem não em função <strong>de</strong> uma vida em comum, mas em<br />
benefício próprio. 6<br />
Contratar para obter a paz, no pensamento hobbesiano, é um direito do indivíduo fundado <strong>na</strong>s<br />
leis da <strong>na</strong>tureza voltadas para a conservação da vida. Essas leis po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas a verda<strong>de</strong>ira<br />
<strong>filosofia</strong> moral ou a ciência do que é bom e do que é mal <strong>na</strong> convivência social. As leis da <strong>na</strong>tureza,<br />
como a justiça e a gratidão, são virtu<strong>de</strong>s morais, pois são os caminhos que segui<strong>dos</strong> pelos indivíduos<br />
levam à paz, ao contrato social. Os vícios, ao contrário, como a injustiça e a ingratidão, não são<br />
caminhos para a paz, mas levam a manutenção do indivíduo no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza. 7<br />
Nesse individualismo extremo no qual o que justo ou não, certo ou errado, somente o é <strong>na</strong><br />
perspectiva do indivíduo, os vícios e as virtu<strong>de</strong>s, bases da <strong>filosofia</strong> moral, não ultrapassam a esfera<br />
privada, não tem força <strong>de</strong> lei. Pois, as leis da <strong>na</strong>tureza, não são Leis em sentido próprio ou estrito, não<br />
são obrigações ditadas por quem tem direito <strong>de</strong> mando. Nesse sentido, para Hobbes, o exercício da<br />
moralida<strong>de</strong> só se viabiliza <strong>de</strong>pois do contrato sob a espada do po<strong>de</strong>r estatal.<br />
O contrato social é uma transferência mútua <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambas as<br />
parte já que se trata <strong>de</strong> um ato voluntário pelo qual um homem simplesmente renuncia ou transfere o<br />
seu direito a aquele que o aceitou. 8 O contrato, então, é uma manifestação da vonta<strong>de</strong>. O homem<br />
quando <strong>de</strong>libera sobre o contrato ainda está livre, movido pelas suas sensações, pon<strong>de</strong>rando através <strong>de</strong><br />
sua “razão pru<strong>de</strong>ncial”, consolidando a sua vonta<strong>de</strong>. Contudo, quando a vonta<strong>de</strong>, causa da liberda<strong>de</strong>,<br />
se constitui, não há mais possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não cumprir o contrato, cessa a liberda<strong>de</strong> e ele se transforma<br />
em obrigação. 9<br />
Mais do que um acordo, mais do que um consentimento, o contrato é a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os<br />
homens em uma só pessoa ou assembléia. Como se to<strong>dos</strong> dissessem: “Autorizo e transfiro o meu<br />
direito <strong>de</strong> me gover<strong>na</strong>r a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia <strong>de</strong> homens, com a condição<br />
<strong>de</strong> transferir para ele o teu direito, autorizando <strong>de</strong> uma maneira semelhante todas as suas ações. Feito<br />
isso a multidão, assim unida numa só pessoa chama-se República, em latim Civitas. É esta a geração<br />
daquele Leviatã, ou antes para falar em termos mais reverentes, daquele Deus mortal, ao qual<br />
<strong>de</strong>vemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz e <strong>de</strong>fesa”. 10<br />
O Deus vivo, o Leviatã, e o Deus, verda<strong>de</strong>iro e eterno, se unem para <strong>de</strong>slocar a liberda<strong>de</strong><br />
exclusivamente para o estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza, e essa é a única que po<strong>de</strong> ser chamada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />
Todavia ela seria inútil, pois a liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>corrente da igualda<strong>de</strong> generalizada, levaria ao estado <strong>de</strong><br />
guerra . 11<br />
5 HOBBES, 2003: pg..143<br />
6 FRATESCHI, 2008: pg.32<br />
7 HOBBES, 2003: pg 136<br />
8 HOBBES, 2003 :pg.114; HOBBES,2002,pg.41.<br />
9 HOBBES, 2002 ,pg.43.<br />
10 HOBBES, 2003, pg.147<br />
11 HOBBES, 2003: pg.181.<br />
9
Na república, a liberda<strong>de</strong> estaria, ape<strong>na</strong>s, <strong>na</strong>quelas ações que não são reguladas pelo soberano<br />
e, enquanto tal, se situa unicamente <strong>na</strong> esfera privada. São muitas as ações <strong>dos</strong> homens que não são<br />
reguladas, or<strong>de</strong><strong>na</strong>das ou proibidas, e, portanto, cada um po<strong>de</strong> agir ou não segundo a sua vonta<strong>de</strong>, tem<br />
ple<strong>na</strong> liberda<strong>de</strong>. A liberda<strong>de</strong> nessas ativida<strong>de</strong>s, todas <strong>na</strong> esfera privada, tem a sua garantia porque a lei<br />
não chega a alcançá-las, impera, portanto, o “silêncio das leis”. 12<br />
No mundo da socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, a liberda<strong>de</strong> não é um direito individual. O po<strong>de</strong>r absoluto<br />
concedido pelos homens à República, <strong>de</strong> fato, significou a submissão à sua vonta<strong>de</strong>, conce<strong>de</strong>ndo-lhe<br />
um domínio absoluto, pois, ou se submetem às leis ou <strong>de</strong>cretos ou serão relega<strong>dos</strong> ao estado <strong>de</strong> guerra<br />
que viviam anteriormente ao contrato. 13<br />
O po<strong>de</strong>r do Estado absolutista encontra um limite no direito i<strong>na</strong>lienável do homem <strong>de</strong> dispor<br />
<strong>dos</strong> meios necessários à preservação da sua vida. Esta é a liberda<strong>de</strong> civil para Hobbes. Homem algum,<br />
segundo a própria lei da <strong>na</strong>tureza, po<strong>de</strong> ser impedido <strong>de</strong> utilizar to<strong>dos</strong> os meios necessários à<br />
conservação <strong>de</strong> sua vida. 14<br />
O soberano, como contrapartida no contrato, tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> garantir a segurança do seu povo.<br />
Quando isso não acontece e está em risco o direito <strong>na</strong>tural <strong>de</strong> preservar a sua vida, cessa a obrigação<br />
<strong>dos</strong> súditos com o seu soberano. Para Hobbes, a obrigação <strong>dos</strong> súditos, inerente às leis contrato, só tem<br />
legitimida<strong>de</strong> enquanto o soberano tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> garantir o próprio objetivo do contrato, isto é<br />
proteger a vida <strong>dos</strong> súditos, “porque o direito que por <strong>na</strong>tureza os homens têm <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem a si<br />
mesmo, quando ninguém mais os po<strong>de</strong> proteger, não po<strong>de</strong> ser abando<strong>na</strong>do através <strong>de</strong> pacto algum”. 15<br />
Os <strong>direitos</strong> do homem em Hobbes que prevalecem, tanto no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza quanto <strong>na</strong><br />
socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, um direito <strong>na</strong>tural, é somente o direito <strong>de</strong> preservar a própria vida. Essa é a única<br />
dimensão da liberda<strong>de</strong> civil já que o direito <strong>de</strong> resistência é uma <strong>de</strong>corrência da mesma lei <strong>na</strong>tural. A<br />
apresentação <strong>de</strong> Hobbes está muito boa e consistente.<br />
A influência do pensamento <strong>de</strong> Hobbes sobre os eventos revolucionários <strong>na</strong> América e <strong>na</strong><br />
França, certamente, é <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rável. Contudo, a sua importância para o pensamento <strong>de</strong> Locke, em<br />
particular, e para a formação da i<strong>de</strong>ologia burguesa, em geral, é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância. Segundo Arendt,<br />
Hobbes foi o gran<strong>de</strong> filósofo da burguesia, embora os seus princípios não fossem reconheci<strong>dos</strong> por ela<br />
durante muito tempo, pois acentuou a i<strong>de</strong>ntificação entre o interesse privado e o interesse público. 16<br />
Por outro lado, é reconhecida a influência <strong>de</strong> Locke sobre as Declarações <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência<br />
<strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> e sobre a Declaração <strong>dos</strong> Direitos Humanos e do Cidadão da Revolução Francesa.<br />
Para Kervégan, a obra <strong>de</strong> Locke foi fundamental para elaboração da <strong>de</strong>claração norte-america<strong>na</strong>, não<br />
só <strong>na</strong> afirmação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> ou <strong>na</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se impor limites ao po<strong>de</strong>r do Estado, como<br />
também <strong>na</strong> fundamentação do direito <strong>de</strong> resistência ao po<strong>de</strong>r da metrópole britânica. 17<br />
12 HOBBES, 2003: pg. 187<br />
13 HOBBES, 2002: pg. 108; HOBBES, 2003: pg.151<br />
14 HOBBES, 2002: pg 149; HOBBES, 2003:pg. 185<br />
15 HOBBES, 2003: pg 188<br />
16 ARENDT, 2004: pg 169<br />
17 KAVERGAN, 2001: pg 85<br />
10
A análise <strong>de</strong> Locke sobre a liberda<strong>de</strong> inicia-se, também, com o estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza. Nele o<br />
homem vive condições <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>dos</strong> limites das leis da <strong>na</strong>tureza, garantindo<br />
assim o seu direito <strong>de</strong> preservação da vida. 18 A liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural significa que ele não está submetido<br />
à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer autorida<strong>de</strong> legislativa <strong>de</strong> outro homem e tem por norma <strong>de</strong> vida e convivência<br />
ape<strong>na</strong>s a lei da <strong>na</strong>tureza. 19<br />
A lei <strong>na</strong>tural que gover<strong>na</strong> o estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza assegura a to<strong>dos</strong> os homens o direito à vida,<br />
saú<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e posse. 20 Esses <strong>direitos</strong> estão fundamenta<strong>dos</strong> <strong>na</strong> lei <strong>na</strong>tural, que coloca <strong>na</strong>s mãos <strong>de</strong><br />
cada homem o po<strong>de</strong>r para a sua execução e, portanto, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong> seus <strong>direitos</strong> e <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>de</strong> outros homens. A lei <strong>na</strong>tural assegura a cada um o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> punir quem transgri<strong>de</strong> a lei da<br />
