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A fábrica do feminino
Pedra<br />
Fabricou uma fêmea. Esculpida. Há muito tempo.<br />
De pedra. Mármore, talvez. Ou então é de marfi m.<br />
Uma marfêmea. O cara é um artista, tira leite de<br />
pedra. Ficou fantástica, fabulosa, fenomenal! À<br />
imagem do seu criador, o escultor Pigmalião fez<br />
uma fêmea. Galatéia, mulher de leite. Enamorado<br />
dela ou de si mesmo, ego no espelho, Narciso na<br />
fonte, necessidade, fragilidade, rezou a Afrodite<br />
para que a transformasse em mulher de verdade,<br />
dando-lhe carne em lugar de marfi m. Casou-se<br />
com ela ou consigo mesmo após a transformação.<br />
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Mole<br />
Escuta: aqueles rappers fabricaram uma fêmea<br />
chester. Foi obtida por modifi cações genéticas da<br />
galinha, ou da franga, a chamada fêmea fácil. É<br />
a fêmea plástica, com muito peito e miolo mole,<br />
inspirada na Marilyn Monroe, na Barbie, na irmã<br />
dos outros. Gostosa!... Poderia ser irmã nossa,<br />
essa boneca de plástico, essa fêmea infl ável, pelo<br />
ar de família. Sagrada família. A Virgem Maria<br />
era mãe, santa e virgem, de onde se conclui,<br />
primeiramente, que toda mulher é vagabunda, e<br />
depois, que toda loura é burra.
Ave<br />
Olha essa: mais uma fêmea fabricada. Uma fêmea<br />
cover, uma fêmea over, uma fêmea digna de se<br />
ver. Quantas plumas! E canta? Às vezes. Muitas<br />
dançam também... Por arte do travesti, ser de<br />
artifício, bem-te-vi no espelho, mais sedutor do<br />
que a própria sedução, fi gura do que queremos<br />
ver, revela-se o feminino como miragem, inclusive<br />
na fêmea. Ave traveca, Eva moleca!<br />
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Queen<br />
Este é para vocês<br />
que me fi zeram rainha do deserto<br />
ou rainha diaba<br />
que me deixaram cantando<br />
I will survive<br />
o tango da legião<br />
nesta wasteland<br />
onde se dilapida a semente<br />
imponderável<br />
da mínima prosperidade:<br />
um jardim, apenas.
Semente<br />
Fabriquei uma fêmea-fi lha. Interativa, hiperativa,<br />
rebarbativa, pedaço de lixa, folha de urtiga. Nossa<br />
Senhora! Falta polir, dar acabamento. Será que<br />
um dia isso se acaba? Toda mãe saboreia espinhos.<br />
Toda fi lha passeia nos inferninhos. Ceres não<br />
queria, mas acabou tendo que dividir a fi lha<br />
Perséfone com Hades, deus do submundo. Toda<br />
fi lha tem passaporte para o inferno. Toda mãe<br />
tem seus meses de inverno, sua secura de sucos,<br />
sua recusa de dar fl ores e frutos.<br />
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Trovão<br />
Marte irritado conjunto a Plutão<br />
promete trovoada e confusão<br />
fúria de quem quer colo<br />
já sendo todo calo<br />
mas disso não se fala<br />
até que o tapa estale<br />
abrindo o clarão do espanto
Bárbara<br />
Uma fêmea foi fabricada, lentamente. Foi fabricada,<br />
mas também fabrica. A feiticeira, parteira por<br />
proximidade, por concorrência foi afastada da<br />
função e acusada de fazer feitiços maléfi cos, de<br />
extrair forma do informe, de dar festas furiosas<br />
e de infernizar a vizinhança. Fabrica malefícios,<br />
cultiva barbaridades, transforma palavra em coisa,<br />
coisa em palavra. É uma usina, uma mina, uma<br />
turbina. Que máquina! Lua cheia, lua nova, lua<br />
crescente, lua minguante, uma para cada efeito;<br />
fora da cidade, nua na fl oresta, a feiticeira fala com<br />
as feras e fareja as folhas.<br />
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Entre espécies<br />
Eu era uma fêmea e você o meu fi lhote, tínhamos<br />
que fugir agachadas dos caçadores, eram caçadores<br />
de órgãos. Gelada de pavor, eu consegui achar uma<br />
passagem pelo meio do lamaçal, senti o cheiro do<br />
caminho.
Instantâneo<br />
Zoé grávida olha o mar<br />
na barriga, um aquário<br />
uma linha se dilata<br />
nada mais além<br />
da linha do horizonte<br />
lembra da Parca,<br />
a tesoura avara<br />
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Fatal<br />
Para Jorge Fernandes da Silveira<br />
Fabricamos uma fêmea. Fizemos isso, todas e todos<br />
e cada qual: uma fêmea fatal. Perigosa. Ardilosa.<br />
Malfadada. Malfazeja. Mas assim mesmo desejada.<br />
Ou melhor, desejada para isso mesmo. Para dar<br />
fi gura às coisas escuras. Nós a encarregamos de<br />
carregar o destino no colo. É um perigo para ela<br />
e para os outros, bonitinha, mas ordinária, essa<br />
que vai fermosa e não segura, uma cantiga, minha<br />
senhor, um fado lusitano, uma fada Morgana<br />
trancafi ando o velho Merlin seduzido, uma Sharon<br />
Stone, osso duro de roer, uma Salomé, uma Mata<br />
Hari, uma que embala e enterra, mãe negra e água<br />
que rega.
