AS LEIS DA HOSPITALIDADE – D(errida)entre ética e literatura

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04.07.2013 Views

alguma deformação essencial”, diz D: “Vindo do outro como uma resposta já, e uma citação sem presente passado, ‘Vem’ não suporta nenhuma citação metalingüística, enquanto que ele é, ele próprio, um relato, já, um recitativo e um canto cuja singularidade permanece ao mesmo tempo absoluta e absolutamente divisível” 92 . A alteridade da qual vem o “Vem” recebe então esta dupla e aparentemente paradoxal afirmação: absolutamente singular e absolutamente divisível. O que parece contraditório, se por singularidade se designa, como se faz geralmente, o único e indivisível. Mas aqui está o segredo que preserva o segredo ou o segredo sem segredo: a divisibilidade do rastro da alteridade pois esta somente se dá como rastro, nas condições evocadas acima ou da singularidade não apaga esta, pelo contrário, é a sua “possibilidade” mesma. Donde a estrutura de cartão postal (cartepostalée 93 ) do “envio”. “‘Vem’ não se endereça a uma identidade de antemão determinável. É uma deriva inderivável desde a identidade de uma determinação. ‘Vem’ é somente derivável, absolutamente derivável, mas somente do outro, de nada que seja origem ou identidade verificável, decidível, apresentável, apropriável, de nada que não seja já derivável e chegue sem margem (arrivable sans rive)” 94 . Aliás, este tom “afirmativo” (o reencontraremos mais adiante com a hospitalidade incondicional) não é a marca “em si de um desejo, de uma ordem, de uma oração ou de um pedido” 95 . Ora, se “‘Vem’ não busca conduzir, se ele é sem dúvida anagógico [do grego agogós, “o que conduz”], pode-se sempre reconduzi-lo mais acima dele, anagogicamente, em direção à violência condutiva, em direção à ducção autoritária. Este risco é inelutável, ele ameaça o tom como seu duplo. E mesmo na confissão de uma sedução: dizendo com um certo tom ‘estou te seduzindo’, não suspendo, posso até aumentar o poder sedutor. Heidegger talvez não gostasse desta conjugação ou desta declinação aparentemente 92 “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. Op. cit. p. 476. 93 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 99. 94 “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. Op. cit. p. 477. 95 Idem. p. 467. 46

pessoais do vir. Mas elas não são pessoais, subjetivas ou egológicas” 96 . A genealogia da necessidade de responder a um apelo (‘Vem’) do outro, inerente a todo discurso, complica a determinação do “pós” ao mesmo tempo em que o dita. Então, por sua vez, a necessidade da genealogia (N, por exemplo) não é estranha ao desejo de luz e de luzes. A declaração escatológica da adestinação passa, portanto, em vez de ceder ao obscurantismo, a operar justamente a revelação desmistificadora de envios apocalípticos. Mas também deslocaria a certeza apocalíptica na sua missão reveladora, de um fim da revelação, como uma determinada história do evento (do que vem): para que “não haja mais lugar para um apocalipse como agrupamento (rassemblement) do bem e do mal num legein da aletheia, nem num Geschick do envio, do Schicken, numa co-destinação que asseguraria ao ‘vem’ o poder de dar lugar a um evento na certeza de uma destinação.” 97 A certeza da destinação poderia regular, por exemplo, as certezas quanto ao “próprio do homem” dentro do discurso humanista (do que, como diz S, o humanismo proíbe duvidar), ou, por exemplo (mas o léxico acima indica em H um destinatário, ainda que não o único), o “sobretom” certeiro desta carta sobre o humanismo, a disposição do ser em forma de metáforas claras ou da clareira, a proveniência da voz que dita ao homem sua missão, de guarda, de pastoreio, de vigilância, etc. Encontramos nos “Envios” de D, e no que pode passar por um amor anacrônico pela filatelia, uma “ateléia”, “ausência de finalidade” 98 , dislexia da alethéia. Fica sugerida, além do mais, a alteridade da/à textualidade da hospitalidade, ou a alteridade do “vem” ao qual toda 96 “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. Op. cit. p. 477. 97 Idem. p. 477. 98 “Non, philatélie ne veut pas dire amour de la distance, du terme, du telos ou de la télé, ni l’amour des lettres, non, ma toute proche et pleine de soleil, c’est un bon mot très récent, il a l’âge des timbres, soit du monopole d’Etat, et il a trait à l’atéléia (le facteur, pas la vérité). L’atéléia c’est l’affranchissement, l’exemption d’impôt, d’où le timbre. Il est vrai que ça garde donc un rapport à l’un des sens de telos : acquittement, exemption, paiement, coût, dépense, frais. D’acquittement on pourrait aller à don, offrande et même, chez Sophocle, cérémonie du mariage ! Phila-télie, c’est alors l’amour without, avec/sans mariage, et la collection de tous les timbres, l’amour du timbre avec ou sans amour timbré” (“Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 63). 47

alguma deformação essencial”, diz D: “Vindo do outro como uma resposta já, e uma citação<br />

sem presente passado, ‘Vem’ não suporta nenhuma citação metalingüística, enquanto que ele<br />

é, ele próprio, um relato, já, um recitativo e um canto cuja singularidade permanece ao mesmo<br />

tempo absoluta e absolutamente divisível” 92 . A alteridade da qual vem o “Vem” recebe então<br />

esta dupla e aparentemente paradoxal afirmação: absolutamente singular e absolutamente<br />

divisível. O que parece contraditório, se por singularidade se designa, como se faz geralmente,<br />

o único e indivisível. Mas aqui está o segredo que preserva o segredo ou o segredo sem<br />

segredo: a divisibilidade do rastro da alteridade <strong>–</strong> pois esta somente se dá como rastro, nas<br />

condições evocadas acima <strong>–</strong> ou da singularidade não apaga esta, pelo contrário, é a sua<br />

“possibilidade” mesma. Donde a estrutura de cartão postal (cartepostalée 93 ) do “envio”.<br />

“‘Vem’ não se endereça a uma identidade de antemão determinável. É uma deriva inderivável<br />

desde a identidade de uma determinação. ‘Vem’ é somente derivável, absolutamente<br />

derivável, mas somente do outro, de nada que seja origem ou identidade verificável, decidível,<br />

apresentável, apropriável, de nada que não seja já derivável e chegue sem margem (arrivable<br />

sans rive)” 94 . Aliás, este tom “afirmativo” (o reencontraremos mais adiante com a<br />

hospitalidade incondicional) não é a marca “em si de um desejo, de uma ordem, de uma<br />

oração ou de um pedido” 95 . Ora, se “‘Vem’ não busca conduzir, se ele é sem dúvida<br />

anagógico [do grego agogós, “o que conduz”], pode-se sempre reconduzi-lo mais acima dele,<br />

anagogicamente, em direção à violência condutiva, em direção à ducção autoritária. Este risco<br />

é inelutável, ele ameaça o tom como seu duplo. E mesmo na confissão de uma sedução:<br />

dizendo com um certo tom ‘estou te seduzindo’, não suspendo, posso até aumentar o poder<br />

sedutor. Heidegger talvez não gostasse desta conjugação ou desta declinação aparentemente<br />

92 “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. Op. cit. p. 476.<br />

93 “Envois”. In: La carte postale. Op. cit. p. 99.<br />

94 “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. Op. cit. p. 477.<br />

95 Idem. p. 467.<br />

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