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A fábrica do feminino


Pedra<br />

Fabricou uma fêmea. Esculpida. Há muito tempo.<br />

De pedra. Mármore, talvez. Ou então é de marfi m.<br />

Uma marfêmea. O cara é um artista, tira leite de<br />

pedra. Ficou fantástica, fabulosa, fenomenal! À<br />

imagem do seu criador, o escultor Pigmalião fez<br />

uma fêmea. Galatéia, mulher de leite. Enamorado<br />

dela ou de si mesmo, ego no espelho, Narciso na<br />

fonte, necessidade, fragilidade, rezou a Afrodite<br />

para que a transformasse em mulher de verdade,<br />

dando-lhe carne em lugar de marfi m. Casou-se<br />

com ela ou consigo mesmo após a transformação.<br />

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12<br />

Mole<br />

Escuta: aqueles rappers fabricaram uma fêmea<br />

chester. Foi obtida por modifi cações genéticas da<br />

galinha, ou da franga, a chamada fêmea fácil. É<br />

a fêmea plástica, com muito peito e miolo mole,<br />

inspirada na Marilyn Monroe, na Barbie, na irmã<br />

dos outros. Gostosa!... Poderia ser irmã nossa,<br />

essa boneca de plástico, essa fêmea infl ável, pelo<br />

ar de família. Sagrada família. A Virgem Maria<br />

era mãe, santa e virgem, de onde se conclui,<br />

primeiramente, que toda mulher é vagabunda, e<br />

depois, que toda loura é burra.


Ave<br />

Olha essa: mais uma fêmea fabricada. Uma fêmea<br />

cover, uma fêmea over, uma fêmea digna de se<br />

ver. Quantas plumas! E canta? Às vezes. Muitas<br />

dançam também... Por arte do travesti, ser de<br />

artifício, bem-te-vi no espelho, mais sedutor do<br />

que a própria sedução, fi gura do que queremos<br />

ver, revela-se o feminino como miragem, inclusive<br />

na fêmea. Ave traveca, Eva moleca!<br />

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14<br />

Queen<br />

Este é para vocês<br />

que me fi zeram rainha do deserto<br />

ou rainha diaba<br />

que me deixaram cantando<br />

I will survive<br />

o tango da legião<br />

nesta wasteland<br />

onde se dilapida a semente<br />

imponderável<br />

da mínima prosperidade:<br />

um jardim, apenas.


Semente<br />

Fabriquei uma fêmea-fi lha. Interativa, hiperativa,<br />

rebarbativa, pedaço de lixa, folha de urtiga. Nossa<br />

Senhora! Falta polir, dar acabamento. Será que<br />

um dia isso se acaba? Toda mãe saboreia espinhos.<br />

Toda fi lha passeia nos inferninhos. Ceres não<br />

queria, mas acabou tendo que dividir a fi lha<br />

Perséfone com Hades, deus do submundo. Toda<br />

fi lha tem passaporte para o inferno. Toda mãe<br />

tem seus meses de inverno, sua secura de sucos,<br />

sua recusa de dar fl ores e frutos.<br />

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16<br />

Trovão<br />

Marte irritado conjunto a Plutão<br />

promete trovoada e confusão<br />

fúria de quem quer colo<br />

já sendo todo calo<br />

mas disso não se fala<br />

até que o tapa estale<br />

abrindo o clarão do espanto


Bárbara<br />

Uma fêmea foi fabricada, lentamente. Foi fabricada,<br />

mas também fabrica. A feiticeira, parteira por<br />

proximidade, por concorrência foi afastada da<br />

função e acusada de fazer feitiços maléfi cos, de<br />

extrair forma do informe, de dar festas furiosas<br />

e de infernizar a vizinhança. Fabrica malefícios,<br />

cultiva barbaridades, transforma palavra em coisa,<br />

coisa em palavra. É uma usina, uma mina, uma<br />

turbina. Que máquina! Lua cheia, lua nova, lua<br />

crescente, lua minguante, uma para cada efeito;<br />

fora da cidade, nua na fl oresta, a feiticeira fala com<br />

as feras e fareja as folhas.<br />

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18<br />

Entre espécies<br />

Eu era uma fêmea e você o meu fi lhote, tínhamos<br />

que fugir agachadas dos caçadores, eram caçadores<br />

de órgãos. Gelada de pavor, eu consegui achar uma<br />

passagem pelo meio do lamaçal, senti o cheiro do<br />

caminho.


Instantâneo<br />

Zoé grávida olha o mar<br />

na barriga, um aquário<br />

uma linha se dilata<br />

nada mais além<br />

da linha do horizonte<br />

lembra da Parca,<br />

a tesoura avara<br />

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20<br />

Fatal<br />

Para Jorge Fernandes da Silveira<br />

Fabricamos uma fêmea. Fizemos isso, todas e todos<br />

e cada qual: uma fêmea fatal. Perigosa. Ardilosa.<br />

Malfadada. Malfazeja. Mas assim mesmo desejada.<br />

Ou melhor, desejada para isso mesmo. Para dar<br />

fi gura às coisas escuras. Nós a encarregamos de<br />

carregar o destino no colo. É um perigo para ela<br />

e para os outros, bonitinha, mas ordinária, essa<br />

que vai fermosa e não segura, uma cantiga, minha<br />

senhor, um fado lusitano, uma fada Morgana<br />

trancafi ando o velho Merlin seduzido, uma Sharon<br />

Stone, osso duro de roer, uma Salomé, uma Mata<br />

Hari, uma que embala e enterra, mãe negra e água<br />

que rega.