<strong>na</strong>tureza vivendo segundo outra lei diferente daquela ditada pela razão, pela liberda<strong>de</strong> e pela equida<strong>de</strong>.<br />
21<br />
Locke admite os problemas inerentes ao juízo <strong>de</strong> cada homem <strong>na</strong> execução da lei <strong>na</strong>tural, a<br />
parcialida<strong>de</strong>, as paixões envolvidas, o sentimento <strong>de</strong> vingança; sentimentos que po<strong>de</strong>m levar a<br />
exageros <strong>na</strong>s punições resultando em confusões e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns. 22 Todavia, consi<strong>de</strong>ra “razoável e justo”<br />
que o homem tem o direito, em função da lei da <strong>na</strong>tureza, <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir aquele que ameaça a sua vida. 23<br />
Em uma situação extrema, quando uma pessoa tenta subordi<strong>na</strong>r a outra ao seu po<strong>de</strong>r<br />
absoluto, cria-se em relação a ela um estado <strong>de</strong> guerra, ou seja, uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> propósito contrária<br />
à preservação <strong>de</strong> sua vida. Nesse caso, é racio<strong>na</strong>l, segundo a lei <strong>na</strong>tural, que se consi<strong>de</strong>re como<br />
inimigo aquele que usurpa a liberda<strong>de</strong> necessária para garantir o direito à vida. 24<br />
O estado <strong>de</strong> guerra é uma conseqüência extrema do estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza e para evitá-lo é que os<br />
homens encontram a razão primordial para abandoná-lo e construírem uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>. 25<br />
Porém, não será qualquer contrato social que colocará fim ao estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza on<strong>de</strong> os homens<br />
<strong>na</strong>scem em igualda<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> perfeitas e com o “gozo irrestrito” <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os <strong>direitos</strong> concedi<strong>dos</strong><br />
pela lei <strong>na</strong>tural. A socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> só existirá quando os homens estiverem “uni<strong>dos</strong> numa socieda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> modo que cada um renuncie ao po<strong>de</strong>r executivo da lei da <strong>na</strong>tureza e o coloque <strong>na</strong>s mãos do público,<br />
então, e somente então, haverá uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> ou civil”. Desse modo, os homens se transferem<br />
do estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza para uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> com a intenção <strong>de</strong> conservar a sua liberda<strong>de</strong> e a sua<br />
proprieda<strong>de</strong> da ameaça daqueles que ficaram fora do pacto. 26<br />
Na socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, diz Locke, a “liberda<strong>de</strong> <strong>dos</strong> homens sob um governo consiste em viver<br />
segundo uma regra permanente comum a to<strong>dos</strong> nessa socieda<strong>de</strong> e elaborada pelo po<strong>de</strong>r legislativo nela<br />
erigido: liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir a minha própria vonta<strong>de</strong> em tudo que escapa a prescrição da regra e <strong>de</strong> não<br />
estar sujeito à vonta<strong>de</strong> inconstante, incerta, <strong>de</strong>sconhecida e arbitrária <strong>de</strong> outro homem”. 27<br />
18 LOCKE, 2004: pg 382<br />
19 LOCKE, 2004: pg 401<br />
20 LOCKE, 2004:pg 384<br />
21 LOCKE, 2004: pgs 836 e 837<br />
22 LOCKE, 2004: 991<br />
23 LOCKE, 2004: pg 395<br />
24 LOCKE, 2004: pg 396<br />
25 LOCKE, 2004: pg 400<br />
26 LOCKE, 2004: pg 468<br />
27 LOCKE, 2004: pg 403<br />
11
Na tradição do pensamento contratualista, Locke introduz a diferença entre o espaço público e<br />
privado, sendo que no primeiro prevalece a obediência à lei prescrita pelo legislativo e no último a<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um guiada pela razão: “A liberda<strong>de</strong> do homem e a liberda<strong>de</strong> agir conforme a sua<br />
própria vonta<strong>de</strong> baseiam-se no fato <strong>de</strong> ser ele possuidor <strong>de</strong> razão, que é capaz <strong>de</strong> instruí-lo sobre a lei<br />
pela qual ele se <strong>de</strong>verá gover<strong>na</strong>r e <strong>de</strong> fazer com que saiba até que ponto po<strong>de</strong> dar-se a liberda<strong>de</strong> da sua<br />
própria vonta<strong>de</strong>” 28<br />
Os <strong>direitos</strong> à liberda<strong>de</strong> e à proprieda<strong>de</strong> aparecem juntos em Locke e fundamentam a sua<br />
<strong>filosofia</strong> do contrato social. Vale sublinhar que a sua concepção <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, cuja conservação é o<br />
objetivo primeiro da socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, se refere não só à proprieda<strong>de</strong> <strong>dos</strong> bens, mas, também à<br />
proprieda<strong>de</strong> da vida e <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong>. 29<br />
Locke consi<strong>de</strong>ra como pressuposto que os homens não fariam uma a<strong>de</strong>são voluntária ao<br />
contrato, se não fosse para viverem sob leis estabelecidas pelo consentimento. Não aceitariam,<br />
portanto, a tirania que seria o exercício do po<strong>de</strong>r pelo gover<strong>na</strong>nte além do direito, em proveito da sua<br />
própria vonta<strong>de</strong>. 30 O direito <strong>de</strong> resistência à tirania fica assegurado, pois, quando “os tiranos violarem<br />
ou <strong>de</strong>struírem a proprieda<strong>de</strong> do povo ou reduzi-lo à escravidão sob um po<strong>de</strong>r arbitrário, colocar-se-ão<br />
em estado <strong>de</strong> guerra contra o povo, que fica, a partir <strong>de</strong> então, <strong>de</strong>sobrigado <strong>de</strong> toda a obediência”. 31<br />
A importância <strong>de</strong>cisiva <strong>de</strong> Rousseau sobre a <strong>de</strong>claração francesa <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> é<br />
incontestável. O seu texto, além da influência <strong>de</strong> Locke, também geralmente reconhecida, e da marca<br />
<strong>dos</strong> fisiocratas, contém um po<strong>de</strong>roso legiscentrismo, fruto da vonta<strong>de</strong> geral <strong>de</strong> feitura<br />
incontestavelmente rousseaunia<strong>na</strong>. 32 O pensamento <strong>de</strong> Rousseau em relação aos <strong>direitos</strong> do homem é<br />
uma proposta crítica à socieda<strong>de</strong> e à <strong>política</strong> no prelúdio das duas gran<strong>de</strong>s revoluções, a america<strong>na</strong> e a<br />
francesa, colocando a questão fundamental: é possível construir a socieda<strong>de</strong> huma<strong>na</strong> verda<strong>de</strong>ira sem a<br />
corrupção da socieda<strong>de</strong> convencio<strong>na</strong>l, pois o caminho para a liberda<strong>de</strong> está aberto.. 33<br />
O pressuposto inicial <strong>de</strong> Rousseau, como em Hobbes e Locke, é que os homens <strong>na</strong>scem livres<br />
e iguais e se a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>svirtua essas características não é em função do direito <strong>na</strong>tural, mas das<br />
convenções que fundamentam a sua or<strong>de</strong>m social. Como os homens são livres por <strong>na</strong>tureza, portanto,<br />
não há escravos por <strong>na</strong>tureza e, nem muito menos, autorida<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural sobre seu semelhante.<br />
Escravidão e força não geram direito, não têm conteúdo moral. 34<br />
Rousseau utiliza o conceito <strong>de</strong> estado <strong>na</strong>tural ou <strong>de</strong> estado da <strong>na</strong>tureza, um postulado<br />
hipotético como em Hobbes e Locke, sem conteúdo histórico específico. Supondo que os homens<br />
cheguem a uma situação social on<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural coloca em risco a conservação <strong>dos</strong> próprios<br />
homens, corre-se o risco do gênero humano perecer no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza e esse estado primitivo não<br />
po<strong>de</strong> subsistir. 35 Ele se rompe e os homens, <strong>na</strong> sua luta pela sobrevivência, po<strong>de</strong>m se tor<strong>na</strong>r um mero<br />
28 LOCKE, 2004: pg 438<br />
29 LOCKE, 2004: pg 495<br />
30 LOCKE, 2004: pg 563<br />
31 LOCKE, 2004: pg 580<br />
32 KAVERGAN, 2001:pg 70<br />
33 CASSIRRER, 1997: pg.55<br />
34 ROUSSEAU. 2003: pg.18<br />
35 ROUSSEAU, 2003: pg.20<br />
12
agregado on<strong>de</strong> a base das relações sociais seja a submissão assentada <strong>na</strong> relação senhor – escravo.<br />
Faz-se necessário, então, uma primeira convenção, o ato <strong>de</strong> fundação, para estabelecer uma nova<br />
socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>.<br />
O ato <strong>de</strong> fundação do pacto social é uma ação civil que pressupõe uma <strong>de</strong>liberação pública,<br />
um acordo sobre o interesse comum. Pois, não se trata <strong>de</strong> se fundar uma agregação social e <strong>política</strong><br />
qualquer, mas uma associação, on<strong>de</strong> há um interesse comum, a construção <strong>de</strong> um corpo político e<br />
moral. Como o contrato é um ato voluntário, o povo, sujeito soberano, <strong>de</strong>ve ter regras que <strong>de</strong>fi<strong>na</strong>m a<br />
instituição do sufrágio e, pelo menos, no caso do contrato social, <strong>de</strong>ve haver consenso. 36<br />
A existência <strong>de</strong> opositores ao contrato não o invalida, impossibilita ape<strong>na</strong>s que estes se<br />
incluam nele e, portanto, serão consi<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> estrangeiros entre os cidadãos. Quando se institui o<br />
Estado através do pacto social, a residência no território implica <strong>na</strong> a<strong>de</strong>são ou no consentimento ou,<br />
em outras palavras, em submeter-se à soberania. 37<br />
O contrato social possibilita resolver um problema fundamental: estabelecer uma concordância<br />
entre a obediência e a liberda<strong>de</strong> ou entre o súdito e o cidadão. Para que isso aconteça a liberda<strong>de</strong><br />
própria do estado <strong>na</strong>tural, on<strong>de</strong> cada indivíduo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente <strong>de</strong> suas próprias forças,<br />
suce<strong>de</strong>-se a liberda<strong>de</strong> civil e o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>.<br />
