ACERVO - Arquivo Nacional
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<strong>ACERVO</strong><br />
R E V I S T A DO A R Q U I V O N A C I O N A L<br />
VOLUME 8 • NÚMERO • 01/02 • JAN/DEZ • 1995<br />
LEITURAS E LEITOREl<br />
MINISTÉRIO DA IUSTIÇA<br />
ARQUIVO NACIONAL
Ministério da Justiça<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />
<strong>ACERVO</strong><br />
R E V I S T A D O A R Q U I V O R A C I O N A L<br />
RIO DF. JANEIRO, V.8, NUMERO 01/02. JANEIRO/DEZEMBRO 19%
© 1995 by <strong>Arquivo</strong> nacional<br />
Rua Azeredo Coutinho, 77<br />
CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil<br />
Presidente da República<br />
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Ministro da Justiça<br />
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Costa, Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Francisco Iglesias, Helena Ferrez,<br />
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Spinelli, Joaquim Marcai Ferreira de Andrade, José Carlos Avelar, José Sebastião<br />
Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza neves, Maria Inez<br />
Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley, Solange Zúniga<br />
Edição de Texto<br />
José Cláudio da Silveira Mattar<br />
Projeto Gráfico<br />
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Editoração Eletrônica. Capa e Ilustração<br />
Jorge Passos Marinho<br />
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Carlos Peixoto (versão em inglês), Lea novaes (versão em francês)<br />
Copydesk e Revisão<br />
Alba Qisele Qouget, José Cláudio da Silveira Mattar e Tânia Maria Cuba Bittencourt<br />
Reprodução Fotográfica<br />
Agnaldo neves Santos e Flavio Ferreira Lopes<br />
Secretaria<br />
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Revista financiada com recursos do<br />
f~ N<br />
Programa de Apoio a Publicações Cientificas<br />
MCT ÊlcNPg JJÜFINEP<br />
Acervo: revista do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. —<br />
v. 8, n. 1-2 (jan./dez. 1995). — Rio de Janeiro: <strong>Arquivo</strong> nacional, 1995.<br />
V.; 26 cm<br />
Semestral<br />
Suspensa de 1990 a 1992<br />
Cada número possui um tema distinto<br />
issn 0102-700-X<br />
1. <strong>Arquivo</strong>logia - Periódicos 2. História - Periódicos 3. <strong>Arquivo</strong>s - Tecnologia Aplicada -<br />
Periódicos I. <strong>Arquivo</strong> nacional
S U M Á R I O<br />
01<br />
APRESENTAÇÃO<br />
03<br />
ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER<br />
13<br />
ENTREVISTA COM ROBERT DARNTON<br />
19<br />
Os CLÉRIGOS E OS LIVROS NAS MINAS GERAIS DA SEGUNDA<br />
METADE DO SÉCULO XVIII<br />
Luiz Carlos Villalta<br />
53<br />
OS 'LETRADOS* DA SOCIEDADE COLONIAL: AS ACADEMIAS E A<br />
CULTURA DO ILUMINISMO NO FINAL DO SÉCULO XVIII<br />
Berenice Cavalcante<br />
67<br />
SERVIDÃO E DÚVIDA: O LEITOR DA HISTÓRIA DO FUTURO DE<br />
ANTÔNIO VIEIRA<br />
Marcus Alexandre Motta<br />
83<br />
LEITORES DO RIO DE JANEIRO: BIBLIOTECAS COMO JARDINS DAS<br />
DELICIAS<br />
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />
105<br />
CULTURA CIENTÍFICA E SOCIABILIDADE INTELECTUAL NO BRASIL<br />
SETECENTISTA: UM ESTUDO ACERCA DA SOCIEDADE LLTERÃRIA DO<br />
Rio DE JANEIRO<br />
Lorelai Brilhante Kury e Oswaldo Munteal Filho
123<br />
LEITURA E LEITORES NO BRASIL, 1820-1822: o ESBOÇO<br />
FRUSTRADO DE UMA ESFERA PÚBLICA DE PODER<br />
Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />
139<br />
A DISTINÇÃO E SUAS NORMAS: LEITURAS E LEITORES DOS MANUAIS<br />
DE ETIQUETA E CIVILIDADE - RlO DE JANEIRO, SÉCULO X I X<br />
Maria do Carmo Teixeira Rairího<br />
153<br />
REVOLUÇÃO E HERESIA NA BIBLIOTECA DE UM ADVOGADO DE<br />
M ARI ANA<br />
Paulo Gomes Leite<br />
167<br />
EDIÇÕES PERIGOSAS: A Exerci,OPÊDIE PARA ROBERT<br />
DARNTON<br />
Cláudia Heynemann<br />
183<br />
A LIVRARIA DO TEIXEIRA E A CIRCULAÇÃO DE LIVROS NA CIDADE<br />
DO Rio DE JANEIRO, EM 1794<br />
Nireu Oliveira Cavalcanti<br />
195<br />
PERFIL INSTITUCIONAL<br />
REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA<br />
Antônio Gomes da Costa<br />
199<br />
BIBLIOGRAFIA
A P R E S E N T A Ç Ã O<br />
Tentar saber que livros possuíam os<br />
homens de uma determinada época e<br />
sociedade e como e por que os liam têm<br />
sido uma preocupação constante dos<br />
sociólogos e historiadores da leitura.<br />
Um dos trabalhos precursores desta<br />
temática foi escrito no século XIX, pelo<br />
historiador francês Daniel Mornet. Em<br />
seu artigo "Os ensinamentos das<br />
bibliotecas particulares no século XVIII",<br />
o autor procurava avaliar a difusão das<br />
obras iluministas a partir do acervo<br />
daquelas bibliotecas. Com isso, o<br />
historiador buscava responder à<br />
pergunta: o que liam os franceses no<br />
século XV1I1?<br />
O artigo de Mornet gerou uma série de<br />
trabalhos que buscavam reconstituir não<br />
apenas o conteúdo das bibliotecas de<br />
diferentes grupos sociais mas também,<br />
e principalmente, o consumo, a<br />
circulação e a recepção dos livros.<br />
Assim, os trabalhos mais recentes sobre<br />
as práticas e a recepção das leituras já<br />
não partem mais do pressuposto de que<br />
a simples posse dos livros é sinônimo<br />
da leitura dos mesmos. Interessados em<br />
analisar as formas de se ler uma<br />
determinada obra, sua recepção e<br />
circulação, os historiadores e sociólogos<br />
têm se debruçado cada vez mais sobre<br />
este objeto, tentando articular as<br />
diferentes formas de venda, acesso e<br />
maneiras de ler o livro.<br />
Dedicado a estes temas, este número da<br />
revista Acervo, reúne artigos que<br />
discutem o conteúdo de bibliotecas, as<br />
recepções e práticas de leituras, e as<br />
sociabilidades intelectuais no Brasil dos<br />
séculos XVIII e XIX. Além disso, traz<br />
uma inovação: entrevista dois dos<br />
maiores especialistas no assunto, os<br />
historiadores Roger Chartier e Robert<br />
Darnton.<br />
Os artigos de Luiz Carlos Villalta, Paulo<br />
Gomes Leite e Tânia Bessone partem do<br />
conteúdo de bibliotecas para tentar<br />
perceber o que e como liam<br />
determinados grupos. Villalta analisa as<br />
bibliotecas de clérigos nas Minas Gerais<br />
da segunda metade do século XVIII para<br />
avaliar em que medida os livros que elas<br />
possuíam influenciaram as condutas<br />
políticas e sexuais destes clérigos.<br />
A partir dos Autos da Devassa da<br />
Inconfidência Mineira e do conteúdo da<br />
biblioteca de José Pereira Ribeiro, Paulo<br />
Gomes Leite analisa a leitura e a<br />
circulação dos chamados livros<br />
perigosos, que excitavam o ardor<br />
revolucionário dos letrados mineiros do<br />
século XV111. Tânia Bessone estuda o<br />
conteúdo das bibliotecas particulares de<br />
médicos e advogados na virada do<br />
século XIX para o XX tentando perceber<br />
nào apenas que livros estes homens<br />
possuíam mas também o que liam.<br />
As sociabilidades intelectuais viven-
ciadas no Brasil dos séculos XV11I e XIX<br />
aparecem nos artigos de Berenice<br />
Cavalcante, Lorelai Brilhante Kury &<br />
Oswaldo Munteal e Lúcia Bastos.<br />
Berenice Cavalcante investiga o elenco<br />
de questões que atraía a elite intelectual<br />
da Colônia e a nova sociabilidade<br />
vivenciada por estes acadêmicos que, a<br />
despeito das diferenças advindas da<br />
riqueza ou do conhecimento, igualavam-<br />
se na condição de livres pensadores.<br />
A Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />
e a especificidade do grupo de letrados<br />
que a compunham é o tema do artigo<br />
de Oswaldo Munteal Filho Se Lorelai<br />
Brilhante Kury. Mele, os autores<br />
analisam o lugar ocupado pela natureza<br />
no pensamento destes ilustrados e<br />
como os membros desta Sociedade<br />
lançam mão do arsenal intelectual<br />
oriundo das Luzes européias, para<br />
refletirem sobre a condição do homem<br />
que vive em contato quase direto com<br />
a natureza.<br />
Lúcia Bastos parte dos folhetos,<br />
panfletos e periódicos publicados entre<br />
1821 e 1823 para analisar as leituras da<br />
elite intelectual que participou do<br />
movimento da Independência. Enfoca<br />
também o nascimento da idéia de<br />
opinião pública que, para ela, surgiu no<br />
Brasil nesse período e se produziu<br />
graças aos homens de letras.<br />
A questão da recepção das leituras e<br />
circulação de livros é enfocada nos<br />
artigos de Maria do Carmo Rainho e<br />
Claudia Heynemann. A primeira discute<br />
o conteúdo dos manuais de etiqueta e<br />
civilidade que circulavam no Rio de<br />
Janeiro do século XIX e a importância<br />
de sua leitura para aqueles que se<br />
denominavam membros da "boa<br />
sociedade". Claudia Heynemann enfoca<br />
o universo de livros clandestinos,<br />
panfletos e literatura pornográfica que<br />
era consumida na França no período<br />
