Gilmara dos Santos Oliveira Vergara..pdf - RI UFBA - Universidade ...

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GILMARA DOS SANTOS OLIVEIRA VERGARA
SER PROFESSOR: DESENHOS EXISTENCIAIS DA
FORMAÇÃO DOCENTE
Salvador
2011

GILMARA DOS SANTOS OLIVEIRA VERGARA
SER PROFESSOR: DESENHOS EXISTENCIAIS DA
FORMAÇÃO DOCENTE
Dissertação submetida ao Colegiado do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Bahia,
em cumprimento parcial aos requisitos para
obtenção do grau de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ma. Roseli G. B. de Sá.
Salvador
2011

TERMO DE APROVAÇÃO
GILMARA DOS SANTOS OLIVEIRA VERGARA
SER PROFESSOR: DESENHOS EXISTENCIAIS DA
FORMAÇÃO DOCENTE
Dissertação apresentada em 17 de junho de 2011 como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Educação, Universidade Federal da Bahia, pela
seguinte banca examinadora.
Maria Roseli Gomes Brito de Sá – UFBA – Orientadora
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia-FACED/UFBA
Cleverson Suzart Silva – UFBA
Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia – FACED/UFBA
Eduardo David Oliveira – UFBA
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC
Liege Maria Sitja Fornari – UNEB
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia – FACED/UFBA
Salvador
2011

Ao meu filho Enrico Arturo, que me fez
concretizar o desejo de ser mãe e a cada dia
me surpreende com criatividade, leveza e vida
pulsante. Filho, cada instante, eu agradeço ao
universo o maravilhoso (re) encontro com você,
meu pequeno mestre, que me ensina e me faz
feliz.

AGRADECIMENTOS
Inicio os meus agradecimentos à vida, ao cosmo, às entidades da natureza como forças
propulsoras que me impulsionaram a seguir, a ousar e a celebrar o sentido de ser e estar-
-no-mundo.
Agradeço a minha querida mãe Marinalva. Recordo-me de um episódio engraçado que me
tocou certa vez. Numa tarde de sexta-feira, enquanto “mainha” batia um bolo como de
costume, conversávamos sobre pintar ou não os cabelos brancos, e eu nas minhas
compreensões, tentei convencê-la de que tamanha vaidade era exagero, e que ela deveria
aceitar sua velhice. Ofendida, dona Nalva não pensou duas vezes e me deu um banho com
a massa do bolo que estava preparando. Olho, no presente, para esse episódio com muita
graça e, hoje, acredito que merecia mesmo aquele banho doce.
Agradeço ao meu pai Alberto Cordeiro, o carinho e sua história de vida. Obrigada, pai, a
confiança em me deixar trilhar meus próprios caminhos e fazer minhas escolhas;
Agradeço a minha irmã Jaci, que sempre me teve como alguém capaz de grandes coisas.
Lembro-me da ansiedade pelo resultado da seleção do mestrado e ela me disse ao
telefone: “fique calma, você não precisa provar nada para ninguém, passando ou não, já
teve a coragem de tentar!”. Binha, amo você, comadre.
Agradeço ao meu irmão Gilvan, que topou o desafio de construir uma família maluca
comigo e Rico, sendo companheiro do meu filhote nos momentos de ausência da mãe
trabalhadora e estudante. Van, jamais vou esquecer essa força!
Agradeço a Miguel Arturo e atribuo parte do meu crescimento profissional à presença
dele em minha vida. Agradeço o orgulho de ser “Latina Americana” evocando meu
sentido de pertença. Aos ídolos que aprendi a amar: Che Guevara, Neruda, Violeta Parra.
Agradeço também me proporcionar a maravilhosa experiência de ser mãe, tendo Enrico
Arturo, meu pequeno grãozinho vermelho, como os “mapuches” chilenos chamam seus
filhos. Rico, filho, muito obrigada por existir e dividir a mamãe com os livros; perdoe-me
pelas ausências e pelo excesso de tarefas. Amo você, filhotinho!

Agradeço a João a boa companhia e conversas que me trouxeram novas compreensões de
mundo. Um presente português, um encontro de horizontes que me ajudou a perceber a
formação humana como algo profundo, cheio de potencialidades e para além das
fronteiras.
Agradeço às amigas de curso Lívia Coelho, Aline Daiane, Adriana Dantas as deliciosas
gargalhadas, em cada despedida de semestre, reunidas na Barra, beliscando petiscos e
remexendo a memória com histórias e experiências engraçadas.
Agradeço aos colegas Reginaldo (Regi), Lisiane Weber (Lis), Silvana, Edenice as
caronas; Isa, Conceição Sobral (Ceiça) e Elizabete (Betinha), que compartilharam
comigo dos momentos de angústia e incertezas pelos corredores da FACED, nos
cafezinhos em intervalos das atividades;
Agradeço especialmente à colega Ivana Bitencourt, uma incentivadora para as minhas
buscas profissionais, sempre acreditando nas minhas façanhas e projetos de vida;
Agradeço ao Professor Dante Augusto Galeffi, que de algum modo, acabou por
influenciar meu caminho e minhas escolhas de pesquisa, abraçando a filosofia como
forma de compreender o mundo: “sempre duvidando, sempre perguntando”. Foi com esse
encantamento que me encontrei com a “Epistemologia do educar”. Dante, obrigada!
À querida Teresinha Fróes Burnhan, coisa mais linda, que me inspirou a estudar a
multirreferencialidade. Presente nas leituras sobre o assunto e nas discussões da
disciplina “Epistemologia e construção do conhecimento” no doutorado em Difusão do
Conhecimento. Teresinha, você me inspira, obrigado por existir e fazer da FACED um
espaço de discussão e difusão de conhecimentos múltiplos.
Agradeço às secretárias da PPG, em especial à Lene, Eliete, Valquiria, Kátia e Gal,
sempre amorosas, são exemplos de funcionárias públicas que fazem questão de lembrar
cada nome e de aconselhar os estudantes sobre as decisões que devem tomar. Encanto-me
com a amorosidade de Gal; lembro-me certa vez quando fui fazer minha matrícula, e ela
me disse: “oh, Gilmara não é melhor você pegar menos disciplinas e já ir escrevendo seu

trabalho, minha linda! Olha, você não quer primeiro conversar com sua orientadora,
não?” Um cuidado visível. Menina, muito obrigada pelo apoio!
Agradeço aos colegas do FEP, grupo de pesquisa em Formação em Exercício de
Professores, em especial à Joselita, Paulinha, Verônica, Fabrízia, Luiza, Narciso, Ivana,
Maísa, Márcea, Isis, Marcelo, Fábio. Às professoras coordenadoras do grupo, Maria
Antonieta Tourinho (Tuca), Inez Carvalho e Roseli de Sá as discussões e as
interrogações que me ajudaram a descobrir o desconhecido;
Agradeço a minha orientadora Maria Roseli Gomes Brito de Sá – que com seu espírito
materno, em vários momentos foi conselheira, preocupando-se com questões que foram
além das preocupações acadêmicas. Rose, querida, obrigada por acreditar que podia
fazer algo, por me acolher em sua vida. Certamente terei na minha formação as
referências da profissional amorosa, dedicada, bem humorada que você é. Foi um
presente tê-la por perto;
Aos professores-cursistas do Programa de Formação da UFBA em Tapiramutá-BA, que
me oportunizaram entrar em suas histórias, suas lembranças, suas memórias e com elas
construir este trabalho de pesquisa.
Agradeço ao Sr. Calixton, morador de Porto Feliz, que me alojou em sua casa, por uma
noite, numa das minhas aventuras à Tapiramutá-BA.
Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal e Pesquisa de Nível Superior -
CAPES a bolsa de estudos, por período de 24 meses, que de certo fez diferença no
orçamento e de estudante. Essa ajuda foi fundamental para a permanência no programa.

RESUMO
Este trabalho propõe aproximações entre as três esferas existenciais da
hermenêutica fenomenológica de Hans Georg Gadamer, a esfera
histórica, a estética e a esfera da linguagem com relatos e experiências de
docentes do Curso de Formação de Professores em Exercício oferecido
pela UFBA, no município de Tapiramutá na Bahia. A formação de
professores neste trabalho é concebida como fenômeno/processo
multirreferencial e complexo com leituras no plano da
interpretação/compreensão. Nesta proposta buscou-se nos percursos
vividos pelos referidos professores sua existencialidade tendo como aporte
teórico e metodológico a hermenêutica fenomenológica de Gadamer. O
texto e percurso desta pesquisa se inscrevem na travessia e itinerâncias
de professores em exercício devolvendo à experiência o lugar de destaque
na formação passando pela constatação de que o sujeito constrói o seu
saber ao longo do seu percurso de vida. A formação de professores na
perspectiva e da hermenêutica fenomenológica abre caminhos e
possibilidades de uma epistemologia da formação em que se articulam
saberes e experiências num sentido mais profundo e existencial.
PALAVRAS-CHAVE: Formação – Compreensão – Existência –
Hermenêutica/fenomenológica

ABSTRACT
This work establishes connections between the three spheres of existential
phenomenological hermeneutics of Hans Georg Gadamer, the sphere of history,
aesthetics and the sphere of language and stories and experiences of teachers
from the Teacher Training Course offered by the Acting UFBA, in the municipality
of Tapiramutá Bahia. Teacher training in this work is conceived as a process /
multi-referential and complex with readings in terms of interpretation and
understanding. In this proposal we sought, in journeys experienced by the
teachers taking his existentialism as the theoretical and methodological
phenomenological hermeneutics of Gadamer. The text and history of this survey
fall in the crossing and itinerant teachers of acting experience by returning to the
place in formation past the fact that the subjects build on their knowledge
throughout their life course. Teacher education and the perspective of
phenomenological hermeneutics opens avenues and possibilities for an
epistemology of training in which they articulate knowledge and experiences in a
more profound and existential.
KEY WORDS: Training - Understanding - Existence - Hermeneutics /
Phenomenology

SUMÁRIO
1. PARA QUE SE INICIE ...............................................................................11
1.1 Primeiras palavras sobre a escolha da temática..........................12
2. HORIZONTES METODOLÓGICOS..................................................................19
2.1 Um tempo e um lugar................................................................ 20
2.2 Um jeito de fazer........................................................................26
3. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HERMENÊUTICA................................ 37
3.1 Formação de Professores e Existência...................................44
4. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SABERES DOCENTES.........................53
4.1. Notas sobre multirreferencialidade.........................................63
5.CAMINHOS PARA A COMPREENSÃO: GADAMER E AS TRÊS ESFERAS...69
5.1 As esferas e o sentido da existência..........................................70
6. A FORMAÇÃO EM NARRATIVAS DE VIDA DE PROFESSORES..................80
6.1 Proposições e Travessia.............................................................81
6.2 A Tradição na formação (Esfera Histórica).................................83
6.3 Forma quanto à forma (Esfera Estética)...................................93
6.4 A compreensão na formação (Esfera da Linguagem)...............102
7. UM INSTANTE CHAMADO CONCLUSÃO.....................................................112
8. REFERÊNCIAS................................................................................................119

1. PARA QUE SE INICIE...
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Violeta Parra
O conhecimento narrado por professores, como projeção de vida, motiva-me a
pensar na minha condição de formanda e formadora ao mesmo tempo. Deste
modo, o esforço para elaboração deste trabalho evoca interrogações sobre meu
próprio processo, libertando palavras, pensamentos, imaginação na busca de
compreender o fenômeno da formação de professores no sentido hermenêutico e
existencial como compreensão de mundo. Antes de tudo, sinto-me autora desta
façanha, que se engendra por campos presentes na construção humana, com
abertura para compreensão e interpretação de mundo.
A ideia de existência presente nesta elaboração implica na compreensão de si
mesmo, em que o sujeito na sua interpretação/compreensão de mundo, integra
múltiplas referências e constrói sua formação trilhando o percurso histórico e
cultural em que se encontra imerso. Para entender esse processo, foi necessário
um mergulho em referenciais do campo da hermenêutica fenomenológica de
Hans-Georg Gadamer (2002; 2007; 2008a; 2008b) – principal referência deste
trabalho - acompanhado por outros nomes como Morin (1983; 2002, 2005, 2007),
Antônio Nóvoa (1992a; 1992b; 2002), Galeffi (2001; 2002), Sá (2004; 2009, 2010),
Josso (2004; 2008), Larrosa Bondía (2002, 2009), Tardif (2002), Cunha (1989),
Candau (1997), Macedo (2002, 2010), Burnham (1998, 2001), Fagundes (2001),
dentre outros nomes que me ajudaram nesta composição.

A partir desses estudos, a dissertação foi estruturada da seguinte forma: no
primeiro momento consta a introdução intitulada: Para que se inicie. Na
sequência, apresenta-se o primeiro capítulo, que é o metodológico, composto por
duas seções: a primeira chama-se Um tempo e um lugar..., já considerando a
esfera histórica relacionada à formação com valorização do tempo e o espaço
como fio condutor da experiência de formação no sentido existencial, conforme é
discutido por Gadamer, inspirado em Dilthey no que se refere à historicidade.
Desta forma, relaciono a escolha do tema e os lugares por onde passei na
condição de formanda. Nesta seção procuro identificar, localizando em minha
memória, referências que incitaram o desejo de pesquisar a temática. Na seção
seguinte, que foi nomeada de Um jeito de fazer, apresento o trajeto desta
pesquisa, as escolhas metodológicas e o seu acontecer.
No terceiro capítulo, busquei atender a uma necessidade premente de situar a
formação de professores no sentido hermenêutico, recolhendo alguns registros
sobre formação num sentido não diacrônico. Por isso, o mesmo foi intitulado de
Formação de professores e hermenêutica, já que houve a preocupação de
ressaltar o sentido dessa formação de professores que se inscreve de modo
peculiar. Como tópico deste capítulo, segue o que chamei de Formação de
professores e existência em que discuto as formulações sobre o conceito de
existência humana chamando-o para a formação de professores.
No quarto capítulo, apresento uma discussão sobre Formação de Professores e
saberes docente, que estão na vida do professor, sua singularidade, na medida
em que cada professor constrói seu percurso formativo. Neste capítulo, enfatizo o
chamado saber da experiência que nasce no decorrer da prática ou exercício da
docência, visto que este trabalho tem como foco, exatamente, a formação de
professor em exercício. Atrelado a esta ideia de multiplicidade de saberes, busco
ampliar a discussão com leituras sobre a abordagem multirreferencial, no tópico
que chamei de Notas sobre multirreferencialidade, compreendendo esta
abordagem educativa como a possibilidade de integrar a experiência humana e a
11

compreensão de mundo numa visão ontológica, considerando os diversos
conhecimentos na formação humana e, em especial, de professores.
O capítulo cinco é dedicado à apresentação mais detalhada das três esferas
como caminhos de compreensão, conforme sugere Gadamer, em seus estudos; e
para isso, o nomeei de Caminhos para a compreensão: Gadamer e as três
esferas, abordando sua relação com a formação humana. Apesar de Gadamer
não ter se ocupado com estudos sobre a formação de professores, em sua
hermenêutica fenomenológica, neste capítulo, apresento essa preocupação em
aproximar as três esferas propostas pelo filósofo como fundamento de sua
hermenêutica com a formação de professores.
No capítulo seis, A formação em narrativas de professores, a preocupação é em
situar o leitor sobre o uso dos fragmentos de narrativas e adentrar propriamente
na pesquisa com as interpretações das narrativas de professores em exercício
participantes deste trabalho. Nele vou demonstrando o que chamo de Travessia
da Formação no qual agrupo as principais referências trazidas pelos professores
em seus memoriais, em matrizes constituídas conforme apresentadas nas
narrativas, ficando da seguinte maneira: A tradição na formação (esfera histórica),
A forma na formação (esfera estética) e A compreensão na formação (esfera da
linguagem), tendo como referencial básico as formulações gadamerianas sobre
as esferas apresentadas no capítulo anterior.
1.1 PRIMEIRAS PALAVRAS SOBRE A ESCOLHA DA TEMÁTICA
Situando historicamente meu interesse pela temática formação de professores,
apesar de já vir acontecendo desde a graduação em Pedagogia, com
experiências que tive como professora formadora foi no ano de 2007, nas
formulações da disciplina Epistemologia do Educar com o professor Dante
Augusto Galeffi que pude perceber a abrangência que circundava a ideia de
12

formação de professores e se diferenciava da concepção de formação que havia
construído até então. As indagações que surgiam em cada discussão me
ajudaram a definir o que desejava aprofundar como estudo.
Dentre tantas discussões que foram propostas, tive a oportunidade de conhecer
os primeiros conceitos da hermenêutica e da fenomenologia de Husserl, termos
que não conheci na graduação. A fenomenologia de Husserl e a hermenêutica de
Heidegger e Gadamer são conceitos do campo da filosofia que eu desconhecia.
Um dos momentos que me marcaram foi ter assistido ao filme Quem somos
nós? 1 . A ideia de que o olhar do observador faz toda diferença na representação
do mundo, me fez entender a formação como construção existencial do sujeito,
algo ligado às experiências de ser.
Este filme foi uma referência importante para que refletisse sobre a formação com
referenciais mais diversificados, e nem por isso, menos importantes. Uma das
questões com que me deparei, nesta experiência, foi algo que já me inquietava há
algum tempo, com as experiências com professores de diversas localidades: ser
professor não é ser apenas aplicador de técnicas pedagógicas e planos
estabelecidos por instâncias de cima para baixo, mas trata-se de um jeito de fazer
que é singular de cada professor; ou seja, a formação de professores é algo
profundo que aponta para o campo da existência deste ser. Entendia naquele
momento que a ação pedagógica em si exigia uma apropriação e uma forma de
ser e estar-no-mundo para além da racionalidade técnica ou iluminista no
exercício da docência. Tal racionalidade técnica num sentido cartesiano, por
exemplo, apesar de derivar do conceito de Razão, em última instância, significa o
estabelecimento de uma adequação entre aquilo que é lógico em determinada
realidade empírica (JAPIASSÚ, 1996, p. 69) e neste sentido, as elaborações no
campo da docência a partir da compreensão hermenêutica fenomenológica vai
além de práticas iluminadas e de aplicações de técnicas, mas trata-se de um
diálogo deste ser-no-mundo-com-o-outro.
1 O filme "Quem somos nós" faz uma aproximação entre física quântica e metafísica. A ideia de
que a realidade é também uma construção do sujeito.
13

A ideia de formação, mesmo que considerada vulgarmente como formatação,
limitação de espaços e possibilidades, naquele momento começava a ganhar
outra conotação, algo a ser investigado e isso me motivou a tomar este fenômeno
como tema de estudos, dando ênfase à existência nos percursos formativos dos
professores. A esse respeito, pude ampliar, com as reflexões aqui relatadas, a
ideia que me era recorrente sobre a temática em questão, pois à medida em que
participava da formação do outro, eu também me formava, me envolvia, conforme
salienta bem Larrosa Bondia (2002, p. 19), quando diz que ―a experiência é o que
nos passa, o que nos acontece, o que nos toca‖. Era esse sentido, mais profundo
e existencial, que estava buscando para a palavra formação, e não a formação
dos acúmulos de anos de serviço.
Nas experiências que tive como formadora algumas lembranças tiveram maior
relevância em meu percurso como professora. A primeira delas me reporta à
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC, na função de ―Tutora do Programa
TV Escola‖, quando atendia virtualmente cerca de 150 professores do estado da
Bahia. Como jovem formadora, começava a ver com olhar crítico a precariedade
da formação docente nos municípios baianos, principalmente quando se tratava
de municípios distantes dos centros de formação.
Em 2002, na função de coordenadora pedagógica em escolas do interior da Bahia
(Una, Ilhéus) e em seguida, como mediadora pedagógica do Programa de
Regularização do Fluxo Escolar, no eixo Ilhéus e Itacaré (Itaboquinhas), tive uma
experiência que durou dois significativos anos (2004/2005) e que me ajudou a
compreender a singularidade da formação docente para cada realidade vivida. E
mesmo sem conhecer as ideias de Gadamer (2007, 2008a, 2008b) intuía já um de
seus conceitos, quando o filósofo diz que ―cada indivíduo já está sempre a
caminho da formação e da superação de sua naturalidade, na medida em que o
mundo em que está crescendo é formado humanamente em linguagem e
costume‖ (GADAMER, 2008a, p. 50).
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Nesta experiência, juntamente com as colegas de trabalho Nara e Telma, vivia o
dilema de fazer cumprir as determinações de um programa no qual eu não
acreditava, e ao mesmo tempo, querer contribuir com localidades tão distantes e
ansiosas pela formação. As visitas mensais com reunião dos professores para
estudos era um momento festivo, sobretudo, em Itacaré e Itaboquinhas, lugares
mais distantes da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC.
Outra experiência importante que tive no meu percurso profissional foi atuar como
professora substituta na UESC, acompanhando duas turmas de Pedagogia do 7º
semestre, indo às escolas e ao mesmo tempo orientando sobre a docência e o
fazer pedagógico das graduandas do curso. Nesta experiência, ao mesmo tempo
em que tinha as primeiras práticas com a educação infantil, na Escola Suíço
Brasileiro de Ilhéus – ESBI eu atuava como professora formadora na
Universidade.
Chegando a Salvador no ano de 2007, tive o oportuno convite para atuar no
programa Jovem Aprendiz oferecido pelo SENAC. Apesar de esse contexto ser
ideologicamente de caráter neoliberal, com intensos discursos de formação para
atender ao mercado de trabalho, ainda assim, considero que foi nesse espaço
que eu aprendi a ser professora, arquitetando minha própria formação e
existência, já que, conforme Hegel (apud GADAMER, 2008 a, p.48) ―ao formar a
coisa, forma-se a si mesmo‖.
Desta maneira, a temática formação de professores sempre esteve presente no
meu percurso formativo por me fazer pensar sobre a minha própria errância, em
diferentes contextos e níveis de aplicações, com realidades muito distintas: em
Ilhéus, nas dinâmicas históricas do cacau, dos coronéis; em Una, sob influência
das colônias japonesas; em escolas públicas ou particulares; em Itacaré e
Itaboquinhas, com o olhar ecológico nas preocupações planetárias.
15

Sejam estas experiências no formato presencial, ou a distância, em esfera pública
ou privada, fica visível o quanto os processos formativos de professores, de
diferentes espaços, veem-se mesclados pela própria história individual e social do
tempo e lugar vivenciado pelo docente. E para compreender uma tradição e
qualquer que seja o processo de formação alheio, sem dúvida, como horizonte
histórico, conforme assinala Gadamer, precisamos ter sempre um horizonte para
podermos nos deslocar a uma situação qualquer. (GADAMER, 2008a).
A concepção de formação que vinha delineando levou-me ao encontro com o
grupo de pesquisa FEP - Formação em Exercício de Professores, espaço em que
conheci a proposta do Projeto Irecê, uma parceria entre a Universidade Federal
da Bahia e o referido município, com o propósito de oferecer uma formação de
professores, atendendo os estudos sobre currículo desenvolvidos por esse grupo.
Nesta proposta formativa, há um esforço teórico e metodológico de
interpretação/compreensão da formação de professores nos planos da
multirreferencialidade, da hermenêutica fenomenológica e da complexidade.
(UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA– UFBA, 2002).
Essa concepção de formação que acolho como compreensão, também ressoa,
neste estudo, como experiência formativa. A implicação com este trabalho me
leva a refletir sobre meu percurso de formação, exercitando assim o pensamento
hermenêutico e fenomenológico, já que, de acordo com Sá (2010), a
característica fundamental da ideia de formação apresentada por Gadamer é a
compreensão da formação como itinerância/errância.
Mais do que isso, pude pensar também sobre o significado da formação humana
ao ver emergir como pesquisadora iniciante, a possibilidade de estudar os
processos formativos da docência. Assim, outro acontecimento importante para
escolha do tema foi a participação no Simpósio Memória, (Auto) Biográfica e
Formação organizado pelo GRAFHO - Grupo de Pesquisa Autobiografia
Formação História Oral da Universidade Estadual da Bahia - UNEB e pelo
FORMACCE – Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação que teve como
16

objetivo discutir questões teórico-metodológicas sobre estudos com história de
vida no âmbito do movimento biográfico.
No caso da abordagem pensada por Gadamer – apesar do filósofo não ter se
ocupado da temática formação de professores – essa concepção me ajudou a
compreender a formação docente, considerando a experiência humana, a ideia de
estética: já que formação carrega em sua raiz o sentido de imagem (esfera
estética), a partir da valoração da ―errância‖ e das histórias de vida dos sujeitos,
nas construções desses professores e das relações com sua cultura e lugar
(esfera histórica), e, finalmente, a forma como esses docentes traduzem essa
interpretação, esse mundo no âmbito da linguagem (esfera da linguagem).
Com uso da linguagem, conforme Larrosa Bondia (2002, p. 21), ―as palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas
com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência,
mas a partir de nossas palavras‖. Não sendo apenas palavras, a linguagem num
sentido ontológico é usada para distinguir situações e diferenciá-las, conforme
aponta Heidegger. O ―ser-no-mundo‖ em seu ser-aí, como o filósofo define o ser
humano, vai experienciando situações e essas situações são diferenciadas
através da linguagem e das distinções linguísticas com diferentes texturas de
situações com as quais vivemos (DUTRA, 2002).
É nesse sentido, que os sujeitos vivenciam em suas experiências e na
singularidade de sua formação jogam o seu próprio jogo (SERPA, 2009) na
coletividade, como ―jogo mundano de cada um, que se conjuga como jogo da
arte‖, numa perspectiva do mundo que nos circunda (GADAMER, 2008a, p. 13). É
este ―jogo jogado e jogante‖ da formação docente que acompanhamos como
processo dinâmico, ramificado e encantador que constitui o professor e desenha a
formação no seu existir.
Essas formulações gadamerianas animaram-me a aprofundar o conceito de
formação, com sentido hermenêutico fenomenológico, em que pela compreensão,
17

os sujeitos buscam o conhecimento e arquitetam a própria construção de mundo.
Considerando, ainda, que a formação passa pelo conceito de transformação,
significa dizer que aquilo que era antes, não é mais, pois houve uma transição em
que passado e presente se fundem no percurso existencial (GADAMER, 2007;
2008a; 2008b). Compreender a formação torna-se minha intenção, pois é desta
forma que me compreendo e descubro meu próprio percurso formativo.
Nesta busca, assumo uma postura de compreensão com sentido conferido aos
acontecimentos relatados pelo professor em formação na sua construção
pessoal/profissional. A ideia de valorizar a formação na sua forma experiencial
que, de acordo com Marie-Christine Josso (2004, 2008), sem essa valorização o
percurso não será considerado formação, pois formação exige sentido dado por
quem a vivencia.
18

