O CRIME, A PENA E O DIREITO EM ÉMILE DURKHEIM ... - Conpedi

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como a incipiente "especialização" de tarefas. Nessas condições, as redes que articulam e unem as pessoas, em sociedade, são constituídas, sobretudo, pela tradição e religião, pelo afeto e parentesco. Em suas reflexões sobre as formas de solidariedade mecânica, pela primeira vez, o autor apareceu com o estudo a respeito do crime, da pena e do direito. O crime foi analisado, nesse momento, como fator de ruptura dos laços que vinculam os membros de um agrupamento social, não importando a simplicidade de sua organização, como acontece, por exemplo, numa sociedade tribal. Nesses momentos e nessas sociedades, é muito importante a função das normas, que compõem o direito repressivo, destinadas à recomposição e ao fortalecimento dos vínculos sociais rompidos pelo comportamento do tipo criminoso. Muito a propósito e de maneira transparente, escreveu É. Durkheim (1999, p. 39): O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos pena. Procurar qual é esse vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime. Há rupturas nas relações sociais a serem refeitas. Para se suturar essas rupturas, alguns instrumentos fundamentais a serem usados estão disponíveis de forma latente, combinada, transparente e simultânea: a tipificação do crime, a cominação da pena e o conhecimento do direito. Em outras palavras, ocorrido o rompimento dos laços de solidariedade social pelo comportamento criminoso, procura-se restabelecê-los através da cominação da pena contida nas normas repressivas, em que estão definidos, da mesma maneira, os procedimentos a serem utilizados no restabelecimento ou reconstrução desses vínculos de solidariedade. O direito repressivo, nessas condições, é composto pelo conjunto de normas, sobretudo, costumeiras e religiosas, positivadas ou não, cujo conteúdo define o crime, a pena e prescreve os rituais de punição. Para conceituar crime, pena e direito, É. Durkheim (1999) ocupou grande parte do livro primeiro de A Divisão do Trabalho Social, o que na edição consultada, para a feitura destas reflexões, encontra-se entre as páginas 39 e 109. O autor, entretanto, na mencionada obra, não examinou o crime, a pena e o direito, somente nos agrupamentos cujos membros vinculavam-se pela solidariedade mecânica, predominante nas sociedades organizadas de forma mais simples, ou de estrutura menos complexa. Nessas sociedades, a divisão do trabalho social era definida, fundamentalmente, em função de elementos oferecidos por fatores naturais, como a constituição anatômica, determinante na definição do masculino e do feminino, o tempo na delimitação das faixas etárias, os fatores "sobrenaturais", na determinação dos serviços sagrados e das atividades mágicas. Suas preocupações voltaram-se também para as sociedades de organização complexa, nas quais as formas de solidariedade fundamentavam-se, principalmente, na diferenciação de funções ou nas "especializações". Nessas sociedades, a divisão social do trabalho já era mais avançada e complexa. Aliás, sobre a estrutura das sociedades complexas, também conhecidas como sociedades modernas, escreveu É. Durkheim (1999, p. 165): "Elas são constituídas não por uma repetição de segmentos similares e homogêneos, mas por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos quais tem um papel especial e que são formados, eles próprios, de partes diferenciadas". Se nas sociedades classificadas como "primitivas" a solidariedade social fundamentava-se, basicamente, na * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8362

semelhança de funções, de tal forma que os indivíduos formavam-se um coletivo tanto quanto inorgânico, nas sociedades informadas, sobretudo, pela solidariedade orgânica, a coletividade constituía-se, antes de tudo, pela interdependência de funções e papéis distintos. Cada órgão desempenhava funções diferentes no agir e interdependentes no existir. Também nesse segundo tipo de sociedade, o crime esgarça relações e rompe vínculos sociais. Os sentimentos coletivos feridos e rompidos tendem a recompor-se através de sanções ou penalidades dos mais diferentes matizes. Na medida em que as sociedades modificam suas estruturas, isto é, transformam-se, através da diferenciação e multiplicação de funções, também a solidariedade deixa de se assentar na semelhança para se fundamentar na diferenciação. Entretanto, pelo fato de uma sociedade se fundamentar na solidariedade, dominantemente orgânica, não significa que ela exclua totalmente a solidariedade mecânica. As duas formas de solidariedade coexistem no interior de uma mesma sociedade. O que se quer realçar é que, em momentos diferentes, uma forma de solidariedade pode predominar sobre a outra e, da mesma forma, uma forma de ruptura social pode prevalecer num ou noutro tipo de solidariedade. Mas, assim como ocorrem transformações nos vínculos sociais, acontecem também mudanças nas formas do comportamento criminoso, nas sanções, nos sistemas normativos, em geral, e no mundo do direito, em especial, conforme se verá mais adiante. Se nas sociedades informadas pela semelhança de funções predominava o direito repressivo, nas sociedades, onde predomina a solidariedade assentada, sobretudo, na diferenciação funcional, haverá a preponderância do direito restitutivo. Aliás, por direito restitutivo É. Durkheim entendeu todo o direito que não fosse o penal ou repressivo. Em todos eles, porém, está presente a sanção, ora sob forma de pena, ora na figura da restituição. A função da sanção, seja repressiva ou restitutiva, será sempre a de restabelecer vínculos, conexões ou liames sociais rompidos. O próprio autor demonstrou, longamente, através de exemplos, as transformações do direito, decorrentes das mudanças sociais. Por sua vez, ele sempre advertiu ao leitor que o predomínio do direito restitutivo não eliminaria, jamais, o papel do direito repressivo. As duas formas de direito iriam sempre coexistir, assim como as duas manifestações de solidariedade: a mecânica e a orgânica, embora com a preponderância da segunda sobre a primeira. Em outros termos, vê-se, em nossos dias, o direito penal, agora totalmente positivado e totalmente distinto dos campos da moral, da religião e das normas de caráter tradicional, coexistindo, entretanto, com os demais ramos do direito. O direito repressivo continua, portanto, com seu novo rosto, agora refletido no direito penal, na condição de um dos mais expressivos ramos jurídicos, posto nas sociedades contemporâneas, mesmo nas mais modernas, onde a divisão do trabalho social manifesta-se sob formas cada vez mais complexas. Deve-se destacar, ainda, que o autor foi buscar, no direito e não diretamente na moral ou na religião, a fonte para o conteúdo da obra A Divisão do Trabalho Social, tendo encontrado aí os elementos de soldagem e de recomposição da solidariedade rompida. Ele próprio justificou sua incursão pelo mundo do direito, nos termos seguintes: O estudo da solidariedade pertence, pois, ao domínio da sociologia. É um fato social que só pode ser bem conhecido por intermédio dos seus efeitos sociais [...]. Uma vez que o direito reproduz as formas principais de solidariedade social, só nos resta classificar as * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8363