O contrato é uma escolha racio<strong>na</strong>l que po<strong>de</strong> ser resumida numa única cláusula: “a alie<strong>na</strong>ção<br />
total <strong>de</strong> cada associado com to<strong>dos</strong> os seus <strong>direitos</strong>, a toda a comunida<strong>de</strong>. Pois, em primeiro lugar, cada<br />
qual se dando por inteiro, a condição é igual para to<strong>dos</strong> e, sendo a condição igual para to<strong>dos</strong>, ninguém<br />
tem interesse em torná-la onerosa para os <strong>de</strong>mais”. 38<br />
Essa a<strong>de</strong>são ao contrato significa que “cada um <strong>de</strong> nós põe em comum sua pessoa e todo o seu<br />
po<strong>de</strong>r sob a suprema direção da vonta<strong>de</strong> geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte<br />
indivisível do todo” (grifo <strong>de</strong> Rousseau). Cria-se uma associação, um corpo moral e coletivo do qual<br />
participam to<strong>dos</strong> os que votam <strong>na</strong> Assembléia, constituindo uma unida<strong>de</strong>, um eu comum. Essa pessoa<br />
pública, antes consi<strong>de</strong>rada como Cida<strong>de</strong>, agora se <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong> República ou corpo político, que seus<br />
membros chamam <strong>de</strong> Estado, expressão da vonta<strong>de</strong> geral. Os associa<strong>dos</strong>, “recebem coletivamente o<br />
nome <strong>de</strong> povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto participantes da autorida<strong>de</strong> sobera<strong>na</strong>, e<br />
súditos enquanto submeti<strong>dos</strong> às leis do Estado”. 39<br />
O indivíduo que quiser usufruir os <strong>direitos</strong> do cidadão, sem consi<strong>de</strong>rar os seus <strong>de</strong>veres como<br />
súdito, estaria cometendo uma injustiça, <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo a vonta<strong>de</strong> geral e colocando em risco o<br />
próprio Estado. Ele será então, como diz Rousseau, forçado por todo o corpo político a ser livre. 40<br />
A liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural que era acompanhada pelo direito ilimitado, é substituída pela liberda<strong>de</strong><br />
civil, limitada pela vonta<strong>de</strong> geral. E do mesmo modo, a posse <strong>dos</strong> seus bens, garanti<strong>dos</strong> pela força no<br />
estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza, é substituída pela proprieda<strong>de</strong> garantida pela lei. 41<br />
36 ROUSSEAU, 2003: pgs,19,20<br />
37 ROUSSEAU, 2003: pg. 129<br />
38 ROUSSEAU, 2003: pg. 21<br />
39 ROUSSEAU, 2003: pg. 22<br />
40 ROUSSEAU, 2003: pg. 25<br />
41 ROUSSEAU, 2003: pg. 26<br />
13
A obediência à lei por ele mesmo elaborada, condição necessária para se manter <strong>de</strong>ntro do<br />
pacto social, implica <strong>na</strong> superação do impulso do mero apetite, ou da liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural, em favor <strong>de</strong><br />
um imperativo da razão. À liberda<strong>de</strong> civil acrescenta-se uma igualda<strong>de</strong> moral: “to<strong>dos</strong> se tor<strong>na</strong>m iguais<br />
por convenção e <strong>de</strong> direito”. 42<br />
Só a vonta<strong>de</strong> geral po<strong>de</strong> dirigir po<strong>de</strong> constituir as forças do Estado em conformida<strong>de</strong> com o<br />
interesse comum, base do pacto social. A soberania, portanto, é o exercício da vonta<strong>de</strong> geral. Diz<br />
Rousseau: “assim como a <strong>na</strong>tureza dá a cada homem um po<strong>de</strong>r absoluto sobre to<strong>dos</strong> os seus membros,<br />
o pacto social dá ao corpo político um po<strong>de</strong>r absoluto sobre to<strong>dos</strong> os seus, e é esse mesmo po<strong>de</strong>r que<br />
dirigido pela vonta<strong>de</strong> geral recebe, como ficou dito, o nome <strong>de</strong> soberania”. 43 O Estado tem, portanto, o<br />
direito <strong>de</strong> solicitar ao cidadão qualquer serviço que, conseqüentemente se transforma num <strong>de</strong>ver.<br />
Esse direito sobre a liberda<strong>de</strong> do indivíduo, po<strong>de</strong> chegar ao limite. Quando o príncipe julga<br />
que é útil ao Estado que o indivíduo morra, <strong>de</strong>ve morrer, “pois foi somente graças a essa condição que<br />
até então viveu em segurança e que a sua vida já não é ape<strong>na</strong>s uma dádiva da <strong>na</strong>tureza, mas um dom<br />
condicio<strong>na</strong>l do Estado’’. 44 Do mesmo modo se o cidadão rompe com pacto social <strong>de</strong>ve ser exilado ou<br />
punido, até mesmo pela morte, como inimigo público.<br />
Quando o próprio pacto social começa a <strong>de</strong>bilitar-se diante da prevalência <strong>dos</strong> interesses<br />
particulares, não se po<strong>de</strong> concluir que a vonta<strong>de</strong> geral esteja corrompida, pois ela é in<strong>de</strong>strutível. Ou<br />
seja, a vonta<strong>de</strong> geral é um substrato social e moral, um “ethos” inerente à própria fundação da<br />
associação, ao próprio contrato. Po<strong>de</strong> ser corrompida <strong>na</strong> busca pela perfectibilida<strong>de</strong>, mas é uma<br />
possibilida<strong>de</strong> permanente. 45<br />
Através do contrato social o corpo político passa a ter vida, mas é somente pela legislação que<br />
ele adquire vonta<strong>de</strong> e movimento. As leis e as convenções estabelecem os <strong>direitos</strong> e os <strong>de</strong>veres que<br />
visam a justiça. 46 A República seria, então, “todo o Estado regido por leis, qualquer que seja a sua<br />
forma <strong>de</strong> administração, porque só então o interesse público gover<strong>na</strong> e a coisa pública significa algo”.<br />
Todo governo legítimo, isto é, gover<strong>na</strong>do pela vonta<strong>de</strong> geral - que é a lei - é republicano. 47<br />
Observa-se <strong>na</strong> compreensão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> entre os contratualistas aqui a<strong>na</strong>lisa<strong>dos</strong> uma<br />
razoável semelhança. Essas comparações po<strong>de</strong>m facilmente levar ao risco <strong>de</strong> se diluir a origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses notáveis filósofos da <strong>política</strong>. Como pressuposto, reconhece-se como fundamental a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do pensamento <strong>de</strong> cada um e que a comparação entre eles tem como objetivo estrito <strong>de</strong><br />
realçar o pensamento sobre a liberda<strong>de</strong> e o exercício <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> homens.<br />
Em Hobbes, como em Locke e Rousseau, o estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza e a socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong><br />
<strong>de</strong>corrente do contrato são construções teóricas, hipotéticas, e fazem parte da complexa e elegante<br />
construção a<strong>na</strong>lítica realizada pelos três autores. Não há dúvida que eles têm referências históricas<br />
particulares, mas a pretensão à universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas teorias exige uma razoável abstração <strong>de</strong> suas<br />
construções teóricas.<br />
42 ROUSSEAU, 2003: pg. 30<br />
43 ROUSSEAU, 2003: pg. 39<br />
44 ROUSSEAU, 2003: pg. 44<br />
45 ROUSSEAU, 2003: pg. 127<br />
46 ROUSSEAU, 2003:pg. 45<br />
47 ROUSSEAU, 2003: pg. 48<br />
14
No estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza os homens <strong>na</strong>scem livres e iguais, segundo o direito <strong>na</strong>tural, mas são<br />
incapazes <strong>de</strong> exercitarem essa liberda<strong>de</strong> sem colocar em risco a conservação da sua própria vida e da<br />
espécie. A antropologia filosófica que ilumi<strong>na</strong> a concepção do homem <strong>dos</strong> contratualistas se distancia<br />
do zoon politikon aristotélico, <strong>na</strong>turalmente propenso à vida comum. 48<br />
Seja por <strong>na</strong>tureza ou por convenções cridas pelos próprios homens, eles se revelam incapazes,<br />
no gozo da sua liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural, <strong>de</strong> zelarem pelas suas próprias vidas e suas posses, como acrescenta<br />
Locke. Agem em benefício próprio, confrontam-se, corrompem as relações sociais, chegando, no<br />
limite, ao estado <strong>de</strong> guerra, on<strong>de</strong> é justo e razoável <strong>de</strong>struir como inimigos aqueles que ameaçam a<br />
vida ou preten<strong>de</strong>m impor um po<strong>de</strong>r absoluto sem consentimento geral. A liberda<strong>de</strong> e a igualda<strong>de</strong>,<br />
regras da razão postas pelo direito <strong>na</strong>tural para manutenção da própria vida, no estado <strong>de</strong> <strong>na</strong>tureza, se<br />
mostram incapazes <strong>de</strong> realizarem seu gran<strong>de</strong> fim.<br />
Na construção filosófica <strong>dos</strong> contratualista, a liberda<strong>de</strong>, um direito <strong>na</strong>tural, é um conceito<br />
fundamental para mostrar que a sua negação é condição necessária, ainda <strong>de</strong>ntro do direito <strong>na</strong>tural,<br />
para se contratar, obter a paz e garantir o direito fundamental á vida.<br />
Como a a<strong>de</strong>são ao contrato é voluntária, portanto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong> individual, o ato <strong>de</strong><br />
fundação ainda pressupõe a liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural que cessa <strong>de</strong>pois do contrato. Na socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> que<br />
emerge, os <strong>direitos</strong> <strong>na</strong>turais são transferi<strong>dos</strong> ao po<strong>de</strong>r absoluto do Estado, como em Hobbes, e a<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser individual e passa a ser do corpo político. A liberda<strong>de</strong> só se mantém no espaço<br />
privado que não está subordi<strong>na</strong>do ao po<strong>de</strong>r da lei, ou seja, a liberda<strong>de</strong> se mantém somente <strong>na</strong> esfera da<br />
satisfação das necessida<strong>de</strong>s <strong>dos</strong> indivíduos.<br />
Em Locke, os <strong>direitos</strong> individuais são coloca<strong>dos</strong> <strong>na</strong> mão do público e se subordi<strong>na</strong>m às leis<br />
consentidas elaboradas pelo po<strong>de</strong>r legislativo. A liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural, como em Hobbes, só prevalece nos<br />
espaços sociais on<strong>de</strong> a lei não alcança e, mesmo sob o silêncio da lei, a vonta<strong>de</strong> do indivíduo <strong>de</strong>ve ser<br />