2. HORIZONTES METODOLÓGICOS
19
O verdadeiro saber, o autêntico conhecimento brota
do intelecto humano, da razão depurada, da
inteligência em si e para si. Este conhecimento
profundo, filosófico, ontológico que privilegia o saber
humano como essencialmente metafísico, que
constrói o mundo dos espíritos livres. Não resta
dúvida que a experiência de vida também é fonte de
conhecimento, mas de uma ciência prática que
descobre e segue leis da natureza, que observa as
diferentes atitudes comportamentais do homem
através do tempo. (NIETZSCHE, 2009).
O horizonte metodológico em que se inscreve esta pesquisa vem da minha
itinerância como professora formadora interessada na temática formação de
professores e do recorte e direcionamento dos estudos para formação com
docentes em exercício de suas atividades. O universo do qual me aproximei foi de
professores participantes do Programa de Formação do município de Tapiramutá,
na Bahia, oferecido pela Faculdade de Educação (FACED) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) em convênio com o município.
Essa proposta de formação de professores, tem ligação com a experiência
formativa realizada pela UFBA no município de Irecê na Bahia, fato que procuro
detalhar na seção seguinte, chamada de Um tempo e um lugar, contextualizando
a implementação da proposta da Universidade neste município. O título desta
seção (Um tempo e um lugar) representa a tentativa de contextualizar a idéia de
curso, demonstrando a singularidade da proposta; já que não se trata da
Universidade levando seus conhecimentos até o município de Irecê ou
Tapiramutá, mas sim de uma experiência que considera elementos da cultura
local e da realidade social presentes nesses lugares, e isso implica em mais um
elemento de aprendizagem de professores.
Em seguida, apresento outra seção chamada Um jeito de fazer, que também faz
parte do horizonte metodológico desta pesquisa. A expressão jeito de fazer tem
intenção de demonstrar que o fazer científico perpassa pela singularidade do

pesquisador, ou seja, seu jeito de escolher e fazer a pesquisa, os caminhos a
serem tomados, a escolha de abordagens dentre tantas escolhas que são feitas
nesse percurso.
2.1 UM TEMPO E UM LUGAR...
Historicamente, a proposta de formação de professores do município de
Tapiramutá na Bahia, campo de estudos desta pesquisa, se estabelece
oficialmente em novembro de 2005; Inicialmente no ano de 2001, momento em
que representantes do município de Irecê procuram professores membros do FEP
– Grupo de Pesquisa sobre Formação em Exercício de Professores da Faculdade
de Educação da UFBA e propuseram uma parceria de formação aos professores
daquele município e quiçá da região. A solicitação foi considerada oportuna para
que a Faculdade de Educação colocasse em prática concepções sobre formação
de professores e currículo em municípios baianos. Nesta parceria, um dos pontos
fundamentais presentes na proposta é o respeito à singularidade local em
proximidade com as concepções pedagógicas defendidas por este grupo de
professores pesquisadores das temáticas: currículo e formação de professores da
FACED-UFBA.
Em 2002, inicia-se o processo de elaboração do programa com a parceria entre
professores da Universidade Federal da Bahia e a Rede Municipal de Ensino de
Irecê 2 . Para concretização da proposta foram necessárias inúmeras visitas de
trabalho, realizadas pela Faculdade de Educação da UFBA e pelo município de
Irecê, com levantamento de dados sobre os diversos aspectos educacionais e de
outros setores de influência na educação local objetivando formular a proposta de
curso de modo adequado à realidade daquele município. (UNIVERSIDADE
FEDERAL DA BAHIA, 2002).
2 É preciso trazer referências do chamado Projeto Irecê pelo fato deste ter sido o primeiro município de
atuação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Posteriormente com os bons resultados dessa experiência
é que houve o convite do município vizinho, Tapiramutá, onde esta pesquisa acontece.
20

Foi, então, que no primeiro semestre de 2005, a equipe do FEP – Grupo de
Pesquisa em Formação em Exercício de Professores foi procurado pela Prefeitura
do município de Tapiramutá, já que conhecia o trabalho no município vizinho de
Irecê, e propôs a realização de uma turma de professores, ou seja, efetivamente
no município de Tapiramutá o trabalho teve início no ano de 2005. Houve a
participação dos representantes do município de Tapiramutá no Seminário de
Encerramento do Ciclo Três do curso em Irecê. E, a partir deste evento, as
negociações foram oficializadas, passando ao processo de organização das
instalações, do currículo, processo seletivo dos professores da rede, dentre tantas
outras tarefas de ordem institucional.
O novo horizonte formativo da Universidade Federal da Bahia chama-se
Tapiramutá, nome que vem de origem tupi e significa ―espera d‘Anta‖, pois
antigamente o local reunia caçadores à espera desse animal, e essa marca
acabou por originar o nome do lugar traduzido para a língua indígena. O
município inicialmente foi habitado por índios Paiaiá e depois por caçadores que
vinham em busca das tapiras (antas), presas de carne saborosa e com grande
valor comercial. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2005).
A proposta dos dois municípios tem, em sua natureza, preocupações no sentido
dialógico de ser e de tratar o conhecimento e o sujeito. Busca-se, neste processo,
o exercício reflexivo e interrogante, pois ao longo desta formação os professores
são instigados a pensarem sobre sua própria formação desde o momento da
seleção. E esse exercício torna-se viável por esses professores estarem em sala
de aula e assumirem, na prática, a postura de serem aprendentes, na condição de
cursistas, e ao mesmo tempo, ensinantes, como professores do seu município.
No trabalho realizado com os professores de Tapiramutá, fiz opção pela
interpretação/compreensão de fragmentos de 10 memoriais e mais algumas das
histórias que chamo de ―contos de professor‖ que foram relatadas durante a
oficina formativa, oferecida aos cursistas do programa como chamada inicial para
as primeiras incursões no trabalho de campo. Esta oficina aconteceu no espaço
UFBA em Tapiramutá, com o objetivo de discutir alguns dos conceitos
21

apresentados por Gadamer (2007, 2008a, 2008b) como caminhos para
compreensão da formação de professores no sentido existencial. Foram duas
turmas formadas por professores cursistas que se interessaram pela discussão
proposta. Uma turma no horário vespertino, composta por 22 alunos, e outra no
noturno, com 35 professores num total de 57 professores inscritos.
Durante a oficina tentei criar um clima de investigação sobre os conceitos básicos
da filosofia existencial de Gadamer: hermenêutica, compreensão, estética,
tradição, linguagem, formação e existencial. A tentativa se deu sempre no sentido
de buscar aproximações com a realidade dos professores participantes. Com a
preocupação de que os termos discutidos, tivessem significação e não fossem
vistos como elementos distantes e sem utilidade alguma na formação dos
professores. Minha tentativa foi pensar a compreensão, a existência, a esfera
estética, a historicidade, a linguagem e a formação, conforme os professores
compreendem este fenômeno de formar-se, e ao mesmo tempo, buscar o
respaldo na perspectiva da filosofia gadameriana.
Nesta travessia, tomei algumas narrativas de professores-cursistas e mais os
memoriais de 10 participantes, sendo destacados fragmentos desses memoriais e
das narrativas que revelaram a compreensão da formação de quem está no
processo. Busquei preservar os fragmentos, identificando neles, aspectos da
teoria gadameriana sobre formação e elementos da existência de ser,
considerando as esferas estéticas, histórica e a linguagem. E em cada grupo de
fragmentos, houve a tentativa de relacioná-los com uma das esferas, sem
descartar a outra; ou seja, em alguns dos fragmentos é possível visualizar
elementos de mais de uma esfera existencial, já que a intenção, neste trabalho,
não foi o isolamento ou separação entre elas.
É, desta forma, que num conjunto de relações recíprocas com o mundo, nos
memoriais dos professores, a formação tem um sentido em condição existencial
de mergulho no tempo e espaço, mediado pela linguagem, e a compreensão do
presente, como condutora dessa compreensão. Nos fragmentos destacados
nesta pesquisa, aparecem elementos da formação de professores em que
visualizo as esferas que compõem a existência humana conforme apresenta
22

Gadamer (2008a). Estes fragmentos foram selecionados das ―histórias‖ contadas
por professores participantes da oficina que teve como tema a Formação de
professores: desenhos existenciais da docência, e que representou, como já foi
dito, o ponto de partida para o trabalho de campo desta pesquisa. Nas dinâmicas
da oficina, acabei percebendo que nem tudo que era contado caberia neste
trabalho, então, no meio do percurso, entendi que era preciso evocar as
experiências que foram suficientemente significativas para os professores e
incorporá-las na proposta. Isso permitiu que eles buscassem as correntes que
animaram o movimento de sua própria vida e seus processos formativos para a
docência.
Passado o momento da oficina, lendo os ―contos de professores‖, senti a
necessidade de mergulhar um pouco mais nas experiências desses docentes –
lendo seus memoriais que são escritos como dispositivo de formação, desde a
seleção para ingresso no curso até a versão definitiva em forma de trabalho de
conclusão do curso oferecido pela UFBA. Ao ler e reler os 10 memoriais e os
―contos de professor‖ foi selecionando, então, alguns dos fragmentos que
apresentavam maior proximidade com a teoria estudada, tendo o cuidado para
que esses fragmentos não ficassem sem a devida contextualização. O material
foi, por conseguinte, agrupado de acordo com as referências que os professores
apresentaram, e, em seguida, agrupados em matrizes e aproximadas de cada
uma das três esferas propostas por Gadamer (2007; 2008a) na compreensão da
existência e formação humana.
Essa aproximação das matrizes das esferas não ocorreu no sentido de
enquadramento do conhecimento, até porque, o fragmento que coube numa
esfera, pode perfeitamente ser pensado em outra. Tratou-se, sim, de um exercício
de reflexão, compreensão da existência dos professores reveladas na escrita e
sua relação com a concepção de formação na existência.
Essa foi a primeira tentativa: agrupar os fragmentos de acordo com a natureza ou
ênfase dada pelo autor, neste caso, o professor-cursista. Ao primeiro contato,
23

efleti sobre como seria possível perceber em fragmentos a historicidade humana
desse professor? E sua formação? E sua existência? Como seria identificar,
nesses fragmentos, elementos que constituíssem a formação de professores, já
que, o que eu como pesquisadora poderia considerar como ―inútil‖ ou fora de
contexto, poderia ser de grande valor para a formação desse professor? Para
isso, foi necessário estudo e elaboração sobre o conceito de experiência,
existência e formação presentes nas narrativas de como o professor aprende de
forma interativa, imerso numa cultura, numa sociedade, em que o sujeito constrói
seu percurso de vida/formação. Nas diversas formas intencionadas de mediação
com o mundo (MACEDO, 2010), percebi o vasto caminho para aprofundamentos
dessa natureza e a necessidade de criação de uma epistemologia da formação.
No projeto de formação de professores de Tapiramutá, uma das propostas do
curso é o uso das histórias de vida como campo metodológico e estratégia de
formação. Esse trabalho com histórias de vida e relatos de experiência no projeto
de Tapiramutá aparece na solicitação da escrita do memorial, desde o momento
da seleção dos professores. Nele, estes ressaltam as experiências vivenciadas
como professores, no passado com olhar do presente, e numa perspectiva
futurista de como será sua passagem pelo programa de formação oferecido.
Todo o cuidado com essa narrativa apresentada deu-se em compreender as
dinâmicas que se processam no desenrolar da formação de professores. Uma
das minhas buscas, sobretudo, foi, exatamente, a conquista do memorial – neles
sempre destacando os fragmentos escritos pelos professores, sobre suas
relações com a docência, em três momentos importantes que o programa de
formação solicita: ―Eu estudante‖, ―Eu professor‖ e ―Eu professor no programa‖, de
acordo com a estrutura básica do memorial proposto pelo programa. Logo, nos
fragmentos selecionados, os professores apresentam suas experiências
formativas evidenciando sua aprendizagem, seu processo e percursos trilhados,
bem como, as concepções de formação e as referências incorporadas na
experiência de ser professor ao longo de sua vida.
24

O trabalho com história de vida e formação, na perspectiva trabalhada no
programa da UFBA, e estudada aqui nesta pesquisa, vem da influência das
correntes, francesa e suíça, desenvolvidas respectivamente nas Universidades de
Paris V e VII, e na Universidade de Genebra. Estes estudos surgem em 1980,
com grupos de estudos e pesquisas preocupados em aprofundar as
compreensões sobre a relação sujeito-em-formação. Dentre os nomes
precursores desta modalidade de estudos, destacam-se Gastón Pineau (2006),
Marie Chistine Josso (2004, 2008), Pierre Dominicé (2010a, 2010b), que se
preocuparam em traçar novos horizontes teóricos para o entendimento da
formação humana/profissional na perspectiva ontológica da formação.
Nesta perspectiva, a concepção de formação de professores, que sustenta o
programa de Tapiramutá, busca valorizar a existência numa visão ontológica que
permite compreender o professor, no seu tempo e espaço vivido, considerando
suas lembranças, sua memória e a reconstrução da própria prática pelo
conhecimento, auto-reflexão com sentido coletivo; haja vista que, conforme
Macedo (2010, p. 32) ―a formação ou é relacional ou então não é formação (...)
toda formação é interformação, assim como toda compreensão é
intercompreensão‖.
Nesse lugar, município de Tapiramutá na Bahia, professores em exercício
seguem, portanto, sua trajetória de formação: ensinando e aprendendo,
relacionando-se com o mundo e elaborando seu processo formativo na fusão de
horizontes (GADAMER, 2008a). E, neste jogo tensionado, o desafio constante de
ensinar e aprender emerge nos escritos dos professores, sejam eles postos de
forma linear ou desafiando as noções de tempo e espaço, ainda assim a escrita
das experiências que se formaram e transformam as identidades e as
subjetividades desses professores é sempre a leitura do percurso formativo com o
olhar do presente.
A dinâmica proposta pelo curso recorre a um princípio básico defendido por Josso
(2004), em que a formação deve ser encarada do ponto de vista do ser
25

aprendente, tornando-se, esse, um conceito gerador de ―processos,
temporalidade, experiência, aprendizagem, conhecimento, saber-fazer, tensões
dialéticas, consciência, subjetividade, identidade‖, procurando articulação dessas
vidas (JOSSO, 2004, p. 38).
As histórias contadas nos escritos de professor demonstram que o ser humano
cria e narra suas aventuras e histórias que simbolizam a compreensão das coisas
da vida. As experiências, de que falam as ―recordações-referências‖, constituem
os memoriais e outros documentos de escritas de professores, em que eles
contam, não o que a vida lhes ensinou, mas o que se aprendeu experiencialmente
nas circunstâncias da própria vida (JOSSO, 2004). Esses documentos são,
portanto, de interesse empírico, visto que neles se apresentam as múltiplas
referências que esses docentes carregam em suas experiências de
vida/formação, que aparecem com foco temporário, traduzido, conforme sua
importância, para aquele momento presente da sua formação profissional.
2.2 UM JEITO DE FAZER...
O jeito de fazer a pesquisa inicia-se dando ênfase à formação docente, tendo
como proposta de trabalho a pesquisa autobiográfica no uso de memoriais de
professores em exercício de sua docência. O foco é o professor em seu processo
de formação, iniciada pela academia, mas, continuada pelas relações que ele
estabelece, desde tempos anteriores até este momento entre os saberes da vida
e a sua formação.
Nesta perspectiva, a condução deste estudo se dá no plano da compreensão
hermenêutica, na tentativa de analisar a compreensão do professor sobre o seu
percurso formativo, que se intensifica na formação inicial e no exercício do fazer
pedagógico. É, neste sentido, que Sá afirma que incorporar conceitos ou buscar
compreender e lidar com a realidade de pesquisas desta natureza,
26

significa romper com a forma fragmentária de tratar o
conhecimento; aproximar-se do processo sem a interrupção do
seu movimento, na penetração de sua intimidade, na imersão dos
múltiplos significados que vão sendo conferidos nas
(inter)relações que configuram esse processo, analisá-lo sem a
interrupção de sua heterogeneidade, já que não se pode
compreender o complexo apenas sob um único referencial ou
paradigma específico. (SÁ, 2004, p. 129).
A natureza desta pesquisa é qualitativa e se insere no campo da hermenêutica
fenomenológica de Gadamer (2007, 2008a), considerando os conceitos e
significados da compreensão e interpretação presentes nas experiências
formativas de professores. A compreensão, marca desta abordagem, considera a
complexidade de ser professor, trazendo suas experiências de vida para estudos
de pesquisa do campo social, educacional e filosófico.
De acordo com Schmidt (SCHMIDT apud DUTRA, 2002), a pesquisa com
experiência de vida
[...] muitas vezes, é a elaboração de elementos diversos e difusos
da teoria e da experiência, elaboração construída em torno de um
fenômeno. Nesse sentido, uma pesquisa concluída é o relato do
percurso de um pesquisador ou de um grupo (SCHMIDT apud
DUTRA, 2002, p.59).
Nesta direção, as experiências de professores e as pesquisas no campo da
fenomenologia existencial se encaminham numa perspectiva que enfatiza a
dimensão existencial do ser humano e os significados vivenciados pelo indivíduo
no seu ser e estar-no-mundo.
Dada a natureza desta pesquisa, foi possível optar, como metodologia de
trabalho, pelo uso das histórias de vida como fonte de pesquisa, mais
precisamente, a compreensão de histórias de vida que me ajudaram a
compreender a formação docente. Segundo Josso (2004), o trabalho com as
narrativas de vida se evidencia na exigência metodológica de pensar as
dimensões existenciais da identidade a partir de uma abordagem multirreferencial
que integra várias modalidades do pensamento humano (as crenças específicas,
27

as crenças religiosas, esotéricas), assim como as várias dimensões de nosso ser
no mundo (JOSSO, 2004).
Para a fundamentação no campo da hermenêutica, recorro, como já foi dito ao
longo do texto, basicamente, aos estudos de Gadamer (2007, 2008a, 2008b), cujo
pensamento encontra-se marcado pelas influências de Dilthey, Heidegger e de
toda a tradição hermenêutica alemã. O filósofo procurou com seus trabalhos, em
especial, a obra clássica ―Verdade e Método I e II‖, desenvolver a idéia de
interpretação do ser histórico, a partir de manifestação na linguagem, uma vez
que esta se apresenta como uma das esferas de base da experiência humana,
compreensão da existência e fio condutor da hermenêutica (GADAMER, 2008a).
Tomando como interesse esse universo de formação de professores em
exercício, esta dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação da
FACED/UFBA, tem, entre suas justificativas, a importância de considerar, no
processo de formação de professor em exercício, as suas histórias de vida, seu
percurso formativo, a partir da interpretação/compreensão de fragmentos de seus
memoriais produzidos ao longo do curso de graduação. Por meio das narrativas
contidas nesses memoriais, e selecionadas nos fragmentos tomados para
interpretação, é que traço meu percurso de compreensão dos processos
formativos em estudo.
O uso de fragmentos dessas narrativas como fonte de pesquisa torna-se
significativo quando considero as palavras e seu significado para a vida, haja vista
que de acordo com Larrosa Bondia (2002, p. 21), ―as palavras produzem sentido,
criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de
subjetivação‖. E com o uso das palavras registradas nos memoriais tomados para
estudo, busquei como referencial teórico e metodológico o campo da
hermenêutica fenomenológica de Hans Georg Gadamer (2007, 2008a), na busca
pela compreensão dessas palavras.
28

Tal aporte teórico também ajudou na construção do conceito de formação
humana, quando o autor utiliza essa formação como metáfora da experiência com
a arte e o sentido de formação na coletividade, na troca e fusão de horizontes. De
acordo com esse autor,
O modo como experimentamos uns aos outros, como
experimentamos as tradições históricas, as ocorrências naturais
de nossa existência e de nosso mundo, é isso que forma um
universo verdadeiramente hermenêutico. Nele não estamos
encerrados como entre barreiras intransponíveis; ao contrário,
estamos sempre abertos para o mundo. (GADAMER, 2008a, p.
32).
Nesta oportunidade, os estudos das trajetórias docentes implicam no uso da
história do professor como dado empírico, que atende de maneira satisfatória a
ideia proposta por Gadamer de compreender a formação a partir do ser
aprendente. Essa dinâmica demanda a (re) construção da subjetividade do ator-
autor, que neste caso é o professor. Segundo Josso (2004), nesse processo de
busca de si mesmo o sujeito define: ―o que narrar? Que fatos, nomes, eventos
merecem destaques? O que ocultar? Como organizar as memórias que compõem
as histórias a serem narradas?‖. E a cada questão levantada, este sujeito ―ator-
autor‖ é levado a expressar o sentido de sua existência com as diferentes texturas
de linguagem no sentido ontológico de compreensões de mundo.
Para Josso (2004), que utiliza um conceito de ―existencialidade singular-plural‖,
essa tentativa remete ao próprio acompanhamento do percurso da vida, vivida
com as tensões permanentes entre as transformações, limitações e evolução dos
sonhos, dos desejos e aspirações individuais dos sujeitos. Isso confirma a relação
entre singular e plural, que pretendo visualizar no projeto Tapiramutá, pois a
existência humana e a formação são as bases desta construção.
A autora ainda acrescenta que neste processo de construção de si, o ser-sujeito é
levado a gerir essa coabitação das lógicas evolutivas e a viver, nesse processo,
uma tensão entre a identidade de si e a identidade dos outros (JOSSO, 2004). A
29

formação humana se apresenta não apenas pelas vias da cognição, mas em um
plano de relação entre a própria construção e a construção do outro, assumindo a
ideia de individual e coletivo.
Segundo os estudos de Pineau (2006), num sobrevôo contemporâneo sobre os
trabalhos com histórias de vida em formação, esse tipo de trabalho ensaia uma
corrente ―pesquisa-ação-formação‖ existencial, uma vez que:
[...] não é exatamente uma simples técnica ou abordagem
pedagógica nova, novas técnicas, biográfica e autobiográfica,
antes essa possibilidade aparece com questões de fundo
axiológicas, epistemológicas e éticas. Quem faz a história de vida
de quem? Por quê? Para quê? Com o quê? Quando? Até onde?
Em função de que regras e de quais saberes? (PINEAU, 2006, p.
336).
O valor da pesquisa (auto) biográfica, neste tipo de trabalho, é legitimar no mundo
científico o entrelaçamento de narrativas de vida com dimensões existenciais de
identidades, permitindo a integração de diversas modalidades do pensamento
humano, tais como, as crenças religiosas, esotéricas, o imaginário de um modo
geral, numa visão que abarca os processos formativos dos sujeitos, bem como,
as várias dimensões de nosso ser no mundo (JOSSO, 2008).
Nos estudos de (auto) biografia considera-se que aquele que narra sua história de
vida, narra-a para alguém. Ou seja, no processo de elaboração de uma narrativa
há sempre a tentativa de se estabelecer um diálogo com o leitor, mesmo que seja
com um interlocutor imaginário, como acontece com os diários íntimos. Assim, na
relação com o pesquisador, quem conta a sua vida, não conta a um gravador,
mas conta para alguém que será um interlocutor da voz do sujeito na pesquisa.
Vale dizer que as narrativas não são relatórios de acontecimentos sem sentido,
trata-se de um conjunto de acontecimentos que marcam o percurso formativo de
quem as escreve. O ator-autor, de forma original apresenta sua experiência de
vida através da escrita e comunica ao mundo aspectos que julga significativos
presentes na sua formação (JOSSO, 2008). De acordo com Oliveira (2010), uma
30

das características dessa prática de escrita de si é a integração de conhecimentos
de distintos domínios e a compreensão das interconexões que moldam o sujeito.
Trata-se de uma bricolagem, cujo caráter empírico envolve diferentes níveis de
compreensões. (OLIVEIRA, 2010).
Nas palavras de Josso (2008), a questão existencial fica evidente na formação de
professores e no uso das narrativas de vida como tradução de sua existência:
A história de vida narrada é, assim, uma mediação do
conhecimento de si na sua existencialidade que oferece, para a
reflexão do seu autor, oportunidades de tomada de consciência
dos vários registros de expressão e de representação de si, assim
como sobre as dinâmicas que orientam a sua formação (JOSSO,
2008, p.19).
A presença da existencialidade nos memoriais é elemento de originalidade
exatamente por se tratar da revelação da singularidade de uma humanidade
compartilhada (JOSSO, 2008). Por esse motivo, nas pesquisas com as narrativas
de formação, utiliza-se com frequência, a expressão de nossa existência singular
e plural: singular pelo fato de expressar o percurso de vida constituído por cada
sujeito em sua singularidade, e plural por esta singularidade estar inserida numa
coletividade (JOSSO, 2008). Em relação ao presente estudo, podemos afirmar
que a coletividade é a própria formação de professores no Brasil e na Bahia,
nesse caso dos professores, em exercício, em um determinado município baiano.
Deste modo, o conhecimento de si traz um sujeito vivo e conhecedor do tempo de
vida através das dinâmicas presentes no cotidiano, no contexto dos encontros e
desencontros, dos principais eventos da sua vida pessoal e social, considerando
o percurso formador e fundante da construção identitária. E neste sentido, a
aproximação da construção identitária entre a pessoa pesquisada, confirmado a
partir dos relatos biográficos ou escrita de si, traz articulação entre a vida social e
aspectos psicológicos presentes no percurso social individual.
31

Sobre esta questão, Galeffi chama atenção para a possibilidade de se construir
uma ciência que considere a existência, que para o autor,
É a maior ciência de todas, justamente porque se ocupa do único
ente que necessita de cuidado e atenção absoluta: o ser humano.
O maior bem não pode se encontrar fora de nós. Então, ciência é
para nós o mesmo que saber-pensar, saber-ver, saber-viver-junto,
saber-fazer, saber-não-saber, saber-calar, saber-falar: saber-ser.
É isto mesmo, ciência é algo que nos diz respeito, como humanos,
em nosso modo de ser para a liberdade de ser. Assim, o que
dizemos como ciência é o nosso próprio modo de ser-consciente
do que sabemos fazer com a vida — um saber-fazer com arte
(GALEFFI, 2002, p. 5).
O autor abre, nessa fala, uma discussão antiga sobre ciência, suas abordagens e
os métodos de pesquisas presentes no universo acadêmico. Suas preocupações
vão além de coleta de dados da realidade pesquisada e apontam para a
preocupação formativa da pesquisa, com o pesquisador e o sujeito pesquisado.
Sobre o método, fica claro que é necessária a predisposição do pesquisado em
expor a própria vida. A ele é pedido que conte sua história, como achar melhor –
nos moldes de entrevista não-estruturada. E a partir das histórias e dos elementos
presentes nessas narrativas é que o pesquisador irá definir, ou escolher, qual
delas fará parte do seu universo de pesquisa. Este universo da presente pesquisa
foi o referido curso de Pedagogia para professores em exercício, e nele, o
percurso formativo de 10 professores-cursistas em exercício da rede pública do
município de Tapiramutá. Este procedimento de pesquisa foi também um
procedimento didático no exercício de minha docência, já que, motivada por
Josso (2004; 2008), sobre o uso de atividades formativas e da vida como
dispositivo de formação, senti-me motivada a experienciar como pesquisadora,
em campo, esta metodologia como trabalho de pesquisa.
Esse entrelaçamento possível entre a investigação e os processos formativos
encontra respaldo ainda nas formulações de Dominicé (2010b), para quem,
32

A abordagem biográfica pode assim ser considerada como um
lugar de confrontação de verdades construídas no decurso da
existência, como um espaço onde se entrechocam reflexões sobre
a formação, provenientes de diferentes percursos de vida. A
investigação torna-se então a que cada um pretende. Contribui
para a formação, do mesmo modo que a formação a torna
possível. Assim como a nossa formação nos conduziu num
determinado momento a essa investigação. (DOMINICÉ, 2010b,
p. 208).
Vale salientar que essa modalidade de investigação engloba a formação do
pesquisador. Assim, o meu próprio processo formativo, ao tempo em que me
lançou nessa investigação, foi fortalecido pelas escolhas, pelas descobertas,
pelas experiências possibilitadas ao longo da investigação, a começar pela
realização da atividade deflagradora da pesquisa.
Inicialmente foi proposta uma oficina formativa aos professores que fazem parte
do programa e solicitado, durante o processo, que eles focassem na sua
formação e revelassem um ―causo‖ ou acontecimento em seu percurso formativo,
fazendo o exercício proposto pelas esferas estudadas, a esfera estética, a esfera
histórica e a esfera da linguagem. Essas três esferas apresentam-se como
aspectos estruturantes da formação humana e, para efeito desta pesquisa, da
formação de professor: a esfera estética utiliza-se dessas esferas como recurso
de compreensão da forma, da contextualização do fato histórico e no uso da
linguagem como tradutora ou porta voz dessa experiência.
Essas três esferas, apresentadas por Gadamer (2008a), foram importantes no
entendimento do processo formativo nessa perspectiva de hermenêutica pautada
no aspecto ontológico. Para Gadamer, as três esferas não são fragmentadas na
experiência hermenêutica, ao contrário, juntas elas compõem a formação em seu
sentido existencial. Na primeira esfera, Gadamer ressalta a experiência do ser, a
partir da relação com o objeto artístico que precede o próprio exercício crítico do
juízo estético. Esse objeto artístico é como o filósofo se refere ao que nos cerca, e
esta experiência de prazer ou desprazer, de encontro é uma das possibilidades
do exercício hermenêutico fenomenológico da compreensão.
33

