AS LEIS DA HOSPITALIDADE – D(errida)entre ética e literatura
AS LEIS DA HOSPITALIDADE – D(errida)entre ética e literatura AS LEIS DA HOSPITALIDADE – D(errida)entre ética e literatura
guarda (se garde), ela circula nela mesma, ela se automobilisa e se olha (se regarde), muito próxima de si mesma, na imagem que ela se reenvia – pelo correio precisamente. O trajeto do fort:da permanece de qualquer modo muito breve (pelo menos na representação que têm dele e que repousa na tradição postal, pois fora desta representação familiar e familial, eles são sem relação, como aliás S. e P., entre eles, numa distância infinita que epístola alguma jamais poderá atravessar), digamos o correio ao lado, um carteiro de bicicleta com pregas na calça deposita o Filebo no n° 19 da Berggasse como um pneumático, e aqui estás 106 O humanismo se junta a si num envio, no jogo breve e extraviável de correspondências. Consequentemente, o “humano” aparece para si neste diferimento. A importância dos guardiões de correspondências é indubitável: “postar é enviar ‘contando’ com um ‘alto’ (halte), o revezamento ou o prazo suspensivo, o lugar de um carteiro (facteur), a possibilidade de um desvio e do esquecimento (não do recalque que é um momento de guarda, mas do esquecimento)” 107 . O motivo da presença, vale notar, transita por esta “representação familiar e familial” do postal – o qual, como dissemos, a difere e a leva a si. Mas se uma “condição tecnológica” dava a esta era postal-humanista, e a seus pressupostos, ao Estado, a sua virtual unidade, há de convir que uma transformação ou aceleração desta condição tenha abalado esta unidade e/ou sua aparência 108 . Até o “fracasso”. Este, contudo, poderia ser ainda pensado apocalipticamente como um grande “alto”, uma parada, um revezamento inaudito que, acabado o tradicional carteiro-guardião, daria lugar a um novo tipo de “carteiro” (lembramos de B e a maldonne das “cartas”). D não deixa de advertir quanto ao perigo de homogeneização ao pensar uma grande Central dos correios 109 , e uma carta sobre o 106 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 70. Este envio pede muitas precauções quanto à possibilidade de entender de modo “correspondido”, digamos em tom de discurso amoroso, a simultaneidade da(s) correspondência(s), quando esta simultaneidade “só pode ser” diferencial, para macaquear Derrida. 107 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 73. 108 O ensaio de Benjamin sobre “A arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, e o de Barthes sobre a fotografia em “A câmera clara” são apontados por Derrida como os dois grandes textos da modernidade sobre o referente em “Les morts de Roland Barthes” (In: Psyché, inventions de l’autre. Tome 1. Paris: Galilée, 1998.p. 277). 109 Retomando desde um pouco antes um dos grandes “Envois”: “si l’envoi ne se derive de rien, alors la possibilité des postes est toujours déjà là, dans son retrait même” (p. 72) ; “Si la poste (technique, position, ‘métaphysique’) s’annonce au ‘premier’ envoi, alors il n’y a plus LA métaphysique, etc. (…) ni même L’envoi, mais des envois sans destination. Car ordonner les différentes époques, haltes, déterminations, bref toute l’histoire de l’être, à une destination de l’être, c’est peut-être là le leurre postar le plus inouï. Il n’y a pas même la poste ou l’envoi, il y a les postes et les envois. Et ce mouvement (qui me semble à la fois très éloigné et très proche de celui de Heidegger, mais qu’importe) évite de noyer toutes les différences, mutations, scansions, structures des régimes postaux dans une seule et même grande poste centrale” (p. 73-4). 50
humanismo talvez quisesse operar este grande revezamento pós-estatal ou pós-central sem poder impedir os desvios “agógicos”. S transforma então a determinação ontológico-pedagógica da habitação em limiar do político, onde tudo não cessa de (não) se decidir. Mas, confabulemos, se, franqueado este limiar, ainda houver envios e o político não conseguir se desvencilhar de “correspondências” humanistas, fossem estas de uma nova forma, de uma nova era, a “retirada dos correios” não é seu fim: “se o envio não se deriva de nada, então a possibilidade dos correios já está aí, na sua própria retirada” 110 . A pedagogia como arte da condução correta e corretiva, consequentemente, continua intacta na possibilidade agógica do envio. Se estamos condenados ao arquivo, ao arquivamento e se não sabemos mais se podemos confiar nestes amigos literário-humanistas, não devemos então desconfiar da definição “poética” da hospitalidade? sobretudo se o poético implica uma invenção na língua? Sem poder responder diretamente, digamos apenas que com D, a herança postal e o rastro da alteridade não parecem