orientar pela razão pru<strong>de</strong>ncial. Mas há uma novida<strong>de</strong> essencial que merece ser sublinhada. O<br />
liberalismo possessivo <strong>de</strong> Locke se afirma não só pela obediência à lei consentida, que transforma a<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural em liberda<strong>de</strong> civil e a posse em proprieda<strong>de</strong>, mas principalmente pelos limites postos<br />
à tirania. O direito <strong>de</strong> resistir à ela <strong>de</strong>fine limites à ação <strong>dos</strong> indivíduos e do Estado quando estiver em<br />
risco a liberda<strong>de</strong> essencial <strong>de</strong>finida pela lei consentida, necessária á preservação da vida e da<br />
proprieda<strong>de</strong>.<br />
A liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural em Rousseau, ilimitada como nos outros contratualistas, <strong>de</strong>pois da<br />
fundação da socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, se subordi<strong>na</strong> à vonta<strong>de</strong> geral, fruto do consenso. O indivíduo põe em<br />
comum a sua pessoa, a sua liberda<strong>de</strong> e os seus <strong>direitos</strong> sob a direção da vonta<strong>de</strong> geral, reconhecendo-<br />
se como parte indivisível do todo. O pressuposto é que o contrato, a realização da vonta<strong>de</strong> geral,<br />
ocorre através <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>liberação pública sobre o interesse comum.<br />
A a<strong>de</strong>são ao contrato pressupõe a negação da liberda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural em favor da liberda<strong>de</strong> civil.<br />
Esta síntese <strong>dos</strong> interesses do indivíduo e do Estado, mediatizada pela vonta<strong>de</strong> geral, tor<strong>na</strong>-se possível<br />
porque os indivíduos passam a ser, simultaneamente, súditos e cidadãos, ou seja, parte do po<strong>de</strong>r<br />
soberano que elabora as leis, mas, ao mesmo tempo, ple<strong>na</strong>mente subordi<strong>na</strong><strong>dos</strong> às leis do Estado. Os<br />
48 FRATESCHI, 2008: pg 17<br />
15
<strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> indivíduos em Rousseau estão postos em comum, como as pessoas <strong>de</strong> cada participante do<br />
contrato social, sob a direção da vonta<strong>de</strong> geral. São menos <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> indivíduos e mais <strong>direitos</strong> <strong>de</strong><br />
uma pessoa moral, o homem novo da socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, cuja vida não é mais uma dádiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>us,<br />
mas um dom condicio<strong>na</strong>l do Estado gover<strong>na</strong>do pela vonta<strong>de</strong> geral expressa <strong>na</strong>s leis.<br />
Em Rousseau está mais evi<strong>de</strong>nte, mas encontramos também em Hobbes e Locke, a relação<br />
entre soberania e território. A não a<strong>de</strong>são ao contrato implica que o indivíduo seja consi<strong>de</strong>rado um<br />
“estrangeiro”. A criação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>, ou do Estado, não se diferencia da criação <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> civil <strong>de</strong> cidadãos e súditos que a<strong>de</strong>riram ao contrato e que resi<strong>de</strong>m em um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do<br />
território. O conceito <strong>de</strong> povo, tão usado em Rousseau, <strong>de</strong>limita os que participam do po<strong>de</strong>r soberano e<br />
<strong>de</strong>le po<strong>de</strong>m ser excluí<strong>dos</strong> caso não mais se subordinem á leis do contrato.<br />
A CRÍTICA DE HANNAH ARENDT: A EMERGÊNCIA DOS APÁTRIDAS E A RUPTURA<br />
DOS DIREITOS HUMANOS<br />
As críticas <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt aos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>na</strong> forma como eles se apresentam <strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> 1776 e 1789 po<strong>de</strong>m ser estendidas aos contratualistas on<strong>de</strong> os atos revolucionários, em<br />
boa parte, se inspiraram. A fundamentação no direito <strong>na</strong>tural, a i<strong>de</strong>ntificação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos<br />
como o direito <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e a transformação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> em <strong>direitos</strong> civis, não são<br />
estranhos à <strong>filosofia</strong> <strong>dos</strong> contratualistas.<br />
Para Arendt, a <strong>de</strong>sintegração <strong>de</strong> diversos Esta<strong>dos</strong>-<strong>na</strong>ções europeus entre as duas gran<strong>de</strong>s<br />
guerras, e no período imediatamente após a segunda, gerou um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento espacial da<br />
população do qual emergiram dois gran<strong>de</strong>s grupos: os apátridas e as minorias.<br />
As minorias eram ape<strong>na</strong>s parcialmente povos sem Estado, pois pertenciam a uma comunida<strong>de</strong><br />
<strong>política</strong> ainda que fosse necessária a proteção <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s exter<strong>na</strong>s, como a Liga das Nações, para<br />
assegurar-lhes algumas garantias especiais. Proteção tênue, sem dúvida, pois <strong>de</strong>pendia da anuência do<br />
Estado-<strong>na</strong>ção ao qual essas minorias estavam vinculadas. Alguns <strong>dos</strong> seus <strong>direitos</strong>, como a<br />
preservação da sua cultura e do seu próprio idioma, estavam em permanente ameaça. 49<br />
Por outro lado, os apátridas eram verda<strong>de</strong>iramente pessoas sem Estado, como os armênios,<br />
romenos, húngaros, russos, alemães, nos respectivos países para os quais se <strong>de</strong>slocaram. De fato, eles<br />
foram <strong>de</strong>s<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>liza<strong>dos</strong> pelos governos vitoriosos e expulsos <strong>de</strong> seus respectivos países. 50 Per<strong>de</strong>ram a<br />
sua <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> no lugar <strong>de</strong> origem e, conseqüentemente, a proteção do seu Estado <strong>na</strong>tal, e não<br />
readquiriram, nem uma nem outra, no lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino.<br />
Sem pertencerem, <strong>de</strong> fato, a um Estado <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, os apátridas não tinham um lugar próprio,<br />
não faziam parte <strong>de</strong> um corpo político que lhes garantissem a proteção da lei. Os apátridas eram, para<br />
o Estado, <strong>na</strong>s <strong>na</strong>ções <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, pessoas supérfluas sem <strong>direitos</strong> reconheci<strong>dos</strong>. Os “displaced<br />
persons”, como eram chama<strong>dos</strong> os apátridas, se constituíam em uma exceção <strong>política</strong>:<br />
49 ARENDT, 2004: pg.309<br />
50 ARENDT, 2004: pg. 311<br />
16
<strong>de</strong>s<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>liza<strong>dos</strong> no Estado <strong>de</strong> origem, não tinham a cidadania reconhecida no Estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino,<br />
eram pessoas sem lugar no mundo. 51<br />
Arendt <strong>de</strong>staca ainda um terceiro tipo <strong>de</strong> população que se <strong>de</strong>slocava entre países, distintos<br />
<strong>dos</strong> dois anteriores, e que já começava a adquirir importância, os imigrantes econômicos. Ela se refere<br />
particularmente ao caso da França que, <strong>de</strong>vido às suas condições <strong>de</strong>mográficas, necessitava <strong>de</strong> se<br />
nutrir <strong>de</strong> trabalhadores estrangeiros para o seu mercado <strong>de</strong> trabalho. Apesar <strong>de</strong> necessários, nem por<br />
isso <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> recair sobre eles pesadas medidas restritivas como a <strong>de</strong>portação em tempo <strong>de</strong> crise e<br />
<strong>de</strong>semprego. 52<br />
O interesse maior <strong>de</strong> Arendt, no entanto, são os apátridas que haviam perdido “aqueles <strong>direitos</strong><br />
que até então eram ti<strong>dos</strong> e até <strong>de</strong>fini<strong>dos</strong> como i<strong>na</strong>lienáveis, ou seja, os Direitos do Homem...”. 53 A<br />
emergência histórica <strong>de</strong>sses expulsos da clássica trinda<strong>de</strong> Estado-Povo-Território trazia à to<strong>na</strong> a<br />
associação entre <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> e soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Para os apátridas, em particular, a não<br />
inclusão em uma comunida<strong>de</strong> <strong>política</strong>, portanto, a exclusão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>de</strong> cidadão no lugar <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>stino, significava a perda <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> consagra<strong>dos</strong> <strong>na</strong> tradição oci<strong>de</strong>ntal pelas <strong>de</strong>clarações<br />
america<strong>na</strong>s e francesas. 54<br />
Essas <strong>de</strong>clarações <strong>dos</strong> Direitos do Homem, proclamadas no fim do século XVIII, são um<br />
marco <strong>na</strong> história. Elas serviram <strong>de</strong> fundamento para o Estado mo<strong>de</strong>rno, cuja legitimação <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong><br />
se fundamentar em motivos religiosos ou em hierarquias sociais que dividiam a população em<br />
estamentos <strong>de</strong>fini<strong>dos</strong> pelos seus privilégios sociais. Nas <strong>de</strong>clarações, o homem tem, por sua <strong>na</strong>tureza,<br />
<strong>direitos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> suas posições <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> e <strong>na</strong> <strong>política</strong>, mas, pelo<br />
contrário, prece<strong>de</strong>m a elas; são <strong>direitos</strong> <strong>na</strong>turais e, portanto, intrínsecos à <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> e que o<br />
contrato social <strong>de</strong>ve garanti-los. 55<br />
A <strong>de</strong>claração america<strong>na</strong> <strong>de</strong> 1776 consagra que to<strong>dos</strong> os homens são iguais e dota<strong>dos</strong> <strong>de</strong> certos<br />
<strong>direitos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis, entre eles a vida, a liberda<strong>de</strong> e a busca da felicida<strong>de</strong>. E que os governos são<br />