Na segunda esfera, o filósofo anuncia a consciência de ser conduzido por
tradições que apontam para o valor da história, das tradições humanas, da
memória como condição existencial do ser histórico que somos. E para a última
esfera, que não se distancia das duas primeiras, mas percorre as mesmas e
traduz as primeiras esferas, Gadamer (2007, 2008a) refere-se à co-pertença das
coisas ditas pelas vozes dos discursos, os quais são carregados de significados e
tornam-se instrumentos de dominação cultural, pois revelam o caráter dominante
da linguagem.
Após essa oficina foram solicitados os memoriais dos participantes, que
totalizavam 57 cursistas, e, deste contingente, me propus estudar 10 memoriais
do universo de professores que participaram da oficina formativa, sendo que,
cinco professores-cursistas pertenciam ao primeiro semestre, e cinco, ao
segundo. Vale ressaltar, que o uso da linguagem escrita como elemento fundante
de uma hermenêutica existencial é traço fundamental nos estudos de Gadamer
para a formação humana – o que reforçou minha posição por fundamentar minha
opção metodológica, com esse referencial, para compreensão dos memoriais e
dos ―contos‖ dos professores-cursistas selecionados como sujeitos da pesquisa.
Nos fragmentos das histórias de vida desses professores, eles demonstram que
vida e formação se constroem intensamente, fundindo-se, e isso fica evidente
pelo fato de ser o memorial uma narrativa de compreensões de mundo e de si, e
não um relatório comum. Conforme Benjamin, narrar uma história é uma arte e
um acontecimento infinito, ―pois é um acontecimento vivido, ou pelo menos
encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem
limites, por isso é infinito, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes
e depois”. Desse modo, a narrativa, não trata apenas de uma lembrança de uma
experiência, mas de uma experiência que se reconstrói à medida em que é
narrada. Assim, narrar alguma coisa consiste na ―faculdade de intercambiar
experiências”, e, por este motivo, Benjamin chama de ―obra aberta‖, na sua obra
―O Narrador‖ (BENJAMIN apud DUTRA, 2002, p.373).
34

A narrativa contempla basicamente a experiência contada pelo narrador e ouvida
pelo outro; o ouvinte numa relação de interlocução, já que, ao contar aquilo que
ouviu, transforma-se ele mesmo em narrador, por já ter amalgamado à sua
experiência a história ouvida. Desta forma, poderia dizer que o trabalho com
narrativas pode se tornar uma abordagem metodológica apropriada aos estudos
que se fundamentam nas ideias da fenomenologia e na temática da existência.
Através da narrativa, podemos nos aproximar da experiência de formação, tal
como ela é vivida pelo narrador ou formando (DUTRA, 2002).
Nesta perspectiva, o narrador não ―informa‖ sobre a sua experiência de formação;
mas, especialmente, conta sobre ela, articulando o acontecido com as devidas
contextualizações, dando oportunidade da escuta e da modelagem de acordo
com a sua interpretação/compreensão: o que leva a experiência de si e do outro a
uma maior amplitude da formação numa perspectiva de "fusão de horizontes"
conforme apresenta Gadamer (2007; 2008a; 2008b). Esta expressão apresenta a
complexidade das relações presentes nas narrativas, e, apesar de Gadamer não
ter feito elaborações neste campo especificamente, a compreensão das narrativas
como relações intercambiadas e projetadas, por si só, já se aproxima desse
conceito de ―fusão de horizontes‖. De acordo com Sá (2010), interpretando
Heidegger, o filósofo ―trabalha com a tensão da existência, no emergir e imergir
no mundo, fazendo-se parte dele. Dessa forma, o homem não pode ser o ente
que é, senão encarnado no mundo, em contínua comunhão com os outros entes‖
(SÁ, 2010, p. 45).
Como projeção daquilo que ainda vem e do inevitável diálogo entre os horizontes
dos sujeitos envolvidos, e mesmo do próprio horizonte de cada um, no sentido
ontológico de ser e estar no mundo, há uma relação entre o presente, o passado
e o futuro não de maneira linear obedecendo a uma sequência, mas numa
relação anacrônica. A ideia de horizonte, portanto, aponta para o movimento da
dialógica e está associado a categorias de intersubjetividade e historicidade dos
sujeitos, que em si mesmos são portadores de cultura e formação; ou seja, o
encontro de horizontes redimensiona as possibilidades e os limites da
35

objetividade e da neutralidade na investigação cultural, e isso se torna possível
graças à associação da dimensão compreensiva.
36

3. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HERMENÊUTICA
37
A quién le puedo preguntar
qué vine a hacer en este mundo?
Por qué me muevo sin querer,
por qué no puedo estar imóvil?
Por qué voy rodando si ruedas,
volando sin alas ni plumas,
y qué me dio por transmigrar
si viven en Chile mis huesos?
Pablo Neruda
As primeiras informações que se tem sobre a palavra formação passeiam pelo
sentido de ―formação natural‖ de órgãos ou membros, ou com referências à
aparência externa ou ainda a formação produzida pela natureza como, por
exemplo, a formação de montanhas, desertos etc. O conceito de formação
encontra-se diretamente ligado ao conceito de cultura designando
especificamente o aperfeiçoamento de aptidões e faculdades humanas.
(GADAMER, 2007)
Uma concepção de formação que não se constrói na forma de finalidade ou em
vistas de um produto final, essa é a tentativa de Gadamer ao ―ressignificar o
conceito de formação a partir da crítica à ênfase do resultado em detrimento do
devir‖ (SÁ, 2010, p. 43). Esse aspecto discutido pelo autor revela que o sentido da
formação não se encontra num objetivo e a mesma não pode ser desejada, a não
ser que seja para compor a temática reflexiva do educador (GADAMER, 2008a).
Formação é percurso e durante esse processo, de acordo com o filósofo,
[...] é possível apropriar-se totalmente daquilo em que e através
do que alguém é instruído. Nesse sentido, tudo que ele assimila
integra-se nele. Mas na formação aquilo que foi assimilado não é
como um meio que perdeu sua função. Na formação adquirida
nada desaparece, tudo é preservado. A formação é um conceito
genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico da

‗conservação‘ o que importa para a compreensão das ciências do
espírito. (GADAMER, 2008a, p. 47).
Buscando o sentido da palavra ―hermenêutica”, de um modo geral ela tem em sua
etimologia o verbo grego hermeneuein, que se traduz normalmente como
interpretar e o substantivo hermeneia, como interpretação. Assim, os textos
gregos da antiguidade clássica associados à mitologia, de modo específico ao
chamado ―[...] deus-mensageiro-alado Hermes, de cujo nome as palavras
[hermeneuein, hermeneia e hermeios - esta última referente ao sacerdote do
oráculo de Delfos] aparentemente derivam (ou vice-versa?)‖ (PALMER, 1997
apud SÁ, 2004, p.22). Ao deus Hermes na mitologia grega – o que na cultura
baiana seria equivalente a Exu, considerado o orixá da comunicação, da
mensagem, aquele que é porta-voz dos deuses aos humanos de modo
semelhante a Hermes – foi atribuída a Hermes a linguagem e a mediação dessa
linguagem, tornando-a compreensível aos humanos.
Desta forma, a função de Hermes seria a de transmutação, de ―[...] transformar
tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência
consiga compreender‖, ou seja, transmutar o enigma em mensagem
compreensível aos homens. E como característica mítica, em Hermes não existe
limitação, não há contradição, bem ou mal. Segundo Sá, nas suas formulações a
partir de autores como Hermann, Hermes é ambíguo, volátil, nega a linearidade e
o estático (SÁ, 2004, p.23).
A formação de professores estudada a partir da hermenêutica fenomenológica,
das afirmações das experiências está relacionada com situações vividas e
interpretadas a partir da linguagem num sentido ontológico de reconhecimento da
formação como fenômeno a ser compreendida. Desta forma, não se estuda a
experiência pura e isolada, deslocada do seu tempo e espaço, já que a
experiência é sempre organizada pelo sujeito que a vivenciou na sua cultura e em
situações organizadas pela linguagem (DUTRA, 2002). O que implica em dizer
que uma pesquisa neste campo de atuação pede o uso de métodos aplicativos
38

não generalizantes, sendo necessário pensar possibilidades e caminhos de uso
das linguagens como compreensão e ensaios de novos fazeres pedagógicos.
Pode-se dizer que a formação de professores ao longo da história passou por
modificações significativas tomando como base o ofício de professor, os
interesses sociais e culturais de cada época. De acordo com Cunha (1989),
estudar o professor e a formação de professores é reconhecer o seu papel e o
conhecimento de sua realidade que poderão favorecer intervenções no seu
próprio desempenho. Segundo a autora, há um consenso entre pensadores
brasileiros que nos leva a perceber aspectos fundamentais da formação de
professores, de modo que esta formação não está restrita aos cursos de
habilitação à Licenciatura; ao contrário disso, os estudos recentes sobre formação
revelam que o educador se educa na prática da docência. Este fenômeno é
considerado fundamental para reorientar as pesquisas e ações referentes a esta
área de conhecimento.
A proposta de estudo da formação, conforme percebi nesta pesquisa depende da
concepção que se tem de educação e do papel que o professor desempenha na
sociedade desejada. Dentre os saberes presentes nos estudos atuais sobre
formação de professores encontra-se, além dos saberes específicos, o saber
pedagógico e o saber político-social, como parte integrante da formação docente.
A ênfase em um elemento ou outro é que marca a diferença entre as abordagens
dos diferentes autores sobre formação de professores. (CUNHA, 1989).
É importante salientar, que estudos que colocam o professor historicamente e
socialmente contextualizado, em certa medida, acabam por afirmar que o
desempenho do professor e sua formação têm a ver com suas condições e
experiências de vida; ou seja, há um pressuposto teórico e metodológico entre o
saber e a elaboração deste saber que aponta para a experiência de ser-no-mundo
conforme apontado por Heidegger (2006).
39

Neste sentido, ao longo da história da educação de professores, houve uma
preocupação maior em internalizar o saber do que a conscientização de que o
professor é sujeito histórico produtor e portador de conhecimentos. Essa
internalização dos saberes vem da influência do pensamento positivista que ao
longo da história da educação definiu modelos formativos que favoreceram a ideia
do ―axioma‖ da neutralidade, e, desta forma, foi ignorando as relações que os
sujeitos criam com o conhecimento. (CUNHA, 1989).
De acordo com Gadamer (2008a), formação tem sentido profundo, trata-se de um
existencial que já na antiga tradição mística apresentou-se o termo, segundo o
qual o homem traz em sua alma a imagem de Deus e deve reconstruir em si
mesmo, ou seja, trata-se de um processo formativo da gênese humana. No latim,
o termo equivale a formatio; em inglês, corresponde a form e formation; no
alemão, o conceito é uma derivação do conceito de forma que compete com a
palavra ―Bildung‖ (formação), que tem na sua raiz a ideia de forma, já que ―Bild‖
significa ―imagem‖ (GADAMER, 2008a, p. 46).
O conceito de formação nasce de um processo interior de formulação, mantendo
um ritmo de constante evolução e aperfeiçoamento; ou seja, o conceito de
formação supera, segundo Gadamer, o mero cultivo de aptidões pré-existentes, o
cultivo de aptidões é o desenvolvimento daquilo que já está dado. Ao contrário, ―é
possível apropriar-se totalmente daquilo que e através do que alguém é instruído‖.
Ou seja, tudo que é assimilado integra-se nele, sendo integrado em seu processo
formativo. Não se trata de um meio que perdeu sua função, nada desaparece,
tudo é preservado, conservado, mas não no sentido de acúmulo de conhecimento
e muito menos no sentido de produção de conhecimento com metáfora atrelada
ao modelo fabril. (GADAMER, 2008a, p. 47).
A formação de professores tem sido discutida com preocupações que abarcam,
no ofício de professor, conhecimentos e técnica de ensino, que ajudam, e ao
mesmo tempo surgem no exercício da docência, permitindo novos domínios das
teorias pedagógicas; porém, nem sempre considerando a experiência de vida do
40

professor e aquilo que ele é capaz de realizar articulando a formação na vida com
relações diversas entre os saberes.
Esse aprendizado do professor é construído ao longo da sua vida, e se intensifica
no seu processo de escolarização direcionado à docência, nos cursos de
formação e prática de ensino; um aprendizado que vem da troca de experiência
com outros profissionais de educação, interação com os alunos, estudos nos
cursos de formação e em outras experiências vivenciadas por ele, bem como, no
enfrentamento de problemas da prática cotidiana que resultam em saberes que
compõem a formação de professores (ROMANNOWSKI, 2007). De acordo com
Cunha (1989, p. 35), a vida quotidiana do professor é a ―objetivação dos valores e
conhecimentos do sujeito dentro de uma circunstância‖, a essa contextualização
ou circunstância do tempo e espaço Gadamer chamaria de tradição ou esfera
histórica.
No caso da formação oferecida pela UFBA no município de Tapiramutá, trata-se
de uma experiência de caráter experimental, sendo construído com intenção de
graduar professores em exercício docente na rede municipal, podendo estar
ocupando cargo de dirigentes e coordenadores de Redes municipais de
Educação. O respaldo legal conferido a essa intenção encontra-se no Art. 62 da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), que busca
solucionar o problema da educação básica, melhorando a formação de
professores, exigindo como formação mínima o ensino superior. Para isso, os
centros de ensino superiores e universidades ganharam autonomia na construção
de suas propostas curriculares.
O curso atende segundo a uma demanda específica de formação de professores
e nela tenta adequar princípios de ―contextualização, valorização do profissional
da educação escolar, padrão de qualidade, gestão democrática, valorização da
experiência extra-escolar e vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
práticas sociais‖. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA-UFBA, 2005, p.10).
41

A concepção do curso é de formação em exercício da docência e para isso, o
mesmo conta como eixo norteador do programa a práxis pedagógica, valorizando
a relação espaço-tempo nas reflexões e ações do cotidiano escolar, o trabalho de
cada docente e como o mesmo repercute no processo de formação e produção
de conhecimento desenvolvido na coletividade.
O curso tem duração mínima de três anos e conta com atividades variadas
(GEACs – Grupos de Estudos Acadêmicos, GELIT – Grupo de Estudos em
Literatura, Oficinas Formativas, Palestras, Mini Cursos etc.) e o objeto de estudo
dos professores do/no curso, será o próprio processo formativo,
[...] a educação em seu acontecer cotidiano, nos diversos espaços
da prática social em que se processa traduzido mais
especificamente, na ação docente que confere sentido e
organicidade às diferentes ênfases do trabalho pedagógico, que
constitui na base comum de formação dos profissionais de
educação. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA-UFBA, 2005,
p.10).
A ideia presente na proposta é de um curso de pedagogia ligado, desde seu
início, às propostas tecnológicas da informação e comunicação, contextualizando-
se de forma criativa ao momento histórico contemporâneo vivenciado pela
educação. Deste modo, o processo conta com âncoras como indicadores,
apresentados a seguir na íntegra, conforme a Proposta de Formação de
Professores de Tapiramutá (UFBA, 2005, p.12):
Processos horizontais
A hierarquia e a verticalidade, próprias de uma certa cultura pedagógica, são
incompatíveis com a lógica e as pedagogias introduzidas pelas Tecnologias da
Informação e Comunicação, em virtude do seu funcionamento em rede. Teríamos
o que podemos chamar de profundidade horizontal.
Processos coletivos
Sendo uma dinâmica de rede com a participação de todos, a produção é
coletivizada.
42

Centros instáveis
Os processos têm uma centralidade instável. Conforme essa condição, ora o
professor é o centro, ora o aluno, ora outro ator ou mesmo um elemento físico que
possa ocupar o lugar central de um dado momento pedagógico.
Currículo hipertextual
Os sujeitos do conhecimento podem/devem construir seus percursos de
aprendizagem em exercícios de interação com os outros atores do processo, com
as máquinas e com os mais diversos textos.
Participação efetiva
Todo sujeito, para vivenciar o processo pedagógico, é convocado a participar
na/da rede, sendo impraticável um mero assistir.
Formação permanente e continuada
O movimento acelerado transforma a todo instante as relações que são estabe-
lecidas no espaço/tempo. A contemporaneidade exige um processo contínuo de
tratamento de informações e, simultaneamente, uma relação com a produção
permanente de novos conhecimentos diante de realidades mutantes.
Cooperação
Para o sistema de rede funcionar, os participantes necessariamente são
convocados a cooperar, contribuir com o processo de produção coletiva.
Simultaneidade entre a escrita e a oralidade
As dinâmicas comunicacionais em rede, mesmo com o uso da escrita,
expressam-se com uma alta dimensão de oralidade. Não se entenda aqui como
um puro e simples resgate da oralidade típica do período da pré-escrita, mas o
desenvolvimento de uma oralidade contemporânea.
43

Sincronicidade na aprendizagem
É importante que sejam estabelecidas conexões laterais, e não apenas
seqüenciais; ou seja, a presença de relações e de sentidos simultâneos. Na
verdade, é o espaço sincrônico e o tempo espacializado.
Com base nessas ―âncoras‖, o curso preocupa-se com seu cumprimento desde o
processo seletivo que se inicia com uma oficina formativa, em que se discute os
fundamentos da prática de escrita do memorial para o processo de formação dos
professores 3 , sendo solicitado como critério de seleção a escrita do memorial.
O Projeto de Formação de Professores de Tapiramutá na Bahia, coordenado pela
UFBA, faz opção pelo uso das experiências de professor, entendendo esse
processo como momento de reflexão, de autocrítica e dos instantes de
compreensão, que para a formação revelam um conceito importante que é a
experiência humana como formadora do sujeito professor. A formação que se
constitui por meio das experiências, nos percursos, na vida e em cada instante,
aparece resgatada numa relação que desconhece fronteiras entre o passado e o
futuro, sendo compreendido com o olhar do presente, conforme salienta Larrosa
Bondia (2002). A formação docente, por conseguinte, tem em sua natureza o
sentido existencial, pois considera a vida enquanto espaço de formação humana
e, neste caso, da formação de professores.
3.1 FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EXISTÊNCIA
A perspectiva apresentada neste trabalho é demonstrar o entrelaçamento da
formação acadêmica com a existência humana, sendo estas leituras a partir da
hermenêutica fenomenológica. Investigando sobre existência para Heidegger e
Dilthey, só o homem existe, já que, apenas ele pode compreender a sua realidade
3 No vestibular da UFBA/2010.1 no município de Tapiramutá, participei da equipe de trabalho do
processo seletivo dos professores, juntamente com os colegas: Ana Paula Moreira, Luiza Seixas,
Maisa, Helmut Schwarzelmuller. Nesta oficina, tive contato com muitos dos professores que
posteriormente fizeram parte do trabalho de campo que realizei no programa, e que,
consequentemente, foram os atores desta pesquisa de mestrado.
44

e o mundo que o cerca. A ideia de ―existência‖ presa ao homem é alvo de
inúmeras críticas aos filósofos da existência, na medida em que os mesmos
apontam que a existência constitui-se na maneira de ser que caracteriza o próprio
homem na sua errância. De acordo com Macedo (2010), inspirado em Heidegger,
―reside aí a sua essência, o ser-aí, na sua concretude (Dasein). Assim, é
necessário existir para descobrir a existência. Como no caso da formação a
existência não se explica, se compreende‖. (MACEDO, 2010, p. 157).
Da perspectiva existencial e de acordo com Macedo (2010), a experiência
formadora, com vista a partir da hermenêutica designada por Gadamer, tratar-se
de um processo em que a pessoa elabora um sentido para atribuí-lo aos seus
vividos e às suas experiências de vida. Neste contexto, a formação constitui-se
naturalmente existencial, por se tratar de construção de sentido, de uma
construção do próprio sujeito ―demandando aí uma presença interpretativa do Ser,
portanto uma compreensão significativa diante de um mundo que informa, a
hermenêutica e sua possibilidade de qualificar a formação nutre a prática
formativa‖ (MACEDO, 2010, p.61).
A leitura da hermenêutica na formação de professores como ação e ato
interpretativo vem a partir de quem intenciona mediar a formação de quem se
forma na sua condição de existir, visto que a presença determinante de ser e
estar no mundo abrange a ideia de percurso, errância e busca pessoal do sujeito.
De acordo com Macedo (2010), o fenômeno da formação, no seu acontecer, se
dá com o Ser existindo em formação, refletindo e narrando sobre a sua formação
e o ―estar formado‖ (MACEDO, 2010, p. 32). E de acordo com o autor,
Podemos ir mais adiante, ao dizer com Heidegger que o ser-como-outro,
o ser-com-o-mundo, não significa necessariamente
pensarmos na presença absoluta do outro, essa coexistência já é
uma estrutura essencial, ou seja, o ser-com é a nossa existência
se apresentando enquanto tal, se formando enquanto tal.
(MACEDO, 2010, p. 159).
45

No entanto, o autor argumenta que é preciso reivindicar uma perspectiva
sócioexistencial para a formação criticando o tecnicismo histórico; e Bernard
Honoré (apud MACEDO, 2010, p. 28) argumenta que ―grande parte das ações em
formação são quase que exclusivamente centradas nas técnicas e sua cultura‖,
ou seja, técnica e cultura emergem como base direcionando para a tecnologia
que se espera, ―sem reflexão relacionais, maior eficiência‖ e a ―separação entre
formação pessoal e profissional continua predominando‖ (HONORÉ apud
MACEDO, 2010,p. 28). Desta maneira, a formação, ainda hoje, tem seu sentido
reduzido à ideia ―mecânica e a organização curricular, assim como sobre a
eficiência didática, e acabam ficando apenas aí, no modelo didático-curricular
mais adequado‖ (MACEDO, 2010, p. 29).
A formação com sentido existencial caminha na direção da complexidade e não
da simplificação dos indicadores descontextualizados e sem relação com as
histórias de vidas dos sujeitos em formação, já que de acordo com Pineau (2000
apud MACEDO, 2010, p.31), a ideia de formação parte de duas semânticas
principais: ―criar, constituir, compor, conceber por integração, totalização,
conjunção com sentido‖ e é essa conjunção que dá todo sentido existencial à
formação, se impondo como questão vital e não apenas técnica, e enquanto
função essencial exercida de forma permanente.
Nesta perspectiva, Macedo (2002), inspirado em formulações de Edgar Morin,
Jacques Ardoino e Paulo Freire, chama atenção para a formação com uma
fundamentação sobre a criação de uma consciência da incompletude ontológica,
sendo entendida a partir da expressão alemã Bildung, ―sempre transversalizada
por pautas políticas, éticas, estéticas e que implicam no exercício da cidadania.‖
(MACEDO, 2002, p. 117). Deste modo, trata-se de um fenômeno complexo e de
grande densidade existencial a ser compreendido.
De acordo com Honoré (apud MACEDO, 2010, p. 31), ―a compreensão é uma
modalidade fundamental da atividade humana em via de realização. Ela é a
manifestação ativa de nossa existência formativa‖. Desta maneira, sobre o termo
46

formação repousa a incerteza, a indeterminação do ser no mundo que conforme
Sá (2010) se apresenta em seu acontecer na ―itinerância e na errância‖ e desta
forma, na formação com o sentido da existência está imbricada o conceito de
coexistência, já que não fazemos esse percurso de formação sozinhos, mas,
sempre na companhia de outros entes, tomando o próprio mundo como ente,
conforme nos apresenta Heidegger (HEIDEGGER apud STEIN, 2005); ou seja, o
ato de existir é um ato eminentemente individual e ao mesmo tempo social, é
singular e plural, é dialógico em sua natureza exigindo aproximação com outros
horizontes (GADAMER, 2008a).
Pode ser, portanto, considerado singular, pois nele está presente a
individualidade, compreensão de cada sujeito em sua estrutura e finitude. Ao
mesmo tempo, é um ato social, coletivo, pois nesse processo como o andarilho do
jogo de Tarot, realiza-se uma viagem com um percurso que a priori não está
estabelecido, nem predestinado a um fim específico e rígido. Esta ―errância‖ é
impregnada de elementos próprios das relações que este ser estabelece com
outros seres e com as coisas (ABBAGNANO, 2006).
Nesta construção de si mesmo, a complexidade encontra-se vinculada à
existência humana, e ao procurar compreender a formação de professores, como
também, em que medida a experiência de vida em sua existência é importante
para a formação de docente, busco essa compreensão a partir da hermenêutica.
Essa arte de interpretar, que com passar do tempo adquiriu um significado amplo,
no âmbito filosófico, sob diversas formas de teoria da interpretação, dentre elas, o
existencialismo, a fenomenologia e a própria hermenêutica. Os filósofos que
pertencem a esta linha de pensamento se ocupam da existência humana,
consideram essa existência não do ponto de vista da observação, da percepção
ou do ponto de vista biológico da presença do sujeito, mas da reflexão filosófica
no sentido da compreensão de mundo, e neste campo da formação como
existencial. Sendo, deste modo, o homem considerado não somente enquanto
organismo biológico vivo.
47

Neste sentido, Abbagnano (2006) aponta para a ideia de que existir é um ato
divino e existencial: é interrogar-se e ao mesmo tempo, interrogar sobre o mundo
em volta, num exercício fundamental que dá sentido à vida e à formação humana;
e, nesse caso, à formação de professores. De acordo com Bachelard, o homem
em seu processo formativo exerce uma faculdade que lhe é própria: a de dar
sentido ao mundo. E a partir do seu imaginário, ele cria e recria a vida, a religião,
as filosofias, teorias etc., cria o universo a partir de símbolos e significados num
plano imaginário atribuindo significados. (BACHELARD apud PITTA, 2005). Na
visão de Pitta,
O ser humano, assim constituído, atribui significados que vão bem
além da funcionalidade dos atos ou objetos. (...) Aquilo que
poderia parecer absolutamente natural (árvore, água, fogo...), é
transformado pelas diversas culturas para adquirir significado
(PITTA, 2005, p. 13).
As formulações da autora me levam a perceber que formamos junto ao nosso
contexto, compreendendo, indagando e elaborando e formulando compreensões
sobre o mundo e suas tradições conforme Gadamer (2007, 2008a) chama
atenção. Para Pitta, o imaginário é um ato criativo e propulsor da criação que
impulsiona ser (no plano individual e coletivo) completo (corpo, alma, sentimentos,
sensibilidade, emoção...), isso é a raiz de tudo que existe para o homem. (PITTA,
2005).
Essa construção, e sentido dado ao mundo pelo homem, passa pelo exercício da
compreensão que nas palavras de Galeffi, trata-se ―da própria possibilidade do
sentido-sendo – o acontecimento do sentido‖ (GALEFFI, 2001, p. 247). A
compreensão aponta para o modo de ser mundo e pressupõe um modo de ser
próprio ao homem como condição das capacidades interpretativas e formativas.
Neste caminho desenhado por Galeffi, sobre compreensão, o autor apresenta
algumas proposições acerca desse termo e o sentido de ser-no-mundo-com.
Assim, o autor nos diz, em primeiro plano, que ―compreender é sempre prévio:
pois é sempre a possibilidade humana de ser aquilo mesmo que se forma a partir
48

do seu âmbito‖. Em segundo lugar, que ―a compreensão é sempre referente ao
ser-no-mundo-com‖, ou seja, não há compreensão fora de quem compreende. E
uma terceira proposição é que a ―compreensão é sempre produtora de
interpretação‖, haja vista que interpretamos porque compreendemos. É a
compreensão que possibilita a interpretação. (GALEFFI, 2001, p. 248).
Desta forma, o autor coloca a compreensão no plano de ser-no-mundo-com e
discorre sobre a mesma em sentido ontológico. No compreender e interpretar,
neste contexto de preocupações, cabe um sentido mais do que intelectual, pois
atrelado a ambos aparecem ―indicativos existenciais‖ como: ―posição, visão e
concepção prévia‖ (GALEFFI, 2001, p. 254), que seria a pré-compreensão, ou
compreensão antecipada, que se insere de maneira histórica e social na
construção dos sujeitos a partir da linguagem.
Neste contexto de preocupações, Morin (2002) apresenta um panorama sobre
algumas das lacunas deixadas por este modelo de ensino centrado na formação
apenas técnica. De acordo com o autor, um dos primeiros prejuízos históricos foi
a ideia da ―super especialização‖, em que os saberes foram fragmentados para
―facilitar‖ o domínio de unidades menores. Esse modelo é reflexo de um modelo
econômico de divisão de trabalho que, no contexto educativo, teve impactos
preocupantes no sentido da perda da noção mais abrangente, mais panorâmica
do conhecimento como um todo, instaurando-se aí a lógica do não diálogo entre
campos de conhecimento.
Neste sentido, Morin (2003) critica a escola dizendo que ao contrário de integrar a
realidade ao seu contexto e aos processos formativos
na escola primária nos ensinam a isolar objetos (de seu
ambiente), a separar disciplina (em vez de reconhecer suas
correlações), a dissociar os problemas ao invés de reunir e
integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a
separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a
eliminar tudo que causa desordens ou contradições em nosso
entendimento. (MORIN, 2003, p. 15)
49

