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Honra e humor em um grupo popular brasileiro

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esta hipótese deve ser revista. Continuo achando que cada sexo t<strong>em</strong> <strong>um</strong>a relação<br />

especifica com as piadas. (26) Mas não há como negar a c<strong>um</strong>plicidade travada n<strong>um</strong>a<br />

espécie de meio-de-campo, onde as linguagens <strong>h<strong>um</strong>or</strong>ísticas do hom<strong>em</strong> e da mulher se<br />

encontram. Trata-se de el<strong>em</strong>entos compl<strong>em</strong>entares de <strong>um</strong> sist<strong>em</strong>a cultural.<br />

T<strong>em</strong>os, nesse meio-de-campo, a possibilidade de fazer <strong>um</strong>a leitura <strong>em</strong> que o<br />

<strong>h<strong>um</strong>or</strong> veicula <strong>um</strong>a identidade de <strong>grupo</strong>. Acredito que as brincadeiras não censuram os<br />

supostos transgressores da norma, n<strong>em</strong> denunciam a hipocrisia burguesa. Acredito que<br />

caricaturam o comportamento dos próprios <strong>grupo</strong>s <strong>popular</strong>es. Trata-se de <strong>um</strong>a paródia<br />

de si mesmos. E, nessa paródia, estabelec<strong>em</strong>-se as distinções.<br />

N<strong>em</strong> todos os moradores da Vila São João falam essa linguag<strong>em</strong>. Afinal, nunca<br />

faltam ex<strong>em</strong>plos de pessoas subindo na vida, conseguindo casas, filhos e esposos<br />

‘bonitos’ (conforme o padrão da classe média). Em seu comportamento, pod<strong>em</strong>os ver<br />

noções de família, honra e dignidade que ajudam a alcançar esse estilo de vida e<br />

permit<strong>em</strong> fazer <strong>um</strong>a distinção entre si mesmos e a ‘gentalha’ (as pessoas imediatamente<br />

abaixo).<br />

Neste artigo, entretanto, fiz<strong>em</strong>os <strong>um</strong> recorte,que enfatiza atos e falas que<br />

diverg<strong>em</strong> dos modelos da classe dominante. Enfocamos cenas <strong>em</strong> que, pelas gozações<br />

sobre guampudos e outras bagaceirices, a solidariedade se estabelece horizontalmente,<br />

isto é, a despeito da norma dos <strong>grupo</strong>s abastados. L<strong>em</strong>os, nas piscadelas, que nossos<br />

sujeitos estão fazendo <strong>um</strong>a distinção entre si mesmos e os ‘de cima’.<br />

Na Vila São João, os homens recomendam a suas mulheres: “Não te mete nas<br />

fofocas [da vizinhança].” As mulheres todas me garant<strong>em</strong> que “não sa<strong>em</strong> de casa” e<br />

“não sab<strong>em</strong> nada dos vizinhos”. Mas basta o pesquisador observar os movimentos e<br />

discursos cotidanos de ambos sexos<br />

para se dar conta de que esse ideal só se realiza naquelas famílias que consegu<strong>em</strong> <strong>um</strong>a<br />

trajetória ascendente e se retra<strong>em</strong> da vida social da rua. Como participar da vida social<br />

do bairro s<strong>em</strong> ser envolvido - seja como ‘especialista’, seja como platéia - nas gozações<br />

mútuas? S<strong>em</strong> ser infectado pelo espírito de irreverência? As famílias ‘<strong>popular</strong>es’<br />

defin<strong>em</strong>-se justamente pelo estilo jocoso de tratar os assuntos mais pr<strong>em</strong>entes da vida<br />

social. E é essa jocosidade que, pela c<strong>um</strong>plicidade tácita da risada coletiva, age<br />

subrepticiamente para transformar os diversos assuntos e as diversas regras (sejam elas<br />

oriundas dos <strong>grupo</strong>s dominantes, dos ‘bons proletários’, ou dos homens) n<strong>um</strong>a<br />

expressão própria aos <strong>grupo</strong>s <strong>popular</strong>es.<br />

Recebido para publicação <strong>em</strong> dez<strong>em</strong>bro de 1990.<br />

Notas:<br />

* Agradeço as valiosas sugestões dos colegas do S<strong>em</strong>inário Interno do PPG <strong>em</strong><br />

Antropologia Social da UFRGS.<br />

1 - Ver Pitt-Rivers (1989, p.142) para detalhes comparativos sobre a associação entre<br />

cornos e virilidade.<br />

2 - A Vila São João, situada a seis quilômetros do Centro de Porto Alegre, foi loteada<br />

pela Prefeitura na década de 1950 para receber pessoas r<strong>em</strong>ovidas de favelas. Embora<br />

os moradores express<strong>em</strong> certa identificação com o bairro, a Vila não t<strong>em</strong> contornos<br />

nítidos. Sua população, etnicamente mista, se espalha do alto do morro (onde se situa a<br />

maior vila de invasão da área metropolitana) até as ruas asfaltadas e as casas pacatas<br />

‘perto da faixa’ (<strong>um</strong>a .das ruas principais da cidade). Meus contatos concentraram-se <strong>em</strong><br />

duas ruas paralelas, onde cheguei a colher<br />

dados sist<strong>em</strong>áticos sobre sessenta famílias.

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