se restringir sem resto ao “homem” e a seus modelos de reprodução do homem. Não à toa, S se questiona sobre o tipo de comunidade que daria uma sociedade de desconstrutivistas. Mas será que por isso deixa de ser político? Ou seja: um certo modelo de comunidade e de governante, guarda ou guia não é o que organiza o fracasso humanista? A hospitalidade “que só pode ser poética”, para voltar à nossa epígrafe, não se definiria de antemão como decalque ou recalque dos seus modelos humanistas, embora receba destes mais de um cartão e simplesmente não possa não recebê-los. Por isso, o esboçaremos logo, a hospitalidade em sua definição mais abrangente deve receber a alteridade radical, não se limitando ao amigo ou ao provável desconhecido. Uma acolhida tão nova que nem se preocuparia em saber se é o estranho mais estranho que se acolheu. 110 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p . 72. 51
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guarda (se garde), ela circula nela mesma, ela se automobilisa e se olha (se regarde),<br />
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precisamente. O trajeto do fort:da permanece de qualquer modo muito breve (pelo<br />
menos na representação que têm dele e que repousa na tradição postal, pois fora desta<br />
representação familiar e familial, eles são sem relação, como aliás S. e P., <strong>entre</strong> eles,<br />
numa distância infinita que epístola alguma jamais poderá atravessar), digamos o<br />
correio ao lado, um carteiro de bicicleta com pregas na calça deposita o Filebo no n°<br />
19 da Berggasse como um pneumático, e aqui estás 106<br />
O humanismo se junta a si num envio, no jogo breve e extraviável de correspondências.<br />
Consequentemente, o “humano” aparece para si neste diferimento. A importância dos<br />
guardiões de correspondências é indubitável: “postar é enviar ‘contando’ com um ‘alto’<br />
(halte), o revezamento ou o prazo suspensivo, o lugar de um carteiro (facteur), a possibilidade<br />
de um desvio e do esquecimento (não do recalque que é um momento de guarda, mas do<br />
esquecimento)” 107 . O motivo da presença, vale notar, transita por esta “representação familiar<br />
e familial” do postal <strong>–</strong> o qual, como dissemos, a difere e a leva a si. Mas se uma “condição<br />
tecnológica” dava a esta era postal-humanista, e a seus pressupostos, ao Estado, a sua virtual<br />
unidade, há de convir que uma transformação ou aceleração desta condição tenha abalado esta<br />
unidade e/ou sua aparência 108 . Até o “fracasso”. Este, contudo, poderia ser ainda pensado<br />
apocalipticamente como um grande “alto”, uma parada, um revezamento inaudito que,<br />
acabado o tradicional carteiro-guardião, daria lugar a um novo tipo de “carteiro” (lembramos<br />
de B e a maldonne das “cartas”). D não deixa de advertir quanto ao perigo de<br />
homogeneização ao pensar uma grande Central dos correios 109 , e uma carta sobre o<br />
106 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 70. Este envio pede muitas precauções quanto à possibilidade de<br />
entender de modo “correspondido”, digamos em tom de discurso amoroso, a simultaneidade da(s)<br />
correspondência(s), quando esta simultaneidade “só pode ser” diferencial, para macaquear D<strong>errida</strong>.<br />
107 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 73.<br />
108 O ensaio de Benjamin sobre “A arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, e o de Barthes sobre a fotografia<br />
em “A câmera clara” são apontados por D<strong>errida</strong> como os dois grandes textos da modernidade sobre o referente<br />
em “Les morts de Roland Barthes” (In: Psyché, inventions de l’autre. Tome 1. Paris: Galilée, 1998.p. 277).<br />
109 Retomando desde um pouco antes um dos grandes “Envois”: “si l’envoi ne se derive de rien, alors la<br />
possibilité des postes est toujours déjà là, dans son retrait même” (p. 72) ; “Si la poste (technique, position,<br />
‘métaphysique’) s’annonce au ‘premier’ envoi, alors il n’y a plus LA métaphysique, etc. (…) ni même L’envoi,<br />
mais des envois sans destination. Car ordonner les différentes époques, haltes, déterminations, bref toute<br />
l’histoire de l’être, à une destination de l’être, c’est peut-être là le leurre postar le plus inouï. Il n’y a pas même la<br />
poste ou l’envoi, il y a les postes et les envois. Et ce mouvement (qui me semble à la fois très éloigné et très<br />
proche de celui de Heidegger, mais qu’importe) évite de noyer toutes les différences, mutations, scansions,<br />
structures des régimes postaux dans une seule et même grande poste centrale” (p. 73-4).<br />
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