A compreensão, num plano de ser-no-mundo, num sentido ontológico, realiza-se
no vivenciar dos múltiplos contextos, em diferentes linguagens e na convivência
com a subjetividade humana a partir de diálogos e da aproximação com novos
territórios de ―entre-lugares‖, de ―inter-contextos‖ e de ―inter-textos‖, valorizando a
singularidades de construção. (SERPA, 2003).
De acordo com Serpa (2003, p.1), essa construção envolve como aprendizagem,
um processo de co-existência humana quando diz que,
Devo reconhecer que me realizo, não só vivendo a tensão lúdica
dos meus acontecimentos, mas também com a convivência da
mesma tensão em todos e em cada um ser humano em seus
acontecimentos. (SERPA, 2003, p. 1).
Essas declarações apontam para o sentido atribuído à atividade docente, por
Nóvoa (1992a, 1992b, 2002), que se caracteriza pela complexidade. Desta forma,
agora resta apenas deixar que as palavras, com seu caráter dialógico e seu
desdobramento, revelem as dimensões presentes nas concepções de mundo de
cada docente, favorecendo a compreensão de que os interpreta/compreende.
A formação no sentido existencial, portanto, na sua estrutura e nas dinâmicas
presentes do ato de compreender, encontra-se ―indissociável em relação à
produção de sentidos, abre o caminho do sentido. Esse sentido vai abrindo o seu
próprio caminho, perspectiva fundante para a autonomização vivida nos
processos formativos” (MACEDO, 2010, p. 33). Na perspectiva existencial a
formação apresenta seu caráter sócioexistêncial que implica necessariamente na
experiência compartilhada em que o sujeito formando constrói sua formação da
perspectiva ―do Ser do homem, historicamente apropriada como um estar-no-
mundo-compreendendo‖ (MACEDO, 2010, p. 38) e por este motivo formação não
pode ser confundida como uma simples meta educacional.
50

Estas proposições acerca da formação existencial, numa perspectiva
sócioexistencial, apontam para um aspecto importante da construção do
conhecimento em que o mesmo se constitui de maneira existencial e social visto
ser ele um fruto da criação, reflexão e especulação humana ampliando-se a ideia
de conhecimento na perspectiva hermenêutica fenomenológica.
Na principal obra escrita por Gadamer (2008a), Verdade e Método, o filósofo
explora o debate em torno da formação na existência de ser, utilizando como
eixos estruturantes de sua teoria três esferas presentes na experiência
hermenêutica fenomenológica. Nesta filosofia, os traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica são apresentados juntamente com a sua teoria cuja ideia
central é o sentido de pertença e valorização de uma determinada tradição. A
hemenêutica gadameriana coloca em evidência o fenômeno da compreensão
diante da pretensa universalidade científica. Para isso, Gadamer aponta para o
diálogo como atributo natural do ser humano (GADAMER, 2008b).
O diálogo neste sentido ontológico e existencial do plano hermenêutico só é
possível graças a linguagem, dimensão inerente ao ser humano. Essa relação
dialógica é um processo pertencente às relações humanas em seu estado de
compreensão. Com essa visão, Gadamer apresenta um fundamento teórico
importante sobre a determinação ontológica que nada mais é do que o
predomínio do modelo de conhecimento das ciências da natureza que acaba
desacreditando de todas as possibilidades do conhecimento que se encontram
fora dessa nova lógica de pensamento (GADAMER, 2008).
A questão central desta compreensão está em negar a interpretação/
compreensão no plano da universalidade, já que isso implicaria no
―distanciamento da particularidade da aceitação que deixa de lado a
correspondência com a própria expectativa ou à própria preferência‖ (GADAMER,
2008a, p. 134). A filosofia de Gadamer, portanto, revela o que é próprio do ser
humano e que só se efetiva, quando algo fica em nós. Um diálogo só se torna
verdadeiramente diálogo, quando algo do outro vem ao encontro da nossa
51

experiência (GADAMER, 2008a). É com esta reflexão em torno do diálogo que
Gadamer justifica sua filosofia hermenêutica.
Nesta direção, o sentido de diálogo, proposto por Gadamer, vem com intenção
profunda ao ser humano, procurando expressar a riqueza resultante da relação
entre as pessoas. Trata-se de uma relação em que não deve haver sobreposição
de ideias entre interlocutores e a relação contribui com a individualidade,
singularidade, a partir das histórias de vida, dos percursos de formação de cada
um num movimento de aprendizado intercambiado.
A hermenêutica gadameriana, nesse sentido, oferece grandes contribuições para
formação de professores, apesar da intenção do filósofo ter sido para formação
num sentido humano e não voltado para a docência. Sua contribuição, nesta
pesquisa, está exatamente pela associação que faço entre a formação de
professores – como percurso de ser professor na própria vida – com toda gama
de relações pedagógicas, sociais e filosóficas numa perspectiva dialógica de ser.
Nestas relações, a experiência produzida favorece o surgimento de novos
horizontes construtores de infinitos saberes (CRUZ, 2010).
52

4. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SABERES DOCENTES
53
Sou uma filha da natureza:
quero pegar, sentir, tocar, ser.
E tudo isso já faz parte de um todo,
de um mistério.
Sou uma só... Sou um ser.
E deixo que você seja. Isso lhe assusta?
Creio que sim. Mas vale a pena.
Mesmo que doa. Dói só no começo.
Clarice Lispector
Alguns pesquisadores consideram os anos de 1990 como a ―década da formação
docente‖, já que, nesse período, surgiram novas propostas sobre formação com a
preocupação de rever a relação entre teoria e prática. A partir dessas discussões,
a prática passou a assumir uma nova concepção: não mais como aplicação da
teoria, mas de espaço de formação de onde emergem temas de discussão sobre
a relação entre ensino e pesquisa, a realidade pedagógica, estudos sobre a
formação prática do professor, a complexidade da função docente e as
preocupações com a formação durante o exercício da profissão.
Uma das principais questões ligadas à formação de professores, de acordo com
Candau (1997, p. 55), é a ideia de escola como locus de formação de
professores, pois no dia-a-dia da escola o professor desenvolve e aprimora sua
prática pedagógica, e essa afirmação é fundamental na busca de novas
perspectivas na área de formação de professores no Brasil. Para que esse
caminho se abra, porém, é preciso construir uma prática reflexiva identificando
problemas e construindo a própria formação e o sentido de ser professor.
A partir disso, a valorização dos chamados saberes docentes vem provocando
inúmeras discussões no âmbito pedagógico nos últimos anos e, de acordo com
Candau (1997, p.59), essas discussões buscam responder questões como por
exemplo: ―que saber possuem os professores?‖, ―são esses profissionais,

simplesmente canais de transmissão e socialização de saberes produzidos por
outros profissionais?‖, ―Constroem eles algum(ns) saber(es) específico(s)?‖, ―Que
tipo de relação esses saberes têm com as chamadas ciências da educação?‖ e
eu acrescento: a natureza dos saberes docente é existencial?
Segundo Candau (1997), os saberes docentes se organizam em três esferas: os
saberes da experiência, os saberes pedagógicos e os específicos. Já Tardif
(2002) adota outra nomenclatura: saberes curriculares, saberes profissionais e os
saberes da experiência. No caso dos saberes da experiência, pode-se dizer que
eles abrem espaço para o reconhecimento e valorização da formação no
exercício da docência, tomando a escola como espaço vital e lócus da formação,
conforme apresenta Cunha (1989). Os processos de ensino e aprendizagem
conferem ao professor relações com o conhecimento que são altamente
complexas: o conhecimento que deseja construir na sua carreira e o
conhecimento que se propõe construir com seu aluno, o conhecimento negado a
este aluno, intencionalmente ou não.
Os saberes da experiência são os conhecimentos que se constroem durante a
prática docente, resultantes das relações que se constroem no próprio fazer. ―São
saberes que brotam da experiência e são por ela validadas. Incorporam-se à
vivência individual e coletiva sob forma de habitus e de habilidades, de saber
fazer e saber ser‖ (CANDAU, 1997).
Estes saberes são construídos ao longo da vida pelo professor na convivência
com a família, nos anos escolares, nos diferentes sistemas de ensino, no
ambiente da vida cotidiana, nos livros, com os colegas de profissão, na sua
própria sala de aula. Constitui-se, neste percurso formativo, a história de vida do
professor, a formação docente e a práxis, sua existência enquanto sujeito,
constituindo-se a formação. Sobre experiência, de acordo com Dominicé é
preciso:
devolver a experiência ao lugar que merece na aprendizagem dos
conhecimentos necessários à existência (pessoal, social e
54

profissional) na certeza de que este processo passa pela
constatação de que o sujeito constrói o seu saber ativamente ao
longo do seu percurso de vida. Ninguém se contenta em receber o
saber como se ele fosse trazido de exterior pelos que detêm os
seus segredos formais. A noção de experiência mobiliza uma
pedagogia interativa e dialógica (DOMINICÉ apud CANDAU,
1997, p.64).
De acordo com este conceito de experiência trazido pelo autor, a formação não
pode ser concedida como meio de acúmulo de cursos, palestras, seminários, de
conhecimentos ou de técnicas; antes, trata-se de reflexão crítica sobre as práticas
e de (re)construção permanente da identidade pessoal e profissional interagindo
mutuamente (CANDAU, 1997).
Na formação de professores em exercício, a exemplo disso, é possível dizer que
se trata da concretização da ação docente no cotidiano da sala de aula, o foco
especial na práxis. Uma concretização da intencionalidade educacional que se
contextualiza historicamente como atividade de natureza complexa, tensiva e
contraditória, que caracterizam as relações sociais/educacionais contemporâneas,
já que de acordo com Fagundes e Burnham (2001, p.44),
Os saberes não são constituídos apenas por conteúdos
disciplinares, por estas áreas passam concomitantemente
relações sociais, expressões estéticas, emocionais e afetivas,
além do biológico, do econômico, que refletem as condições
sócio-histórico-culturais dos indivíduos e grupos sociais. Nesse
processo cruzam-se perspectivas simbólicas, culturais, éticas,
estéticas, políticas, pragmáticas, entre outras, que não estão
sujeitas a fundamentos lógicos e metodológicos dos esquemas
disciplinares. (FAGUNDES e BURNHAM, 2001, p. 44).
Desta maneira as compreensões de mundo marcam as intervenções diárias, nas
relações com os alunos, na ética profissional, na política, compondo a
singularidade de suas ações em consonância com sujeitos que continuarão
construindo suas compreensões em rede com outros horizontes. E um dos
processos formativos que caminha nesta direção são aqueles que valorizam as
histórias de vida de professores. Os estudos com histórias de vida constituem um
55

processo importante na formação de professores, haja vista que, segundo Nóvoa
(1992a), esta prática procura conjugar os diversos olhares disciplinares numa
construção de compreensão multifacetada, produzindo conhecimento na
encruzilhada de vários saberes e dando sentido à experiência de vida que se
relaciona com o processo de formação.
Neste sentido de acordo com Oliveira (2010), ―na formação em exercício, os
professores tornam-se eles mesmos; não serão transformados em outros, em
sujeitos ideais. O tornar-se o que se é, é, pois, um processo eminentemente
revolucionário‖. A complexidade da formação de professores, neste contexto,
torna-se visível no fazer pedagógico, que de igual modo, é complexo, já que
envolve múltiplas referências de mundo. Suas ―múltiplas raízes: culturais, morais,
familiares, étnicas, ideológicas, religiosas... Sua vida é a totalidade dessas
múltiplas raízes que se entrecruzam, determinando a sua história‖ (OLIVEIRA,
2010, p. 92).
De acordo com Nóvoa (2002), a formação de professores não é um processo
individual, mas sim as relações do ―professor com todas as dimensões coletivas,
profissionais e organizacionais‖. Apesar do foco do autor ser para a formação
contínua, alguns desses conceitos servem de base para pensar a formação de
professores de um modo geral. A partir disso, o autor apresenta uma trilogia da
formação, três eixos estratégicos:
- A pessoa e sua experiência;
- A profissão e os seus saberes;
- A escola e seus projetos.
No primeiro eixo, ―a pessoa e sua experiência”, o autor salienta que ―formar‖ é
também ―formar-se‖ e isso implica em pensar a atividade docente como
apropriação dos processos de formação dando um sentido no quadro das suas
histórias de vida (NÓVOA, 2002). Para o autor,
56

A formação não se constrói por acúmulo (de cursos, de
conhecimento ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de
reflexividade crítica sobre as práticas e de (re) construção
permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante
investir e dar um estatuto ao saber da experiência. O processo de
formação está dependente de percursos educativos (...). A
formação vai e vem, avança e recua, construindo-se num
processo de relação ao saber e ao conhecimento que se encontra
no cerne da identidade pessoal. (NÓVOA, 2002, p. 57)
Trata-se de uma atenção especial ―à vida de professor‖ com suas experiências
cotidianas que merecem um lugar especial nos estudos sobre formação.
Para tratar da experiência, o pensamento de Gadamer caminha na direção do que
ele mesmo chama de ciências do espírito. Aprendemos continuamente coisas
novas da tradição, das relações humanas na relação dialógica com disposição
para a experiência, o saber, a abertura, esse desejo de verdade que vem
naturalmente ao nosso encontro pela tradição na qual estamos mergulhados. A
escolha das formulações gadamerianas para referenciar este estudo recaiu entre
outras razões, pela consideração de que o ato de formar-se, encontra-se na
existência de ser e, portanto, torna-se indissociável da ―produção de sentidos‖,
quando se refere às experiências vivenciadas pelo professor.
No segundo eixo, ―a profissão e os seus saberes‖, a formação docente é
considerada por Nóvoa (2002) como importante espaço de ruptura e
desenvolvimento profissional. Desta maneira, falar de formação é falar de
autonomia contextualizada da profissão de professor, em que no processo há
uma apropriação dos próprios saberes dos quais os professores são portadores.
No último eixo, “a escola e seus projetos‖, Nóvoa (2002) aponta que as mudanças
educacionais dependem dos professores e de sua formação e mais precisamente
da sua práxis em sala de aula. O desafio consiste em perceber a escola como um
ambiente educativo, onde trabalhar e formar não sejam atividades distintas. Ou
seja, a escola deve ser um contexto institucional estimulante para alunos e
57

professores, articulando a investigação e a qualificação docente com os projetos
educativos da escola.
Essa concepção de Nóvoa (2002) nos leva a perceber que a formação é um
terreno habitado por sujeitos individuais, mas que no seu processo de
aprendizagem precisa do coletivo, o que se constitui num processo de construção
humana e social, em que a aprendizagem de professores torna-se um ato
solidário de cooperação e troca de saberes e visões de mundo.
Assim, sem querer reduzir a condição humana a ―psicologismos‖, mas, apresentar
possibilidades de diálogos na formação a partir da existência, os estudos de
Josso (1992) me inspiram, visto que, para a autora, há um aspecto da formação
de professores que não pode ser negado quando apresenta, como possibilidade
de estratégia de formação, os registros de professor; principalmente porque em
grande parte deles vem à tona exatamente o saber da experiência, o imaginário,
as crenças e uma série de questões epistêmicas como campo aberto a ser
estudado, compreendendo que irão alavancar novas dimensões sobre o
conhecimento do professor e suas relações com o saber. Segundo a autora,
A história de vida narrada é, assim, uma mediação do
conhecimento de si na sua existencialidade que oferece, para a
reflexão do seu autor, oportunidades de tomada de consciência
dos vários registros de expressão e de representação de si, assim
como sobre as dinâmicas que orientam a sua formação (JOSSO,
1992, p.19).
Deste ponto de vista, a formação docente é compreendida como ação de grande
abrangência que remete a conhecimentos da realidade e dos espaços por onde
transita o professor. E nesta instância, a formação do profissional de educação
deve contemplar elementos da subjetividade presentes na sua experiência de
vida. Como abertura, a compreensão aponta para todo o ser-no-mundo.
Compreender o mundo é compreender, portanto, a própria existência.
58

Poderia estabelecer aqui uma correspondência com o sentido existencial do ―ser-
no-mundo‖ apontado por Heidegger (1987) e Gadamer (2008a) cujas formulações
levam a compreender o ser a partir do revelar-se no mundo, do ―acontecer‖,
daquilo que vem a mostra, sem esquecer-se do percurso ou desenho que foi
vivenciado pelo sujeito aprendente. Nesse sentido, o trabalho com narrações das
experiências, por parte do sujeito aprendente, pode-se constituir num oportuno
campo de interesse da formação de professores, visto que este abarca uma série
de dimensões, questões imaginárias, suas crenças e reflexões sobre o próprio
fazer pedagógico. (JOSSO, 1994).
A concepção de experiência apresentada por Josso (1994) encontra-se próxima
daquela apresentada por Dutra (2002). Para este autor,
Tal forma de considerar a experiência coloca a linguagem num
lugar privilegiado dentro da Fenomenologia, pois através da
palavra pode-se abordar ou encontrar a experiência, a existência,
o ser-aí, o ser-com. A linguagem, trazendo o sentimento à tona,
revela também a situação, ou o contexto situacional, já que todos
estão relacionados entre si. (DUTRA, 2002, p. 372).
É neste sentido que vida/formação de professores é pensada no plano existencial,
propondo uma epistemologia da formação, visto que a docência está na vida do
professor, e juntas, revelam a formação no sentido da itinerância/errância. Essa
maneira de compreender a formação de professores valoriza a atividade de quem
aprende. Do contrário, a meu ver, a educação deixa de ser formadora quando não
há essa valorização do percurso existencial do formando. A formação, a partir
desse olhar, escapa da rigorosidade de termos como objetividade e verdade, já
que a exigência da verdade permanece fora do alcance, quando se pensa a
formação preocupando-se com o sujeito da aprendizagem, evocando suas
múltiplas referências.
A formação de professores, nesse sentido existencial, coloca em evidência a
aprendizagem que acontece na vida do professor. A formação é um assunto do
sujeito, pois nele está a compreensão dos saberes da sua profissão e do sentido
de formar-se. Formar está na experiência pessoal do sujeito na sua singularidade
59

que se torna um ponto decisivo para que se construa uma epistemologia da
formação.
Os estudos de Tardif (2002) apontam características de análise do saber do
professor que são de grande importância. Dentre elas, está a diversidade, a
temporalidade, a experiência, o conhecimento humano na formação docente. O
saber do professor, segundo este autor, pode ser sintetizado da seguinte forma:
saberes pessoais, os da escolarização, os da formação profissional, os
provenientes dos livros didáticos e dos programas de ensino, os da própria
experiência no trabalho. Estes saberes descritos por Tardif (2002) estão na vida
do professor e são singulares na medida em que cada professor constrói seu
percurso formativo na ―fusão de horizontes‖ (GADAMER, 2008a) com outros
professores e com ele mesmo a cada instante em que se renova o conhecimento
nas projeções na existência de cada um.
Ao tratar da abrangência dos saberes que formam os docentes, Tardif (2002)
realça a ideia de que saberes e prática docente servem de base para o ensino, e
tais como são vistos pelos professores, não se limitam a conteúdos bem
circunscritos que dependem de um conhecimento especializado. Ao contrário, a
formação do professor abrange grande diversidade de objetos, questões,
problemas que estão relacionados ao trabalho docente. Ou seja, ser professor
está relacionado à sua experiência de vida pessoal.
É válido salientar que essa proposta de formação que agrega as experiências do
professor é uma possibilidade, mas não é uma realidade presente nos cursos de
Pedagogia e de outras licenciaturas. De um modo geral, de acordo com Macedo
(2002), as propostas formativas em sua maioria, ainda são centradas na
fragmentação e na super especialização que trouxe, segundo o autor, sérias
consequências ao processo de ensino e aprendizagem. Assim, Macedo nos diz
que,
As barbáries da ciência moderna viajaram nas asas da
necessidade nomotética de a tudo explicar sem querer ver, sentir,
60

falar, tocar, acreditando num certo tipo de unicidade do
conhecimento e seu poder de resolver problemáticas pensadas de
forma universalizantes; é preciso que se alerte quanto a este fato
histórico que, acima de tudo, forjou, pela imposição explicativa,
consciências colonizantes e colonizadas. (MACEDO, 2002, p.
113-114).
De acordo com Tardif (2002) os chamados saberes da experiência nascem em
decorrência da prática ou exercício da docência. Nesta perspectiva, o autor afirma
que:
Os saberes dos professores são plural, compósito, heterogêneo,
porque envolve no exercício do trabalho, conhecimentos e um
saber fazer bastante diversos, proveniente de fontes variadas e
provavelmente de natureza diferente. (TARDIF, 2002, p.18).
Esta afirmação abre precedente importante dentro da compreensão aqui
apresentada sobre o não-reducionismo, já que os saberes da experiência surgem
a partir da articulação, organização e reorganização dos demais saberes,
podendo interpretar esta formulação como conexões que o professor estabelece
na composição da própria formação.
Acredito que a grande contribuição do autor revela-se na diversidade de sua
elaboração em relação aos demais saberes constituintes do saber docente, e que
esses saberes não são completamente subjetivos, nem puramente objetivos, mas
são as duas coisas ao mesmo tempo. Outra especulação a ser feita sobre o
trabalho de Tardif (2002), é se este saber da experiência, resultante de outros
saberes construídos ao longo da vida do professor, seria uma síntese, um todo
formativo, e, sobre qual concepção: como soma das partes ou relações em
diferentes níveis de realidade.
É, neste contexto de preocupações, que Tardif (2002) aprofunda a análise das
características dos saberes docentes, apresentando uma proposta para o estudo
da epistemologia da prática profissional onde são considerados "os saberes
utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para
61

desempenhar todas as suas tarefas" (TARDIF, 2002, p. 15). Nesta postura
apresentada pelo autor, percebo um traço marcante do positivismo, quando utiliza
o termo ―realmente‖ dando a ideia de que alguns saberes são utilizados e outros
não; ou seja, alguns são mais úteis ou importantes do que outros, quando quem
deve determinar a importância e o lugar de cada saber em sua vida e formação é
o próprio professor ou sujeito formando.
Larrosa Bondia (2002, 2009) vem conferir outros significados e sentidos para a
palavra experiência, a qual estaria associada à sua qualidade existencial: sua
relação com a existência, com a vida no sentido singular e concreto de um ser
existente singular e concreto. Desta forma, Larrosa evidencia que,
A experiência e o saber que dela (vida) deriva são o que nos
permite apropriar-nos de nossa própria vida. Se chamamos
existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que
não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum
destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum
fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai
construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a
existência (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 28).
A experiência, nessa perspectiva existencial, vem se integrar à concepção de
formação, agregando elementos às formulações de Gadamer (2008) e Sá (2010).
A experiência para Larrosa é aquilo que nos passa, nos toca, aquilo que se passa
conosco.
[A experiência] é o que nos passa e o modo como nos colocamos
em jogo, nós mesmos, no que se passa conosco. A experiência é
um passo, uma passagem. Contém o ‗ex‘ do exterior, do exílio, do
estranho, do êxtase. Contém também o ‗per‘ de percurso, do
‗passar através‘, da viagem, de uma viagem na qual o sujeito da
experiência se prova e se ensaia a si mesmo. E não sem risco: no
experiri está o periri, o periculum, o perigo. Por isso a trama do
relato de formação é uma aventura -que não está normalizada por
nenhum objetivo predeterminado, por nenhuma meta. (LARROSA,
2009, p. 66-67).
Esta concepção de experiência apresentado por Larrosa, demonstra que o Ser,
como sujeito em formação, encontra-se numa realidade e formação existencial
62

em que a experiência vivida é própria dele, estando o mesmo implicado no seu
processo formativo nas impressões, nos questionamentos e nas compreensões
de um modo geral.
4.1 NOTAS SOBRE MULTIREFERENCIALIDADE
Abordagem plenamente criada a partir do pensamento da complexidade, a
abordagem multirreferencial propõe-se a realização de leitura plural sobre os seus
objetos de estudos, sejam eles teóricos ou práticos, sob diferentes pontos de
vista, não reduzindo uns aos outros, mas preservando sempre a heterogeneidade
de cada ponto de vista, acontecimentos e ideias.
No campo das ciências humanas, a formação acontece na medida em que os
sujeitos interagem, realizam projetos e ações em conjunto. A proximidade ou
vínculo social, neste processo, é natural da formação humana na busca pela
construção de ideias; e qualquer que seja a ação, neste sentido, é importante
compreender-se como co-autor e co-participante dos processos de formação de
outros, em que cada sujeito torna-se uma referência, e aquilo que cada sujeito
forma, ou compõe, trata-se de uma ―brincolagem‖ (ARDOINO, 1998, p. 26).
Atualmente, há uma busca por parte dos educadores pela elaboração de
abordagens educativas que integrem a experiência humana, sua compreensão de
mundo numa visão ontológica, considerando diversos conhecimentos, as relações
entre eles – não de forma empilhada, engavetada ou reduzindo uns aos outros –
mas, considerando os diferentes pontos de vista, que implicam em visões de
mundo específicas, com linguagens apropriadas às descrições exigidas, em
função de referências distintas; ou seja, uma formação na heterogeneidade.
(BARBOSA, 1998).
A abordagem multirreferencial agrega exatamente essa preocupação, já que
consiste em valorizar a ―pluralidade de olhares dirigidos a uma realidade e uma
pluralidade de linguagens para traduzir esta mesma realidade e os olhares
63

dirigidos a ela‖ (BURNHAM e FAGUNDES, 2001, p.48), essa concepção permeia
nossa compreensão do que venha significar a relação entre existência e
formação. Já que nas diversas referências ―escritas em linguagens distintas‖
constitui a heterogeneidade, o complexo e, portanto, a compreensão da
abordagem multirreferencial (BURNHAM e FAGUNDES, 2001).
O desafio de assumir uma postura multirreferencial é grande, quando se busca
aproximação de conceitos antagônicos tais como ordem e desordem, certeza e
incerteza..., assim, a realidade pode ser entendida a partir da percepção e
compreensão aberta, interligada, abrangente e flexível, tal qual nos apresenta o
pensamento da complexidade. O diálogo entre os campos, conforme propõe a
multirreferencialidade é um dos grandes desafios que se tem nas relações entre o
professor e o conhecimento, já que se trata de uma abordagem acolhedora de
diferentes possibilidades de saberes, conhecimentos e relações que o sujeito
estabelece entre eles na construção de sua formação. Essa concepção torna a
formação única, apesar de singular, mesmo se construindo na coletividade e na
diversidade.
Esta abordagem foi esboçada por Jacques Ardoino, professor da Universidade de
Vincennes (Paris VIII), juntamente com seu grupo de trabalho, nela, buscou-se
assinalar que o aparecimento da abordagem multirreferencial no âmbito das
ciências humanas, especialmente para educação, está relacionado com o
reconhecimento da complexidade e da heterogeneidade que caracterizam a
prática docente (MARTINS, 2004).
Tal desenho foi efetivamente elaborado, em 1966, especialmente no
―Communications et Relations Humaines [...], no prefácio a La pedagogie
institutionnelle, de Michel Lobrot [...], e na revista Education Nationale [...], de
junho de 1967‖, que foram desenhadas as primeiras ideias a respeito das
situações educativas no plano da complexidade. (ARDOINO apud MARTINS,
2004, p. 87). Desta forma, o autor aponta aspectos próprios da abordagem para a
educação e define que,
64