pré-revolucionário a partir da análise de<br />
Robert Darnton sobre a Encyclopédie.<br />
A revista publica ainda um curioso artigo<br />
de Marcus Motta que reflete sobre as<br />
possibilidades de leitura de um texto,<br />
discutindo a posição do leitor a partir<br />
de níveis de submissão ao texto e das<br />
dúvidas que este aponta para o leitor<br />
tendo por base a História do Futuro do<br />
padre Antônio Vieira.<br />
Este número de Acervo apresenta<br />
também um documento inédito do<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> localizado por Nireu<br />
Cavalcanti que, em seu artigo, revela a<br />
existência de uma importante livraria na<br />
Corte no final do século XVIII.<br />
O perfil institucional é dedicado ao Real<br />
Qabinete Português de Leitura,<br />
instituição que guarda e dá acesso à um<br />
valioso patrimônio estimado em<br />
350.000 volumes.<br />
Finalmente e, sem trocadilho, desejo<br />
uma boa leitura a todos os leitores.<br />
Maria do Carmo Rainho<br />
Editora
Ohistoriador<br />
f r a n c ê s<br />
R o q e r<br />
Chartier, um dos<br />
maiores especialistas<br />
na história da leitura,<br />
vem desenvolvendo<br />
em seus trabalhos<br />
E n t i r e v i s t a c o m Ri ox og ge er r C / L a r t i e r<br />
temas como práticas e recepção<br />
de leituras, sociabilidades<br />
intelectuais e edição de livros na<br />
França do Antigo Regime, em<br />
obras como íiistoire de /'edition<br />
française. Pratiques de lecture,<br />
Lectures et lecteurs dans Ia<br />
France de l'Ancien Regime e A<br />
ordem dos livros,<br />
entre outras.<br />
Mesta entrevista,<br />
Roger Chartier ana<br />
lisa as possibilidades<br />
e dificuldades encon<br />
tradas pelos historia<br />
dores ao tentarem<br />
reconstruir as práticas e a<br />
recepção das leituras de uma<br />
determinada sociedade. E chama<br />
atenção para o fato de que mais<br />
importante do que tentar saber o<br />
que liam os franceses no século<br />
XV11I é tentar perceber como eles<br />
liam.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n 1-2. p. 3-12. jan/dez 1995 - pag.3
A C E<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O Senhor considera<br />
possível responder ã pergunta: "O que<br />
liam os franceses no século XVIII?"<br />
Roger Chartier. Hoje já me parece<br />
possível responder a essa pergunta. Os<br />
trabalhos clássicos dos historiadores<br />
franceses permitiram reconstruir a<br />
produção, a circulação e a posse dos<br />
títulos autorizados graças à utilização<br />
maciça e quantitativa dos registros de<br />
pedidos de permissão, dos catálogos<br />
dos livreiros e das listas de livros<br />
presentes nos inventários post-mortem.<br />
O que faltou durante muito tempo às<br />
conclusões dessas pesquisas foi um<br />
bom conhecimento da difusão dos<br />
títulos proibidos, que não podiam ser<br />
impressos no reino, nem figurar nos<br />
catálogos de livraria ou aparecer nos<br />
inventários de livros pertencentes por<br />
particulares.<br />
Graças à exploração sistemática dos<br />
arquivos das sociedades tipográficas<br />
instaladas ao redor do reino, e que<br />
publicavam os 'livros filosóficos' para<br />
o mercado francês, agora é possível ter-<br />
se uma justa medida da importância e<br />
da natureza dessa produção proibida. O<br />
grande trabalho de Robert Darnton,<br />
desenvolvido a partir dos arquivos<br />
excepcionais da Sociedade Tipográfica<br />
de Meuchátel, constitui a contribuição<br />
mais fundamental. Mas não devemos<br />
esquecer outras pesquisas, também<br />
feitas por historiadores americanos,<br />
como, por exemplo, as de Raymond Birn<br />
sobre os arquivos da Sociedade<br />
pag.4. jan/dez 1995<br />
Tipográfica de Bouillon.<br />
É a partir desse conhecimento que hoje<br />
podem ser formuladas novas perguntas:<br />
não mais "o que liam os franceses?",<br />
mas "como liam os franceses?" E "qual<br />
foi o papel do impresso no afastamento<br />
dos franceses da Igreja e da<br />
monarquia?"<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. lia introdução de<br />
Edição e sediçáo Robert Darnton afirma<br />
que este livro pode ser lido como uma<br />
resposta ã questão de Daniel Mornet: "o<br />
que liam os franceses no século XVIII?"<br />
O que o senhor pensa disso?<br />
Roger Chartier. Inspirado pelo<br />
programa de sociologia da literatura de<br />
Lanson, Daniel Mornet foi sem dúvida o<br />
primeiro historiador que tentou avaliar<br />
a importância da difusão das grandes<br />
obras do lluminismo a partir de sua<br />
presença (ou ausência) nos inventários<br />
de bibliotecas. É este o tema de seu<br />
célebre artigo "Os ensinamentos das<br />
bibliotecas particulares no século XVIII",<br />
publicado na Revue d'histoire littéraire<br />
de Ia France, em 1910. A partir desse<br />
trabalho pioneiro, multiplicaram-se os<br />
estudos monográficos a fim de<br />
reconstituir as bibliotecas pertencentes<br />
aos diferentes grupos sociais, nos<br />
diferentes locais e em diferentes<br />
épocas. O ponto fraco dessas mono<br />
grafias residia no fato de que as fontes<br />
por elas utilizadas (inventários notariais<br />
ou catálogos de vendas) subestimavam,<br />
ou até mesmo ignoravam, por sua<br />
própria natureza, os títulos proibidos,
que eram escondidos dos notários ou<br />
postos secretamente a venda pelos<br />
livreiros.<br />
Daí a importância capital das pesquisas<br />
de Darnton, que permitiram ter uma<br />
noção precisa da circulação (que não era<br />
pequena) da literatura clandestina. O<br />
que agora devemos compreender<br />
melhor é a articulação dos diferentes<br />
mercados do livro (o das novidades<br />
licitas, dos 'livros filosóficos', dos<br />
mascates, do livro de segunda mão etc),<br />
das diferentes formas de acesso ao<br />
impresso (por compra, empréstimo,<br />
assinatura em gabinetes de leitura,<br />
participação em sociedades de leitura,<br />
locação por hora ou por dia etc.) e dos<br />
diversos tipos de leitura (em função dos<br />
levantamentos de textos, das razões da<br />
leitura e das maneiras de ler).<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, rio livro Lectures et<br />
lecteurs dans la France d'Ancien Regime<br />
o senhor diz que o acesso ao livro não<br />
pode ser reduzido somente a posse do<br />
livro, pois nem sempre o leitor é<br />
proprietário do livro que lê. Por outro<br />
lado, o senhor chama a atenção para o<br />
fato de que a escrita está presente<br />
mesmo na cultura analfabeta, em rituais<br />
festivos, nos espaços públicos, nos<br />
locais de trabalho. Partindo dessa<br />
premissa, que conselhos daria àqueles<br />
que estão interessados em reconstituir<br />
as práticas de leitura e as formas de<br />
apropriação dos textos de uma<br />
determinada sociedade?<br />
Roger Chartier. O único conselho útil<br />
V o<br />
seria resistir à tentação, sempre forte,<br />
de considerar a nossa relação com o<br />
livro, e de maneira mais geral, com o<br />
texto escrito, como universal e variável.<br />
Contra o que João Hansen designa (e<br />
denuncia) como um 'etnocentrismo da<br />
leitura', é necessário lembrar que a<br />
posse não é o único meio de acesso ao<br />
livro, que nem todo material impresso<br />
é composto de livros lidos no espaço<br />
privado, que a leitura não é<br />
forçosamente solitária e silenciosa, e<br />
que não é necessário ser alfabetizado<br />
para 'ler', se 'ler' significa, como na<br />
Castela do Século de Ouro, ouvir ler.<br />
não podemos esquecer essas práticas<br />
que, ao contrário da posse, não<br />
deixaram vestígios nos arquivos.<br />
Reconstruí-las supõe a mobilização de<br />
fontes que, por definição, não são nem<br />
exaustivas, nem suscetíveis de um<br />
tratamento serial. Assim, por exemplo,<br />
para a leitura em voz alta, o estudo de<br />
suas representações nas obras literárias<br />
pictóricas ou iconográficas, a<br />
identificação dos gêneros e das formas<br />
que visam ou supõem uma determinada<br />
leitura, a localização, nos próprios<br />
textos, do que Paul Zumthor qualifica<br />
como 'índices de oralidade' e, para os<br />
etnólogos e sociólogos, a observação<br />
das fórmulas e convenções próprias a<br />
um determinado modo de leitura.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. A partir de que<br />
momento os historiadores franceses se<br />
voltaram para a história do livro e para<br />
a sociologia da leitura? Quais foram os<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 3-12. jan/dez 1995 - pag.S
A C E<br />
precursores destes trabalhos?<br />
Roger Chartier. O interesse atual pela<br />
história das práticas de leitura resulta<br />
claramente, pelo menos na frança, do<br />
cruzamento de várias'tradições. A<br />
primeira delas é a da história do livro<br />
em sua acepção clássica. Sua fundação<br />