instituí<strong>dos</strong> entre os homens para assegurar esses <strong>direitos</strong> e o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>riva <strong>dos</strong> consentimentos <strong>dos</strong><br />
gover<strong>na</strong><strong>dos</strong>. Se o governo não obe<strong>de</strong>cer a estes fins é direito do povo revoltar-se contra essa forma <strong>de</strong><br />
governo e instituir uma nova. O último caso, fortemente inspirado em Locke, refere-se,<br />
particularmente, à justificativa <strong>de</strong> revolta contra o sistema colonial imposto pela Grã-Bretanha, que<br />
comporta uma crítica à tirania e sua improprieda<strong>de</strong> para um povo livre. 56<br />
A <strong>de</strong>claração francesa consi<strong>de</strong>ra que a ignorância, a negligência, ou o menosprezo <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>dos</strong> homens são as únicas causas <strong>dos</strong> males públicos e da corrupção gover<strong>na</strong>mental. 57 As suas gran<strong>de</strong>s<br />
novida<strong>de</strong>s estão contidas nos três primeiros artigos da <strong>de</strong>claração. No primeiro, on<strong>de</strong> se reconhece que<br />
os homens <strong>na</strong>scem e permanecem livres e iguais em <strong>direitos</strong> sagra<strong>dos</strong> e i<strong>na</strong>lienáveis. No segundo, que<br />
51 ARENDT, 2004: pg. 313<br />
52 ARENDT, 2004: pg. 319<br />
53 ARENDT, 2004: pg. 301<br />
54 ARENDT, 2004: pg.325<br />
55 KEVERGAN, 2001:pg.89<br />
56 HUNT, 2009: pg. 221<br />
57 HUNT, 2009: pg.225<br />
17
enuncia que os objetivos do contrato social, ou da associação <strong>política</strong>, é a “conservação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>na</strong>turais e imprescritíveis do homem, tais como a liberda<strong>de</strong>, a proprieda<strong>de</strong>, a segurança e a resistência<br />
à opressão” 58 . E, no terceiro artigo, que afirma que o princípio da soberania resi<strong>de</strong> <strong>na</strong> <strong>na</strong>ção e não em<br />
or<strong>de</strong>ns ou estamentos. 59<br />
Sobre a soberania, a <strong>de</strong>claração francesa é mais específica, com gran<strong>de</strong> influência <strong>de</strong> Rousseau<br />
e, certamente, como resultado <strong>de</strong> sua característica fundamental: trata-se, não <strong>de</strong> uma guerra <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>pendência, como <strong>na</strong>s colônias america<strong>na</strong>s, mas <strong>de</strong> uma revolução cujo objetivo é selar a transição<br />
da aristocracia para a <strong>de</strong>mocracia. Livra-se <strong>de</strong> um corpo político, cindido pelos estamentos, apelando-<br />
se para a unida<strong>de</strong> da <strong>na</strong>ção on<strong>de</strong> o povo emerge como po<strong>de</strong>r soberano em matéria <strong>de</strong> governo. O<br />
princípio <strong>de</strong> toda soberania resi<strong>de</strong> essencialmente no povo em nome <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis <strong>dos</strong><br />
homens.<br />
Arendt reconhece a novida<strong>de</strong> histórica <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> proclama<strong>dos</strong> pelas Revoluções<br />
America<strong>na</strong> e Francesa, porém critica a sua fundamentação no direito <strong>na</strong>tural segundo a tradição <strong>dos</strong><br />
contratualistas. Os homens não são iguais por <strong>na</strong>tureza, o que tor<strong>na</strong> os homens iguais é o artifício da<br />
<strong>política</strong>, construído pelos homens para que o mundo comum seja compartilhado, para que a<br />
singularida<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural só seja <strong>de</strong> fato reconhecida no contexto da pluralida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong>. Em outras<br />
palavras, os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> só po<strong>de</strong>m ser compreendi<strong>dos</strong> no plano da <strong>política</strong>, portanto, eles<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m e se <strong>de</strong>finem em função da pluralida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong> e não em função <strong>de</strong> um homem <strong>na</strong>tural, no<br />
singular. 60<br />
A crítica <strong>de</strong> Arendt aos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, <strong>na</strong> concepção <strong>dos</strong> contratualistas e <strong>na</strong>s afirmações<br />
das <strong>de</strong>clarações ervolucionárias, não se reduz somente à sua fundamentação <strong>na</strong> “<strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>”,<br />
mas, se esten<strong>de</strong> à relação entre os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> e a soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Esse ser humano, <strong>na</strong> sua<br />
individualida<strong>de</strong> abstrata, só assumia o seu rosto <strong>de</strong> cidadão através do povo ao qual pertencia. Os<br />
<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, portanto, só se configuram com a emancipação <strong>de</strong> um povo, ou em outras palavras,<br />
com a emancipação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l no contexto da constituição do Estado soberano. A <strong>na</strong>ção, ou a sua<br />
vonta<strong>de</strong>, se sobrepõe ao indivíduo transformado em ser humano abstrato. 61<br />
Desse modo, segundo Arendt, as revoluções, em particular, a francesa, subordi<strong>na</strong>ram os<br />
<strong>direitos</strong> do homem à soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. O resultado objetivo é que os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> passaram a<br />
ser consi<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> e protegi<strong>dos</strong> como <strong>direitos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Esta, para ela, é a tragédia do Estado-<strong>na</strong>ção<br />
mo<strong>de</strong>rno que somente reconhece como cidadãos aqueles que pertencem à comunida<strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, os<br />
únicos que po<strong>de</strong>m usufruir ple<strong>na</strong>mente <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> civis e políticos. 62 O princípio da <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> se<br />
transforma no vínculo entre o indivíduo e o Estado e é condição necessária para ser membro da<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>política</strong>. 63<br />
58 BOBBIO, 2004: pg. 87, 88.<br />
59 BOBBIO, 2004: pg. 90<br />
60 ARENDT, 2004: pg.324<br />
61 ARENDT, 2004: pg. 261<br />
62 ARENDT, 2004: pg. 261,262<br />
63 LEFORT, 1991: pg.63<br />
18
A gran<strong>de</strong> calamida<strong>de</strong> é que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar em uma comunida<strong>de</strong> <strong>política</strong> não po<strong>de</strong> se<br />
realizar em um contexto no qual os Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is vinculam os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> em geral, e os<br />
<strong>direitos</strong> políticos em particular, aos cidadãos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Este é o gran<strong>de</strong> paradoxo <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>humanos</strong>, pois se supunha que, intrínsecos à <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, ou ao ser humano em geral, como<br />
professavam os contratualistas e as <strong>de</strong>clarações revolucionários, fossem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>. 64<br />
Quando surgem, então, <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> histórica aqueles como os apátridas, que não participam <strong>de</strong><br />
nenhuma comunida<strong>de</strong> <strong>política</strong>, o conceito <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> per<strong>de</strong> a sua eficácia. Totalmente<br />
<strong>de</strong>spi<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> seus <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> fundamentais – e sem que o mundo visse <strong>na</strong>da <strong>de</strong> sagrado nessa<br />
abstrata nu<strong>de</strong>z <strong>de</strong> ser unicamente humano – sem nenhum outro atributo civil ou político, os apátridas<br />
eram uma afronta às conquistas históricas das revoluções america<strong>na</strong> e francesa. 65<br />
A visão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> exclusivos <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is suporta uma visão do Estado-Nação<br />
que pressupõe uma homogeneida<strong>de</strong> do seu povo. Schmitt mencio<strong>na</strong> que, segundo o princípio da<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>, o Estado <strong>de</strong>mocrático encontra os seus fundamentos <strong>na</strong> homogeneida<strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. 66<br />
Habermas alerta para o problema <strong>de</strong>ssa formulação, pois a homogeneida<strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l ten<strong>de</strong> a se<br />
confundir com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica <strong>de</strong> um povo, consi<strong>de</strong>rado um dado pré-político. 67 Ao contrário da<br />
perspectiva republica<strong>na</strong>, on<strong>de</strong> o povo se constitui voluntariamente no contrato social, sem precondição<br />
étnica, mas <strong>na</strong> sua inteira diversida<strong>de</strong> e, como tal, ele é o seu sujeito político. 68<br />
A concepção <strong>de</strong> homogeneida<strong>de</strong> étnica como base do Estado-<strong>na</strong>ção consagra a <strong>ruptura</strong> <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> que passa a ser um privilégio <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e, mais radicalmente, <strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is <strong>de</strong><br />
etnias semelhantes. Os apátridas, assim como, em muitas circunstâncias, as minorias <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e os<br />
imigrantes são consi<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> supérfluos, ou seja, pessoas cujos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> não são reconheci<strong>dos</strong><br />
pelo Estado.<br />
Trata-se, historicamente, da ante-sala <strong>de</strong> um regime totalitário, quando se rompe radicalmente<br />
com toda a tradição oci<strong>de</strong>ntal e o homem <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a fonte do direito. Uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> campos <strong>de</strong><br />