[...] análise multirreferencial das situações das práticas dos
fenômenos e dos fatos educativos se propõe explicitamente uma
leitura plural de tais objetos, sob diferentes ângulos e em função
de sistemas de referências distintos, os quais não podem reduzirse
uns aos outros. Muito mais que uma posição metodológica,
trata-se de uma decisão epistemológica (ARDOINO, 1995, p. 7
apud MARTINS, 2004, p. 87).
É preciso atentar para a importância do ―corriqueiro‖, do ―comum‖ relacionando o
livro e a vida, com o bar, com os movimentos sociais, com as crenças religiosas
etc. (MAFFESOLI, 2007). Já que a formação de professores não deve ser
desarticulada do cotidiano, do contexto vivido e da existência desse professor.
Neste plano, a tarefa de ensinar é mesmo uma ação complexa que exige um
exercício ―multirreferencial‖. Em que o professor incorpora, neste percurso,
elementos da sua identidade pessoal, profissional, social e a própria experiência
vivida em sala de aula, como no caso de professores em exercício.
Preocupada em discutir o currículo e a formação, articulando as múltiplas
referências que o sujeito constrói, Burnham (1998) chama atenção para o papel
da mediação dos processos formativos, que, de acordo com Macedo (2002),
apresenta reflexões ―ético-político-epistemológica‖ a respeito do saber e o cenário
―político-educativo‖. Desta forma, Burnham nos diz que:
O currículo significa um dos principais processos, na medida em
que aí interage um coletivo de sujeito-aluno e sujeito-professores,
além de outros que não diretamente ligados à relação formal de
ensinar-aprender. Nesta interação, mediada por uma pluralidade
de linguagens-verbais, imagéticas, místicas, rituais, mímicas,
gráficas, musicais, plásticas... de referências de leitura de
mundo... transformam essa realidade num processo multiplamente
cíclico que contém, em si próprio, tanto a face da continuidade
como a da construção do novo. (BURNHAM 1998, p.37).
Essas formulações do currículo consideram as múltiplas referências como
proposta formativa, buscando integrar conhecimentos, saberes diversos e o
65

próprio percurso do formando, como estratégia e elemento formador, demonstram
uma preocupação com o fato de que mesmo linguagens muito diferentes umas
das outras, podem coexistir e se justapõem (ADOIRNO, 1998 apud BARBOSA,
1998), podem conviver e nos ajudam na construção mesmo daquilo que julgamos
como banal, mas, que de uma forma ou outra, tem seu sentido formativo, e é
nesta composição que se revela a formação humana ontológica. No acolhimento
dos diferentes saberes, a formação é percebida como ―teia complexa‖ que forma
o docente, compreendendo que a realidade vivida e convivida pelo professor, nos
espaços educativos e em sua trajetória pessoal, apresenta-se como desafio
existencial que não se desloca da formação acadêmica.
Nos percursos de formação, os professores encontram-se mergulhados em
determinado contexto e busca existencial, em que a formação abarca saberes
diversos, que se misturam com processos sociais, e integram sua subjetividade
individual com as demais subjetividades dos outros sujeitos envolvidos neste
processo de intersubjetividades que parte da complexidade humana presente e
reveladora do ser. Este aspecto apresentado chama a formação e a existência
para um diálogo. Há um campo aberto na formação de professores que suscita
reflexões em torno das compreensões deste ser professor que se constrói e se
projeta na contradição de suas múltiplas faces e possibilidades de ser, fazer e
sentir-se professor.
De acordo com Tardif (2002), quanto à abrangência dos saberes do professor
existem saberes que são construídos nas relações que o professor constrói ao
longo de suas experiências. De acordo com o autor,
A relação dos docentes com os saberes não se reduz a uma
transmissão dos conhecimentos já construídos. Sua prática
integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém
diferentes relações. Pode-se definir o saber docente como um
saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente,
de saberes oriundos da formação profissional e de saberes
disciplinares, curriculares e experienciais. (TARDIF, 2002, p. 36)
66

O saber do professor deve ser compreendido em íntima relação com o trabalho
que desenvolve na escola, sendo lócus de formação conforme Cunha (1989)
salienta e embora os professores utilizem outros espaços e saberes, como aponta
a multirreferencialidade, essa utilização acontece em função do trabalho e na vida
do professor, na sua errância. Ou seja, o saber docente está a serviço do trabalho
e a relação entre professores e saberes estaria mediada pelo trabalho. A solução
de problemas cotidianos o permitiria ao docente acionar suas referências sobre
determinada situação.
Neste sentido Nóvoa (2002), em seus estudos sobre formação de professores,
apresenta cinco teses que ampliam a nossa reflexão sobre a abrangência da
formação docente. São elas:
Primeira Tese – A formação de professores deve alimentar-se de perspectivas
inovadoras, que não utilizem preferencialmente ―formação formal‖, mas que
procurem investir do ponto de vista da educação em situações escolares;
Segunda Tese – A formação deve valorizar as atividades de (auto) formação
participativa mútua, estimulando a emergência de nova cultura profissional dos
professores;
Terceira Tese – A formação deve alicerçar-se numa ―reflexão na prática e sobre a
prática‖, através de dinâmicas de investigação-ação e de investigação-formação,
valorizando os saberes que os professores são portadores;
Quarta Tese – É necessário que todos participem na concepção, realização e
avaliação dos programas de formação consolidando redes de colaboração e
espaços de cooperação institucional;
67

Quinta Tese – A formação deve aproveitar as experiências inovadoras e as redes
de trabalho que já existem no sistema escolar em vez de instaurar novos
dispositivos de controle e enquadramento. (NÓVOA, 2002, p. 63-65).
A partir dessa perspectiva apresentada por Nóvoa, o terreno da formação é
habitado por sujeitos que constroem sua travessia formativa no plano individual e
coletivo, desafiando-se e mobilizando seus saberes e referências de mundo para
o exercício da docência. Essa formação não é um fim, não é um produto final, não
é o acúmulo de experiências vividas ou de anos de docência, mas, trata-se de um
vivenciar e um dialogar da vida do professor com o universo educativo.
Esse diálogo com o mundo inicia-se antes mesmo desses professores fazerem
opção pela docência, visto que eles também foram alunos durante pelo menos 16
anos, e essa experiência também é considerada formadora: leva o futuro docente
a construir suas crenças, representações e certezas sobre a prática do ofício de
professor, bem como a ideia do que é ser bom aluno. (TARDIF, 2002).
Tal processo de construção do sujeito se apresenta no compartilhar de ideias e no
uso de dimensões e faculdades com características próprias que não se
enquadram em categorizações, e muito menos, em um único modelo formativo.
Estes processos formativos englobam múltiplos aspectos do dizível ao indizível, e
a existência se compõe em perspectiva de ―verdades‖ menos rígidas; antes, cabe
a compreensão daquilo que a realidade nos revela como respostas de
aproximação desse real.
Nesta perspectiva, os espaços formativos, de um modo geral, devem oportunizar
uma formação dinâmica que valorize os diversos saberes e crie estratégias para
que o aluno construa caminhos de formação menos homogêneos e massificados,
na busca por uma formação dinâmica e de caráter existencial. Nesse sentido, a
formação de professores em exercício atende a este desafio, pois a mesma se
68

configura na coletividade, na troca e no encontro de horizontes distintos com suas
respectivas referências de mundo.
69

5. CAMINHOS PARA A COMPREENSÃO: GADAMER E AS TRÊS ESFERAS
70
―Chegar a ser o que és! Talvez a arte da
educação não seja outra senão a arte de
fazer com que cada um torne-se em si
mesmo, até a sua própria altura, até o
melhor de suas possibilidades‖
(NIETZSCHE, 2009, p.39)
O filósofo Hans Georg Gadamer nasceu no dia 2 de fevereiro de 1900 e faleceu
no dia 13 de março de 2002, alemão, principal representante da corrente
hermenêutica contemporânea na Alemanha. Foi aluno de Heidegger e por meio
dele, Gadamer inseriu-se num grupo de estudantes que mais adiante se
destacariam intelectualmente, dentre eles a filósofa Hannah Arendt. Algum tempo
depois chegou a ocupar a cadeira de filosofia da Universidade de Heidelberg em
1949 (SILVA JUNIOR, 2005). Em seus estudos Gadamer (2002, 2007, 2008a,
2008b), aprofunda a Hermenêutica de Heidegger (Dasein) e cria sua própria
hermenêutica fenomenológica, apresentando a experiência da arte e da formação
no sentido humano existencial da compreensão.
A perspectiva hermenêutica fenomenológica de Gadamer (2007, 2008a, 2008b),
vai além da autoconsciência metódica e aproxima-se do exercício de
compreensão do conjunto de experiência do ser-no-mundo, do ato de
compreender, em que todo ser interpreta e compreende por meio da linguagem
(GADAMER, 2008a). Na visão dessa hermenêutica fenomenológica de Gadamer,
há preocupação em recuperar a possibilidade de conquista e legitimidade das
ciências humanas, e mais precisamente da singularidade das compreensões de
mundo. O esforço do filósofo, portanto, é em superar o conceito de verdade. Essa
seria a primeira condição existencial, já que pela ―compreensão, o ser humano
elabora o seu destino nos efeitos de suas ações – ele e o mundo são uma coisa
só; mas o mundo dele é sempre um mundo próprio, único, irrepetível‖ (GALEFFI,
2001, p.248).

Para isso, o autor toma, como base para criação da sua hermenêutica, três eixos
que irão sustentar a noção de existência: a esfera estética, a esfera histórica e a
esfera da linguagem. Os conceitos e discussão dessas três esferas propostas por
Gadamer encontram-se espalhados por obras e ensaios do autor, dentre elas
estão: ―O problema da consciência histórica”, “Estética e hermenêutica” 4 , na
coleção Hermenêutica em retrospectiva 5 e sua obra primordial clássica que é
―Verdade e Método I e II” de 1960, na qual nos concentraremos no propósito de
compreender como se articula e se desenvolve a peculiaridade da relação entre
formação e existência.
Para Gadamer (2008a), sua analítica demonstra que a compreensão não
corresponde a um tipo de comportamento subjetivo diante de um objeto,
determinado pela reflexão e abstração. Ao contrário, o ato de compreender é uma
atitude originária de ser-no-mundo que a interpretação/compreensão busca
explicitar. ―A compreensão projeta o ser do Dasein para a sua destinação de
maneira tão originária quanto para a significação, entendida como a mundanidade
de seu mundo particular. [...] Visto que neste exercício o Dasein compreende-se a
si mesmo – sempre se compreendeu e sempre se compreenderá – em função de
suas possibilidades‖ (SILVA JUNIOR, 2005, p.24).
5.1 AS ESFERAS E O SENTIDO EXISTENCIAL
Em toda obra de Gadamer (2008a), o conceito de experiência, enquanto
compreensão é o centro da sua obra que se estrutura interligando as três esferas:
a arte, a história e a linguagem como existencial para a experiência hermenêutica
de compreensão. As três esferas apresentadas por Gadamer (2007, 2008a) são
necessárias ao entendimento do que vem a ser o processo formativo na
perspectiva da hermenêutica fenomenológica, que tem como pressupostos
4
Conferência pronunciada no V Congresso de Estética, realizado em Amsterdã no ano de 1964
(SILVA JUNIOR, 2005, p 18).
5
Trata-se de uma coleção com 10 vol. das obras completas de Gadamer que agora foi publicado
pela Editora Vozes em português, em cinco volumes: Vol. I: Heidegger em retrospectiva; Vol. II: A
virada Hermenêutica; Vol. III: Hermenêutica e a filosofia prática; Vol. IV: A posição da filosofia na
sociedade; Vol. V: Encontros filosóficos.
71

ontológicos a compreensão. Para o filósofo a formação humana é compreendida
a partir da forma, da tradição e da linguagem como compreensão.
Na primeira esfera, Gadamer (2007, 2008a), trabalha o conceito de forma,
imagem e experiência de ser, a partir da relação com o objeto artístico que
precede o próprio exercício crítico do juízo estético. Esta experiência de prazer ou
desprazer é uma das possibilidades do exercício hermenêutico (SILVA JUNIOR,
2005). A esfera estética aponta para a possibilidade de pensar o horizonte de
significação da experiência hermenêutica enquanto compreensão, ou seja, da
abertura, da historicidade, do diálogo e, sobretudo, da finitude dos
acontecimentos.
A dimensão estética, presente no legado filosófico de Gadamer (2007, 2008a,
2008b), significa, antes de tudo, um conjunto de pensamentos que leva à
pergunta central de sua hermenêutica: qual o lugar que a experiência humana
ocupa na formação? De um modo geral, a reflexão sobre a estética na obra do
autor de maneira alguma se reduz a estudos sobre obra de arte, mas da
experiência do Dasein proposto por Heidegger. Trata-se de uma experiência da
finitude de Ser/estar no mundo.
Nos domínios da estética, conforme apresentado na obra fundamental de
Gadamer (2008a), as discussões sobre estética é ponto de partida, e, ao mesmo
tempo, um paradigma sobre a experiência hermenêutica da verdade. Na obra
Verdade e Método I e II, Gadamer dirige-se à consciência estética; aquela cujos
momentos extra-estéticos a incorporam ao mundo e lhe conferem significado. A
consciência estética revela-se diferenciando o que está intencionado (Gemeinte)
esteticamente – o especificamente estético – do conteúdo extra-estético que são
as referências históricas que o sujeito possui. ―Ao determinar validade a tudo o
que congregue valor artístico, ela, além de uma forma presente, assume também
o caráter de uma consciência histórica‖. (SILVA JUNIOR, 2005, p. 61).
De acordo com os estudos realizados, o fenômeno da arte, que neste caso
configura-se como sendo a esfera estética, representa uma experiência
hermenêutica que vai além da dimensão estética propriamente dita, o que permite
72

dizer que a visão trazida por Gadamer não está presa unicamente a aplicações no
campo do estudo das artes, mas como experiência hermenêutica. Esse exercício
de compreensão pode ser pensado no contexto da formação de professores. Na
reflexão sobre seu modo de ser professor, há uma ontologia que é chave para
decifrar a formação que também está presente na experiência da arte que
apresenta elementos fundamentais do compreender hermenêutico. (SILVA
JUNIOR, 2005).
Na segunda esfera proposta pelo filósofo, a histórica, há reflexões profundas
sobre o sentido das tradições humanas como parte da condição existencial do
ser. Essa valorização da história nos estudos de Gadamer (2007, 2008a), foi fruto
das interlocuções com a obra de Dilthey que, em suas elaborações, direcionou o
estudo da Hermenêutica para a historicidade humana. O propósito de Dilthey era
compreender as ciências humanas, a partir da própria compreensão da
consciência histórica, na medida em que o sujeito em sua compreensão de
mundo põe-se numa relação com ele mesmo e com sua tradição. Ou seja, trata-
se de uma dinâmica de compreensão a si mesmo, através de sua própria história.
Desta forma, a consciência histórica é um modo de compreensão e, portanto,
conhecimento. A hermenêutica filosófica de Gadamer (2008a) é também histórica,
pois valoriza as experiências humanas como pré-compreensões, ressaltando a
tradição (Tradition) como horizonte fundamental para a compreensão. Neste
sentido, tradição, que também significa transmissão de ideias e valores, torna-se
testemunha de um passado, quando se trata de compreendermos algo, que no
Dasein enquanto compreensão, não se pode desatar o vínculo da existência com
os costumes e tradições que co-determinam sua experiência de mundo. (SILVA
JUNIOR, 2005).
Na esfera histórica, há uma relação reflexiva em que o eu e o tu pretendem
conhecer por si a pretensão do outro, e com isso, como os sujeitos se afetam
mutuamente e buscam na reciprocidade, o próprio reconhecimento de si. A esfera
estética, portanto, inscreve-se como princípio da hermenêutica da existência em
que passado e presente condicionam-se constantemente – o que torna o ser
humano um ser hermenêutico, justamente por sua experiência de mundo a ser
73

constituída por sua experiência de finitude e historicidade de cada um. (SILVA
JUNIOR, 2005).
Na última esfera, a da linguagem, trata-se da tradução das compreensões de
mundo, encharcadas de história de tradição, de estética e impressões do mundo
que nos circunda. Ou seja, as esferas não estão em campos isolados e
incomunicáveis, já que pensar a relação entre estética e hermenêutica, por
exemplo, pede a inevitável compreensão do fenômeno da arte como uma
experiência de linguagem. Cabe apontar, que o sentido atribuído à linguagem, na
obra de Gadamer, é de caráter ontológico, como abertura e condição prévia de
toda compreensão. A reflexão sobre a experiência da linguagem é a expressão
máxima da análise hermenêutica e sem a qual não haveria a compreensão, pois é
aí que se observa a conexão da linguagem com a questão da verdade. (SILVA
JUNIOR, 2005).
A experiência de mundo que o homem faz pela linguagem, revela-se a si e aos
outros, por meio do fenômeno da compreensão, seja pela experiência do belo
com a natureza ou na arte; trata-se de uma relação mediada pela qual a
existência humana constrói sua própria experiência de mundo, integrando-se e
formando sua própria tradição. Por possuir linguagem, o homem diferencia-se dos
outros seres vivos que habitam esse mundo circundante, e isso justifica sua
própria humanidade (SILVA JUNIOR, 2005).
A esfera da linguagem, à qual foi dada maior ênfase no trabalho de Gadamer, não
é apenas um dos muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo. Trata-se
daquilo que constitui a base necessária e, segundo Gadamer (2008a), absoluta
para que os homens tenham um mundo. O mundo apresenta-se de modo peculiar
a esse homem, como para nenhum outro ser vivo, pois apenas na linguagem o
mundo se encontra representado. Pensada em conformidade com o ser, a
linguagem é abertura ou movimento de desocultação, de verdade (aletheia). Em
sua dinâmica, a linguagem constitui-se como o meio (médium) que viabiliza a
74

fusão de horizontes históricos, ou seja, a linguagem é também um dispositivo de
formação por tratar-se de uma intermediação entre os sujeitos e o mundo.
A existência enquanto compreensão, Dasein não pode desatar-se do vínculo a
costumes e tradições que co-determinam sua hermenêutica filosófica, e neste
caso, Gadamer voltou-se pouco para a teoria da ciência moderna e deu maior
ênfase ao retorno às tradições. No caso da esfera da linguagem, esta possui o
caráter originário de estar no mundo, condição que justifica sua originária
humanidade. Desta forma, ter um mundo implica numa atitude, num
comportamento em relação ao mundo. Ou seja, ter um mundo é ser dotado de
linguagem (GADAMER, 2008a). A partir dessa relação que se estabelece entre
homem, mundo e linguagem, pode-se dizer que é impossível estarmos apartados
do mundo e de suas influências em nosso modo de ser e viver, visto que
desconsiderar o mundo implica em desconsiderar a nós mesmos. (CRUZ, 2010).
Estas três esferas apresentadas por Gadamer (2008a) em seu plano de
hermenêutica fenomenológico foram apropriadas, por este estudo, na tentativa de
perceber a vida na formação e a formação da vida. Esta via implica na valorização
do professor, da sua história de vida e no conjunto de referências que este
professor carrega, como também, a forma como seu universo é traduzido e
socializado neste processo formativo. Em sua principal obra, ―Verdade e Método‖,
mais precisamente o volume I, Gadamer (2008a) traça sua hermenêutica
fenomenológica aproximando conhecimento, formação e pensamento humano
como ato existencial.
Nesta máxima sobre o sentido de compreensão na existência, o mundo não é
estático e o homem tem condição de traçar seu próprio percurso formativo como
acontecimento. Nesta definição, apresentada pelo autor, fica evidente que a
―realidade não está dada‖, ela será construída a partir de uma estrutura prévia e
da própria abertura que nos damos enquanto possibilidade. Para Gadamer, ―o
fenômeno da compreensão impregna não somente as referências humanas ao
mundo, mas apresenta uma validade própria também no terreno da ciência,
resistindo à tentativa de ser transformada em método da ciência‖ (GADAMER,
75

2008a, p.29). É nesta perspectiva que o autor apresenta seus estudos com
pretensão de ir de encontro à universalização da compreensão. Diria ainda, com a
possibilidade de revelar as singularidades, nesse caso do percurso da formação
de cada professor.
Nos estudos de Gadamer (2008a) sobre a hermenêutica, o filósofo compara a
experiência da arte, ou experiência estética, com a experiência da própria
existência humana. Para ele, essas duas experiências se assemelham, tanto no
estranhamento, como no fato de já existir uma concepção prévia das coisas.
Pode-se dizer que, de modo especial, Gadamer chama a um novo modo de
compreender a formação de professores, rompendo com meios rígidos e métodos
pré-estabelecidos, valorizando a história e as tradições humanas, já que a mesma
constitui nossa compreensão de mundo como algo que está no plano da pré-
compreensão, porque já está previamente posto, mas não estabelecido como fim.
Isso não implica em dizer que o seu trabalho está num plano de inconsistência ou
incoerência, mas, atende a uma perspectiva da aceitação da história como
elemento formador.
O tipo de hermenêutica proposta por Gadamer toma como ponto de partida a
multiplicidade de compreensões e interpretações do ser no mundo que se
apresenta como grande tela ou grande texto a ser interpretado, pré-compreendido
e compreendido como elemento vital de ser humano. A este exercício, o autor
imprime o sentido do diverso e considera que na relação com ―o outro‖ rompe-se
com a centralidade do eu nas diferentes compreensões que surgem no diálogo
(GADAMER, 2008a). Neste aspecto que a compreensão em sua estrutura
existencial torna-se um acontecimento dotado de pré-sença ou de pré-
comprensão que dota de pro-jeção o ser como mundo em suas próprias
possibilidades (GALEFFI, 2001).
Em primeira instância, pode-se afirmar que o sentido só é conferido pelo próprio
sujeito, pois quem dá sentido à formação e a qualquer construção humana é este
ser ―aprendente‖. Não pondo o homem num patamar de super homem, e senhor
76

absoluto, como imaginaram certos grupos humanistas, mas sim, este homem em
debate com a sua realidade histórica e temporal e com sua condição de intérprete
de sua realidade (PIMENTEL, 1993).
Em seu diálogo com o mundo, o homem vive a constante busca do sentido.
Entretanto, não se concebe a ideia de que o mundo é exclusivamente uma
construção minha, ao contrário, o sentido dado ao mundo, sim, é próprio de cada
um, pois só o sujeito em sua singularidade é capaz de perceber o mundo a partir
de si mesmo. Mesmo nos acontecimentos singulares antes de ser ―meu‖, esse
mundo é, para aquele que o torna, seu, e isso reforça a ideia de construção de
mundo num plano de ser-no-mundo-com (GALEFFI, 2001).
Nesse sentido, Galeffi aponta que, se há uma estrutura prévia da compreensão e
da estrutura da interpretação (grifos do autor), é possível afirmar que há, também,
uma estrutura ontológica universal. Somos seres singulares de um coletivo
universal efetivo (GALEFFI, 2001), visto existir a ideia de pre-sença e este pré já
carrega em si a ideia de algo que já acontece antes, de estrutura prévia e que
antecede algo. Na visão de Heidegger, apresentada por Galeffi, ―Sentido é aquilo
em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa (...) aquilo que pode
articular-se na abertura da compreensão‖ (HEIDEGGER apud GALEFFI, 2001, p.
254). Ou seja, a compreensão não é o mesmo que sentido, mas, em certa
medida, depende dele para acontecer.
Para Gadamer (2008a), a linguagem humana deve ser entendida como um
processo vital e único, considerando que a mesma manifesta o mundo. Pode-se
dizer que os grupos humanos ou comunidades são grupos de linguagem, e que
estas linguagens se constituem a partir das suas dinâmicas, da história do grupo
e da dialógica fusão de horizontes. Nesta perspectiva, a existência das diferentes
visões de mundo, pois cada um possui suas compreensões de mundo herdadas
pela tradição cultural e de linguagem nas quais está imerso. Na imbricação entre
mundo e homem, por meio da linguagem, essa mútua relação resultante do
contexto histórico prevalece a compreensão como um processo vivo.
77

A experiência da linguagem, uma das esferas apresentadas por Gadamer
(2008a), e nesse contexto de produção, a que será mais discutida neste trabalho,
caracteriza a totalidade das experiências humanas no mundo. Na linguagem,
temos o mundo representado, o que para Gadamer implica uma experiência
―absoluta‖ naquele instante, pois ultrapassa a posição do ser por abranger todo o
ser em si, independentemente das relações que se possa estabelecer. Desta
forma, pode-se dizer que somos precedidos pelo caráter da linguagem na/pela
qual se dá nossa experiência de mundo. (CRUZ, 2010).
A experiência no/com o mundo se dá na linguagem e põe o homem em relação
direta e significativa com o mundo. A partir disso, arrisco dizer que tudo que existe
é por meio da linguagem; o que nos chega e que conduzimos é com/na
linguagem quando por meio dela compreendemos/interpretamos o mundo. Ou
seja, o mundo torna-se mundo a partir do processo de entendimento humano por
meio da linguagem, tornando o processo da compreensão num acontecimento
linguístico. (CRUZ, 2010).
A compreensão, a partir da leitura de Gadamer (2008a), é precedida pela
linguagem e depende dela para existir. Não há compreensão fora da linguagem,
assim, como não há formação no sentido hermenêutico fenomenológico, com seu
sentido ontológico, sem compreensão e sem linguagem. Valorizar a formação,
nessa perspectiva, é valorizar a linguagem humana com expressão e tradução do
mundo circundante.
Nesse entremeio, a tese central da hermenêutica gadameriana está cunhada na
ideia de que a existência humana se estrutura na experiência da linguagem, que,
por sua vez, determinará o modo de ser e a própria existência, significado e
sentidos que são dados ao mundo; e das compreensões geradas num campo de
possibilidades, circulando entre o finito e o infinito, em um processo existencial
que é mediado pela capacidade originária do homem em dialogar consigo mesmo
e com o mundo circundante, na coletividade e singularidade através da
linguagem, da experiência estética, tomando o mundo como obra, e das
78

tradições, enquanto pré-compreensões desse mundo, nos impulsionando a
elaborar novas compreensões.
Nesta perspectiva, a formação de professores pode ser tratada como uma trama
que é tecida na ―itinerância‖ que abarca a experiência errante do ir e vir, aqui e
acolá, de um sujeito que não é uma substância dada; antes, este busca sua
composição com permanente transformação de si, com o que está por vir
(LARROSA BONDÍA, 2002 apud SÁ, 2010). Assim, formar-se constitui o próprio
percurso humano de construção de uma existência singular aberta às
possibilidades de estar-no-mundo-com, o que implica em uma pre-sença que se
projeta em/no mundo permitindo a compreensão desse mundo, da própria
compreensão de si mesmo, mediante articulação de referências que vão sendo
acrescidas nesse processo de apreensão do mundo (SÁ, 2010, p. 57).
Na formação de professores, pode-se dizer que os acontecimentos e as
articulações, desse processo de apreensão do mundo, acontecem mesmo antes
da inserção do sujeito à carreira docente, mas essas elaborações serão
ampliadas na formação inicial de professores, em contato com o ambiente
escolar, com os colegas de trabalho, com os alunos, já que os saberes docentes
da experiência de acordo com Candau (1997) é na escola, locus de formação,
que o professor, no exercício diário de sua prática forma-se. De modo semelhante
Tardif (2002), chama atenção para o saber da experiência como aquele que se
constrói na vida do professor sendo estes, formativos, auto-formativos, singulares
e, por esse motivo, o enquadramento destes saberes em categorias fechadas
torna-se contraditório, visto que uma singularidade como aponta Josso (2008). É
possível apenas caracterizar esses saberes, considerando as variações de sujeito
para sujeito com as experiências e compreensões de mundo de cada um, como
demonstra Nóvoa (1992a).
O estudo da existência, a partir das três esferas apresentadas por Gadamer
(2007, 2008a), torna-se necessário ao entendimento da formação de professores,
pela perspectiva da hermenêutica fenomenológica com seus pressupostos
ontológicos. A relação entre as três esferas consolida-se nesta hermenêutica
79

como experiência de busca da verdade, mas uma verdade provisória, instável
determinada pelas/para a fusão de horizontes dando abertura à alteridade e às
interpretações no sentido diverso. (SILVA JUNIOR, 2005).
80