Sereia<br />
Os homens que amei<br />
levei ao reino das Mães<br />
uns voltaram do portão<br />
já outros, adoeceram<br />
um foi lá e fi cou rico<br />
mas esse era marinheiro<br />
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Espelho<br />
Como é que se separa<br />
imagem de semelhança<br />
um tempo para cada coisa<br />
vacas magras e vacas gordas<br />
ruminando dietas capas cartazes<br />
sonhando celulose e superfície<br />
mulheres de papel sem celulite<br />
parcelando plásticas<br />
mastigando críticas<br />
maquinando máscaras<br />
maquiando cílios
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Cortar cabelo<br />
Cabelo comprido, cabelo curto, Joana d’Arc,<br />
Iemanjá, qual das duas? A minha fi lha cortou o<br />
meu cabelo, uma droga, eu também cortava o das<br />
minhas bonecas, dava um nervoso, e depois aquela<br />
boneca fi cava esquisita, mas especial, se vista<br />
de repente, feia, se olhada detidamente, bonita.<br />
Minha cobaia, minha vítima, minha falha, minha<br />
minha. Se pudesse, eu jogava na fogueira.
Desfecho<br />
Digo doze ácidos anos<br />
doze anos e muitos planos<br />
uma canção bem banal<br />
mas se nela você aposta<br />
a vida toda batida<br />
o par ou ímpar me desfaz<br />
e já fi nda antes do fi m<br />
meu erro, meu ermo<br />
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Menopausa<br />
Pausa ou pára? Isso é que é eufemismo. Pausa<br />
que não retorna, botão defi nitivamente inativo,<br />
atalho para a, perdão, terceira idade. Contempla,<br />
ó Cleópatra, fêmea efêmera: do alto dessas<br />
pirâmides, quarenta anos de regras te esperam.<br />
Esperando o destino amadurecer, waiting for the<br />
sun, mas atenção, soleil cou coupé.
A fada madrinha<br />
...e quando você for velha<br />
terá a voz miúda<br />
poeira de gramofone<br />
cornucópia de compotas<br />
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Hora<br />
após hora,<br />
ora
Arquetípico<br />
o sol<br />
a lua<br />
a sol<br />
o lua<br />
entre (duas) línguas<br />
um horizonte neutro<br />
o animus da anima<br />
a anima do animus<br />
aqui o fábrica engasga<br />
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Alguém disse<br />
vogais são femininas<br />
consoantes masculinas<br />
alguém falou<br />
de línguas meridionais suaves<br />
línguas setentrionais vigorosas<br />
alguém inventou<br />
um cravo bem colorido<br />
notas e cores dispostas<br />
em resposta no teclado<br />
ninguém acreditou<br />
ninguém desacreditou
As sete unhas de Marli<br />
(mistérios bahianos)<br />
As sete unhas de pé que perdi<br />
atrás do trio elétrico<br />
naquele carnaval tão porreta<br />
cresceram novamente<br />
e viraram atração<br />
sim, venham ver<br />
as novas vieram azuis<br />
naturalmente azuis<br />
como um poema sujo<br />
e até que mais bonitas<br />
do que as antigas<br />
tingidas de rosa lascado<br />
agora quando me depilo<br />
sinto até um calafrio<br />
pois sei que podem nascer pêlos<br />
das sete cores do arco-íris<br />
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Cores<br />
A amarelo, de abre-alas,<br />
que eu quero passar.<br />
Chiquinha Gonzaga<br />
não era negra, não era branca.<br />
Cada época tem lá os seus mulatos.<br />
E encarnado, de unhas pintadas.<br />
Tem homem que não gosta.<br />
Tem também quem maneje bem<br />
o linguajar das manicures.<br />
I branco, de ideal,<br />
fi na elegância<br />
de uma linha<br />
na passarela.<br />
O para olho fundo<br />
riscado de preto.<br />
Pisca inexpressivo<br />
à força de tanta expressão.<br />
U verde, em forma de pera<br />
inversa que não se visse por fora,<br />
ou nácar de pérola barroca<br />
com acento dramático:<br />
útero, íntimo baú.
0 x 0<br />
A fêmea fálica quis virar o jogo mas virou piada. Eu<br />
sei uma piada. No jardim do Éden, sem ter nada<br />
para fazer, Adão vira-se para Deus e diz: Tem coisas<br />
que eu não entendo. Por que você fez a fêmea tão<br />
formosa, tão macia, tão cheirosa, tão perfeita?<br />
Deus diz: Para que você pudesse amá-la. Adão,<br />
insatisfeito, continua a questionar o Criador: Mas<br />
então, ó Deus, por que você a fez tão estúpida?<br />
E Deus: para que ela pudesse amar você! É uma<br />
piada androfóbica. Deus me livre! Só um pouco.<br />
Porco não. Eles também sofrem com a fabricação,<br />
fi ngem que não. Solo pátrio e língua materna. A<br />
libido é masculina. O falo não é o pênis. Gênero<br />
não é sexo. Atleta, cobra, serpente. O lagarto é um<br />
bicho, e a lagarta é outro diferente. O prato e a<br />
prata. O sapato e a sapata. Mulher fala demais.<br />
A minha chefe está na tpm. Mulher de bigode,<br />
nem o diabo pode. Isso é falta de homem. Não faz<br />
assim. Você está meio gorda. Foi bom para você?<br />
Fala baixo senão eu grito. Que foi, vai encarar?<br />
Fica comigo esta noite.<br />
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