concentração e <strong>de</strong> trabalho é precedida pela geração, <strong>política</strong> e social, <strong>de</strong> enormes contingentes <strong>de</strong><br />
homens supérfluos. 69<br />
64 ARENDT, 2004 pg. 326<br />
65 ARENDT, 2004 pg. 333<br />
66 SCHMITT,1996: pg. 230<br />
67 HABERMAS, 2004: pg 159<br />
68 HABERMAS, 2004, pg. 162<br />
69 ARENDT, 2004 :pg 498<br />
19
OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS CIVIS<br />
Apesar das críticas, Han<strong>na</strong>h Arendt compreen<strong>de</strong> as primeiras revoluções da ida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>, a<br />
america<strong>na</strong> e a francesa, como um novo começo <strong>na</strong> história e o enredo <strong>de</strong>ssa novida<strong>de</strong> é o aparecimento<br />
da liberda<strong>de</strong>. 70<br />
A liberda<strong>de</strong>, como fenômeno político, antes <strong>de</strong>ssas revoluções, foi contemporânea das<br />
cida<strong>de</strong>s-Estado gregas. Des<strong>de</strong> Heródoto, ela era o resultado <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong> on<strong>de</strong> os<br />
cidadãos conviviam em condições <strong>de</strong> não mando, ou seja, sem uma distinção entre gover<strong>na</strong>ntes e<br />
gover<strong>na</strong><strong>dos</strong>. Não mando significava isonomia, a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>. 71<br />
Essa igualda<strong>de</strong>, assim como a liberda<strong>de</strong>, não era inerente à <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong>, como <strong>de</strong>fendiam<br />
os contratualistas e afirmavam as <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> <strong>direitos</strong> das duas revoluções .Desse modo, faz-se<br />
necessário a criação <strong>de</strong> um artifício, a instituição <strong>política</strong>, a polis, on<strong>de</strong> uma convenção ou um contrato<br />
social abriria a possibilida<strong>de</strong> para que a convivência <strong>na</strong> pluralida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong> fosse fundada <strong>na</strong><br />
isonomia. 72<br />
A igualda<strong>de</strong>, assim como a liberda<strong>de</strong>, existia ape<strong>na</strong>s no espaço político on<strong>de</strong> os homens<br />
conviviam como cidadãos. Diferentemente <strong>dos</strong> contratualistas, que consi<strong>de</strong>ravam a liberda<strong>de</strong> e a<br />
igualda<strong>de</strong> como um fenômeno <strong>na</strong>tural, pré-político, ou, após o contrato, como um fenômeno reservado<br />
ao espaço privado. No que se refere aos <strong>direitos</strong>, e o seu fundamento essencial, a liberda<strong>de</strong>, Arendt<br />
estabelece uma diferença entre liberda<strong>de</strong> e libertação, mesmo consi<strong>de</strong>rando que a libertação possa ser<br />
uma condição para a liberda<strong>de</strong>.<br />
Nas <strong>de</strong>mocracias liberais contemporâneas a liberda<strong>de</strong> está associada aos chama<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
civis. Estes são o resultado <strong>dos</strong> três gran<strong>de</strong>s <strong>direitos</strong> fundamentais, originários das revoluções<br />
america<strong>na</strong> e francesa, e que já se encontravam nos contratualistas, em especial em Locke e Rousseau:<br />
os <strong>direitos</strong> à vida, liberda<strong>de</strong> e à proprieda<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> i<strong>na</strong>lienáveis e em relação aos quais to<strong>dos</strong> os<br />
outros <strong>direitos</strong> eram subordi<strong>na</strong><strong>dos</strong>. 73<br />
Se as revoluções tivessem ape<strong>na</strong>s o objetivo <strong>de</strong> assegurar os <strong>direitos</strong> civis, não<br />
necessariamente a liberda<strong>de</strong> teria sido uma conseqüência. Arendt utiliza dois significa<strong>dos</strong> da palavra<br />
liberda<strong>de</strong> em inglês para frisar as diferenças: liberty e freedom. Liberty seria liberda<strong>de</strong> que se segue à<br />
libertação, uma liberda<strong>de</strong> negativa <strong>de</strong>finida pelas restrições da lei. E freedom, seria a liberda<strong>de</strong> em<br />
sentido positivo, <strong>de</strong>rivada da fundação <strong>de</strong> um espaço político on<strong>de</strong> o seu exercício ativo significa<br />
participação pública ou admissão ao mundo da <strong>política</strong>. Os <strong>direitos</strong> civis, garantido pela liberty, não<br />
são positivos no sentido que não conferem po<strong>de</strong>r aos indivíduos, mas simplesmente os protegem<br />
contra os abusos do po<strong>de</strong>r. Arendt é ainda mais contun<strong>de</strong>nte quando afirma que a libertação po<strong>de</strong>ria<br />
ser alcançada em um regime monárquico, embora nunca sob a tirania ou o <strong>de</strong>spotismo, contudo a<br />
liberda<strong>de</strong> pediria a constituição <strong>de</strong> uma república. 74<br />
70 ARENDT, 1990: pg. 29<br />
71 ARENDT, 1990, pg. 30<br />
72 ARENDT, 1990: pg. 31<br />
73 ARENDT, 1990: pg 32<br />
74 ARENDT, 1990: pg. 33<br />
20
A gran<strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> revolucionários, americanos e franceses, consistia em<br />
institucio<strong>na</strong>lizar a revolução, ou seja, fundar um corpo político on<strong>de</strong> a liberda<strong>de</strong> se institucio<strong>na</strong>lizaria e<br />
a <strong>política</strong> se realizaria. Na verda<strong>de</strong> isso significava a elaboração <strong>de</strong> uma nova constituição, leis<br />
fundamentais para uma nova socieda<strong>de</strong> <strong>política</strong>. “Essa tarefa da revolução é insolúvel, pois o po<strong>de</strong>r,<br />
sob condição da pluralida<strong>de</strong> huma<strong>na</strong>, nunca po<strong>de</strong> atingir a onipotência, e leis que se baseiam no po<strong>de</strong>r<br />
humano nunca po<strong>de</strong>m ser absolutas”. 75<br />
As revoluções america<strong>na</strong>s e francesas introduziram uma novida<strong>de</strong> <strong>na</strong> tradição da polis grega.<br />
O espaço da <strong>política</strong>, reservado para aqueles livres das preocupações com as necessida<strong>de</strong>s básicas da<br />
vida, passou a acolher a imensa maioria da população que não era livre, pois estava presa à satisfação<br />
das necessida<strong>de</strong>s cotidia<strong>na</strong>s das suas vidas. 76 Assim, para respon<strong>de</strong>r a essa questão social, a<br />
necessida<strong>de</strong> se sobrepôs à liberda<strong>de</strong> como a principal categoria do pensamento político<br />
revolucionário. 77<br />
A satisfação da necessida<strong>de</strong> invadiu o espaço político, on<strong>de</strong> os homens, <strong>na</strong> tradição grega,<br />
podiam ser verda<strong>de</strong>iramente livres, e os <strong>direitos</strong> do homem se transformaram nos <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> sans<br />
cullotes. 78 Esse problema vivido pelas revoluções, <strong>na</strong> suas fundações, entre a institucio<strong>na</strong>lização da<br />
liberda<strong>de</strong> e a questão social, se transformou no gran<strong>de</strong> dilema histórico que condicio<strong>na</strong> até hoje a<br />
efetivação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>na</strong>s mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s <strong>de</strong>mocracias liberais.<br />
A conclusão <strong>de</strong> Arendt que a revolução francesa, ao contrário da america<strong>na</strong>, não teve êxito <strong>na</strong><br />
tarefa <strong>de</strong> fundação, mereceu <strong>de</strong>la consi<strong>de</strong>rações a<strong>na</strong>liticamente cuida<strong>dos</strong>as. No caso <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong><br />
Uni<strong>dos</strong>, a Declaração da In<strong>de</strong>pendência introduziu <strong>na</strong> história que a institucio<strong>na</strong>lização da revolução,<br />
ou seja, o ato <strong>de</strong> fundação, se i<strong>de</strong>ntifica com a convocação <strong>de</strong> uma assembléia constituinte e a<br />
elaboração <strong>de</strong> uma constituição. A constituição <strong>de</strong>fine as leis que viabilizam o direito, para as gerações<br />
presentes e futuras, <strong>de</strong> encontrar a “ liberda<strong>de</strong> pública” , condição fundamental que ilumi<strong>na</strong>va o<br />
espírito revolucionário. 79<br />
O pergunta importante é que com o seu po<strong>de</strong>r consolidado <strong>na</strong> constituição, a revolução se<br />
encerra e, também, a liberda<strong>de</strong> pública vivida no período revolucionário? Ou, em outras palavras, um<br />
governo constitucio<strong>na</strong>l significaria o fim da liberda<strong>de</strong> pública <strong>na</strong> forma <strong>de</strong>sejada pela <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>pendência?<br />
Duas perspectivas se abrem. A primeira é que a constituição america<strong>na</strong> consolidou a liberda<strong>de</strong><br />
pública, sendo, portanto, uma Constitucio Libertatis. 80 A segunda, ao contrário, é que a introdução <strong>de</strong><br />
um governo constitucio<strong>na</strong>l significou o fim do processo revolucionário ou até mesmo uma contra-<br />
revolução. 81<br />
75 ARENDT, 1990: pg. 39<br />
76 ARENDT, 1990: pg. 48<br />
77 ARENDT, 1990: pg, 54<br />
78 ARENDT, 1990: pg. 49<br />
79 ARENDT, 1990: pgs 124 e125<br />
80 ARENDT, 1990: pg. 154<br />
81 ARENDT, 1990: pg. 142<br />
21
Na Declaração <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência a expressão busca da felicida<strong>de</strong> pública, segundo Arendt,<br />
tinha um duplo significado, ainda que ambíguo, do direito <strong>de</strong> cada um buscar seus próprios interesses,<br />
por um lado, e, por outro, o direito à liberda<strong>de</strong>, que consistia no acesso à esfera pública. 82<br />
A expressão revolucionária, “felicida<strong>de</strong> pública”, após a consolidação constitucio<strong>na</strong>l da<br />
revolução, foi quase imediatamente “<strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> seu duplo sentido, e entendida como o direito que<br />
tem os cidadãos <strong>de</strong> buscar seus próprios interesses, e, portanto, <strong>de</strong> agir segundo as regras <strong>de</strong>sse auto-<br />
interesse individual”. 83<br />
Essa ambigüida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> objetivos da revolução america<strong>na</strong>, entre prosperida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>,<br />