6. A FORMAÇÃO EM NARRATIVAS DE PROFESSORES
81
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
Neste trabalho, apresento uma pesquisa com formação do/no Programa de
Formação de professores/Curso de Licenciatura em Pedagogia UFBA, no
município de Tapiramutá na Bahia. Nesta proposta, busquei, em fragmentos de
memoriais formativos e de histórias de professores-cursistas participantes do
curso, perceber a relação entre os conceitos de formação, a partir das esferas
discutidas por Gadamer (2008a), a esfera estética, a esfera histórica e a esfera da
linguagem, considerando seu sentido existencial como dispositivos de mediação
entre o sujeito e o mundo conforme aponta Macedo a partir de Honoré (MACEDO,
2010).
Trata-se de um processo de aproximação entre as três esferas, como existencial
de formação humana e a formação de professores, visto que Gadamer em sua
obra não direciona seus estudos para a docência; é mais uma leitura de
compreensão da vida enquanto espaço de formação e, desta maneira, a
formação de professores comporta interrogações sobre a existência, e demanda

ser pensada por ela e não distante de outras atividades objetivadas da vida
(HONORÉ apud MACEDO 2010).
A formação de professores que os modelos institucionalizados oferecem, vem
sendo discutida com vistas à valorização das experiências de trabalho do
professor, e/ou da vida cotidiana, e das histórias contadas por professores, que,
de modo singular, narram seus percursos formativos, ressaltando acontecimentos
importantes de sua vida, que, por conseguinte, podem ser consideradas
experiências formadoras articulando atividade, sensibilidade, afetividade e ideal
de vida (MACEDO 2010).
6.1 PROPOSIÇÕES E TRAVESSIA
Esta experiência de pesquisa, no programa de pós-graduação da Universidade
Federal da Bahia-UFBA, ajudou-me a perceber que práticas diversas de
formação, com histórias de vida, têm sido pensadas, discutidas e consolidadas
cada vez com maior ênfase no campo da formação de professores. Essa
preocupação com o uso de narrativas vem por perceber que a formação tem seu
sentido e quem dá este sentido é o sujeito em processo. Com esta perspectiva, é
possível articular formação com experiência pessoal, sendo decisivo para que se
construa uma epistemologia da formação de professores.
Reconhecer que aspectos da vida do professor interferem, alteram a formação
docente e sua práxis pedagógica, é um traço importante em pesquisas no campo
da Hermenêutica fenomenológica existencial. No caso desta pesquisa, foram
utilizados fragmentos dos memoriais e de histórias narradas por professores que
revelam a formação na vida. E para isso foi preciso ler e reler os memoriais, bem
como, revisitar várias vezes os fragmentos escolhidos, buscando compreender o
que fora encontrado.
82

No encontro com estes fragmentos, visualizei uma diversidade de referências
trazidas pelo professor em suas narrativas. Dentre elas, apareceram a valorização
do lugar de onde veio, sua história, seus costumes, os aspectos ligados às
tradições ou esfera histórica; as formas de ser professor, as práticas de ensino, o
comportamento em sala de aula, ou seja, a imagem que eles mesmos
construíram do que significava ser professor, elementos próprios da esfera
estética; concepção de vida/formação, compreensões sobre o mundo, sobre
conhecimento e sobre a própria vida, sendo estas compreensões próprias da
esfera da linguagem, que é o fio condutor da Hermenêutica fenomenológica de
Gadamer. A partir dessa leitura inicial dos dados organizei estas referências
destacadas em três matrizes: (1º) Quanto à forma, (2º) Quanto à tradição e a (3º)
Quanto à compreensão, aproximando estas matrizes das esferas existenciais de
compreensão da hermenêutica fenomenológica proposta por Gadamer.
Desta forma, as matrizes foram nomeadas da seguinte maneira: ―Quanto à
tradição‖ correspondendo à Esfera Histórica (1), ―Quanto à forma‖
correspondendo à Esfera Estética (2) e ―Quanto à Compreensão‖ que
corresponde à Esfera da Linguagem (3). Essa organização dos fragmentos
possibilitou uma articulação com a teoria que respalda as interpretações.
Os autores dos fragmentos, aqui apresentados, ganharam nomes de pessoas que
cruzaram meu percurso de formação e que julgo importante lembrar, tomando
desde a graduação em Pedagogia na UESC, em Ilhéus, até o mestrado na UFBA,
incluindo professores e colegas. Essa foi uma forma que encontrei de revirar a
minha memória lembrando o passado com este meu olhar presente da formação.
Vale ressaltar que na interpretação/compreensão dos fragmentos, a partir da ideia
das esferas, procurei evitar um isolamento ou enquadramento que remetesse de
forma mecânica às mesmas esferas. Antes, a proposta foi dialogar aproximando
as esferas de conceitos que foram apresentados, nesta pesquisa, tais como:
formação, existência, complexidade, multirreferencialidade, hermenêutica para
83

entender a formação de professores a partir das falas que evidenciaram a
imersão de seus autores na vida.
6.2 A TRADIÇÃO NA FORMAÇÃO (ESFERA HISTÓRICA)
Nesta matriz, ocupei-me com a valorização que os docentes atribuem às suas
raízes, a sua tradição, pois alguém que compreende, pertence a uma história que
atua nele, mesmo que embora não seja devidamente consciente disto. Nesta
dimensão, foi ressaltado aquilo que Gadamer entende como traço fundamental da
experiência hermenêutica, a elevação da historicidade da compreensão como
princípio. Para o filósofo, ―nós mesmos, enquanto compreendemos a história, nos
encontramos nela como membros condicionados e finitos de uma cadeia que
continua a avançar‖ (GADAMER, 2008a, p.273). Isso significa dizer que ao refletir
de forma hermenêutica na condição de experiência, e existencial, a historicidade
encontra-se presente nessa condição humana.
Sob a perspectiva de sua análise existencial, a compreensão tem como princípio
a nossa própria historicidade, que se converte em um princípio hermenêutico. Por
isso, toda e qualquer reflexão hermenêutica, ao submeter à compreensão um
fenômeno hermenêutico, necessariamente, articula-o também ao caráter de sua
historicidade, sua tradição enquanto elemento de pré-compreensão.
Nas leituras dos fragmentos dos 10 memoriais e 10 histórias contadas por
professores sobre suas referências de formação, os professores evidenciam a
importância do processo formativo, trazendo detalhes de sua existência no
mundo, da sua história, do lugar de onde vieram como forma de revelar aspectos
importantes da sua formação. Conforme Heidegger, as relações fundamentais do
ser-aí do homem com o mundo, ao qual ele mesmo pertence, são possíveis e
podem ser despertadas a partir do cotidiano (HEIDEGGER, 2006). Ou seja, há
uma relação estreita entre as experiências do sujeito e o contexto vivenciado por
tratar-se de ser, este contexto, o próprio mundo em que o sujeito elabora e
compreende.
84

Desta forma, a esfera histórica que reúne elementos da tradição foi evocada pelos
professores-cursistas nos seus registros, como experiências de formação ou
mesmo como referência importante para sua formação de professor. A exemplo,
este fragmento abaixo que nos dá maior clareza sobre essa proposição:
Cláudia: Órfã aos oito meses de vida, eu não tive o privilégio
como as outras crianças de conviver com a presença do meu pai.
A única referência que tenho dele presente em minha vida é da
minha mãe, que sempre esteve ao meu lado junto com meus
irmãos. Eu me recordo muito quando fui para a escola pela
primeira vez, minha mãe não tinha condições financeiras para
colocar três filhos na escola, então eu fui a última a ir, desde então
ela teve que trabalhar na roça de colheita de café para sustentar a
família. Às vezes ela chorava porque não tinha nada para nos
alimentar com uma boa refeição quando saia para a escola
tomava café com farinha, enquanto minha mãe estava na roça, na
chuva colhendo café sem se alimentar. A minha vida nunca foi
fácil ia para a escola com um lápis e um caderno dentro de sacola
plástica, mas nem por isso deixei de lutar pelos meus objetivos.
Quando escreve sobre sua formação docente, a autora apresenta elementos da
tradição local, tais como o plantio de café, o uso de café com farinha para
solucionar o problema da fome e da participação feminina no trabalho para
sustentação da família. Apresentam-se, neste fragmento, elementos de suas
experiências no passado, mas que foram relatados por ser uma referência do
percurso formativo, mesmo que na condição de estudante. Assim, a tradição
(Tradition), a história vivenciada pelo sujeito é de algum modo fio condutor da
temporalidade, e fez com que essa professora retornasse a uma experiência de
ordem social e econômica local vivenciada no passado na busca pela
compreensão da sua formação.
De modo semelhante, nos fragmentos que se seguem, seus autores mantiveram
preocupação em evidenciar sua imersão numa tradição:
Cheiler: Nasci no dia 10 de janeiro de 1978 na cidade de
Tapiramutá, filha de Vademir Pereira Dantas e Lindinalva Vieira
Dantas. Sendo eu tão galeguinha, todos me chamavam de cabelo
de espiga de milho. Sou filha de agricultor e dona de casa, já
85

tendo desde cedo o contato com a terra, pois sempre que podia,
meu pai me levava junto com meus seis irmãos, para ajudá-lo nos
trabalhos da roça. Ainda muito pequena, costumava brincar de
escola com os colegas da rua, despertando assim o gosto pelos
estudos.
Jeanes: Iniciei meus estudos aos oito anos de idade na
alfabetização. Pelo fato de ter começado tarde os meus estudos
devido às dificuldades que minha família enfrentava por ser muito
carente. Morava na zona rural e não tinha transporte para
conduzir a mim e a meus irmãos que eram oito. E o único
transporte que tinha era um jegue com charrete.
Na hermenêutica gadameriana, compreender uma tradição implica em projetar-se
num horizonte histórico que vai originar um novo horizonte presente. Um texto
histórico somente é interpretável a partir da historicidade do intérprete, ou seja, os
fragmentos organizados neste eixo narraram sobre sua formação,
fundamentalmente, revelando a ―experiência de ser‖. Ao revelar o lugar de onde
veio, o professor apresenta suas condições sócio-econômicas, sua realidade e o
contexto histórico cultural do seu ―estar aí‖ e o seu estar-no-mundo de
possibilidades, ao relatar passagens de sua pre-sença ele vai des-velando as
referências que marcam sua existência (HEIDEGGER, 1987 apud SÁ, 2009).
Esse traço da escrita fica evidente em praticamente todos os fragmentos como os
que seguem abaixo:
Itariane: Nasci no dia 4 de junho de 1973, neste município de
Tapiramutá – Bahia. Sou filha de um casal pobre, humilde, mas
acima de tudo batalhadores. Minha mãe Deijanira foi merendeira,
lavadeira e colocava barraca de comida na feira (...). Meu pai
Cirilo trabalhava fazendo adobe (tijolo de barro), hoje aposentado;
sou a 7ª filha dos 10 filhos do casal. A minha vida como estudante
começou tarde aos 7 anos tive meu primeiro contato com caderno,
lápis e o abc na casa da comadre dos meus pais, dona Davina.
Naquela época inicio dos anos 80 ainda existia a palmatória, o
castigo de joelhos no milho, olhando para a parede e de vez
enquanto um beliscão.
Na experiência narrada pela professora, mesmo que na condição de estudante,
há um empenho em trazer as tradições de um determinado tempo-espaço. O ser
humano, como participante dessa tradição, constrói interpretações das próprias
86

condições espaço-temporais históricas que vivenciou, e que certamente se
constituíram em referências para compor seu percurso formativo.
Na visão de Gaston Pineau (2006), na escrita da própria vida, o ator e autor
sobrepõem-se sem intermediações de terceiros, e essa sobreposição recai sobre
o próprio sujeito que lança um novo olhar sobre suas experiências, organizando-
as de forma apropriada a serem compartilhadas a quem é dirigida a narrativa.
Esse movimento acessa um aspecto fundamental presente nas narrativas
autobiográficas ou escrita de si, como destaca Pineau (2006) e Josso (2004).
Uma das exigências metodológicas das pesquisas com narrativas é o uso da
abordagem ―multirreferencial como integrante das várias modalidades do
pensamento humano (as crenças específicas, as crenças religiosas, esotéricas)
assim como as várias dimensões de nosso ser no mundo‖ (JOSSO, 2008, p. 19)
que integram a dimensão existencial. Estas dimensões são marcas e referências
que aparecem quando evocadas no momento da escrita, conforme pode ser visto
no próximo fragmento,
Paulinha: Morei com meus pais até 8 anos de idade com a
separação deles minha mãe acabou voltando para Jacobina,
fiquei com meu pai por um tempo por volta de 1986. Minha mãe
no ano seguinte voltou para Volta Grande, passei a morar
novamente com ela. Naquela época, minha mãe sempre ajudava
a família Ribeiro no serviço doméstico, a família era enorme, mas
foi dona Nalva que ajudou muito minha mãe. (...) A vida era muito
dura. Minha mãe sempre me levava para a casa de dona Nalva
ela ajudava no serviço doméstico, lá era bom porque não faltava
nada para comer e só íamos para casa quando anoitecia. Neste
período, já freqüentava a escola de Volta Grande (...). Para
freqüentar a escola usava quase sempre a mesma roupa, o tênis
era do meu irmão, como tínhamos quase a mesma idade, ele
usava pela manhã e pela tarde ele fazia uso dele. Adorava as
brincadeiras daquela época, brincávamos de amarelinha, macaco,
elástico, caí no poço e muitas outras.
A historicidade presente neste fragmento conforme se apresenta, condiz com a
ideia de Gadamer (2007, 2008a) quando aponta para o valor das tradições como
componente fundante na composição da formação, como compreensão humana,
em que Paulinha refere-se às brincadeiras de sua infância com certo saudosismo
demonstrando referências de lugar, de raiz, os costumes e tradições com
87

incadeiras, a situação financeira da época que se misturam nas relações de
mundo que brotam da memória de quem vivenciou determinadas relações sociais,
seja com a família ou com a comunidade. Essas múltiplas referências,
apresentadas nos fragmentos, demonstram que o ser-no-mundo, que constitui a
formação, não se constrói de forma isolada, mas a partir de uma teia complexa e
multirreferencial, conforme aparece nesta narrativa:
Tiane: Caros colegas, esta história que eu vou lhe contar é de
uma menina pobre filha de pais trabalhadores rurais. Em mil
novecentos e sessenta e nove, nasce uma menina como todas as
outras crianças que só pensa em brincar e curtir seu momento de
infância. Mas não foi bem assim que aconteceu, desde pequena
que já ajudava a minha mãe e minhas irmãs nos afazeres de casa
(...). No ano de mil novecentos e oitenta e um ela (sua mãe)
querendo o melhor para os seus dez filhos, tira da roça e traz para
cidade de Ruy Barbosa.
Em algumas cidades nordestinas preserva-se o uso da musicalidade, com um
estilo chamado ―repentes‖, para falar de problemas cotidianos e questões
sociais/econômicas. A chamada cantiga de cordel, é uma tradição nordestina que
originou-se em Portugal. Trata-se de um tipo de poema popular, oral e que depois
é impresso em folhetos de maneira rústica e expostos para venda em corda ou
cordéis, por isso o nome. Observa-se o uso dessa tradição nos versos do
memorial de Tiane, que descreve sua narrativa com a rica musicalidade impressa.
Essa narrativa me lembrou muito a errância do povo nordestino, conforme é
trazida pelo filme ―Narradores de Javé‖ 6 : povo simples, moradores de um vilarejo
que busca narrar a própria história de forma heróica, contando as peregrinações
dos primeiros habitantes do Vale do Javé.
Outras referências também aparecem nos fragmentos como é o caso da matriz
familiar abaixo:
6 Filme nacional, lançado em 2003, dirigido por Eliane Caffé que apresenta problemática da
transposição do rio São Francisco com construção de uma barragem no local do povoado. Os
moradores recebem a notícia com grande preocupação e então decidem escrever um documento
(Dossiê) contando as aventuras da chegada dos primeiros habitantes do lugar segundo as
narrativas de cada morador e escrita de Antônio Biá o carteiro da cidade, único alfabetizado do
povoado.
88

Cheiler: No ano de 1990, perdi uma pessoa muito importante,
minha vó. Ela me ensinou muito do que sei, inclusive recitava
versinhos para que eu pudesse escrevê-los em meu caderninho
incentivando-me a ler e escrever. Em 1991, minha mãe mandoume
estudar em Salvador na casa de parentes. Fui matriculada no
colégio GEMPA no bairro do IAPI onde morava. O colégio entrou
em reforma e eu fiquei sem estudar, pois não encontrei vaga nas
escolas mais próximas e não tinha dinheiro para transporte para ir
à escolas mais distantes. Foi um ano muito difícil minha prima
fazia-me de empregada e a única diversão que tinha era ir ao
supermercado Paes Mendonça.
Nos escritos, as referência são inúmeras: a avó, a cidade grande, a poesia
recitada, as sua experiências de mundo caracterizadas pelo seu acontecer numa
dada tradição histórica. Ao interpretar seu percurso de formação, cada professor
convida ao exercício da auto-compreensão, buscando organizar sua escrita para
ser interpretada por interlocutores. No fragmento seguinte, outras referências
podem ser vistas na formação de professores e no espaço escolar de um modo
geral. A celebração das festas de Santo Antônio, São João e São Pedro, tradição
da cultura nordestina, que são marcadas pelo uso de comidas típicas e dança de
quadrilha com roupas coloridas, que lembram a influência das culturas
portuguesas e italianas:
Simara: No mês de junho, antecedendo o São João era
promovido entre as escolas uma disputa de quadrilhas. Era um
projeto da Secretaria de Cultura, denominado ‗Esperando São
Pedro‘. Cada escola escolhia um tema para ser trabalhado. Os
alunos eram escolhidos através do seu desempenho,
comportamento e número de faltas. O tecido para as roupas a
prefeitura disponibilizava. As costuras e acessórios ficavam por
conta dos pais. Certa vez alguns alunos da escola, não tiveram
condições de arcar com as despesas e para que a escola não
ficasse de fora do projeto. Então todos os alunos foram ajudados
pelo professor, compramos o necessário e doamos para os
alunos.
As narrativas de vida nos memoriais, mais precisamente nos trechos destacados
neste trabalho, revelam duas atitudes de base. A primeira é que para algumas
pessoas o conhecimento de si é uma prioridade, já que desse conhecimento se
pode aprender, visto que, aprende-se com a própria experiência, por meio do
olhar dos outros. A partir disso, uma segunda atitude é gerada: a das
preocupações em adequar-se às expectativas dos outros nas relações pessoais e
89

nas relações sociais, desde que sejam reconhecidos como aprendizagem de
forma reconfortante e acolhedora, sendo valorizado o que foi posto pelo autor da
trama (JOSSO, 2004).
Essa proposição é vista em todos os fragmentos dos memoriais lidos, e conforme
se apresentam na escrita, o professor busca colocar-se valorizando sua
experiência de vida na formação como meio de aprendizagem para outros,
quando evocam valores e características da docência. Assim, a característica
tradicional, não no sentido das abordagens educativas diretivas, mas no sentido
de tradição, conforme Gadamer (2008a) de construirmos historicamente acerca
do que vem a ser o professor.
Alba Lúcia: Minha história como professora começa quando
estou procurando emprego na prefeitura de Tapiramutá e de
primeira ouço o prefeito: ―não estamos contratando ninguém‖ fui
para casa triste, mas desanimar nunca. Passando um mês e
pouco chega um convite para ir a Salvador tomar um curso de
capacitação para ensinar Jovens e adultos pela alfabetização
solidária, aceitei o convite na hora. Fiquei no programa por três
períodos porque um período durava quatro meses e podia
participar de outros cursos. Bem, acabou o programa fico eu
desempregada. No ano dois mil a prefeitura faz o processo
seletivo para professores dar aulas e eu com os meus alunos,
estou de novo com a mesma turma e posso afirmar que como
educadora tenho que está buscando coisas novas. A minha
experiência e os meus conhecimentos é um estudo permanente
para minha vida profissional e é disso que eu preciso, pois tenho
que entender a sociedade e ela me entender.
Nessa medida, ao longo da existência põem-se em cena peregrinações,
lamentos, grandes desafios de uma itinerância que exprimem a existencialidade
que tem sua inconstância nas errâncias que estão associadas à busca de si, no
sentido de buscar a própria formação. Os professores, em seus escritos, usam
recursos estratégicos para apresentar a sua história de vida/formação, por meio
de construções de maneira adequada às tradicionais elaborações do que vem a
ser a figura de um professor. Dentre os principais recursos utilizados, segundo
Josso (2004), estão: demonstrar habilidades, criatividade, boa comunicação e
90

atenção consciente que são mobilizados usados no momento da escrita ou de
qualquer atividade corrente.
Ana Roberta: Este memorial descreve, analisa e critica
acontecimentos sobre a minha trajetória acadêmica, profissional e
intelectual, buscando avaliar cada etapa de minha experiência.
Enfatizando-se as fases mais importantes e significativas.
Fazendo um comparativo entre a vida profissional e a vida pessoal
evidenciando as influências de uma para outra e vice-versa. (...)
Em 2005, com o objetivo de passar para o 3º ano e estar me
preparando para o ENEM, aconteceu na adolescência uma
gravidez na qual não estava preparada para ser mãe o que me
levou a desistir dos estudos. Acabei indo embora para Tocantins e
fiquei novamente sem estudar, morei por 7 meses, depois me
desloquei para Luiz Eduardo Magalhães onde tive meu filho de 8
meses em Barreiras que precisou ficar sob observação do
pediatra fazendo uma série de exame.(...) Em 2007 voltei a morar
em Tapiramutá novamente e hoje Hamilton é uma criança
saudável e feliz. Retornei à escola em 2008 na qual havia
estudado antes no colégio Estadual João Queiroz com o objetivo
de cursar o segundo ano onde parei.
No fragmento de Ana Roberta fica evidente a preocupação em direcionar a escrita
para o interesse dos seus interlocutores, apresentando informações técnicas
sobre o uso do memorial como dispositivo de formação. Não pode, no entanto,
desatar-se do vínculo com os costumes e tradições que co-determinam a
experiência do ser-no-mundo, e de alguma forma evidencia a complexidade que
permeia os processos de formação. Evidencia também a multiplicidade de
referências que compõem uma experiência formativa. Em outro fragmento do
mesmo memorial, a dimensão da formação pode ser percebida também no
fragmento abaixo:
Ana Roberta: Ainda vivenciei uma prática de ensino tradicional,
isto é, um ensino que o professor era detentor do saber e o aluno
era ‗tábua rasa‘, desprovido do saber da cultura letrada. No ano
de 1996 mudei-me da zona rural (povoado do Palmeiral) para
estudar na cidade de Tapiramutá, Bahia, mas, infelizmente não
iniciei minha trajetória educativa nesse referido ano, pois a minha
tia por ser professora buscou alfabetizar-me em casa, porém
devido à sua prática de ensino rigorosa e exigente levou-me a
ficar traumatizada e até chorar para não querer estudar com ela.
Nos anos de 1996 a 1999, estudei no Grupo Escolar Julieta Pires
Viana, passei por uma etapa na minha prática de ensinoaprendizagem,
pois passei a perceber a importância do ato de
estudar, além disso, tive apoio dos meus professores que me
auxiliaram a avançar na leitura, na escrita e na matemática. As
91

aulas eram bem dinâmicas, pois a educadora buscava
desenvolver uma metodologia de ensino incentivando-nos a
querer continuar a aprimorar nossas práticas educativas.
Percebo, nesse fragmento, que a professora apresenta características vistas no
passado, mas refletidas com as lentes da docência, e não na sua condição de
aluno. Ela revive o momento em que foi aluna, mas apresenta numa linguagem
pedagógica, referindo-se a abordagens metodológicas e conceitos bem
elaborados ao relatar sobre ―práticas de ensino-apredizagem‖ por repetidas
vezes. Fica claro que há uma transposição de ideias que mexem com as noções
de tempo, onde presente e passado se fundem num único horizonte.
Para Gadamer, é questionando o mundo, e a si, que algo torna-se experiência, ou
seja, pensar a obra como experiência é investigá-la em seu modo de ser, em seu
caráter ontológico (existencial). Trata-se de um horizonte da finitude humana que
o modo de ser fará com que o mundo ganhe significado e assuma sua
representação, adequando-se às condições de mundo, mas, sobretudo,
interpretando-o.
Retomo a formulação de Gadamer (2008a) de que ―na formação adquirida nada
desaparece, tudo é preservado. A formação é um conceito genuinamente
histórico, e é justamente o caráter histórico da ‗conservação‘ o que importa para a
compreensão das ciências do espírito‖ (GADAMER, 2008a, p.47). Essa ideia de
Gadamer de preservação das experiências vivenciadas pode ser visto na
importância dada à experiência de Cláudia,
Cláudia: Passei por muitos obstáculos (na docência), um deles foi
ter que conviver com um aluno deficiente mental, sem contar que
nesse local não havia água e nem luz elétrica. Na hora de planejar
tinha que acender um candeeiro para conseguir fazer as minhas
atividades. Foi uma experiência muito difícil, por que nunca tinha
convivido com uma situação desse tipo. (...) Nessa minha
trajetória passei por muitos desafios um deles foi superar meu
medo de dormir no povoado sozinha, ou então ir para a casa de
outra pessoa.
92

Essa relação do passado, com a ideia de conservação no presente, demonstra a
valorização da experiência vivida, sua intensidade e não a experiência como
acúmulo de atividades e cursos. Retomando a afirmação de Gadamer de que o
que foi assimilado na formação não é como um meio que perdeu sua função, haja
vista que o passado não é aquilo que serviu de meio, mas que será superado no
sentido de ser sempre descartado por algo superior.
Lívia: Em 1995, vim fazer uma visita ao meu pai que morava em
uma associação na localidade de Riacho Fundo no município de
Tapiramutá, e por meio dessa visita a escola desta localidade
estava precisando de um professor, então o atual presidente da
associação me fez um convite para substituir a professora que iria
sair. Então em meio a tanta insegurança por não ter experiência
alguma, tive medo de assumir esse compromisso. Mas o meu
objetivo de crescer profissionalmente e ser alguém abracei a
oportunidade e busquei superar o medo e a insegurança, até por
que o município oferecia um suporte no qual recebia capacitação
através de cursos e os planejamentos (...). Foram esses
acontecimentos essa luta cheia de altos e baixos que me levou a
ser a professora que sou.
A tentativa gadameriana de reconstruir uma hermenêutica tomando a tradição é
fundamental na compreensão adequada da finitude, característica do ser humano,
bem como, de sua consciência histórica. Nesse sentido, o conhecimento só pode
ser tomado, em sua radical existência real e histórica, no horizonte das
referências na qual estamos necessariamente inseridos (GADAMER, 2007).
Ainda de acordo com Gadamer (2007), a história não nos pertence, mas nós é
que pertencemos a ela. Antes que compreendamos a nós mesmos, já estamos
nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no
Estado em que vivemos, a tradição é uma pré-compreensão e pré-juízo de
mundo. Desta forma, a consciência histórica, modo de compreensão e, portanto,
conhecimento, proposta na hermenêutica filosófica de Gadamer (2008a), é
também histórica, visto que há uma valorização das experiências humanas como
pré-compreensões ressaltando a tradição (Tradition), horizonte fundamental da
compreensão.
93