como disciplina e campo de pesquisas<br />
autônomas foi marcada pela obra<br />
L'apparition du livre, publicada por<br />
Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, em<br />
1958. Henri-Jean Martin foi o primeiro<br />
historiador francês a ensinar uma<br />
disciplina especificamente consagrada<br />
à 'civilização do livro', na Ecole Pratique<br />
de Hautes Etudes. A partir desse livro<br />
fundador, foram muitos os trabalhos<br />
consagrados à reconstituiçáo das<br />
conjunturas em que foram produzidos<br />
os materiais impressos, à sociologia das<br />
pessoas ligadas ao livro' (editores,<br />
livreiros, encadernadores, artesãos etc.)<br />
e à importância do acervo das<br />
bibliotecas particulares. Os quatro<br />
volumes da tlistoire de 1'édition<br />
française (publicada entre 1982 e 1986<br />
e reeditada entre 1989 e 1991) fazem<br />
um balanço de todas essas pesquisas.<br />
Uma segunda corrente de estudos, que<br />
floresceu nesses mesmos anos, foi a da<br />
sociologia da leitura, entendida como<br />
avaliação das práticas do livro (compra<br />
em livraria, visita a bibliotecas, volume<br />
e circunstâncias das leituras), repartidas<br />
segundo os diferentes meios sociais e<br />
grupos profissionais. O ponto alto<br />
desses trabalhos é a série de obras<br />
publicadas pelo Serviço de Estudos e<br />
pag.6. jan dez 1995<br />
Pesquisas da Biblioteca Pública de<br />
Informação do Centro Qeorges<br />
Pompidou.<br />
Mas, para que uma história da leitura<br />
tivesse um verdadeiro desenvolvimento,<br />
foram necessárias outras referências e<br />
outros fundamentos, que vieram da<br />
antropologia das práticas comuns, tal<br />
como proposto por Richard Hoggart em<br />
The uses of literacy, e por Michel de<br />
Certeau em L'invention du quotidien;<br />
das correntes da história literária<br />
sensíveis à pluralidade e à historicidade<br />
da recepção das obras, logo, à diver<br />
sidade de suas leituras; e, finalmente,<br />
das disciplinas que, ao descrever a<br />
forma dos objetos manuscritos e<br />
impressos (codicologie, analytical<br />
bibliography), estabelecem as eventuais<br />
modalidades de sua apropriação.<br />
Apoiando-se sobre essas referências<br />
matriciais, a história da leitura pôde ser<br />
construída e, recentemente, propor seus<br />
primeiros balanços (tlistoires de Ia<br />
lecture) e suas primeiras sínteses (Storia<br />
delia leitura nel mondo occidentale).<br />
<strong>Arquivo</strong> nacional. Para o senhor a<br />
história da leitura se inscreve como um<br />
objeto da história intelectual ou da<br />
história cultural?<br />
Roger Chartier. Para mim, hoje já não<br />
se pode estabelecer uma diferença<br />
nítida entre a história intelectual (ou<br />
literária) e a história cultural. Ma<br />
verdade, um problema comum<br />
apresenta-se aos historiadores dos<br />
textos, do livro e das práticas culturais,<br />
qual seja, o de reconstruir os usos e as
K V O<br />
significações atribuídos aos textos por<br />
seus diferentes leitores (ouvintes ou<br />
espectadores). Responder a essa<br />
pergunta supõe desenvolver várias<br />
estratégias de pesquisa, ligadas umas às<br />
outras mas que, tradicionalmente,<br />
pertencem a diferentes disciplinas<br />
acadêmicas. Devemos agrupar numa<br />
mesma história o estudo dos textos,<br />
logo, de seus gêneros, formas,<br />
temáticas, motivos; o estudo dos<br />
suportes e de suas modalidades de<br />
inscrição, transmissão e conservação;<br />
enfim, o estudo de suas apropriações<br />
por diferentes comunidades, em<br />
diferentes momentos.<br />
É possível (e sem dúvida necessário)<br />
abordar essa problemática a partir de<br />
uma das questões: o estudo de uma<br />
obra de um gênero impresso, ou de uma<br />
prática da escrita. Os trabalhos que<br />
publiquei sobre uma peça de Molière<br />
(nos Annales, em 1994), sobre a<br />
Bibliothèque bleue, ou sobre a leitura<br />
em voz alta podem ilustrar cada uma<br />
dessas perspectivas de pesquisa. Mas o<br />
importante é que cada uma, qualquer<br />
que seja seu ponto de partida, articule<br />
à análise textual, a descrição<br />
morfológica e sociológica dos hábitos.<br />
É a partir de tal articulação que se<br />
podem definir novas perspectivas de<br />
trabalho que desestruturem as divisões<br />
canônicas e coloquem a questão<br />
fundamental: a da produção do sentido.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Os historiadores da<br />
leitura têm recorrido à diversas fontes:<br />
inventários post-mortem, catálogos de<br />
bibliotecas, documentação editorial,<br />
correspondência de livreiros e da<br />
censura, almanaques como France<br />
litteraire entre outras. Quais são as<br />
principais dificuldades metodológicas<br />
ao se trabalhar com estas fontes?<br />
Roger Chartier. Cada fonte mencionada<br />
apresenta problemas específicos,<br />
quanto a sua representatividade, ou<br />
quanto a sua exaustividade. Para a<br />
história da leitura, a dificuldade<br />
fundamental relaciona-se com o fato de<br />
que o historiador pode trabalhar apenas<br />
com representações da prática:<br />
representações normativas nas artes de<br />
ler e nas sentenças judiciais;<br />
representações de uma leitura<br />
pretendida, desejada, implícita, nos<br />
prefácios, prólogos e palavras ao leitor;<br />
representações codificadas segundo as<br />
convenções estéticas com as imagens<br />
de leitores e leitoras propostas pela<br />
pintura ou pela gravura; representações<br />
dirigidas pelas táticas do self fashioning<br />
nos testemunhos de natureza autobio<br />
gráfica (livre de raison, diário, narrativa<br />
de vida).<br />
Tal constatação não significa que essas<br />
fontes sejam inutilizáveis. Ao contrário.<br />
Mas leva, contra qualquer leitura docu<br />
mentária ingênua e imediata, a compre<br />
ender as práticas da representação (suas<br />
razões, gêneros, intenções) para poder<br />
decifrar corretamente as repre<br />
sentações das práticas. Parece-me que<br />
o mesmo procedimento é válido para os<br />
documentos aparentemente mais<br />
objetivos (inventários post-mortem.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n e 1-2, p. 3-12, jan/dez 1995 - pag.7
A C E<br />
registros administrativos, catálogos de<br />
bibliotecas etc). Todos supõem esco<br />
lhas e triagens - logo, exclusões. Todos<br />
sào organizados a partir de categorias,<br />
classificações e fórmulas que não são<br />
neutras, mas que submetem à suas<br />
lógicas as 'realidades' de que se apode<br />
ram. Tomar consciência dessas conven<br />
ções, variáveis segundo os documentos,<br />
as épocas e lugares, é condição neces<br />
sária para que se possa apreciar as<br />
pertinências e os limites de cada fonte.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. De que forma a<br />
história cultural pode se relacionar com<br />
a crítica literária, com a 'estética da re<br />
cepção ' e com as abordagens filosóficas<br />
como a de Paul Hicoeur cujos estudos<br />
partem da própria estrutura narrativa?<br />
Roger Chartier. Creio que a história só<br />
tem valor e interesse se é capaz de<br />
estabelecer um diálogo, ou um debate<br />
com as outras disciplinas. No campo da<br />
história da leitura, o encontro foi<br />
imediato e evidente tanto com a crítica<br />
literária (pelo menos aquela que enfoca<br />
a recepção das obras) como com a<br />
filosofia (pelo menos aquela que se<br />
inscreve numa perspectiva fenome-<br />
nológica e hermenêutica). O grande livro<br />
de Paul Ricoeur Temps et récit une as<br />
duas abordagens, pois a teoria da leitura<br />
que constrói para compreender o<br />
encontro entre o mundo do texto e o<br />
mundo do leitor baseia-se na dupla<br />
referência à fenomenologia da leitura,<br />
desenvolvida por Wolfgang Iser, e na<br />
estética da recepção, elaborada por<br />
Hans Robert Jauss e a Ecole de<br />
pag.8. jan/dez 1995<br />
Constance'. Era pois normal que ele<br />
adotasse a linha de reflexão dos<br />
historiadores da leitura.<br />
As diferenças que esses historiadores<br />
podem estabelecer em relação às<br />
abordagens literárias e filosóficas<br />
prendem-se a dois elementos: o<br />
primeiro remete à materialidade dos<br />
textos. Contra todas as formas de<br />
abstração dos textos estudados, lidos,<br />
comentados independentemente das<br />
modalidades de sua inscrição e de sua<br />
comunicação, é necessário lembrar,<br />
parece-me, que a significação das obras<br />
depende também das formas que as<br />
transmitem a seus leitores e a seus<br />
ouvintes. A 'mesma' comédia de Molière<br />
não é a 'mesma', se assistida quando<br />
de uma festa na corte ou no palco do<br />
teatro do Palais Royal, ou quando é<br />
apenas lida. O 'mesmo' romance de<br />
Balzac não é o 'mesmo', quando é<br />
publicado em folhetim, numa edição<br />
