Eremitismo em Portugal na época Moderna : homens e imagens ...
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114 José Adriano de Freitas Carvalho<br />
que assi vam toldando» 109 . E estes peregrinos não deixariam de notar o<br />
constraste entre o aprazível, deleitoso e gracioso dessa «Camara Angelical» –<br />
antigo nome da serra 110 – e o aspecto exterior dos seus er<strong>em</strong>itas, «specialmente<br />
quando d’antre aquellas sombrias lapas se allevanta hum hom<strong>em</strong>, que v<strong>em</strong><br />
receber ao caminho os que vam visitar sua casa, vestido de burel com as carnes<br />
muito somidas, sostentando seus m<strong>em</strong>bros sobre hum mal feito bordam, com<br />
que lhe parece hum Helias ou hum sanct. Ioam Baptista...» 111 . Mas esta visão<br />
comparativa dissolver-se-ia quando, certamente como aconteceu com Gaspar<br />
Barreiros, eram convidados, num gesto que há que pôr nos créditos da tradição<br />
hospedeira de er<strong>em</strong>itas e monges, a tomar «vinho, biscouto mimoso, fructas, e<br />
outras cousas», pois, além do mais, «á jor<strong>na</strong>da ê tal que se <strong>na</strong>m fosse isto mal se<br />
poderia aturar ó trabalho de tam fragosos caminhos» 112 . Mas deixando as<br />
generalidades, o visitante português apresenta um ex<strong>em</strong>plo concreto de um<br />
er<strong>em</strong>ita – Fr. Benito Tocos, um rico fidalgo <strong>na</strong>politano que deixara a corte do<br />
imperador – a qu<strong>em</strong>, <strong>na</strong> sua ermida de S. João Baptista onde vivia há dois anos,<br />
visitou por «spaço de hüa hora». O er<strong>em</strong>ita, «de poucas carnes», «mostrou ser<br />
muito consolado com a minha visitaçam por star <strong>em</strong> parte onde vam poucas<br />
pessoas, por causa da aspereza da terra, que eu <strong>na</strong>m arreceei pola enformaçam<br />
que tinha d’este religioso». A visita devia ter confirmado a informação e Gaspar<br />
Barreiros, se não é a primeira impressão que regista, deverá ter ficado<br />
gratamente impressio<strong>na</strong>do ao verificar – quer dizer, talvez, ao confirmar – que<br />
Fr. Benito Tocos «t<strong>em</strong> o seu studo cheo de volumes sagrados, e á ermida<br />
cercada de rochas, e arvoredos plantados por ellas, que representam á hüa<br />
fantasia studiosa, ó ermo do b<strong>em</strong> aventurado sanct. Hieronymo». Se,<br />
efectivamente, à sua «fantasia studiosa» de humanista deverá Gaspar Barreiros a<br />
comparação com o ermo hieronimita – a solidão acompanhada de livros, tudo<br />
sublinhado pelo silêncio e pela convivência com as gralhas 113 –, a visita a esse<br />
recente solitário que, pelos vistos, ainda estimava visitas, leva-o a ponderar as<br />
dimensões físicas da solidão que aí como que apalpou: «<strong>na</strong>m t<strong>em</strong> estes ermitães<br />
ó mais do t<strong>em</strong>po outra communicaçam, se<strong>na</strong>m com Deos por meio de sua<br />
oraçam, e com seus livros, de que recolh<strong>em</strong> sancta doctri<strong>na</strong>. E despois com os<br />
passarinhos, os quaes andando derramados por aquelles fragosos arvoredos, lhes<br />
v<strong>em</strong> comer <strong>na</strong>s mãos ao som de hum assovio, com que receb<strong>em</strong> algüa<br />
consolaçãm spiritual» 114 . Livros e aves não são aqui, neste preciso contexto,<br />
109 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 108r.<br />
110 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 119v.<br />
111 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 119v.<br />
112 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 118r.<br />
113 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 119v; para esta dimensão do humanismo de<br />
Gaspar Barreiros pod<strong>em</strong> aproveitar-se muitas das sugestões de Le loisir lettré à l’âge clasique.<br />
Essais réunis et édités par M. Fumaroli, Ph. Salazar et E. Bury, Genève, 1996.<br />
114 Gaspar BARREIROS, Chorographia..., ed. cit., 120r.