apesar do seu êxito no processo <strong>de</strong> fundação, nunca foi resolvida. 84 A gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> da revolução<br />
america<strong>na</strong>, sobre a qual não paira nenhuma ambigüida<strong>de</strong>, é que os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> eram, <strong>de</strong> fato,<br />
<strong>direitos</strong> <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> e não mais só direito <strong>dos</strong> ingleses. 85<br />
Nos séculos XIX e XX, como a influência da imigração em massa, o sonho americano <strong>de</strong> um<br />
mundo novo foi reinterpretado, não era nem o sonho da revolução america<strong>na</strong> – instituição da liberda<strong>de</strong><br />
– nem o sonho da revolução francesa – a libertação do homem, era infelizmente o sonho <strong>de</strong> uma terra<br />
prometida on<strong>de</strong> correm o leite e o mel. 86<br />
Para compreen<strong>de</strong>r os dilemas da institucio<strong>na</strong>lização da revolução francesa, Arendt se atém à<br />
<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Robespierre sintetizada <strong>na</strong> expressão: o governo constitucio<strong>na</strong>l se preocupa<br />
primordialmente com a liberda<strong>de</strong> civil e o governo revolucionário com a liberda<strong>de</strong> pública. 87<br />
O governo constitucio<strong>na</strong>l é para proteger os indivíduos contra os abusos do po<strong>de</strong>r público, ou<br />
seja, o indivíduo se tornou sem po<strong>de</strong>r e necessita da proteção do governo. “A liberda<strong>de</strong> mudou <strong>de</strong><br />
lugar, não mais resi<strong>de</strong> <strong>na</strong> esfera pública, mas <strong>na</strong> vida particular que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>fendida contra o<br />
público e seu po<strong>de</strong>r. A liberda<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r se apartaram e a fatal assimilação do po<strong>de</strong>r com a<br />
violência, da <strong>política</strong> com o governo e do governo como um mal necessário começou”. 88<br />
A revolução francesa voltou-se mais para a libertação do homem e para os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong><br />
restritos à satisfação das necessida<strong>de</strong>s da vida. Não eram <strong>direitos</strong> atribuí<strong>dos</strong> em função da participação<br />
no corpo político, mas unicamente <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> terem <strong>na</strong>scido <strong>na</strong> França. E <strong>direitos</strong> que não são<br />
<strong>de</strong>correntes da participação no espaço da <strong>política</strong> termi<strong>na</strong>m por i<strong>de</strong>ntificar os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> homens<br />
exclusivamente aos <strong>direitos</strong> civis. 89<br />
82 ARENDT, 1990: pg. 132<br />
83 ARENDT, 1990: pg. 133<br />
84 ARENDT, 1990: pg. 135<br />
85 ARENDT, 1990: pg. 148<br />
86 ARENDT, 1990: pg. 138<br />
87 ARENDT, 1990: pg. 132<br />
88 ARENDT, 1990: pg 137<br />
89 ARENDT, 1990: pg. 146<br />
22
CONCLUSÕES: A RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, O DIREITO A TER<br />
DIREITOS<br />
A proposta da <strong>filosofia</strong> <strong>política</strong> <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt para a reconstrução <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> é<br />
o reconhecimento do direito a ter <strong>direitos</strong>. Ela vai buscar <strong>na</strong> moral universalista e cosmopolita kantia<strong>na</strong><br />
o fundamento para se construir um espaço público inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l on<strong>de</strong> a <strong>política</strong> e o direito se efetivem<br />
além das fronteiras <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />
O conceito <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> assume uma dimensão ontológica e <strong>política</strong>. Ontológica no sentido<br />
que o pertencimento à humanida<strong>de</strong> garante ao indivíduo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carregar consigo o direito a<br />
ter direito. Política, <strong>na</strong> perspectiva <strong>de</strong> que o direito a ter <strong>direitos</strong> exigiria uma tutela inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />
homologada <strong>na</strong> perspectiva da humanida<strong>de</strong> 90 . Afirma Arendt: “Por outro lado a humanida<strong>de</strong>, que<br />
para o século XVIII, <strong>na</strong> terminologia kantia<strong>na</strong>, não passava <strong>de</strong> uma idéia reguladora, tornou-se hoje <strong>de</strong><br />
fato inelutável. Esta nova situação, <strong>na</strong> qual a humanida<strong>de</strong> assumiu antes um papel atribuído à <strong>na</strong>tureza,<br />
ou à história,.significaria nesse contexto que o direito a ter direito, ou o direito <strong>de</strong> cada indivíduo<br />
pertencer a humanida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>veria ser garantido pela própria humanida<strong>de</strong>” 91<br />
Para Kant o direito do estrangeiro a não ser tratado com hostilida<strong>de</strong> não é uma questão <strong>de</strong><br />
filantropia, mas <strong>de</strong> direito e hospitalida<strong>de</strong>. 92 Para ele, o direito à liberda<strong>de</strong>, que é originário, tem como<br />
conseqüência o direito sobre o solo. A convivência entre as pessoas <strong>de</strong> diferentes Esta<strong>dos</strong>, não só<br />
econômica, mas, no sentido amplo, uma “frequentação mútua e até amistosa” está fundamentado no<br />
direito à hospitalida<strong>de</strong> universal. 93<br />
Entretanto, segundo Kant, a passagem do “direito <strong>de</strong> visita” a um “direito <strong>de</strong> residência”<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um contrato entre os que chegam e o país <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. Não é automático, mas é um<br />
complemento necessário do “direito <strong>dos</strong> povos” que <strong>de</strong>ve ser garantido em to<strong>dos</strong> os lugares da terra. 94<br />
Diz Kant: “a violação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em um só lugar da terra é sentida em to<strong>dos</strong> os outros”. 95<br />
A referência da análise kantia<strong>na</strong> é o cidadão cujo estatuto moral garante a a<strong>de</strong>são às normas<br />
do contrato em um outro país e é precondição para o direito à hospitalida<strong>de</strong>. Pertencer à humanida<strong>de</strong>,<br />
portanto, passa em primeiro lugar pela condição <strong>de</strong> cidadão em seu próprio país e pela a<strong>de</strong>são às<br />
normas <strong>de</strong> cidadania no país <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. A ampliação conceito <strong>de</strong> cidadania, além das fronteiras<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, não se sobrepõe ao estatuto legal em cada um <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong>. O pertencer à humanida<strong>de</strong><br />
possibilita, do ponto <strong>de</strong> vista moral, como <strong>de</strong>corrência do direito ao solo e à liberda<strong>de</strong>, transitar <strong>de</strong> um<br />
país a outro levando consigo os seus <strong>direitos</strong> <strong>de</strong> cidadão <strong>de</strong>vidamente a<strong>de</strong>qua<strong>dos</strong> à legalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />
país.<br />
A leitura <strong>de</strong> Arendt da moral cosmopolita kantia<strong>na</strong> e <strong>de</strong> suas conseqüências <strong>política</strong>s <strong>de</strong>ve ser<br />
realizada com cautela. Se, para ela, a <strong>na</strong>tureza não conce<strong>de</strong> <strong>direitos</strong>, o mero pertencimento à<br />
humanida<strong>de</strong> também não po<strong>de</strong>ria conce<strong>de</strong>r. A dimensão ontológica da humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser<br />
90 LAFER, 2003: pg. 114<br />
91 ARENDT, 2004 pg. 332<br />
92 KANT, 2004: pg 50<br />
93 KANT, 2004: pg 51<br />
94 FELICIO, 2004: pg 43<br />
95 KANT, 2004: pg 54<br />
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compreendida articulada à sua dimensão <strong>política</strong>. O direito a ter direito no plano inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l implica<br />
<strong>na</strong> construção <strong>de</strong> um espaço político, um artifício, além das fronteiras <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, on<strong>de</strong> as condições <strong>de</strong><br />
isonomia e pluralida<strong>de</strong> possibilitam que cada indivíduo seja livre para ter direito a ter <strong>direitos</strong>.<br />
Não se trata <strong>de</strong> uma nova metafísica on<strong>de</strong> o ser humano, o pertencer à humanida<strong>de</strong>, substitua<br />
a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> como fundamento do direito. Ao contrário, é a existência <strong>de</strong> um espaço político<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que garante a dimensão ontológica da humanida<strong>de</strong> para que ela possa fundar o direito. A<br />
humanida<strong>de</strong> não é nem o resultado fi<strong>na</strong>l da história, como em Kant, nem a manifestação do espírito<br />
absoluto, como em Hegel, mas o resultado da ação huma<strong>na</strong>.<br />
Um espaço político inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l não significa a ilusão totalitária <strong>de</strong> um Estado inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />
subordi<strong>na</strong>ndo as diferentes <strong>na</strong>ções. Mas, um espaço político que garanta a tutela <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong><br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, on<strong>de</strong> a “humanitas” do homem possa se <strong>de</strong>svelar como mero<br />
resultado da <strong>na</strong>talida<strong>de</strong>. 96<br />
A barbárie totalitária que rompeu radicalmente com a tradição <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, chegando<br />
aos campos <strong>de</strong> concentração e <strong>de</strong> trabalho, exigia das <strong>na</strong>ções uma resposta sem a qual o próprio<br />
conceito <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> estaria fortemente comprometido. A criação da Organização das Nações<br />
Unidas em 1945, com o objetivo <strong>de</strong> se constituir um organismo inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l sem as limitações da<br />
Liga das Nações, que teve sua origem em 1919, foi uma resposta para impedir o ressurgimento <strong>de</strong> um<br />