para um gabinete de leitura, numa<br />
edição para o mercado da livraria, ou<br />
ainda sob a forma de obras completas.<br />
"A forma afeta o sentido", é uma<br />
fórmula cara a D. F. McKenzie. É pois<br />
necessário identificar os efeitos de<br />
sentido das diferentes formas (impres<br />
sas ou manuscritas, escritas ou orais)<br />
que se apoderam de uma 'mesma' obra.<br />
Por outro lado, contra todas as formas<br />
de abstração do leitor ou, dizendo<br />
melhor, de 'etnocentrismo' da leitura,<br />
que supõe comuns a todos os leitores<br />
práticas que são, na verdade,<br />
absolutamente específicas - por exem
pio, aquelas do crítico literário ou do<br />
filósofo hermeneuta...-, devemos lem<br />
brar que a leitura tem uma história e<br />
uma sociologia. É pois necessário<br />
reconstruir as competências, as técni<br />
cas, as convenções, os hábitos, as<br />
práticas próprias a cada comunidade de<br />
leitores (ou leitoras). Deles depende<br />
também a significação que, em<br />
determinado momento ou lugar, um<br />
'público' pode atribuir a um texto.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Exemplos como o do<br />
moleiro Menocchio, analisado por Cario<br />
Qinzburg em O queijo e os vermes, que<br />
teve acesso a livros que não lhe eram<br />
destinados, ou da série Bibliothèque<br />
Bleue, de textos clássicos dirigidos edi-<br />
toria/mente a um público menos ins<br />
truído, configuram uma 'circu/aridade<br />
da cultura' ou apontam para a existência<br />
da dicotomia popular/letrado? Como o<br />
senhor entende esse tipo de<br />
apropriação?<br />
Roger Chartier. Nas sociedades do<br />
Antigo Regime, os leitores populares,<br />
devido a suas condições de vida, vêem-<br />
se confrontados com textos que não<br />
lhes são especificamente destinados.<br />
Seja porque, como Menocchio, eles<br />
adquirem ou tomam emprestados livros<br />
que são destinados às elites sociais;<br />
seja porque, como clientes dos<br />
mascates, eles compram os impressos<br />
que constituem o repertório das livrarias<br />
ambulantes, que editam, para um<br />
público mais amplo, textos que -<br />
anteriormente, ou naquele momento -,<br />
são difundidos sob outras formas,<br />
dirigidos a outros leitores, mais<br />
afortunados e mais letrados.<br />
Assim, não é possível caracterizar como<br />
radicalmente específico o corpus dos<br />
textos que constituem o que<br />
tradicionalmente se designou como a<br />
'literatura popular ambulante'. O<br />
essencial consiste, inicialmente, em<br />
localizar quais são os textos e os livros<br />
que circulam nos meios populares,<br />
assim como nos meios letrados<br />
(pensemos nas romanzas e nos<br />
romances de capa e espada da Castela<br />
do Século de Ouro); em seguida,<br />
devemos identificar as maneiras de ler<br />
características dos menos privilegiados<br />
e dos menos cultos dos leitores.<br />
A tarefa não é fácil, está sempre<br />
ameaçada pelo risco de reintroduzir um<br />
sociologismo demasiadamente abrupto,<br />
que qualifica como 'populares' práticas<br />
que, na verdade, podem ser<br />
encontradas em outros horizontes<br />
sociais. Será certo, por exemplo, que a<br />
maneira de ler de Menocchio seja<br />
representativa de uma leitura<br />
campesina, apoiada nas tradições da<br />
cultura da oralidade? É necessário ser<br />
prudente na qualificação dos diferentes<br />
modelos de leitura que, também eles,<br />
como o corpus dos textos, podem ser<br />
comuns a diferentes meios.<br />
Mas é certo que é somente deslocando-<br />
se sobre os usos e práticas, que a<br />
história das leituras populares poderá<br />
evitar as armadilhas nas quais<br />
freqüentemente caiu ao tratar sem<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 3-12. jan dez 1995 - pag.9
precaução a oposição entre popular e<br />
letrado aplicada à circulação, supos<br />
tamente fechada, de corpus de textos<br />
considerados como próprios a tal ou tal<br />
público. São esses problemas que<br />
procurei enfocar num artigo publicado<br />
no primeiro número da nova revista<br />
brasileira Mana'.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O professor Robert Darnton<br />
vê a Revolução Francesa também como uma<br />
revolução literária, não apenas através dos<br />
grandes textos iluministas, mas também pela<br />
literatura clandestina. A circulação de livros e a<br />
leitura de obras proibidas modificou as relações<br />
de poder? A burguesia leu os iluministas?<br />
Roger Chartier. Os trabalhos de Robert<br />
Darnton, e particularmente suas últimas<br />
obras, mostraram a importância da circulação<br />
dos 'livros filosóficos' nas três últimas<br />
décadas do Antigo Regime. Também<br />
enfatizaram a composição bastante confusa<br />
dessa noção, utilizada pelos livreiros, que<br />
compreende as obras dos filósofos,<br />
encabeçados por Voltaire, os libelos e<br />
panfletos políticos e as obras pornográficas,<br />
clássicas ou recentes.<br />
A partir dessas constatações, indis<br />
cutíveis, pode-se abrir um debate sobre<br />
os laços existentes entre a leitura desse<br />
corpus de textos que, sob diferentes<br />
formas, denunciam ou dessacralizam as<br />
autoridades tradicionais, e a transfor<br />
mação das representações coletivas<br />
que, em 1789, torna admissível e aceita<br />
a ruptura revolucionária.<br />
Em meu livro sobre as origens culturais<br />
da revolução, apresentei alguns<br />
argumentos que me parecem impedir<br />
que se vincule, sem uma análise mais<br />
profunda, os leitores às correntes de<br />
pensamento: por exemplo, a pluralidade<br />
das significações possivelmente<br />
atribuídas a textos com vários registros;<br />
os limites da área social de circulação<br />
dos libelos e o caráter efêmero de sua<br />
atualidade; a possibilidade de o leitor<br />
encontrar um prazer na leitura sem,<br />
todavia, dar crédito a seus enunciados,<br />
ou a necessidade de não considerar o<br />
afastamento da monarquia como o<br />
resultado de um processo linear e<br />
cumulativo. Daí a hipótese segundo a<br />
qual as novas maneiras de ler surgidas<br />
no século XVIII, desenvoltas e críticas,<br />
talvez tivessem importância igual ou<br />
superior à importância da divulgação em<br />
grande escala dos textos subversivos.<br />
Pareceu-me necessário chamar a<br />
atenção sobre todos esses pontos, a fim<br />
de evitar que a tese clássica de Mornet,<br />
que considera a ruptura revolucionária<br />
como sendo conseqüência da divul<br />
gação sempre mais ampla do Ilumi-<br />
nismo, não seja simplesmente reprodu<br />
zida em outro corpus, o dos 'livros filo<br />
sóficos', dotado da mesma eficácia sub<br />
versiva que aquela atribuída, durante<br />
muito tempo, aos textos dos filósofos...<br />
Na edição americana de Edição e<br />
sedição, muito mais desenvolvida do<br />
Nota do Editor. O artigo a que se refere o autor intitula-se "Leituras, leitores e 'literaturas populares' na<br />
Soc°r| adl aurRJ SCenCa' 6 ^ P a r t C ^ r e V' S t a Ma" a' e d U a d a P e'° F r°9 r a m a d e Pós-graduaçâo em Antropologia<br />
pag. 10. jan dez 1995
K V O<br />
que o texto original francês, Robert<br />
Darnton que, diga-se de passagem, é um<br />
grande amigo - o que dá mais liberdade<br />
às polêmicas intelectuais -, responde<br />
ponto por ponto a esses argumentos.<br />
Cabe, pois, ao leitor, julgar a força e a<br />
fraqueza da posição de cada um.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, lia esteira do<br />
sociólogo alemão liorbert Elias, o<br />
senhor vem estudando as alterações<br />
ocorridas na noção de moralidade bem<br />
como os livros que entre os séculos XVI<br />
e XVIII descreviam os códigos e compor<br />
tamentos tidos como 'civilizados'. Que<br />
dificuldades o senhomr encontrou ao<br />
trabalhar com esta documentação?<br />
Roger Chartier. Como se sabe, a obra<br />
de Morbert Elias constitui, para mim,<br />
uma referência teórica maior. Sinto-me<br />
feliz e orgulhoso por ter contribuído<br />
para torná-la mais conhecida na França,<br />
ao prefaciar as traduções de quatro de<br />
seus livros (A sociedade de corte, A<br />
sociedade dos indivíduos, Engagement et<br />
distanciation e Sport et civilization: la<br />
violence maitrisée - de Elias e Eric Dunning).<br />
Meu interesse pelo corpus dos tratados<br />
de civilidade, de Erasmo às civilidades<br />
revolucionárias, nasceu de uma questão<br />
central colocada pela grande tese de<br />
Elias quanto ao desenvolvimento dos<br />
dispositivos de autocontrole dos<br />
indivíduos - que ele chama de 'processo<br />
de civilização'. Como pôde se dar a<br />
incorporação de novas normas do<br />
comportamento, que refreiam a<br />
expressão dos afetos e aumentam as<br />
exigências do pudor? Quais são os<br />
dispositivos que traduzem em termos de<br />
modelos de conduta os cerceamentos<br />
