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Honra e humor em um grupo popular brasileiro

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Na Vila São João a situação é outra. Pela jocosidade, a relação hom<strong>em</strong>/mulher é<br />

arrastada constant<strong>em</strong>ente para a arena pública. Os comentários invad<strong>em</strong> até a vida dos<br />

casais, tornando a intimidade conjugal assunto de brincadeira. Nesse contexto, a idéia<br />

de guampudos, antes de reforçar a autoridade dos homens, poder servir para subvertêla.<br />

H<strong>um</strong>or no cotidiano<br />

Dizer que, na Vila São João, as piadas sobre guampudos subvert<strong>em</strong> a autoridade<br />

masculina é <strong>um</strong>a interpretação que exige esclarecimento. Aqui, certamente, o <strong>h<strong>um</strong>or</strong>,<br />

“como 0 bom <strong>h<strong>um</strong>or</strong> <strong>em</strong> todas as sociedades, utiliza coisas que são ambíguas ou que são<br />

tabu e brinca com isso de formas diferentes” (Seeger, 1980, p. 69). Mas, deduzir daí<br />

qualquer relação mecânica entre as piadas e o sist<strong>em</strong>a sócio-cultural que as engendrou<br />

seria imprudente. O <strong>h<strong>um</strong>or</strong>, para ser compreendido, deve sei situado n<strong>um</strong> contexto de<br />

práticas e valores. Em outras palavras, abraçando a crítica de Bakhtin àqueles<br />

pesquisadores que julgam que “o riso é s<strong>em</strong>pre o mesmo <strong>em</strong> todas as épocas e que a<br />

brincadeira nunca é mais do que <strong>um</strong>a brincadeira” (Ibid, p. 114), insistimos <strong>em</strong><br />

investigar o lugar do <strong>h<strong>um</strong>or</strong> no ethos <strong>em</strong> questão.<br />

A configuração norma/prática/<strong>h<strong>um</strong>or</strong> parece ass<strong>um</strong>ir formas particulares <strong>em</strong><br />

contextos diferentes. Xanthakou (1989), por ex<strong>em</strong>plo, na sua análise sobre o Maniot no<br />

Sul da Grécia, mostra como os aldeães, ao gozar<strong>em</strong> o idiota da aldeia, chegam a reforçar<br />

normas tradicionais sobre a família e o comportamento sexual. Apelando para os termos<br />

da etnopsiquiatria compl<strong>em</strong>entarista, ela considera o idiota <strong>um</strong> bode expiatório<br />

(depositário de ‘fantasmas étnicos’), eleito para encarnar transgressões sócio-sexuais,<br />

como solteirice, incesto, homosexualismo e adultério. Ao ridicularizar o desviante, ou<br />

ao atribuir-lhe certos desvios, os sujeitos ‘normais’ estariam evitando o reconhecimento<br />

de tais impulsões neles mesmos. Tratar-se-ia de <strong>um</strong> retour du refoulé que teria como<br />

causa e conseqüência a rigidez da moralidade local.<br />

Seeger (1980, p. 67), ao falar dos índios suyá, descreve <strong>um</strong>a situação <strong>em</strong> que a<br />

gozação sexual é ligada não a <strong>um</strong> só indivíduo, mas a toda <strong>um</strong>a classe de idade. Nesse<br />

caso, os velhos (que, ao contrário do idiota da aldeia, gozam de <strong>um</strong> status relativamente<br />

alto) ass<strong>um</strong><strong>em</strong> o papel de palhaços. Pelas suas macaquices, encenam angústias que<br />

todos têm <strong>em</strong> com<strong>um</strong> (procura de comida, atividade sexual), mas que são exacerbadas<br />

na velhice. Faz<strong>em</strong> coisas que “ninguém mais na sociedade suyá pode fazer s<strong>em</strong><br />

considerável censura” e que contrastam, <strong>em</strong> particular, com o comportamento sério e<br />

comedido dos homens recém-iniciados. Como Xanthakou, este autor sugere que as<br />

manifestações <strong>h<strong>um</strong>or</strong>ísticas, <strong>um</strong> tipo de desvio institucionalizado, serv<strong>em</strong> para reforçar<br />

a noção local de normalidade.<br />

Na Vila São João, contudo, a gozação não está, <strong>em</strong> absolutos circunscrita a <strong>um</strong><br />

indivíduo, n<strong>em</strong> a <strong>um</strong>a classe de indivíduos. Isso não significa que não haja<br />

diferenciação no interior do <strong>grupo</strong>. Por ex<strong>em</strong>plo, há <strong>um</strong> período, da pré-puberdade até o<br />

nascimento do primeiro ou segundo filho, <strong>em</strong> que as mulheres parec<strong>em</strong> sofrer certas<br />

restrições quanto às brincadeiras sexuais <strong>em</strong> público. Outrossim, é possível que, com a<br />

idade, a ênfase do <strong>h<strong>um</strong>or</strong> se desloque para t<strong>em</strong>as de carência: o velho brinca sobre<br />

impotência, a velha pede insistent<strong>em</strong>ente para seus vizinhos achar<strong>em</strong> <strong>um</strong> marido para<br />

ela (“e não é só para coçar as costas não”). Contudo, apesar dessas diferenças internas,<br />

acredito que a teoria do bode expiatório não se aplica ao caso da Vila São João. As<br />

gozações se cruzam, atingindo tanto amigos quanto inimigos. As pessoas acusadas na<br />

brincadeira não sofr<strong>em</strong> ostracismo n<strong>em</strong> outras formas de censura. E, das crianças até os

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