novo <strong>de</strong>sastre humanitário. A sua estrutura, entretanto, era o espelho do mundo que emergia <strong>de</strong>pois da<br />
guerra. No seu Conselho <strong>de</strong> Segurança, o órgão <strong>de</strong> maior importância estratégica, garantia-se o po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> veto das gran<strong>de</strong>s potências emergentes e vitoriosas, os Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong>, a União Soviética, a<br />
Inglaterra e a França.<br />
O compromisso efetivo com os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> não estava garantido com a Carta <strong>de</strong><br />
fundação <strong>de</strong> 1945, todavia ela criava uma Comissão <strong>dos</strong> Direitos Humanos que se propôs a elaborar<br />
uma <strong>de</strong>claração. Depois <strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, em 10 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1948, foi aprovada pela<br />
Assembléia Geral a Declaração Universal <strong>dos</strong> Direitos Humanos com o voto <strong>de</strong> quarenta e oito países,<br />
nenhum voto contra e oito abstenções <strong>dos</strong> países do bloco soviético, da Arábia Saudita e da África do<br />
Sul. 97<br />
No seu preâmbulo a Declaração explicita “que o reconhecimento da dignida<strong>de</strong> inerente a to<strong>dos</strong><br />
os membros da família huma<strong>na</strong> e <strong>de</strong> seus <strong>direitos</strong> iguais e i<strong>na</strong>lienáveis é o fundamento da liberda<strong>de</strong>, da<br />
justiça e da paz no mundo”. Reconhece, também, visando o passado recente, “que o <strong>de</strong>srespeito e o<br />
<strong>de</strong>sprezo pelos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> têm resultado em atos bárbaros que ofen<strong>de</strong>ram a consciência da<br />
humanida<strong>de</strong> e que o advento <strong>de</strong> um mundo em que os seres <strong>humanos</strong> tenham liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver sem<br />
medo e privações foi proclamado como a aspiração mais elementar do homem comum”. Portanto<br />
seria fundamental que “os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> sejam protegi<strong>dos</strong> pelo estado <strong>de</strong> direito, para que o<br />
homem não seja compelido a recorrer, em última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão”. 98<br />
A fé reafirmada nos <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> e o compromisso <strong>dos</strong> povos das Nações Unidas em<br />
respeitá-los, refletindo a complexida<strong>de</strong> <strong>política</strong> do mundo pós-guerra, são ameniza<strong>dos</strong> <strong>na</strong>s conclusões<br />
96 BIRMINGHAM, 2006: pg 12<br />
97 HUNT, 2009: pg. 206<br />
98 HUNT,2009, pg. 239<br />
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do preâmbulo, quando se afirma que “A Assembléia Geral proclama Esta Declaração Universal <strong>dos</strong><br />
Direitos Humanos como um i<strong>de</strong>al comum a ser alcançado por to<strong>dos</strong> os povos e todas as <strong>na</strong>ções” 99 .<br />
Permanecia o mesmo paradoxo, já evi<strong>de</strong>nciada por Arendt, referindo-se às <strong>de</strong>clarações das<br />
Revoluções America<strong>na</strong> e Francesa: ainda que com a pretensão da universalida<strong>de</strong>, a realização efetiva,<br />
<strong>política</strong>, <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> <strong>de</strong>pendia da sua incorporação, <strong>na</strong> legislação <strong>de</strong> cada país. Em outras<br />
palavras, os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> continuavam a ser traduzi<strong>dos</strong> como <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da <strong>na</strong>ção. A própria <strong>de</strong>claração sublinhava em seu preâmbulo que os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong><br />
<strong>de</strong>vem ser protegi<strong>dos</strong> pelo estado <strong>de</strong> direito em cada uma <strong>dos</strong> países.<br />
Não se quer minimizar a importância <strong>política</strong> da Declaração e do sistema <strong>de</strong> tutela <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>humanos</strong> implementada pela Organização das Nações Unidas. Ela, sem dúvida, estabeleceu um novo<br />
patamar para as relações entre a socieda<strong>de</strong> e o Estado, particularmente, para a <strong>de</strong>mocracia. Contudo,<br />
no que se refere à sua universalida<strong>de</strong>, ela incorporou o mesmo paradoxo das <strong>de</strong>clarações america<strong>na</strong>s e<br />
francesas. Os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, ainda que universais, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m para a sua efetivação <strong>política</strong> da<br />
<strong>de</strong>cisão sobera<strong>na</strong> <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />
No que se refere á mobilida<strong>de</strong> da população, a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> 1948 afirma no artigo 13 o<br />
direito <strong>de</strong> ir e vir e o direito à residência <strong>de</strong>ntro das fronteiras <strong>de</strong> seu país. Não garante a mobilida<strong>de</strong> no<br />
plano inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, ape<strong>na</strong>s se refere ao direito <strong>de</strong> retorno ao país e, quando o caso, o direito ao exílio.<br />
O maior avanço se refere ao direito à <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>. Ninguém po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>stituído da sua<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> e fica garantido o direito <strong>de</strong> mudá-la se assim o indivíduo <strong>de</strong>sejar. 100<br />
O grave problema <strong>dos</strong> apátridas, e mesmo <strong>de</strong> algumas minorias, que estavam <strong>de</strong>stituí<strong>dos</strong> da<br />
sua <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> e impedi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> readquirir outra no seu país <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, em tese, estariam resolvi<strong>dos</strong><br />
com a <strong>de</strong>claração da ONU: os indivíduos teriam os <strong>direitos</strong> <strong>de</strong> não ser <strong>de</strong>stituí<strong>dos</strong> <strong>de</strong> suas<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> em seus países <strong>de</strong> origem, assim como, <strong>de</strong> requererem uma outra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> no país<br />
escolhido como <strong>de</strong>stino.<br />
Efetivamente, entretanto, a <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>, do ponto <strong>de</strong> vista político e jurídico, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> menos<br />
do direito <strong>dos</strong> indivíduos e mais do seu reconhecimento em cada Estado <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Os indivíduos <strong>de</strong>têm<br />
a titularida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> seus <strong>direitos</strong>, mas o seu reconhecimento no plano inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se subordi<strong>na</strong> à<br />
soberania <strong>de</strong> cada país que são os verda<strong>de</strong>iros titulares no direito público inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e, <strong>de</strong>sse modo,<br />
reconheci<strong>dos</strong> pelo sistema <strong>de</strong> tutela das Nações Unidas.<br />
Assim, cada Estado se assegura o direito <strong>de</strong> legitimar e controlar, <strong>de</strong>ntro das suas fronteiras, os<br />
movimentos populacio<strong>na</strong>is inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e a concessão <strong>de</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>. Ambos se constituem um<br />
<strong>dos</strong> fundamentos da sua própria soberania. Desse modo, as <strong>de</strong>cisões inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, como a <strong>de</strong>claração<br />
<strong>de</strong> 1948, <strong>de</strong> fato, significam mais um i<strong>de</strong>al comum a ser alcançado, sem a força <strong>política</strong> necessária a se<br />
sobrepor à soberania <strong>de</strong> cada Estado.<br />
A idéia <strong>de</strong> Han<strong>na</strong>h Arendt <strong>de</strong> um espaço político inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que garanta a tutela <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>humanos</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, não se efetivou, mesmo com os progressos após a<br />
Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra. Contudo, o direito a ter direito assume <strong>na</strong> <strong>filosofia</strong> <strong>política</strong> uma força<br />
99 HUNT, 2009: pg. 230<br />
100 HUNT, 2009: pg 232<br />
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heurística <strong>de</strong>cisiva para ser compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> no mundo contemporâneo.<br />
Ele é o fundamento <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> e o princípio do exercício da liberda<strong>de</strong>. A sua restrição pela<br />
soberania <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l significa, <strong>na</strong> perspectiva <strong>de</strong> Arendt, que os <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong> se transformaram em<br />
<strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos em seus respectivos países estabelecendo limites territoriais e políticos para o<br />
pleno exercício da liberda<strong>de</strong>.<br />
O direito a ter direito não é só uma proposição filosófica para fundamentar uma nova<br />
concepção <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>, mas uma si<strong>na</strong>lização <strong>política</strong> <strong>de</strong> que a humanida<strong>de</strong>, <strong>na</strong>s concepções<br />
<strong>de</strong> Kant e Arendt, não comporta os displaced persons e todas as formas <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> homens<br />
supérfluos. O direito a ter direito é a negação do totalitarismo, <strong>na</strong>s suas formas clássicas do <strong>na</strong>zismo e<br />
do stalinismo, e nos seus resíduos que ainda prevalecem <strong>na</strong>s <strong>de</strong>mocracias liberais contemporâneas<br />
resistentes a uma verda<strong>de</strong>ira tutela inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>humanos</strong>.<br />
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