impostos pelo incremento das<br />
interdependências entre os indivíduos?<br />
O corpus dos tratados de civilidade,<br />
ponto de partida do trabalho de Elias,<br />
poderia ser retomado de outra maneira:<br />
não mais buscando-se neles os<br />
deslocamentos da fronteira entre o licito<br />
e o proibido, mas entendendo sua<br />
pluralidade e seus usos. Daí a ênfase<br />
sobre as definições concorrentes -<br />
antropológica, cristã, social,<br />
revolucionária etc. - da civilidade. Daí<br />
também a atenção dirigida às utilizações<br />
pedagógicas dos tratados e à sua<br />
divulgação 'popular' no repertório da<br />
Bibliothèque bleue.<br />
Para minha contribuição ao quarto<br />
volume da flistoire de la France, dirigida<br />
por André Burguière e Jacques Revel,<br />
para Editions du Seuil, retomei um dos<br />
textos, designado por Elias como o<br />
primeiro manual da racionalidade da<br />
corte, ou seja, a tradução francesa,<br />
atribuída a Amelot de la Houssaie, do<br />
Oráculo manualy arte de prudência, de<br />
Qracián (1647). Tratava-se, antes de<br />
tudo, de compreender como a tradução<br />
havia 'curializado' o texto (publicado em<br />
1682 sob o título L'flomme de cour) e<br />
como seus preceitos encontravam apoio<br />
na teoria cartesiana das paixões e suas<br />
traduções em sentimentos e condutas<br />
dos personagens da tragédia clássica.<br />
Tradução de I ca Novaes.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. TI 1-2. p. 5-12. jan/dez 1995 - pag, 11
Ohistoriador<br />
americano<br />
R o b e r t<br />
Darnton é velho conhe<br />
cido dos brasileiros.<br />
Desde O grande mas<br />
sacre dos gatos publi<br />
cado no Brasil em<br />
E n t r e v i s t a c o m R o t e r t a r n t o n<br />
1986, seus livros têm sido<br />
referência fundamental para<br />
aqueles interessados em<br />
entender o papel da literatura,<br />
em especial da literatura<br />
clandestina, no desmoronamento<br />
do Antigo Regime, na França.<br />
revolução literária.<br />
Darnton, que tem tido<br />
Roger Chartier como<br />
um de seus interlo<br />
cutores mais cons<br />
tantes, analisa nesta<br />
entrevista o fato da<br />
Revolução Francesa<br />
ser também uma<br />
E, com bom-humor, aproveita<br />
para brincar com Chartier que,<br />
segundo ele, está sempre<br />
esperando o resultado de suas<br />
pesquisas para questionar suas<br />
suposições e conclusões.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p 13-18, jan/dez I995 pagl3
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, rio prólogo da<br />
edição francesa de L'Aventure de<br />
l'Encyclopédie, Le Roy Ladurie diz que<br />
o sn, Daniel Roche, Qerard Qayot e<br />
François Furet são os quatro mosque<br />
teiros do revisionismo prè-revolucio-<br />
nário. O sr. concorda com este epiteto?<br />
Robert Darnton. Um dos muitos dons<br />
de Le Roy Ladurie como historiador é o<br />
senso de humor. Chamando-nos de os<br />
quatro mosqueteiros do revisionismo<br />
ele estava fazendo uma piada; porém,<br />
brincando dessa maneira, ele pretendeu<br />
dizer algo de sério - ou seja, que, como<br />
historiadores sócio-culturais, nós todos<br />
tínhamos apresentado resultados que<br />
eram incompatíveis com as interpre<br />
tações marxistas ortodoxas das origens<br />
da Revolução Francesa. No meu caso,<br />
encontrei algumas informações<br />
extraordinariamente ricas sobre a<br />
produção e a difusão da Encyclopédie<br />
de Diderot, a mais importante obra do<br />
Iluminismo. Descobri quantos exem<br />
plares do livro existiam na Europa antes<br />
de 1789, onde eram vendidos e quem<br />
os comprava. Em decorrência, foi<br />
possível questionar um tema clássico na<br />
historiografia marxista: a identificação<br />
do Iluminismo com a burguesia<br />
industrializante. Verifiquei que a<br />
Encyclopédie vendia melhor em cidades<br />
mais tradicionais, como Besançon, onde<br />
a Igreja e o parlement (Suprema Corte)<br />
davam o tom e que o pior índice de<br />
vendas ocorria em centros manufa-<br />
tureiros, como Lille, onde os burgueses<br />
dominantes estavam supostamente<br />
pag 14. jau/dez 1995<br />
arquitetando uma Revolução Industrial.<br />
Os dados estatísticos acerca dos<br />
compradores individuais demonstraram<br />
que o livro atraia especialmente os<br />
detentores de cargos na administração<br />
real, os oficiais do exército, os nobres<br />
em geral e os profissionais em particular<br />
- porém, não os comerciantes (exceto<br />
uns poucos em Marseille) e nem os<br />
industriais. Os comentários nas corres<br />
pondências dos livreiros - e havia<br />
50.000 delas, nos arquivos que estudei<br />
- confirmaram esta impressão. As provas<br />
qualitativas e quantitativas, combi<br />
naram-se para proporcionar um quadro<br />
vivido de como o Iluminismo penetrou<br />
E<br />
no tecido social do Antigo Regime.<br />
Creio que uma história do livro desta<br />
espécie - uma variante modesta, que<br />
envolveu longas horas de pesquisa em<br />
documentos originais - pode fornecer<br />
informações suficientes para se<br />
construir uma sociologia rudimentar da<br />
cultura e questionar pressuposições que<br />
moldaram a história sócio-cultural.<br />
Porém, percebo que isso levanta um<br />
número de questões maior do que as<br />
que responde. Precisamos saber muito<br />
mais acerca do modo pelo qual os livros<br />
eram lidos, de como se formavam as<br />
atitudes e como a opinião pública<br />
ganhou força na Europa pré-<br />
revolucionária. Não defendo o empiri-<br />
cismo anglo-saxão simplista, nem nego<br />
a pertinência de algumas visões<br />
marxistas mais sofisticadas da ideo<br />
logia, notadamente as derivadas de<br />
Qramsci ou de Lukacs ou do próprio
K V O<br />
Marx. Mão me propus a refutar o<br />
marxismo. Ao invés, procurei mapear a<br />
difusão do lluminismo. Mo entanto, eu<br />
não poderia ignorar a visão clássica<br />
marxista do tema. E, embora eu mesmo<br />
nunca tenha sido marxista, não levantei<br />
objeções ao termo 'revisionista',<br />
quando Le Roy o associou a mim.<br />
Quanto a ser um mosqueteiro, quem<br />
dera que fosse verdade! Infelizmente,<br />
sou apenas um professor universitário.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O sr. afirma que a<br />
Revolução francesa foi também uma<br />
revolução literária. Qual seria o principal<br />
componente de ruptura com a produção<br />
literária do Antigo Regime?<br />
Robert Darnton. Em primeiro lugar,<br />
devo explicar que não penso que a<br />
Revolução Francesa tenha sido 'apenas'<br />
uma revolução literária. Tive a intenção<br />
de tornar a frase provocadora. Porém,<br />
agora que houve tamanho afastamento<br />
da história social e econômica, eu<br />
ressaltaria aspectos da Revolução que<br />
estão atualmente sendo negligenciados:<br />
a destruição dos liames sociais e<br />
econômicos que mantinham a integri<br />
dade do Antigo Regime como ordem<br />
social. Dito isso, preciso admitir que<br />
fiquei assombrado, quando procurei<br />
encarar a Revolução Francesa de<br />
maneira nova, ao verificar os homens<br />
de 1789 e 1794 tão preocupados com<br />
questões que pareciam ser tão literárias.<br />
Mo ápice do debate acerca da nova<br />
constituição, Fabre DEglantine re-<br />
escreve o Misanthrope de Molière de<br />
acordo com a fórmula prescrita por<br />
Rousseau em Letter to dAlembert e<br />
Camille Desmoulins, o incendiário do<br />
clube Cordelier, interrompe sua<br />
costumeira arruaça política para<br />
escrever uma longa resenha da primeira<br />
apresentação da peça. Temos a versão<br />
de Desmoulins da versão de Fabre da<br />
versão de Rousseau da versão de<br />
Molière do conflito entre a convenção<br />
social e a austeridade moral. Para a<br />
inocente visão americana, o assunto<br />
todo parece surpreendentemente<br />
literário e intensamente francês. O que<br />
estava se passando?<br />
A resposta a essa pergunta refere-se ao<br />
caráter da literatura como ingrediente<br />
no sistema peculiar ao Antigo Regime e<br />
ao papel da literatura na destruição<br />
desse sistema durante a Revolução -<br />
questões que pertencem à antropologia<br />
tanto quanto à história ou à história dos<br />
livros, rigorosamente falando. Espero<br />
explorar essas questões mais profun<br />
damente em uma pesquisa posterior, de<br />
modo que não posso lhe apresentar<br />
uma resposta rápida aqui. Devo dizer,<br />
contudo, que a Revolução Francesa<br />
proporciona aos historiadores um<br />
campo de pesquisas maravilhosamente<br />
rico e bem documentado, no qual<br />
podem estudar um problema geral, algo<br />
que pode ser descrito como a dimensão<br />
social do significado - isto é, o modo<br />
pelo qual as pessoas se apercebiam do<br />
sentido do mundo, confrontando,<br />
absorvendo e reelaborando os valores<br />