O conceito de compreensão/interpretação no movimento da tradição, do
movimento do intérprete como um todo, apresenta uma relação entre presente e
passado que retoma a tradição e há um esforço de projeção de futuro. Como
intérprete, ela inclui naturalmente a tradição oral que já foi compreendida e torna-
se agora uma pré-compreensão (GADAMER, 2008a). A tradição, que também
significa transmissão, torna-se imprescindível quando se trata de
compreendermos algo.
De acordo com os estudos realizados, a experiência de ser professor é aquela em
que o docente torna-se consciente de sua finitude, ou seja, reconhece que ser
professor é fundamentalmente reconhecer que cada experiência de seres finitos
num plano finito e limitado e que, portanto, ser professor trata-se de um acontecer
na própria historicidade. Assim, a formação de professores na experiência
hermenêutica de compreensão de mundo tem a ver com a tradição, mas não é
simplesmente um dominar dessa tradição pela experiência, mas trata-se de uma
linguagem em que a tradição é uma interlocutora ao qual o professor está
vinculado.
6.3 A FORMAÇÃO NA FORMA (ESFERA ESTÉTICA)
Nesta segunda matriz, busquei a compreensão dos fragmentos na visão
ontológico-hermenêutica de Gadamer, de igual modo, apenas dando um enfoque
maior à esfera estética, com os estudos sobre imagem e como a ideia recai sobre
a formação da imagem do professor, ou qual a imagem que o professor tem da
própria formação. Trata-se de compreender a formação (Bildung) no seu sentido
de ―imagem‖ (bild) e propõe a arte como forma de compreensão de mundo, nesse
caso, como compreensão da formação.
A estética do ponto de vista ontológico é sempre imaterial, mas isso não significa
dizer que é desprovida de conteúdo. No julgamento dos modelos ou formas de
apresentação no mundo há uma dependência do gosto artístico de uma
determinada época. E no caso da formação de professores, os modelos
94

construídos sobre a docência hoje se distinguem dos que tínhamos em outros
períodos da história da educação. Este juízo ou gosto de caráter coletivo, no
sentido de existir uma dependência do conceito elaborado por uma época, tem
sempre a pretensão de validar a maneira (modus) de ser professor (GADAMER
2008a). A esse respeito, o memorial de Isís apresenta um bom exemplo do modo
de ser professor que ela construiu,
Isis: No ano de noventa e oito, iniciei o magistério no Centro
Educacional Clériston Andrade (...). Até então continuava uma
aluna tranquila, porém, comecei a me deparar com situação das
quais não concordava. A partir daí comecei a manifestar e expor
opiniões, pois iria ser uma professora e não poderia concordar
com meus antigos professores (...). Apesar de tantos anos
passados, o sistema de ensino não havia mudado quase nada.
Continuava o professor sendo o único detentor do saber e não
havia questionamento por parte do aluno.
Nos domínios da estética, conforme apresentada na obra fundamental de
Gadamer (2008a), Verdade e Método, o filósofo dirige-se à consciência estética,
aquela cujos momentos extra-estéticos que foram incorporados ao mundo e lhes
conferem significado. A consciência estética revela-se diferenciando o que está
intencionado (Gemeinte) esteticamente – o especificamente estético – do
conteúdo extra-estético que são as referências históricas que o sujeito possui,
além de uma forma presente, assume também o caráter de uma consciência
histórica. (SILVA JUNIOR, 2005).
Isis: No ano de dois mil e nove, prestei o processo seletivo para
professores e voltei a fazer parte mais uma vez do quadro de
professores da rede municipal de Tapiramutá, atuando em uma
sala de quarto ano na Escola Municipal Virgílio Pedreira, onde
encontrei uma turma heterogênea com faixa etária entre onze e
treze anos, com dificuldades na leitura, na interpretação e também
na escrita. Continuei a ajudar da mesma maneira os meus alunos
por serem uma turma pequena eram privilegiados, pois, sempre
que podia levava para os meninos vários tipos de merendas,
doces e outras coisas mais que não era da realidade daquelas
crianças (...) tenho certeza que fiz um bom trabalho.
De acordo com Gadamer (2008a), não faz sentido uma receptividade estética ou
simplesmente a aceitação de um modelo, pois cada interpretação ou
compreensão de mundo abarca o mundo circundante do sujeito que o interpreta
95

abrangendo sempre a um conjunto de significados, na visão de Isis, independente
de ser este o perfil ideal de uma época ou contexto vivenciado. Ela afirma ter feito
um bom trabalho, conforme pode ser visto ao final do relato; assim, não importa o
que possam dizer sobre a sua desenvoltura, ela tem uma opinião formada sobre o
assunto, uma forma singular de perceber esse contexto. Na interpretação de Isis,
ser professora vai além do trabalho de ensino da leitura e da escrita, abarcando
afetividade e zelo com seus alunos, como levá-los a experimentar o mundo sob
diversas formas. A referência da afetividade, como marca de ser professor,
encontra-se no fragmento de Selma, conforme pode ser visto abaixo:
Selma: No ano de 1981 meus pais me matricularam na escola
Estadual Julieta Pontes Viana (...) eu e minha irmã iniciamos
juntas por alguns dias tudo era novo, a professora era maravilhosa
gostava de cantar, fazer brincadeiras, Maria Senhora era o nome,
tinha uma letra muito bonita, nos tratava com cuidado, era meiga e
aconchegante, saudades. (...) Na segunda série a professora era
séria e mandona tinha sabatina na aula as vezes levava bolo,
lembro que uma vez dormi com a tabuada na mão para não
apanhar na aula de matemática.(...) No ano seguinte tive uma
professora maravilhosa tia Elenizia Oliveira como gostava de ser
chamada, uma vez fomos a um piquenique na fazenda dos pais
dela. Terminei o primário com a mesma professora Adélia e foi
diferente porque eu já sabia me defender.
A experiência estética, que se constitui numa experiência que permite ao sujeito a
aprendizagem e a autocompreensão – desde que seja abandonado o caráter
pontual da vivência, dando espaço para a compreensão da própria existência –
refere-se à vida e a sua compreensão, e neste caso, Selma demonstra além da
imagem construída sobre o perfil dos professores, a sua compreensão do que
vem a ser o bom professor e o professor ruim. (SILVA JUNIOR, 2005).
Na concepção gadameriana sobre estética, o filósofo defende que o encontro com
a obra é o encontro de particularidades de um mundo, portanto, não pode ser
restrito a um encantamento momentâneo e apenas ligado aos sentidos. (SILVA
JUNIOR, 2005). Essa relação entre hermenêutica (compreensão) e estética
caracteriza-se basicamente pelo caráter de verdade inerente na experiência, e
constitui-se numa experiência hermenêutica quando há abertura, historicidade,
diálogo, como também, sobretudo, a finitude.
96

Ao interpretar as vozes nos fragmentos escritos pelos professores, percebi que é
difícil fracionar a imagem, em sua forma de representação da docência,
considerando os elementos que constituem essa formação como entrelaçados e
inter-relacionados num conjunto integrado chamado existência de professor.
Cheiler: Em 1996 tive a oportunidade de ficar na regência de uma
classe de educação infantil. Foi uma experiência muito rica e uma
base sólida para o estágio no final do ano seguinte. (...) Desde
quando conclui o magistério, trabalho até hoje na mesma
instituição de ensino com compromisso, responsabilidade e amor
dedicado às crianças. A profissão de professor exige de nós, mas
a recompensa é grande, por que não há nada mais valioso do que
o sorriso e o carinho de uma criança, que a cada dia me
proporciona uma emoção diferente. Trabalhar com os pequeninos
me faz virar criança também e a fazer descobertas junto com eles.
Eu amo minha profissão!
A imagem que o docente tem, construída ao longo da história da educação, é de
dedicação e, sobretudo, de uma profissão que depende do afeto. Ser professor
representa, desde os primeiros anos escolares, conforme aparece nos escritos
que se seguem:
Itariane: Estudei a alfabetização aos 8 anos na Escola Estadual
Rui Barbosa com a professora 'Nini‘, com ela aprendia ler e as
palavras, frases e pequenos textos. Em 1982, com 9 anos
comecei a 1ª série na mesma escola com a pró Norma
Mascarenhas, pessoa meiga, paciente, maravilhosa. Lembro
como se fosse hoje, ela convocou minha mãe à escola, pois
queria me transferir para a 2ª série e graças a Deus que mãe não
aceitou trocar de mestra. Em 1983 e 1984, cursando 2ª e 3ª
séries, foi horrível as professoras foram péssimas, brutas e não
sinto saudade delas. Na 4ª série parece que tinha reencontrado a
primeira professora, pois pró Adélia era super parecida com a da
primeira série.
A imagem do que vem a ser professor está envolvida numa teia que abarca
dimensões afetivas, morais, políticas, dentre outras questões, e estão imbricadas
na formação. A forma de ser e de agir do professor revela o seu compromisso
com a docência: uma espécie de pacto com a profissão, incorporando os valores
que são percebidos na docência. Essa dimensão da formação pode ser percebida
também no fragmento abaixo:
97

Ana Roberta: Ainda vivenciei uma prática de ensino tradicional,
isto é, um ensino que o professor era detentor do saber e o aluno
era ‗tábua rasa‘, desprovido do saber da cultura letrada. No ano
de 1996 mudei-me da zona rural (povoado do Palmeiral) para
estudar na cidade de Tapiramutá, Bahia, mas, infelizmente não
iniciei minha trajetória educativa nesse referido ano, pois a minha
tia por ser professora buscou alfabetizar-me em casa, porém
devido à sua prática de ensino rigorosa e exigente levou-me a
ficar traumatizada e até chorar para não querer estudar com ela.
Nos anos de 1996 a 1999, estudei no Grupo Escolar Julieta Pires
Viana, passei por uma etapa na minha prática de ensinoaprendizagem,
pois passei a perceber a importância do ato de
estudar, além disso, tive apoio dos meus professores que me
auxiliaram a avançar na leitura, na escrita e na matemática. As
aulas eram bem dinâmicas, pois a educadora buscava
desenvolver uma metodologia de ensino incentivando-nos a
querer continuar a aprimorar nossas práticas educativas.
Há nele uma preocupação com a linguagem própria da docência que naquele
momento, na condição de aluno, não existia, apesar dos alunos também
construírem suas imagens sobre o que vem a ser o professor. A
interpretação/compreensão deles, porém, encontra-se limitada à sua condição
existencial de aluno e não como aquele que tem domínios sobre termos
específicos das ações pedagógicas. Deste modo, a compreensão apresentada
por Ana Roberta é uma leitura atual, como professora, da sua condição anterior
na posição de aluna; é uma compreensão presente do seu passado. Já o relato
de Lívia apresenta a compreensão de que a vontade de aprender do aluno é fruto
de uma determinada forma de ser professor, e isso demonstra mais uma vez que
as esferas não são isoladas, e que é possível visualizar a forma e a compreensão
nos fragmentos conforme pode ser visto.
Lívia: Iniciei no pré-escolar em uma escola Municipal Almirante
Barroso (...) eu tinha a maior vontade de aprender a ler e
escrever. Mas essa alegria toda teve bastante incentivo por parte
de uma grande pessoa que para mim é inesquecível, a minha
professora (...) uma pessoa doce, meiga, amável e amigável. Esse
jeito de ser da minha professora me estimulava no meu
aprendizado e ao término do ano letivo eu já estava alfabetizada.
98

Na escrita do memorial formativo sugerido pela UFBA, as noções temporais estão
presentes nos três pilares que compõem a produção: Eu estudante; Eu professor
e Eu professor no Programa de formação. Nas obras de Heidegger e Gadamer o
tempo é tido como horizonte de toda compreensão. Essa imagem construída do
presente para o passado ocorre também do presente para o futuro, como aparece
nos fragmento abaixo:
Cheiler: Em 2010, foi aberto na cidade onde moro um curso de
licenciatura em Pedagogia. Fiz o exame e passei. Foram três anos
de luta, luta prazerosa. Mas, nem diante das dificuldades cheguei
a pensar em desistir e sim de ir em busca dos meus objetivos, por
que muitos professores ainda esperam cursar uma faculdade. Ter
a oportunidade que eu tive e agarrei com unhas e dentes. Esse
curso abriu vastos horizontes em minha cabeça, fazendo com que
trilhasse mais caminhos. Em 2014, comecei a fazer pósgraduação
em Jacobina. Formei-me em 2015 em psicopedagogia,
por que sempre quis estar ligada à educação. Agora estou me
preparando para fazer novos cursos, pois a vontade de ir em
busca de mais conhecimento é crescente em mim.
A narrativa de Cheiler me fez pensar sobre o sentido da complexidade e a
“transgressão‖ dos limites daquilo que é universal e que elimina a singularidade, a
localidade e a temporalidade. Nesta proposição, bem como na ideia apresentada
por Gadamer sobre a Hermenêutica ir de encontro com a universalidade, a
singularidade produz singularidade. A vida do professor tem sua organização
singular entre os diversos tipos de organização existentes. Nessa leitura, não se
substitui o singular e o local pelo universal, ao contrário, é preciso aproximar
realidade social, singularidade e o desejo de uma formação universalmente
exigida ao professor. (MORIN, 2002).
A imagem projetada pela professora no fragmento revela o desejo de construir
determinada formação, a busca sonhada, com todos os aspectos, ressaltando
determinada imagem da docência. Já no fragmento seguinte, a revelação do
desejo e a relação com a realidade demonstram que Jeanes tem um conceito
próprio, elaborado por si, chamando atenção para a imagem abrangente da
docência; e essa ―individuação já vem, ela mesma impregnada também pela
realidade que lhe é posta, e é por isso que a individuação não é subjetividade,
mas força viva‖ (GADAMER, 2008a, p.282).
99

100
Jeanes: Ser professor é um dom de Deus, pois um educador é
pai, mãe, amigo, etc. Em fim um eterno aprendiz. Para a
sociedade o professor é o sabe tudo, aquele que conquistou seu
espaço, sua forma, por ser comprometido e responsável um
conjunto de aprendizagem. Ser professor é uma carreira que
exige esforço e muita dedicação pra obter resultados positivos.
A esfera estética na concepção de Gadamer não trata apenas de uma referência
histórico-conceitual da arte, mas trata-se de uma experiência hermenêutica de
compreensão. Para Gadamer (2007, 2008a), a compreensão da formação
humana, e nesse caso, de professores, ultrapassa inclusive o pensamento da
subjetividade e da experiência artística no sentido de obra de arte. Essa
compreensão da imagem do que vem a ser o professor é trazida em diversos
fragmentos aqui apresentados, em que se ressalta a imagem, a forma como visto
na narrativa acima.
Uma das imagens presentes na formação de professores é a do afeto pelos
alunos, relação que colabora inclusive com a aprendizagem no sentido de ser
esse traço da formação um elemento comum nas narrativas e ideia que se
aproxima da esfera estética se considerado o sensível como categoria de
compreensão. De acordo com Macedo (2010), ―o mundo dos afetos e o mundo
das implicações, conscientes ou não, são complexidades que a formação não
pode descartar‖ (MACEDO, 2010, p.128). O relato abaixo é um exemplo que
demonstra o quanto esta dimensão do sensível, própria da esfera estética, é
recorrente na formação de professores:
Lívia: No ano de 1996 continuei lecionando e me aperfeiçoando a
cada dia e passei a gostar mais que eu fazia. Com essa nova
experiência os alunos desenvolviam melhor seus conhecimentos e
cada avanço para mim era uma satisfação muito grande, isso
mostrava que estava adquirindo experiência e me aperfeiçoando
mais e mais. Com os estudos fui aprendendo mais as formações
para professores que eram oferecidas pela secretaria de
educação que transformou minha prática em sala de aula cada
vez melhor. Eu compreendia melhor os meus alunos e o
desenvolvimento deles e assim tinha mais facilidade.

A ideia da esfera estética como metáfora da compreensão trazida por Gadamer
(2007, 2008a), é uma tentativa de articulação do mundo e seus fenômenos com a
experiência hermenêutica da compreensão, como experiência de formação
humana. Essa formação é um encontro com a experiência à qual pertencermos,
nós e a obra. Em alguns contextos e situações, tais como a do relato de Cláudia,
é possível perceber que em alguns momentos os papéis se confundem nas
dinâmicas do exercício da docência em algumas situações:
101
Cláudia: Tive uma professora (...) que quase todos os dias ela
pedia que eu fosse em uma outra escola buscar os filhos dela e
em uma dessas buscas um dos filhos dela me agrediu
fisicamente, ele me mordeu por que eu fui pegar na mão dele, a
partir desse dia nunca mais fui buscar, afinal de contas eu fui para
a escola estudar e um dia me tornar uma grande profissional.
A obra é o próprio mundo que se põe diante de nós, enquanto temos a todo
tempo experiências boas ou ruins, que nos impactam, ou não, mas que fazem
parte do nosso percurso formativo, tocando-nos, atravessando-nos, ou não. A
tarefa hermenêutica do compreender proposta por Gadamer determina-se na
base da relação tensa entre a estranheza e a familiaridade,
Jeanes: Como professora lecionei pela primeira vez na Creche
Mãe Malvina em Volta Grande, povoado de Tapiramutá. Lá
encontrei uma realidade assustadora devido a necessidades dos
pais, dos alunos, por não poder oferecer alimento aos seus filhos
onde ficava o dia todo para que os pais pudessem trabalhar. Na
qualidade de educadora fui bastante humilde, amiga contribui para
a aprendizagem desses alunos. Tenho certeza que aprendi muito
com eles, assim (desta forma) para o meu crescimento
profissional.
A formação de professores é apresentada, neste fragmento, como atividade de
grande complexidade e abrangência, que remete a conhecimentos da realidade e
dos espaços por onde transita o professor. Na complexidade expressa por
―Jeanes‖ e defendida por Morin (2002, 2005), somos máquinas vivas e nos
integramos numa mega–máquina chamada ―sociedade‖, ao mesmo instante em
que somos apenas um instante no ciclo de outra máquina que é a ―espécie
humana‖, a capacidade humana de adaptar-se aos modelos sociais é visível.
Com o professor não é diferente, houve uma situação nova e muito distinta da

ealidade vivenciada por ―Jeanes‖, uma ―organização do trabalho‖ e sociedade
distinta do que ela estava acostumada, sendo necessária a produção e
reelaboração de uma nova vida numa nova práxis, conforme descreve o
fragmento de Conceição logo em seguida. (MORIN, 2002).
102
Conceição: A prática de ensino-aprendizagem constantemente
sobre transformações pedagógicas e metodológicas. O educador
deve estar preocupado com a sua formação profissional e também
com o desenvolvimento intelectual dos seus alunos. (...) É
necessário que o educador por meio do seu planejamento de
aulas, reflita e avalie a sua prática de ensino-aprendizagem por
observar o desempenho dos alunos, das atividades educativas
sugeridas.
A experiência estética é, essencialmente, experiência da finitude humana. Isso
significa que a condição de ser experiente torna-nos verdadeiramente conscientes
de nossa própria finitude, dos limites de toda antecipação, bem como, do caráter
de insegurança e incerteza dos nossos planos. O que a experiência, em sua
natureza mais íntima, revela que não somos senhores do tempo e nem do
espaço, já que nossa finitude sempre nos remete à abertura de novas
experiências. Conforme vimos anteriormente, no fragmento de Jeanes,
consciência de própria finitude, como também a consciência trágica da
experiência humana de se deparar com o inesperado e assustador cenário da
realidade educacional brasileira.
Pode-se perceber, em alguns dos fragmentos, a preocupação em detalhar a
estética da sala de aula e, desta maneira, acabam por apresentar referências
importantes do que vem a ser o espaço educativo que favorece a aprendizagem,
como é o caso do relato apresentado por Zenaide e Itariane abaixo:
Zenaide: Sentia-me cheia de felicidade ao chegar na escola
percebi o quanto aquele ambiente era agradável, lá encontrei
algumas colegas as quais eu já me identificava.
Itariane: Sei que não preciso de sonhos para gritar com meus
alunos, implorar silêncio, aplicar metodologias e conhecimentos;
precisarei de sonhos para transformar minha sala num ambiente
prazeroso e atraente, motivando meus alunos na arte de pensar,
agir e expressar suas ideias fazendo com que eles estejam a lutar
pelos seus ideais.

Há, em alguns dos relatos, a preocupação em descrever esteticamente o lugar de
onde veio, como é o caso do relato de Paulinha, que traduz a presença da esfera
histórica nesta descrição estética do tempo e lugar.
103
Paulinha: Morei com meus pais até 8 anos de idade com a
separação deles minha mãe acabou voltando para Jacobina,
fiquei com meu pai por um tempo por volta de 1986. Minha mãe
no ano seguinte voltou para Volta Grande, passei a morar
novamente com ela. Para se ter uma ideia morávamos em uma
casa de palha, em uma rua chamada ‗Rua da Palha‘, porque lá
quase todas as casas eram de palha.
No fragmento apresentado, Paulinha demonstra esteticamente a imagem de sua
origem, apontando para a ideia de costume, de identidade local, de tradição, ou
seja, a experiência estética está intrinsecamente ligada à tradição. Assim, as
experiências são, na ótica da hermenêutica fenomenológica de Gadamer, finitas e
limitadas pelo tempo e espaço. O reconhecimento de nossa finitude diante do
mundo faz das nossas experiências a própria historicidade, como seres que
atuam e agem na história e tradição. A compreensão hermenêutica da arte nos
coloca diante da tarefa de identificar como se articula a relação entre arte e
história, já que ambas se inscrevem de forma conjunta; como o relato de Emanuel
o demonstrou de forma simples.
6.4 A COMPREENSÃO NA FORMAÇÃO (ESFERA DA LINGUAGEM)
A linguagem, em conformidade com o ser, é abertura ou movimento de
desocultação da verdade (aletheia). Na visão de Gadamer (2007, 2008a), trata-se
de uma dinâmica, o meio (médium) que viabiliza compreensão. Trata-se da
interpretação que se desenvolve por meio de uma linguagem que deixa falar o
seu intérprete. Neste sentido, a linguagem é também um dispositivo de formação
por tratar-se de uma relação entre sujeito e mundo, já que tudo que pode ser
compreendido é linguagem, e isso se torna o fio condutor da experiência
hermenêutica.

De acordo com a narrativa seguinte, o docente iniciou sua primeira experiência
como professor ―leigo‖ e sua disposição e abertura, em buscar pistas sobre a
prática pedagógica foi e é determinante para as conquistas e experiências no
campo educativo,
104
Miguel: As boas conquistas são conquistadas quando os
conquistados a conquistam. Nunca pensei de concluir o segundo
grau. Início da jornada de professor em 1º de junho de 1993,
como professor leigo, ainda tinha 5ª série lecionava e estudava.
Foi um momento bastante emotivo e de conhecimento, pois tinha
uma pedagoga que foi minha melhor parceira nos meus trabalhos.
Só que trabalhava na zona rural foi minha primeira experiência
como professor mesmo. Sendo da zona rural, vim pra cidade aos
23 anos já conhecia a realidade do aluno. Trabalhava com série
multisseriada, várias série numa só classe. Na maioria das vezes
os alunos andavam a pé ou no carro de outras pessoas, isso
marcou minha trajetória de professor (...). Como professor crítico,
sou um aventureiro responsável predisposto à mudança, à
aceitação do diferente.
Na experiência vivida, o professor apresenta sua singularidade na coletividade,
apresentando a ideia de todo nas partes e partes no todo, conforme Morin (1983,
2002, 2005), o holograma perceptivo. Esse princípio nomeado de hologramático
afirma que ―não só a parte está no todo, mas também o todo está na parte‖, o
cidadão educado na escola enquanto indivíduo, está inserido numa sociedade ou
cultura mais ampla, e a partir disso a formação escolar ressoa neste espaço
macro. Isso implica em dizer que vamos das partes para o todo e do todo para as
partes, na busca pela compreensão dos fenômenos sociais, e isso foi percebido
pela professora ―Conceição‖ (MORIN, 2002), de acordo com o fragmento abaixo:
Conceição: No último ano de ensino médio tive a oportunidade de
trabalhar pelo Programa Topa todos pela Alfabetização; educação
voltada para jovens e adultos. Foi uma experiência bastante
gratificante; porque me possibilitou avaliar esses cidadãos na
alfabetização, isto é, não apenas com a aquisição do domínio
da leitura, mas na capacidade de usar essa habilidade no
desenvolvimento pessoal e coletivo com vistas à construção
de uma nova sociedade cidadã. Na minha prática de ensino
aprendizagem com jovens e adultos do Programa Topa todos pela
Alfabetização, para que ocorra uma aprendizagem significativa é
vital a ocorrência de um intercâmbio ou interação entre educador
e educando. (Grifos meus)

A ideia de coletividade, de compartilhamento dos saberes, de troca, de
aprendizado, na fusão de horizontes, trata-se de um processo visível de
formação, da importância do diálogo e da troca com os colegas, não por terem
acumulado mais anos de experiência; porém, ainda é vista de forma muito tímida
e superficial pelos professores que entendem o conceito de ―fusão de horizontes‖
como um compartilhar de experiências vivenciadas por outros professores,
havendo, dessa forma, o intercâmbio e a troca de saberes. No caso da ―fusão de
horizontes‖, conforme é apresentado por Gadamer, há uma elaboração mais
profunda do sentido do ser ao se deparar com experiências dos outros. O sentido
desse encontro é a dimensão ontológica, que envolve diversas linguagens, suas
tradições, histórias de vida evidenciando-se a complexidade da compreensão de
mundo.
105
Selma: Atuo na área de educação há cinco anos, com
experiências diferentes (...). No decorrer desses anos passei por
muitas dificuldades, principalmente no início porque ainda não
tinha terminado o curso de magistério havia uma certa
discriminação nos encontros de professores e diretores, as vezes
me sentia olhada, testada por parte dos colegas. As dificuldades
encontradas eram encaradas como aprendizado sempre com um
só objetivo: levar meu alunado a alcançar o ―desconhecido‖ que
era ler e escrever. (...) O professor na verdade está sempre em
busca do novo, estudando, pesquisando, buscando novos
conhecimentos para serem trabalhados em sala de aula. Na
escola o professor está diariamente em descobertas onde
professor e aluno são parceiros. (grifos meus).
A formação de professores tem motivações particulares e caminhos que
desobedecem à ordem e às certezas. As experiências se inscrevem no plano da
incerteza da virada do jogo da vida, superando dificuldades sociais, econômicas e
revelando-se as singularidades da existência. Essa proposição tem a ver com a
ideia de Morin (2002, 2005), quando descreve um dos princípios básicos da teoria
da complexidade que é a ―irredutibilidade‖ do acaso e da desordem. As noções de
desordem e de acaso são recorrentes neste princípio de incerteza, e permanece
inclusive no que diz respeito à natureza que o acaso nos traz, permitindo que o
sujeito dê respostas à família e amigos, como pode ser visto nessa proposição.
(MORIN, 2002).

