AS LEIS DA HOSPITALIDADE – D(errida)entre ética e literatura

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04.07.2013 Views

sedentário. Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas também domesticados por suas habitações. (...) quando fazemos a segura vida doméstica dar origem à clareira, estamos tocando apenas no aspecto mais inofensivo da humanização nas casas. A clareira é ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e seleção. No “lugar do ontológico”, digamos, S reinscreve o limiar ético-político. Entra então em cena N, para complicar as coisas e não diminuir a angústia, através de Z, e os homens passam a aparecer como “bem-sucedidos criadores”: Da perspectiva de Zaratustra, os homens da atualidade são acima de tudo uma coisa: bem-sucedidos criadores que conseguiram fazer do homem selvagem o último homem. É óbvio que tal feito não poderia ser realizado só com métodos humanistas de domesticação, adestramento e educação. A tese do ser humano como criador de seres humanos faz explodir o horizonte humanista, já que o humanismo não pode nem deve jamais considerar questões que ultrapassem essa domesticação e educação: o humanista assume o homem como dado de antemão e aplica-lhe então seus métodos de domesticação, treinamento e formação convencido que está das conexões necessárias entre ler, estar sentado e acalmar. 77 Por um lado, D nos apareceria, ao cabo desta leitura, como o legítimo herdeiro de N, e deveremos seguir alguns (poucos) reenvios ou desvios entre este e aquele dentro da inesgotável troca de cartas, tanto no destino do “criador bem-sucedido” (por onde se abre outra via na idéia do homem como fracassado em seu permanecer animal), quanto no da promessa, promessa de duradoura hospitalidade que a linguagem oferece e/ou impõe. O primeiro indício disso aqui seria a imagem da “casa do ser” 78 . Para arrematar, por enquanto, este pequeno pano de fundo ético da problemática e a catástrofe “literária” (em sentido amplo ou estrito) que constituiu em parte o seu destino, falta puxar ainda este fio que nos traz de volta “às duas espécies de virtude”, segundo Aristóteles. Seriam elas então a “intelectual e [a] moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter- 77 Regras para o parque humano. Op. cit. p. 35-39. 78 Recorrente na Carta sobre o humanismo. Mas é claro que não se deveria ceder à aparente facilidade do encadeamento que estas metáforas permitiriam. 42

se formado o seu nome (ήθική) por uma pequena modificação da palavra έθος (hábito)” 79 . Ora, se a literatura entra na escola para servir os grandes relatos nacionais, os pedagogos e os políticos, poderíamos inclusive, com este recuo a A, reforçar a tese de S do lado da literatura: esta, não servindo à virtude intelectual, serve ou servia antes, na escola, à virtude moral, isto é, à aquisição do hábito, em vez de servir o intelecto. Estaríamos então presos a esta alternativa sem alternativa, entre o intelecto e a moral, entre o ensino e o hábito, o trabalho lento e o que já está aí. Um, na verdade, não podendo se separar totalmente do outro, um manipulando o outro, como a tradição humanista teria feito, trocando o uso das virtudes, fracassando ou manipulando de maneira desastrosa, influenciando e desembrutecendo aqueles que são manipuláveis e embrutecíveis. Mas e esta possibilidade se inscreve nesta interpretação talvez sejam eles mesmos manipulados e embrutecidos ao acreditarem receber esta tarefa desembrutecedora de ensino, adestramento, etc. Esta possibilidade se inscreve ainda em toda herança 80 . Estremece então o tom apocalíptico que se pode acreditar reconhecer tanto nos “humanismos” (devolvendo-lhe um plural não menos apocalíptico) quanto num “pós-humanismo”, ou numa “pós-pedagogia”: talvez, como com a luz e as luzes, não podemos não sermos herdeiros desta tradição, e este “não poder não” dá o passo a um “não dever renunciar”, o qual comanda uma operação crítica (em todos os sentidos) quanto à herança. Depois de especificar: “sem mesmo se referir a apocalipses de tipo zoroástrico [referente a Zaratustra 81 : justamente a referência de S], houve mais de uma, sabemos que toda escatologia apocalíptica se promove em nome da luz, de uma luz mais luminosa que todas as luzes que ela torna possíveis” 82 , e depois de citar o apocalipse de João, coloca D: 79 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Op. cit. 267. Novamente, devemos ressaltar a “pontualidade” dos nossos recortes num livro tão complexo como este. 80 A idéia mesma de “inscrição”, portanto, não se deixa mais ler sem remeter a um “para além” ou um “aquém”, uma manipulação e/ou a uma pulsão “humanista” mais do que problemática, que reenviaria talvez ao campo de força pulsional. 81 E à religião dualista (de dois princípios em luta, um bem iluminador e um mal, origem da morte) do masdeísmo. 82 Derrida, Jacques. “D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie”. In: Les fins de l’homme. A partir du travail de Jacques Derrida, Galilée, 1981. p. 465. 43

sedentário. Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas<br />

também domesticados por suas habitações. (...) quando fazemos a segura vida<br />

doméstica dar origem à clareira, estamos tocando apenas no aspecto mais inofensivo<br />

da humanização nas casas. A clareira é ao mesmo tempo um campo de batalha e um<br />

lugar de decisão e seleção.<br />

No “lugar do ontológico”, digamos, S reinscreve o limiar ético-político. Entra então em cena<br />

N, para complicar as coisas e não diminuir a angústia, através de Z, e os homens passam a<br />

aparecer como “bem-sucedidos criadores”:<br />

Da perspectiva de Zaratustra, os homens da atualidade são acima de tudo uma coisa:<br />

bem-sucedidos criadores que conseguiram fazer do homem selvagem o último<br />

homem. É óbvio que tal feito não poderia ser realizado só com métodos humanistas de<br />

domesticação, adestramento e educação. A tese do ser humano como criador de seres<br />

humanos faz explodir o horizonte humanista, já que o humanismo não pode nem deve<br />

jamais considerar questões que ultrapassem essa domesticação e educação: o<br />

humanista assume o homem como dado de antemão e aplica-lhe então seus métodos<br />

de domesticação, treinamento e formação <strong>–</strong> convencido que está das conexões<br />

necessárias <strong>entre</strong> ler, estar sentado e acalmar. 77<br />

Por um lado, D nos apareceria, ao cabo desta leitura, como o legítimo herdeiro de N, e<br />

deveremos seguir alguns (poucos) reenvios ou desvios <strong>entre</strong> este e aquele dentro da<br />

inesgotável troca de cartas, tanto no destino do “criador bem-sucedido” (por onde se abre<br />

outra via na idéia do homem como fracassado em seu permanecer animal), quanto no da<br />

promessa, promessa de duradoura hospitalidade que a linguagem oferece e/ou impõe. O<br />

primeiro indício disso aqui seria a imagem da “casa do ser” 78 . Para arrematar, por enquanto,<br />

este pequeno pano de fundo ético da problemática e a catástrofe “literária” (em sentido amplo<br />

ou estrito) que constituiu em parte o seu destino, falta puxar ainda este fio que nos traz de<br />

volta “às duas espécies de virtude”, segundo Aristóteles. Seriam elas então a “intelectual e [a]<br />

moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino <strong>–</strong> por isso requer<br />

experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-<br />

77 Regras para o parque humano. Op. cit. p. 35-39.<br />

78 Recorrente na Carta sobre o humanismo. Mas é claro que não se deveria ceder à aparente facilidade do<br />

encadeamento que estas metáforas permitiriam.<br />

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