e as atitudes que haviam herdado de<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2, p. 13-18. jan/dez 1995 - pag. 15
A C<br />
seus pais. No caso do Antigo Regime na<br />
França, o princípio organizador do<br />
sistema cultural era o privilège ou (como<br />
indica sua raiz latina) o direito privado,<br />
um direito particular para fazer algo<br />
negado a outros, em contraste com o<br />
direito geral, sistema no qual os direitos<br />
legais incidem igualmente sobre todos.<br />
Todas as indústrias culturais da França<br />
estavam organizadas em torno de<br />
privilégios concedidos pelo rei antes de<br />
1 789. Não se podia fazer grande carreira<br />
na música, na arte dramática, nas artes<br />
plásticas ou mesmo nas ciências e no<br />
jornalismo sem gozar de alguma parcela<br />
de um privilégio real. O privilégio<br />
dominava especialmente a indústria<br />
editora, uma vez que os livreiros e<br />
impressores tinham que pertencer a<br />
uma corporação privilegiada, à qual se<br />
concedia um monopólio do comércio de<br />
livros e os próprios livros possuíam<br />
privilégios, uma versão antiga do<br />
copyright (direito autoral). A revolução<br />
reescreveu as regras do jogo em todas<br />
as indústrias da cultura, tornando-as<br />
todas acessíveis à livre disputa do<br />
talento. Ela transformou a vida<br />
intelectual; e como os intelectuais<br />
contribuíram consideravelmente para a<br />
transformação da política e da ordem<br />
social, ela disseminou repercussões<br />
para os mais remotos setores da<br />
sociedade. Portanto, eu consideraria<br />
dois aspectos da ruptura produzida pela<br />
Revolução: em primeiro lugar, uma<br />
revolução dentro da Revolução ou a<br />
transformação das indústrias culturais;<br />
pag.16. jan/dez 1995<br />
em segundo, uma 'revolução cultural'<br />
no mais amplo sentido, ou seja, aquela<br />
que envolveu a reconstrução social da<br />
realidade ou a dimensão da significãncia,<br />
na medida em que esta Ficou inserida no<br />
dia-a-dia das pessoas comuns.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Em sua introdução a<br />
Edição e sedição, o sr. afirma que este livro<br />
pode ser lido como resposta à seguinte<br />
pergunta feita por Daniel Mornet: 'O que<br />
liam os franceses no século dezoito?" Quais<br />
as principais dificuldades encontradas pelo<br />
sr. ao estudar os hábitos de leitura daquele<br />
século?<br />
Robert Darnton. Acho que alguns<br />
'quais' relativos a leitura podem ser<br />
respondidos. Do mesmo modo, muitos<br />
dos 'ondes' e 'quandos'. Os 'porquês' e<br />
'cornos', entretanto, são diferentes. A<br />
penetração nos processos internos<br />
pelos quais os leitores entendiam os<br />
sinais tipográficos é uma tarefa que<br />
parece freqüentemente situar-se fora do<br />
alcance da investigação histórica. Não<br />
obstante, um grande número de leitores<br />
deixou relatos sobre sua experiência no<br />
século XVI11: anotações nas margens,<br />
sublinhados, cartas particulares,<br />
resenhas públicas e até mesmo descri<br />
ções normativas transmitidas em<br />
ilustrações e na literatura contem<br />
porânea sobre a 'arte de ler'.<br />
Pesquisando-se sistematicamente atra<br />
vés deste material, podem-se formar<br />
algumas noções aproximadas de como<br />
os leitores efetivamente liam há<br />
duzentos ou trezentos anos. Preciso,<br />
E
R V O<br />
todavia, admitir que muitos de nós se<br />
preocuparam com este problema<br />
durante anos, sem chegar a resultados<br />
claros, no livro que acabo de concluir,<br />
The forbidden best-sellers of<br />
prerevolutionary France, procurei levar<br />
o problema para além do ponto onde o<br />
deixei no livro mencionado acima.<br />
Edição e sediçáo, que escrevi há vários<br />
anos em francês. Os dois livros são, na<br />
realidade, bem diferentes, embora os<br />
assuntos sejam os mesmos, no segun<br />
do, tentei responder a algumas das<br />
objeções levantadas sobre o primeiro,<br />
notadamente por Roger Chartier, que<br />
aceitou minhas descobertas acerca da<br />
difusão da literatura sediciosa, porém<br />
contestou minha conclusão de que a<br />
literatura fosse de fato sediciosa. Afinal,<br />
disse ele, como podemos saber de que<br />
modo eram lidos esses livros? Talvez<br />
fossem meramente uma fonte de<br />
diversão, e talvez as atitudes sediciosas<br />
tivessem outra origem completamente<br />
diferente?<br />
Uma vez que Roger está também<br />
participando desta edição de Acervo,<br />
teremos a oportunidade de ouvir suas<br />
opiniões em maior extensão. Ele e eu<br />
realizamos um debate amistoso sobre<br />
estas questões durante muitos anos e<br />
eu espero que ele continue, porque tão<br />
logo eu saio dos arquivos, com os olhos<br />
brilhantes e entusiasmado por aquilo<br />
que considero como sendo descobertas<br />
importantes, Roger faz perguntas<br />
difíceis sobre as suposições ou o<br />
raciocínio implícitos em minhas<br />
conclusões. Então, eu devo colocar<br />
ordem em meu argumento, recuando<br />
em alguns lugares, avançando em outros<br />
e planejando uma nova estratégia para<br />
um ataque a novas fontes. Agora<br />
atingimos esse estágio no que se refere<br />
ao problema da leitura. Acredito ter<br />
respondido à maioria das objeções de<br />
Roger em uma nova seção, a parte 111<br />
de The forbidden best-sellers, porém já<br />
posso prever novas objeções. não<br />
atribuo, certamente, qualquer causali<br />
dade 'unilinear' à leitura. Ao invés,<br />
procuro compreender a literatura como<br />
parte de um sistema geral de<br />
comunicação, no qual os livros eram<br />
apenas um dos numerosos meios e as<br />
mensagens transmitidas pelos livros<br />
eram somente um dos ingredientes na<br />
mistura de elementos que constituía a<br />
opinião pública. Certamente, opinião<br />
pública é, hoje em dia, um conceito<br />
incerto, sendo especialmente difícil de<br />
entender como uma força em ação há<br />
duzentos ou trezentos anos atrás, não<br />
obstante, penso ser a documentação<br />
suficientemente rica para se identifica<br />
rem os veículos e as mensagens que<br />
fluíam através deles na França, na déca<br />
da de 1780. Deve, portanto, ser possível<br />
reconstruir a maneira pela qual os<br />
franceses entendiam os eventos, bem<br />
como a seqüência dos próprios eventos.<br />
Para assim se proceder, será necessário<br />
integrar a história da leitura em uma his<br />
tória mais ampla da comunicação: é esta a<br />
principal dificuldade e a principal tarefa que<br />
me propus para os próximos anos.<br />
Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 13-18, jan/dez 1995 pai] 17
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. 1 literatura<br />
clandestina inclui textos políticos,<br />
panfletos e crônicas indecorosas. O sr.<br />
pensa que a circulação destes livros<br />
possibilitou a transição da sedição para<br />
a revolução?<br />
Robert Darnton. A resposta breve à sua<br />
pergunta seria sim. Uma resposta mais<br />
longa nos levaria a aprofundar-nos na<br />
área que acabo de descrever como a<br />
história da comunicação. Teríamos que<br />
estudar canções, impressos, graffiti,<br />
boatos e todas as espécies de<br />
mensagens difundidas através de todos<br />
os tipos de veículos. No final,<br />
poderíamos produzir um gigantesco<br />
quadro de tudo que era lido, dito,<br />
cantado e visto acerca dos assuntos<br />
públicos durante o período pré-<br />
revolucionário. Porém, apesar de toda<br />
a sua complexidade, acho que este<br />
painel ilustraria um único tema: a<br />
decadência e o despotismo. Os<br />
franceses acreditavam que seu estado<br />
estava degenerando em despotismo,<br />
embora, como agora sabemos em<br />
pag.18. jan/dez 1995<br />
retrospecto, a Bastilha só detivesse sete<br />
prisioneiros em 14 de julho de 1789 e<br />
Luís XVI nada mais desejasse do que o<br />
bem-estar de seus súditos. Precisamente<br />
como os franceses construíram este<br />
quadro interpretativo e como o usaram<br />
para entender os eventos em 1 787-1 788<br />
é uma história que nunca foi contada.<br />
Penso que essa história irá fornecer a<br />
explicação básica de como a França<br />
mudou de um estado de sedição<br />
incipiente para um de revolução aberta.<br />
Quer possa ou não impor esse<br />
argumento, espero ter dito o bastante<br />
para demonstrar que a história do livro<br />
tem um rigor próprio, que exige trabalho<br />
árduo sobre questões tratáveis em<br />
fontes especificas. Contudo, ela<br />
também se abre sobre as questões mais<br />
amplas da história em geral. Ao invés<br />
de proporcionar um canto seguro para<br />
os especialistas, ela oferece uma<br />
posição estratégica a partir da qual pode<br />
ser investigada toda a comédia humana.<br />
Tradução de Mariana Erika tleynemann.