106
Paulinha: Passei um bom tempo em casa, sem muitas
expectativas, foi quando surgiu a oportunidade de fazer um
concurso público em Tapiramutá em 2005, para professor de
educação infantil. Quando saiu o resultado da prova nem
acreditei, tinha conseguido passar, fiquei muito feliz, cheguei a
gritar de tanta felicidade. Sabia que minha vida iria mudar e essa
mudança era para melhor. Neste momento passou um filme em
minha cabeça, lembrei da vida difícil que tive lá na infância,
lembrei também que nenhum dos meus irmãos conseguiram
chegar até lá e naquele momento estava tendo a chance de
mudar.
Percebo que ―ao buscar a própria compreensão, amplia-se a possibilidade de
compreensão do outro; ao se identificar diferentes maneiras de perceber, reagir e
significar a experiência de cada pessoa, em sua singularidade e em sua própria
etapa de desenvolvimento, o faria de maneira diferente‖. (WARSCHAUER, 2001
apud SÁ, 2008, p. 246). Ou seja, uma experiência torna-se formativa quando o
formando percebe o que está vivendo com olhar atento e relaciona com outras
referências de mundo que já construiu e continua a construir.
Jeanes: Sinto privilegiada por ter entrado em uma conceituada e
concorrida Universidade Federal da Bahia – UFBA com o objetivo
de ampliar meus conhecimentos profissionalmente e
financeiramente procurando explorar os meus conhecimentos
tenho certeza que aprendi. Eu e meus colegas de curso trocamos
experiências, participamos das oficinas com objetivo de ampliar
nossos conhecimentos contribuindo para vida profissional, familiar
e social.
Em muitos dos fragmentos, aparece a ideia de fusão de horizonte expressa na
compreensão da própria formação. Um horizonte de aprendizagem quer dizer
sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para
afastar ou substituir por outros horizontes, mas para alçar vôo em novas
possibilidades de aprendizagem, tendo o lançar-se como princípio fundante. Essa
concepção, a partir da abertura para o mundo, a disposição para compreensão,
apresenta-se nesse fragmento da fala de Reginaldo,
Reginaldo: Reportar-se às experiências vividas por professores
no seu campo profissional é desvendar caminhos de intensas

107
expectativas e surpresas nas inúmeras descobertas,
contentamentos e frustrações de se viver o conhecimento
adquirido por prática de docência. Durante esse longo tempo de
convivência na área já passei por várias situações abençoadas e
outras desagradáveis, onde procurei amparar o educando através
de um proveitoso diálogo.
A interpretação/compreensão de mundo é, para Gadamer, um conceito prévio, de
pré-compreensão, que dará lugar a outros conceitos mais adequados, o que não
significa dizer que esse conhecimento é descartado, ao contrário, é sempre
conservado nessa formação como espécie de fluxo para as experiências
seguintes. O que ocorre, nesse processo, é que diante de qualquer texto, nossa
tarefa numa postura hermenêutica é de abertura ao outro, ao texto, no sentido
ampliado de concepção de texto em que o próprio mundo se apresenta como tal a
ser interpretado/compreendido.
Jeanes: O professor na verdade está sempre em busca do novo,
estudando, pesquisando, buscando novos conhecimentos para
serem trabalhados em sala de aula. Na escola o professor está
diariamente em descobertas onde professor e aluno são
parceiros, fazendo educação de qualidade para a melhoria da
cidadania. (...) Cursando pedagogia tive certeza de que nós
professores somos peça fundamental na vida escolar dos alunos.
No discurso acima emerge o sentido de alteridade presente na compreensão, pois
segundo Gadamer (2008a), quem busca compreender precisa estar disposto a
deixar que o compreendido diga alguma coisa. Na visão do filósofo, o horizonte
do presente está num processo de constante formação, na medida em que
estamos obrigados a pôr constantemente à prova todos os nossos preconceitos.
Parte dessa prova é o encontro com o passado e a compreensão da tradição da
qual nós mesmos procedemos (GADAMER, 2008a), conforme aparece no
segundo trecho. A ideia de alteridade na formação de professores como abertura
para compreensão também aparece na história contada pela professora ―Nara‖:
Nara: Um dos momentos marcantes na minha experiência de vida
de professora foi, em uma determinada aula, depois de trabalhar
as famílias silábicas, algumas palavras e a leitura das mesmas,
percebi que tinham duas alunas escrevendo na lousa letras
aleatórias. Lembro-me que uma delas escrevia só vogais e a outra

108
já usava vogais e consoantes, de repente essa aluna escreveu e
sublinhou tais letras: I R C, aquela escrita me chamou atenção e
perguntei para ela. Que palavrinha é essa que você escreveu?
Imediatamente ela respondeu: ‗Irecê, professora, é o lugar que
minha mãe morava‘. Atenta à sua resposta, sugeri que lesse a
palavra, a aluna leu apontando com o dedo as letras. Satisfeita
com o desempenho dela, fiquei radiante, então a elogiei e disse
que ela estava de parabéns. (...) A partir daí comecei a
compreender como acontece o processo ensino e aprendizagem,
e que as crianças traziam consigo experiências riquíssimas de
vida e que eu teria que adequar a essa realidade, acreditava no
diálogo, na relação de respeito mútuo, na afetividade com o aluno,
no prazer e na alegria de ensinar e aprender de forma lúdica.
A compreensão, para Gadamer, ocorre exatamente a partir de nossos
preconceitos que são os nossos pré-juízos ou juízos antecipados das coisas,
conforme o exemplo acima em que a aluna já tinha sua pré-compreensão. Essa
pré-compreensão vai além dos juízos individuais, mas se constrói na coletividade,
constituindo a realidade histórica do nosso ser. Ou seja, a compreensão é algo
que fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido que nos marca
tornando-a compreensão possível. Neste caso, a professora no exercício da sua
prática, percebe que o aluno tem suas referências de mundo e leva isso para a
escola, conforme foi relatado por ―Nara‖ na sua experiência de formação. Essa
compreensão também é apresentada por ―Adriana‖ na sua experiência com
Educação de Jovens e Adultos,
Nara: Minha história real na experiência de professora vou falar
sobre uma aluna do TOPA que venho observando desde o início
das aulas, pois sua história me chamou atenção. Ela é filha de um
casal humilde, moradores da zona rural, sendo seus pais
analfabetos, visto que naquela época o acesso a escola bem
como a outros serviços era uma raridade. A história de vida de
Judite não foi muito diferente. Apenas aos 11 anos teve acesso ao
Mobral, onde ficou por apenas 06 meses, ou melhor, aprendeu
escrever apenas o seu nome em letra de forma, para aquela
época uma grande conquista, porém, ao longo de toda sua árdua
vida, sentiu falta da leitura e da escrita especialmente nas
situações cotidianas. Dotada de uma linguagem popular (latra,
bicicreta, apois, frigerante, dificulidade etc.) marcas da cultura
rural, estabelece em sua comunicação grande influencias das
crenças religiosas, inclusive realiza a mais de 25 anos o caruru,
chamado de cariru, em devoção a Cosme e Damião. Aos 65 anos,
através do incentivo de suas netas, já com formação acadêmica,
resolveu voltar a estudar e se matriculou no TOPA. No decorrer
das aulas tenho percebido que Dona Judite muito se esforça, mas
são muitas as dificuldades, principalmente no que diz respeito à

109
escrita, pois a mesma não consegue escrever de forma ordenada,
conhece as letras, mas escreva a palavra do jeito que é
pronunciada apenas seu nome escreva de forma ordenada e
legível.
Neste fragmento apresentado no memorial de ―Adriana‖, é possível visualizar o
uso do discurso sobre aspectos da vida na formação e vice versa, dando a ideia
de formação como teia complexa que inclui múltiplas referências. De acordo com
Oliveira (2010), a formação humana, e nesse caso de professores, se inscreve a
partir da relação entre as múltiplas raízes: culturais, morais, familiares, étnicas,
ideológicas, religiosas... A vida é uma totalidade (unidade) dessas múltiplas raízes
que se entrecruzam (diversidade) e são estas relações que irão determinar a
história dos professores (OLIVEIRA, 2010).
Na hermenêutica gadameriana é que não há diferença entre a interpretação e a
compreensão, pois compreender é sempre interpretar. Compreender uma
tradição implica projetar um horizonte histórico que vai originar um novo horizonte
presente. Um texto histórico somente é interpretável a partir da historicidade do
intérprete; e a fala de ―Adriana‖, quando apresenta a experiência vivida com Dona
Judite, remete a essa abertura necessária ao professor como compreensão das
realidades que cruzam seu percurso de formação, sendo ele (o professor) sempre
formando e formador.
Lívia: Recordo-me de quando lecionava com Educação Infantil,
numa classe com trinta e dois alunos com a faixa etária de quatro
e cinco anos. Ao ficar sabendo que iria trabalhar com essa série,
fiquei um tanto apavorada, pois, nunca tinha lecionado com a
mesma. No primeiro dia de aula, quando cheguei na porta da sala
de aula e me deparei com aquelas crianças todas chorando,
confesso que senti vontade de sair correndo, mas, respirei fundo e
segui em frente. Dia após dia, fui conseguindo conquistar a
confiança dos pequeninos e tentando me adaptar com a realidade
vivida.
A realização da fusão de horizontes, como a que está representado na fala de
Lívia, de um exemplo da consciência da história efeitual, que em primeiro plano,
da consciência de uma situação em que nos encontramos em face da tradição e

que queremos compreender. A fusão de horizontes, nesse plano, se dá pela
interpretação, pela disposição em compreender conforme ocorreu com a
professora. Essa disposição aparece numa outra fala, trazida por Lívia, quando
aponta para o papel do professor:
110
Lívia: (...) Vale ressaltar que muitas vezes o professor precisa
desempenhar o papel de pai ou mãe, para seu trabalho ser
realizado com sucesso, uma vez que, a sociedade em geral
precisa ser mais humanizada em se tratando de entender ou ao
menos tentar entender as causas que se passa por trás dos
problemas existentes. (grifo meu).
O ato de interpretar implica a produção de acolher o novo, considerando o sentido
que lhe foi dado pelo intérprete, dentro de uma concepção dialógica. Essa adição
de sentido decorre da consciência da história efeitual do intérprete, ou seja, a
disposição para compreender, para colocar-se no lugar do outro. É por isso que
uma consciência formada hermeneuticamente solicita abertura, mostrando-se
receptiva, desde o princípio, para a alteridade de sua visão de mundo como texto.
Essa abertura não pressupõe neutralidade e nem auto-anulação, já que o ponto
de partida é sempre a pré-compreensão ou nossas construções anteriores.
Ana Roberta: Em uma das minhas aulas de matemática levei
para eles varias situações problemas, e pedi que eles
respondessem, mas antes fui ao quadro resolver alguns
problemas para que os mesmos soubessem como realizar a
atividade, como nunca fui boa de matemática, mas me achava a
dona da sala e acreditava que por ser professora sabia tudo e os
alunos não iriam me questionar, me dei mal, escrevi um problema
no quadro, cuja divisão seria dividir sessenta sacos de café por
três alunos, Erisvaldo levantou e disse: ‗Pró divide os sessenta
sacos por todos nós‘. Nesse momento gelei, a turma tinha
dezesseis alunos e eu era péssima em matemática, mas a
estagiária da sala entendia bem a matéria e sabia que eu não era
como ela, pegou o giz e respondeu a questão para mim. A partir
desse dia foi que percebi que o professor tem que estar
preparado para os questionamentos dos alunos. (grifo meu).
O fenômeno hermenêutico fenomenológico da compreensão a partir de seu
fundamento mais determinante, a finitude da experiência histórica, só se faz
possível sob os rastros da linguagem que é a forma de interagir com o mundo,
como é o caso do relato de ―Ana Roberta‖. Apenas a partir da linguagem e,
consequentemente, por suas referências de mundo, comuns a todos os entes,

pode-se realizar a mediação da experiência de finitude histórica do ser humano
consigo mesmo e com o mundo, conforme o exemplo abaixo dado pela
professora Jeanes:
111
Jeanes: Lembro que na 8ª no turno matutino, tinha um aluno
chamado William, ele era portador de necessidades especiais, um
aluno muito educado, carinhoso e inteligente. Apesar da escola
possuir um aluno especial, não tinha recurso para atendê-lo e
William não conseguia entender a escrita dos professores no
quadro, na folha de ofício e isso vinha prejudicando ele. Como
conhecia a família dele, tínhamos mais proximidade e ele relatava
das grosserias com que alguns professores o tratavam, resolvi
ficar atenta. Um dia entrei na sala que ele estudava para convidar
os alunos para uma gincana estudantil, a turma estava fazendo
uma avaliação, pedi licença ao professor e fiz o convite. Logo me
chamou atenção, todos os alunos estavam com uma folha
avaliativa menos William, eu questionei porque, ele não estava
com a folha e para o meu espanto o professor falou que não tinha
necessidade, ele não iria entender nada mesmo e só tava
passando tempo lá e se William conversasse ele colocaria para
fora, para não atrapalhar os alunos. William estava em prantos,
chorando muito. Sair da sala e fui até a diretoria, inconformada
com a atitude, do professor. A diretora tomou a providência
cabível naquele momento, depois disso descobrimos que alguns
professores inventavam nota para o aluno, não deixavam
participar das aulas, tratavam-no como doente e não como
deficiente. O que me chamou atenção foi a falta de
profissionalismo o preconceito existente, tanto pelo professor
como pelos colegas que deixavam a situação repercutir. Após
essa infeliz descoberta fizemos uma palestra envolvendo toda a
escola sobre a: Inclusão Escolar, que tiveram bons resultados,
pois surgiram vários outros problemas até então desconhecidos.
No encontro com o outro, superamos a estreiteza de nosso saber corrente das
coisas, pois se abrem novos horizontes para o desconhecido, como foi o caso da
situação descrita pela professora ―Jeanes‖. A abertura da professora para a troca,
o intercâmbio, a formação pela interlocução com o outro, que demonstra o sentido
de alteridade no encontro com a tradição do aluno William, de modo semelhante
acontece na experiência da Professora Ana Roberta, conforme ela relata abaixo:
Ana Roberta: Nas Escolas onde lecionei fiz um trabalho produtivo
sem ter dificuldades com alunos e sei que muitos alcançaram o
objetivo que eu desejava alcançar, exceto um aluno de nome
Marcos que fazia o 1º ano na Escola Municipal Constantina Vieira,
enquanto os outros alunos ficavam sentados fazendo atividades,
ele ficava andando pela sala perturbando e batendo nos colegas

112
atrapalhando a aula, quando eu o reclamava me respondia com
palavrões e fazendo gestos obscenos me deixando sem ação,
mas sempre soube colocar-me no lugar de professora, várias
vezes foi preciso chamar a direção da Escola para resolver o
problema o que também se tornava difícil, pois o aluno o tratava
da mesma forma. Dizia que iria levar ma faca para eu e o diretor e
que não gostava daquela Escola. Os pais eram chamados até a
unidade escolar mais não apareciam ficando só em nossas mãos.
Tive que expulsá-lo da sala muitas para conseguir um bom
resultado na aula conversei com ele algumas vezes, ou melhor,
tentei, para entender as atitudes dele não tive explicação só soube
que a criança apanhava bastante dos pais em casa. E assim fui
levando até o final do ano letivo, o aluno rebelde, que muito me
admirava por ser apenas uma criança de 05 anos.
Assim, uma das experiências mais importantes na formação de professores é
aquela que possibilita a relação com o mundo no sentido de troca com os outros,
na busca pelo autoconhecimento, consciência da formação. Isso implica no
conhecimento histórico com a valorização da tradição que vivemos, das
linguagens que medeiam e intermedeiam essa relação, e da própria relação com
a estética no sentido de experiência hermenêutica. Essa experiência pode
enriquecer a tradição, confirmando-a, modificando-a, enfim, contribuindo para a
descoberta de nossa própria identidade enquanto professores em processo de
busca e compreensão de mundo.

7. UM INSTANTE CHAMADO CONCLUSÃO
113
Durante a nossa vida:
Conhecemos pessoas que vem e que ficam,
Outras que, vem e passam.
Existem aquelas que,
Vem, ficam e depois de algum tempo se vão.
Mas existem aquelas que vem e se vão com uma
enorme vontade de ficar...
Charles Chaplin
O que confere particularidade especial à relação entre a formação e a existência?
No que a hermenêutica no pensamento de Gadamer contribui no tocante à
formação existencial? As discussões desenroladas, neste trabalho, referentes à
experiência da formação a partir da leitura das esferas da existência propostas
por Gadamer (2007, 2008a, 2008b), permitiram-me perceber a profundidade e
complexidade da formação, se considerado seu sentido hermenêutico
fenomenológico como a arte de compreender/interpretar o mundo com mediações
da linguagem e da tradição humana. Desta maneira, reconheço a formação no
seu sentido existencial, compondo-se com o do risco, com o lançar-se no mundo
desconhecido da aprendizagem, da complexidade, da multirreferencialidade,
como um modo de ser, ou mesmo num movimento de vir a ser considerando as
projeções de cada um a partir da interpretação, tendo a linguagem como
elemento mediador.
Neste estudo, propus um passeio epistêmico e ontológico sobre a formação em
sua complexidade. A primeira proposição foi pensar a formação no sentido da
―existencialidade‖ humana, essa tentativa remete ao próprio acompanhamento do
percurso da vida vivida com as tensões permanentes entre as limitações e
possibilidades de cada sujeito de lançar-se. A priori, essa composição
apresentada, pode parecer abrangente ou mesmo ramificada demais; mas, devo
afirmar que estudar a formação no sentido hermenêutico, existencial, revela a
natureza e abrangência dos processos formativos, já que, produzir conhecimento
sobre a pessoa em formação significa trazer seu lugar, seu tempo e modos de

aprendizagens, revelando nuances que passam pela complexidade, pela
multirreferencialidade, movidos pela interpretação/compreensão de mundo.
Este trabalho com formação do/no Programa de Formação de professores/Curso
de Licenciatura em Pedagogia UFBA/Tapiramutá utilizou-se de fragmentos de
memorial formativo, e histórias sobre formação, que marcaram a vida dos
professores cursistas e foram evocadas durante uma oficina formativa oferecida
aos graduandos do referido curso, cujo tema foi exatamente o título deste trabalho
de mestrado. Nele faço a opção, declarada a todo instante, pelo exercício de
interpretação/compreensão, conforme teoria discutida por Hans Georg Gadamer
dialogando com outros autores que contribuíram com essa composição. A
intenção da pesquisa foi buscar compreender como os professores-cursistas
compreenderam seus processos formativos e como os conceitos da hermenêutica
fenomenológica de Gadamer (2007; 2008a; 2008b) aparecem em seus registros.
As narrativas me fizeram compreender a riqueza de referenciais que trazem os
professores nas suas experiências sobre formação, realizadas e evidenciadas nas
reflexões, nos questionamentos, na continuidade e/ou ruptura, nos projetos de
vida etc. Esse trabalho, sobre formação de professores, a partir de fragmentos,
revela o ser pensante, sensível, imaginante que se emociona, relatando sua
subjetividade na singularidade e pluralidade com elementos da tradição, da forma
de ser e apresentar-se ao mundo, como também, das linguagens utilizadas como
fio condutor da compreensão humana.
No decorrer do trabalho, tentei articular a ideia de formação com o que considero
teia, numa tentativa de vivenciar a complexidade na produção deste trabalho. Os
fios foram muitos, os quais fui puxando ao longo do estudo, e isso me fez
perceber a ideia de construção no sentido singular e plural trazida por Josso
(2004). Esta construção tem seu sentido plural, por minha condição existencial,
humana, pertencente a uma sociedade e comunidade, uma relação com o mundo
e o sentido singular, por ser uma composição que foi sendo engendrada, a partir
das minhas compreensões/interpretações em meu ser no mundo.
114

O exercício da interpretação/compreensão na dialógica, na complexidade, na
multirreferencialidade, da existência (ontologia) são conceitos que se articulam na
realização do fenômeno estudado, que foi a formação. Importa salientar que o
professor tem matrizes diversas, como as questões culturais, morais, familiares,
étnicas, ideológicas, religiosas, dentre tantas outras, e que essa unicidade na
multiplicidade é resultante de um processo complexo de referências que se
entrecruzam, determinando a formação. Desta forma, torna-se inviável estudar a
formação, pelo sentido existencial, sem considerar a história do sujeito, suas
tradições, as múltiplas referências que ele carrega na complexidade de sua
existência.
A compreensão/interpretação da realidade e a possibilidade de nela executar
intervenções, considerando a tradição, o mundo dado a que pertence o professor
me fez perceber a contextualização e valorização necessária às questões locais e
singulares de cada sujeito. Esse valor da tradição que em nada tem a ver com as
chamadas teorias pedagógicas ―tradicionais‖, havia se perdido na pedagogia,
junto com a ideia de tradição. Tornou-se quase que uma ofensa valorizar o
tradicional ou no caso a ―escola tradicional‖. Em minhas elaborações, na condição
de pedagoga, tentei resgatar um pouco, através dos estudos de Gadamer, a ideia
de que as nossas tradições podem estar inscritas em nosso ser no mundo como
pré-compreensões, elementos importantes para a compreensão no sentido
hermenêutico.
Essa talvez tenha sido uma das contribuições desta pesquisa à minha própria
formação, quando percebo que ―tradicional‖ não deve ser abolido e negado, ao
contrário, a tradição, na perspectiva gadameriana, nada tem a ver com posturas
rígidas e repetições como práticas de ensino. Tradição é existência, e existência é
o sentido da vida, tomando, como Heidegger, o sentido de existência como
Dasein (ser no mundo). A partir destas elaborações, percebo que só é possível
compreender algo, o mundo ou a própria formação, a partir do que já foi
compreendido (a pré-compreensão) e essa pré-compreensão está na história e
115

tradição. E a hermenêutica fenomenológica de Gadamer (2007; 2008a; 2008b),
nesse caso, resgata o valor da tradição histórica em busca da verdade.
Essa experiência da tradição histórica, conforme apresenta o filósofo, ultrapassa
fundamentalmente aquilo que nela é pesquisável, tomando não como ideia de
verdade ou não-verdade, mas sim, como mediadora constante da verdade que
importa naquele instante (STEIN, 2002). A partir disso, essa compreensão torna-
se um acontecer da verdade, na qual já estamos desde sempre, por conta da
nossa condição humana, mergulhados na tradição. Assim, Gadamer vê a
possibilidade de fenomenologicamente compreender esse acontecer da formação
em três esferas da tradição: o acontecer na obra de arte, o acontecer na história e
o acontecer na linguagem. O que tentei fazer foi exatamente discutir essas três
esferas na formação do professor, mas na medida em que os fios da minha
própria compreensão foram sendo puxados como teia e compreensão de mundo.
Durante o percurso de minha própria formação houve mediação entre os
conhecimentos de mim mesma, na existencialidade, dos vários registros,
representações que foram resgatados da memória, da tradição, do julgamento
que faço sobre formação de professores, sendo articulado com as descobertas
realizadas neste período. Posso dizer deste modo, que a existencialidade,
presente nesta composição, tem textura própria por tratar-se de compreensão
singular construída na pluralidade das relações que fui estabelecendo com
colegas, situações e conhecimentos.
A formação de professores estudada, a partir deste olhar hermenêutico
fenomenológico, busca valorizar essa singularidade, tomando como princípio a
abertura de mundo para que novos horizontes venham contribuir de forma
dialógica com os estudos sobre formação. Nos registros dos professores-cursistas
do projeto de Tapiramutá, houve essa evocação do tempo, da poesia do cordel,
da ―casa de palha‖, das quadrilhas, da história do lugar e do povo. O tempo e o
lugar como elementos constituintes da formação de professores.
116

Surpreendeu-me o fato de na compreensão de si mesmo, o professor buscar
formas ornamentadas para revelar suas experiências. Nas narrativas, aparecerem
nuances da formação, matrizes e um número significativo de evidências de que
estudar a formação na existência é um campo que se abre enquanto
epistemologia da formação com estudos mais condizentes com o sentido e o ato
de formar-se.
Apoiada nos fragmentos das narrativas dos professores de Tapiramutá entendi
que ser professor é ser gente, e desta forma, faz-se necessário construir novos
caminhos e estudos sobre formação de professores, no sentido de considerar a
história de vida, memória e compreensão de mundo a partir de condições dadas:
concretas e históricas são capazes de fazer elaborações que ressoarão em sua
formação.
Neste entorno, teorizar sobre a formação de professores é, antes de tudo,
vivenciá-la, experimentando a vida na busca por constituir-se professor. A partir
de suas experiências de mundo, o professor encontra-se atrelado às dimensões
históricas, estética e da linguagem como compreensão. As referências que
surgiram das narrativas dos professores aqui apresentados servem para perceber
a formação no sentido existencial e não como acúmulo de experiências ou de
anos de docência, mas como articulações possíveis da experiência como
compreensão de mundo em que os sujeitos recorrem às múltiplas referências
construídas ao longo da vida permitindo-se ao diálogo e à instalação de novos
horizontes e compreensões.
Portanto, a formação de professores é o modo de Ser do professor, considerando
a sua existencialidade de ser e estar-no-mundo-com-o-outro, de forma errante,
interpretando/compreendendo esse mundo com suas tradições e relações. Falar
de formação professores é considerar sua profundidade, singularidade do
professor, coletividade e diálogo no sentido mais amplo da palavra formar-se. A
formação docente influencia a forma de ser e, ao mesmo tempo, é tomada como
caminho de busca, realização e projeção pessoal do professor.
117

Ao narrar seu processo formativo, o professor enfatiza problemas estruturais e as
dificuldades que interferem no processo, como também diretamente na sua
atuação como docente. Mas ao que parece, há uma compreensão geral da
profissão, enquanto ação complexa, que exige resistência, tolerância e mesmo o
uso de referências que o ajudem a compreender diferentes realidades. Assim, a
formação de professores passa pelo exercício da descoberta, da abertura e
compreensão de processos e acontecimentos no interior de condições históricas
vivenciadas pelo professor. Numa proposição hermenêutica fenomenológica,
seguramente não existe compreensão e nem formação livre de pré-compreensão,
já que ―aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento, em
virtude do qual aquilo que possui sentido acaba se impondo‖ (GADAMER, 2008a,
p. 494).
O olhar presente, da experiência vivida com uso das palavras, é variado,
multirreferencial e complexo. No entanto, a experiência de ser professor remete
àquilo que foi aprendido, experimentado que em algum momento, foi vivido pelo
sujeito. A experiência é a ―referência ao mundo vivido, ao momento existencial da
pessoa, incluindo-se aí todas as vivências que compõem tal momento‖. Algumas
dessas experiências são conscientes e outras não, mas certamente fazem e
influenciam o seu estar-no-mundo em determinado momento. (DUTRA, 2002, p.
372)
A importância do uso de fragmentos de narrativas evoca a riqueza do exercício de
(auto) crítica e (auto) conhecimento do escritor(a), a partir dos registros pessoais.
O professor é levado e leva seus pensamentos para traduzir, com o recurso da
linguagem, o processo formativo como existência, ou seja, a experiência. A
linguagem utilizada é tradutora do vivido na roça, na rua da palha, no adobe, nas
charretes e em tantas outras experiências vividas. Todas elas são complexidades,
formas de organização da experiência viva e ramificada.
118

As experiências destes professores, conforme foram apresentadas nos
fragmentos, configuram-se como experiências formativas passíveis de relatos e,
neste exercício, houve uma busca, revirando a memória, para dar o tom das
narrativas e seu teor experiencial formativo e existencial. Com os estudos
realizados percebi, por fim, o quanto a formação de professores em exercício
constituí-se na coletividade como elemento básico, dialógico que proporciona a
troca de experiência, e, assim, a formação do professor.
119

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