semelhança de funções, de tal forma que os indivíduos formavam-se um coletivo tanto quanto inorgânico,<br />

nas sociedades informadas, sobretudo, pela solidariedade orgânica, a coletividade constituía-se, antes de<br />

tudo, pela interdependência de funções e papéis distintos. Cada órgão desempenhava funções diferentes no<br />

agir e interdependentes no existir.<br />

Também nesse segundo tipo de sociedade, o crime esgarça relações e rompe vínculos sociais. Os<br />

sentimentos coletivos feridos e rompidos tendem a recompor-se através de sanções ou penalidades dos mais<br />

diferentes matizes. Na medida em que as sociedades modificam suas estruturas, isto é, transformam-se,<br />

através da diferenciação e multiplicação de funções, também a solidariedade deixa de se assentar na<br />

semelhança para se fundamentar na diferenciação. Entretanto, pelo fato de uma sociedade se fundamentar na<br />

solidariedade, dominantemente orgânica, não significa que ela exclua totalmente a solidariedade mecânica.<br />

As duas formas de solidariedade coexistem no interior de uma mesma sociedade. O que se quer realçar é<br />

que, em momentos diferentes, uma forma de solidariedade pode predominar sobre a outra e, da mesma<br />

forma, uma forma de ruptura social pode prevalecer num ou noutro tipo de solidariedade. Mas, assim como<br />

ocorrem transformações nos vínculos sociais, acontecem também mudanças nas formas do comportamento<br />

criminoso, nas sanções, nos sistemas normativos, em geral, e no mundo do direito, em especial, conforme se<br />

verá mais adiante.<br />

Se nas sociedades informadas pela semelhança de funções predominava o direito repressivo, nas sociedades,<br />

onde predomina a solidariedade assentada, sobretudo, na diferenciação funcional, haverá a preponderância<br />

do direito restitutivo.<br />

Aliás, por direito restitutivo É. Durkheim entendeu todo o direito que não fosse o penal ou repressivo. Em<br />

todos eles, porém, está presente a sanção, ora sob forma de pena, ora na figura da restituição. A função da<br />

sanção, seja repressiva ou restitutiva, será sempre a de restabelecer vínculos, conexões ou liames sociais<br />

rompidos.<br />

O próprio autor demonstrou, longamente, através de exemplos, as transformações do direito, decorrentes das<br />

mudanças sociais. Por sua vez, ele sempre advertiu ao leitor que o predomínio do direito restitutivo não<br />

eliminaria, jamais, o papel do direito repressivo. As duas formas de direito iriam sempre coexistir, assim<br />

como as duas manifestações de solidariedade: a mecânica e a orgânica, embora com a preponderância da<br />

segunda sobre a primeira.<br />

Em outros termos, vê-se, em nossos dias, o direito penal, agora totalmente positivado e totalmente distinto<br />

dos campos da moral, da religião e das normas de caráter tradicional, coexistindo, entretanto, com os demais<br />

ramos do direito. O direito repressivo continua, portanto, com seu novo rosto, agora refletido no direito<br />

penal, na condição de um dos mais expressivos ramos jurídicos, posto nas sociedades contemporâneas,<br />

mesmo nas mais modernas, onde a divisão do trabalho social manifesta-se sob formas cada vez mais<br />

complexas.<br />

Deve-se destacar, ainda, que o autor foi buscar, no direito e não diretamente na moral ou na religião, a fonte<br />

para o conteúdo da obra A Divisão do Trabalho Social, tendo encontrado aí os elementos de soldagem e de<br />

recomposição da solidariedade rompida. Ele próprio justificou sua incursão pelo mundo do direito, nos<br />

termos seguintes:<br />

O estudo da solidariedade pertence, pois, ao domínio da sociologia. É um fato social que só pode ser bem<br />

conhecido por intermédio dos seus efeitos sociais [...].<br />

Uma vez que o direito reproduz as formas principais de solidariedade social, só nos resta classificar as<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

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