Luiz Carlos Villalta<br />
Professor assistente da Fundação Universidade Federal de Ouro Preto. Doutorando e<br />
Mestre em Ciências (História Social) pela Universidade de São Paulo.<br />
A'sociologia histórica ?<br />
Os clérigos e os livros nas<br />
Climas Gerais da segunda<br />
metade cio século XVIII<br />
das práticas de<br />
leitura', segundo<br />
Roger Chartier, move-se em meio<br />
à tensão operatória estabelecid<br />
entre, de um lado, o poder que o texto<br />
publicado (e/ou daqueles que estão por<br />
trás dele) procura exercer sobre o leitor<br />
e, de outro, a liberdade e a inventividade<br />
do leitor na produção de sentidos no<br />
contato com os textos 1. Neste artigo<br />
procuramos averiguar como esta tensão<br />
se manifestou em relação a um grupo es<br />
pecial de leitores: os clérigos das Gerais<br />
do século XV11I, em sua maioria<br />
personagens notáveis; alguns pelos car<br />
gos que ocuparam, outros por seu<br />
envolvimento na Conjuração Mineira.<br />
Numa primeira etapa,<br />
examinaremos que títulos e<br />
autores a Igreja católica<br />
procurava disseminar entre os<br />
clesiásticos e que lugar estes<br />
ocupavam como proprietários de<br />
bibliotecas na França, em Portugal e, em<br />
seguida, nas Gerais do século XVIII.<br />
Depois, analisaremos bibliotecas<br />
pertencentes a clérigos mineiros do<br />
período, submetendo os dados<br />
referentes aos livros (nomes dos<br />
autores, títulos, língua em que foram<br />
escritas as obras, assuntos e preços) a<br />
um tratamento quantitativo,<br />
identificando regularidades entre as<br />
diversas livrarias e descobrindo os<br />
traços singulares de cada uma delas.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« l -2, p. 19-52, jan/dez 1995 • pag. 19
A C E<br />
Explicaremos as recorrências e<br />
especificidades das bibliotecas<br />
correlacionando-as ao estado sacerdotal<br />
e, quando possível, à biografia dos<br />
clérigos que eram seus proprietários:<br />
suas idéias, seus comportamentos e<br />
seus escritos. Com isso, verificaremos<br />
como a composição das livrarias, em<br />
suas divisões por assunto e em suas<br />
peculiaridades, associava-se à trajetória<br />
pessoal de seus proprietários e ao<br />
estado clerical. De um lado, relacio<br />
naremos a prática e o discurso político<br />
dos mineiros ao universo literário e, de<br />
outro, observaremos se os livros<br />
anularam ou reforçaram as normas<br />
coletivas, sociais (e não legais),<br />
hegemônicas, de comportamento<br />
sexual. Desse modo, avaliaremos em<br />
que medida os livros influenciaram as<br />
condutas políticas e sexuais - ou, ao<br />
menos, se não o fizeram - e se os<br />
clérigos inconfidentes se diferenciavam<br />
dos demais.<br />
Os clérigos e os livros na França e<br />
em Portugal no século XVIII<br />
Os clérigos ocupavam lugar de destaque<br />
entre os possuidores de bibliotecas na<br />
França e em Portugal do século XV11I.<br />
Mas cidades do Oeste francês, no século<br />
XVIII, em 33,7% dos inventários havia<br />
pelo menos referência a um livro,<br />
enquanto em Paris, no decênio de 1 750,<br />
esta cifra baixava para 22,6% 2. ria<br />
capital francesa, na segunda metade do<br />
século XVIII, 62% dos inventários de<br />
eclesiásticos faziam menção a livros.<br />
pag.20.jan/dez 1995<br />
Mas esta porcentagem estava abaixo da<br />
apresentada pelos escrivães e<br />
bibliotecários (100%) e professores<br />
(75%), e se igualava a dos advogados<br />
(também 62%) 3. Os eclesiásticos<br />
portugueses perfaziam 54% dos<br />
proprietários privados de bibliotecas<br />
que discriminaram sua ocupação ao<br />
encaminharem listagens de livros à Real<br />
Mesa Censória, criada em 1768. Depois,<br />
vinham aqueles que se ocupavam com<br />
questões de direito*.<br />
Mas cidades do Oeste da França, as<br />
bibliotecas eclesiásticas, entre o final do<br />
século XVII e os anos de 1780,<br />
passaram de entre 20 e 50 volumes cada<br />
uma para entre 100 e mais de 300 5. nas<br />
listas de livros dos padres portugueses,<br />
a divisão entre as línguas, em ordem<br />
decrescente, era: português, latim e<br />
espanhol, aparecendo mais raramente,<br />
nos casos de obras de literatura, o<br />
francês e o italiano 6, nas bibliotecas<br />
clericais da capital francesa, entre 1765<br />
e 1790, houve um recuo do latim, que<br />
passou de 47% para 27% 7.<br />
nas listagens enviadas pelos clérigos<br />
portugueses à Real Mesa Censória,<br />
predominavam, em ordem decrescente,<br />
os seguintes tipos de livros: primeiro,<br />
obras religiosas, místicas e hagiológicas<br />
e sermões; depois, títulos de teologia;<br />
em seguida, de história; e, por fim, de<br />
literatura 8, na Paris do século XVIII, a<br />
história rivalizava com a teologia. E<br />
tanto em Paris como nas províncias da<br />
França, as bibliotecas dos padres
R v o<br />
possuíam certa homogeneidade,<br />
resultante da uniformização provocada<br />
pelos regulamentos dos Seminários e<br />
pelas recomendações das autoridades<br />
eclesiásticas com o objetivo de tornar<br />
os clérigos mais instruídos e<br />
disciplinados. Assim, a livraria de um<br />
'bom cura' continha a Bíblia; os comen<br />
tários das homílias feitos pelos padres,<br />
principalmente são Tomás e sào<br />
Bernardo; obras de teologia moral; o<br />
Catecismo do Concilio de Trento, de são<br />
Carlos Borromeu; catecismos franceses<br />
e livros de espiritualidade, tais como<br />
Imitação de Jesus Cristo, Guia dos peca<br />
dores, de Louis de Qranade e Introdução<br />
à vida devota, de Francisco de Sales 9.<br />
A posse de livros nas Ninas da<br />
Colônia: o lugar do clero e a<br />
ortodoxia<br />
São poucos os dados sobre a situação<br />
dos clérigos de Minas Gerais, face a<br />
outros grupos sociais, quanto à posse<br />
de livros. Há mais informações sobre<br />
como essa se distribuía dentro do<br />
próprio corpo eclesiástico. Livros foram<br />
arrolados em 14 inventários, de um total<br />
de 66, no distrito dos Diamantes, do<br />
final do século XVIII e início do XIX - o<br />
que corresponde, portanto, a cerca de<br />
1/5 dos inventários. Seis padres tiveram<br />
seus bens inventariados e três deles<br />
possuíam bibliotecas, do que se conclui<br />
que metade deles tinha livrarias e que<br />
os mesmos somavam cerca de 1/5 dos<br />
proprietários de livros. Rivalizavam com<br />
os padres os funcionários graduados da<br />
Real Extração: três, de um total de sete,<br />
possuíam livros. Todos os inventariados<br />
que tinham bibliotecas eram brancos e<br />
doze deles, portugueses 10. Em Mariana,<br />
os índices de posse de livros entre os<br />
clérigos eram mais baixos que no<br />
Tejuco. Consultamos 128 inventários de<br />
padres, de um total de 174 existentes<br />
no arquivo da Casa Setecentista de<br />
Mariana, referentes ao período que se<br />
estende do século XVI11 a meados do<br />