Sereia<br />

Os homens que amei<br />

levei ao reino das Mães<br />

uns voltaram do portão<br />

já outros, adoeceram<br />

um foi lá e fi cou rico<br />

mas esse era marinheiro<br />

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22<br />

Espelho<br />

Como é que se separa<br />

imagem de semelhança<br />

um tempo para cada coisa<br />

vacas magras e vacas gordas<br />

ruminando dietas capas cartazes<br />

sonhando celulose e superfície<br />

mulheres de papel sem celulite<br />

parcelando plásticas<br />

mastigando críticas<br />

maquinando máscaras<br />

maquiando cílios


24<br />

Cortar cabelo<br />

Cabelo comprido, cabelo curto, Joana d’Arc,<br />

Iemanjá, qual das duas? A minha fi lha cortou o<br />

meu cabelo, uma droga, eu também cortava o das<br />

minhas bonecas, dava um nervoso, e depois aquela<br />

boneca fi cava esquisita, mas especial, se vista<br />

de repente, feia, se olhada detidamente, bonita.<br />

Minha cobaia, minha vítima, minha falha, minha<br />

minha. Se pudesse, eu jogava na fogueira.


Desfecho<br />

Digo doze ácidos anos<br />

doze anos e muitos planos<br />

uma canção bem banal<br />

mas se nela você aposta<br />

a vida toda batida<br />

o par ou ímpar me desfaz<br />

e já fi nda antes do fi m<br />

meu erro, meu ermo<br />

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26<br />

Menopausa<br />

Pausa ou pára? Isso é que é eufemismo. Pausa<br />

que não retorna, botão defi nitivamente inativo,<br />

atalho para a, perdão, terceira idade. Contempla,<br />

ó Cleópatra, fêmea efêmera: do alto dessas<br />

pirâmides, quarenta anos de regras te esperam.<br />

Esperando o destino amadurecer, waiting for the<br />

sun, mas atenção, soleil cou coupé.


A fada madrinha<br />

...e quando você for velha<br />

terá a voz miúda<br />

poeira de gramofone<br />

cornucópia de compotas<br />

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28<br />

Hora<br />

após hora,<br />

ora


Arquetípico<br />

o sol<br />

a lua<br />

a sol<br />

o lua<br />

entre (duas) línguas<br />

um horizonte neutro<br />

o animus da anima<br />

a anima do animus<br />

aqui o fábrica engasga<br />

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30<br />

Alguém disse<br />

vogais são femininas<br />

consoantes masculinas<br />

alguém falou<br />

de línguas meridionais suaves<br />

línguas setentrionais vigorosas<br />

alguém inventou<br />

um cravo bem colorido<br />

notas e cores dispostas<br />

em resposta no teclado<br />

ninguém acreditou<br />

ninguém desacreditou


As sete unhas de Marli<br />

(mistérios bahianos)<br />

As sete unhas de pé que perdi<br />

atrás do trio elétrico<br />

naquele carnaval tão porreta<br />

cresceram novamente<br />

e viraram atração<br />

sim, venham ver<br />

as novas vieram azuis<br />

naturalmente azuis<br />

como um poema sujo<br />

e até que mais bonitas<br />

do que as antigas<br />

tingidas de rosa lascado<br />

agora quando me depilo<br />

sinto até um calafrio<br />

pois sei que podem nascer pêlos<br />

das sete cores do arco-íris<br />

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32<br />

Cores<br />

A amarelo, de abre-alas,<br />

que eu quero passar.<br />

Chiquinha Gonzaga<br />

não era negra, não era branca.<br />

Cada época tem lá os seus mulatos.<br />

E encarnado, de unhas pintadas.<br />

Tem homem que não gosta.<br />

Tem também quem maneje bem<br />

o linguajar das manicures.<br />

I branco, de ideal,<br />

fi na elegância<br />

de uma linha<br />

na passarela.<br />

O para olho fundo<br />

riscado de preto.<br />

Pisca inexpressivo<br />

à força de tanta expressão.<br />

U verde, em forma de pera<br />

inversa que não se visse por fora,<br />

ou nácar de pérola barroca<br />

com acento dramático:<br />

útero, íntimo baú.


0 x 0<br />

A fêmea fálica quis virar o jogo mas virou piada. Eu<br />

sei uma piada. No jardim do Éden, sem ter nada<br />

para fazer, Adão vira-se para Deus e diz: Tem coisas<br />

que eu não entendo. Por que você fez a fêmea tão<br />

formosa, tão macia, tão cheirosa, tão perfeita?<br />

Deus diz: Para que você pudesse amá-la. Adão,<br />

insatisfeito, continua a questionar o Criador: Mas<br />

então, ó Deus, por que você a fez tão estúpida?<br />

E Deus: para que ela pudesse amar você! É uma<br />

piada androfóbica. Deus me livre! Só um pouco.<br />

Porco não. Eles também sofrem com a fabricação,<br />

fi ngem que não. Solo pátrio e língua materna. A<br />

libido é masculina. O falo não é o pênis. Gênero<br />

não é sexo. Atleta, cobra, serpente. O lagarto é um<br />

bicho, e a lagarta é outro diferente. O prato e a<br />

prata. O sapato e a sapata. Mulher fala demais.<br />

A minha chefe está na tpm. Mulher de bigode,<br />

nem o diabo pode. Isso é falta de homem. Não faz<br />

assim. Você está meio gorda. Foi bom para você?<br />

Fala baixo senão eu grito. Que foi, vai encarar?<br />

Fica comigo esta noite.<br />

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