XIX. Dos 128, 40 mencionam livros, isto<br />
é, 31,2% dos inventários investigados<br />
(ou quase 1/3). Restringindo-se o<br />
universo unicamente aos inventários do<br />
século XVIII consultados no arquivo da<br />
Casa Setecentista e também no arquivo<br />
eclesiástico da Arquidiocese de Mariana,<br />
a cifra permanece quase inalterável: de<br />
um total de 17, encontramos bibliotecas<br />
em seis, isto é, em mais de 1/3. Nos<br />
seqüestros dos bens dos eclesiásticos<br />
mineiros que participaram da<br />
Inconfidência, temos uma marca<br />
superior, mas eles talvez não sejam<br />
representativos do conjunto dos<br />
eclesiásticos: três, dentre os cinco<br />
seqüestros, mencionam bibliotecas. Os<br />
índices de posse de livros entre clérigos<br />
do Tejuco e de Mariana do século XV1U<br />
e início do XIX (1/2 e 1/3), portanto,<br />
colocam os clérigos das Gerais bem<br />
abaixo das cifras verificadas entre seus<br />
colegas de ofício parisienses (quase 2/3).<br />
Observamos diferenças, quanto ao<br />
número de volumes, entre as bibliotecas<br />
de clérigos de Minas Gerais e da França.<br />
As três bibliotecas clericais de<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n ? 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.21
A C E<br />
Diamantina compunham-se por 15, 35<br />
e 90 volumes", números estes menores<br />
do que os mais baixos encontrados na<br />
França na mesma época (100 volumes).<br />
Em Mariana, oscilava-se entre 42 e<br />
1.056 volumes - caso extremo da livraria<br />
do bispo dom frei Domingos da<br />
Encarnação Pontevel, muito distinto do<br />
'mais de 300' válido para as cidades do<br />
Oeste francês. Já entre os clérigos<br />
inconfidentes, a variaçào ia de 105 a<br />
612 volumes, algo mais próximo do<br />
encontrado na França.<br />
Em Minas Gerais, o acervo da biblioteca<br />
do Seminário de Mariana, fundado por<br />
dom frei Manuel da Cruz, primeiro bispo<br />
diocesano, em 1748, em explícita<br />
obediência às determinações<br />
tridentinas e com o beneplácito régio,<br />
guarda semelhanças com os livros<br />
prescritos pelas autoridades<br />
eclesiásticas na França. Indica,<br />
sobretudo, que a ortodoxia católica<br />
envolvia 12 livros de rituais, breviários,<br />
s Constituições primeiras do<br />
arcebispado da Bahia, de dom Sebastião<br />
Monteiro da Vide e autores como: o<br />
dicionarista e padre Rafael de Bluteau;<br />
Paul-Gabriel Antoine, escolhido como<br />
propagandista oficial pelo papa<br />
Benedito XIV 13; Daniello Concina,<br />
teólogo recomendado pelas autoridades<br />
eclesiásticas de então 1 4; Jacobi<br />
Besombes e Laurenti Berti, também<br />
teólogos; santo Afonso de Ligório,<br />
teólogo do século XVIII, caracterizado<br />
por sua benevolência em relação aos<br />
penitentes 15; Natalis Alexandre, teólogo,<br />
pag.22. jan/dez 1995<br />
0<br />
comentador das escrituras e historiador<br />
da Igreja; Luci Ferraris, teólogo; Claudi<br />
Fleury, historiador da Igreja, clássico na<br />
segunda metade do século XV111 16;<br />
Anacleto, dicionarista e canonista (?);<br />
Giuseppe Agostino Orsy, historiador<br />
eclesiástico; são Pedro Crisogno; o<br />
jesuíta Vincent Houdry 1 7; Honorati<br />
Tournely, teólogo; Tetri Ludovici Danis,<br />
teólogo; Jacobi Pignatelli, canonista; e<br />
autores clássicos como Quintiliano e<br />
Sèneca. Encontramos títulos sem<br />
menção a seus autores: Teologia moral<br />
e Conferências morais. No caso do<br />
primeiro, supomos tratar-se de Petrus<br />
Collet, cujo livro Teologia moral,<br />
utilizado como manual nos Seminários,<br />
antes e depois da Revolução Francesa 18,<br />
era um dos clássicos estudados no<br />
bispado de Mariana 19. Outros autores<br />
prováveis eram: o papa Benedito XIV; o<br />
teólogo capuchinho Jayme Corella; os<br />
teólogos Thoma Francisco Rotario, Petro<br />
Polo, Paolo Signeri, Josephi Ignati Claus<br />
e Josephi Mansi; os comentadores dos<br />
evangelhos Francisco de Jesus<br />
Sarmento e Cornélio Corneli; o ilustrado<br />
Bento Jerônimo Feijó; os dicionaristas<br />
R. P. Richard e Joannis Pontas; Pyrrchi<br />
Corradi; os padres Manuel Bernardes e<br />
Manuel Madeira de Sousa. Na biblioteca<br />
do Seminário, ainda, se encontravam os<br />
títulos Alcobaça ilustrada, de história<br />
eclesiástica; Introdução ao sacerdócio<br />
ou instruções eclesiásticas; e o Cursus<br />
theologicus et moralis, do Collegy<br />
Salmanticensis (Universidade de<br />
Salamanca), de onde o Supremo
Tribunal da Inquisição dos Reinos de<br />
Espanha mandara riscar, no tomo V,<br />
tratado XI, número 185, uma passagem<br />
nada ortodoxa da qual se poderia<br />
deduzir que deus permitiria as relações<br />
sexuais, até mesmo violentas, com as<br />
mulheres, sem restrição nem mesmo às<br />
V o<br />
que fossem virgens e pudicas, às quais<br />
o acesso seria facultado algumas vezes.<br />
Livrarias clericais nas Gerais do<br />
século XVIII: similitudes e<br />
diversidades<br />
As bibliotecas a serem analisadas<br />
Raynal, GulllaumeThomas François. Historie phllosophlque et polltique des etablissemens<br />
et du commerce des européens dans les deux Indes. Paris: Amable caster et cie, Ubraries<br />
Édlteurs, 1800. Tomo 10.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n' 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995-pag.23
possuíam tamanho bastante distinto<br />
(tabela I). Do lado dos clérigos<br />
inconfidentes, a maior biblioteca era a<br />
do cõnego Luiz Vieira da Silva,<br />
compreendendo 279 títulos e 612<br />
volumes. Em seguida, vinham as do<br />
padre Manuel Rodrigues da Costa, com<br />
73 obras e 212 volumes; e do padre<br />
Carlos Correia de Toledo, com 58 obras<br />
e 105 volumes 20. Dentre as bibliotecas<br />
dos outros eclesiásticos, a de dom frei<br />
2 Domingos da Encarnação Fontevel 1,<br />
bispo de Mariana à época da<br />
Inconfidência, era a maior,<br />
compreendendo 412 títulos e 1.056<br />
volumes, estando bastante à frente da<br />
livraria do cõnego Vieira da Silva 22. Em<br />
ordem decrescente de número de obras,<br />
vinham as seguintes bibliotecas: a do<br />
cõnego João Rodrigues Cordeiro, com<br />
67 obras e 76 volumes 23; a do cõnego<br />
João Botelho Borges, com 64 títulos e<br />
126 volumes 2*; a do padre Francisco<br />
Alves, com 37 obras e 48 volumes 25; a<br />
do bispo dom frei Manuel da Cruz, com<br />
36 títulos e 79 volumes 26,- a do padre<br />
João Ferreira de Souza, com 27 obras e<br />
62 volumes 27 e a do padre José Teixeira<br />
de Souza 2 8, com 24 obras e 42<br />
volumes 29.<br />
Alguns títulos repetem-se, com maior ou<br />
menor intensidade, nessas dez livrarias.<br />
Os títulos e tipos de livros mais<br />
encontrados, em ordem decrescente,<br />
são: em sete livrarias, a Bíblia e sua<br />
Concordância, em edições e línguas<br />
diversas; e diferentes breviários; em seis<br />
bibliotecas, obras denominadas<br />
pag.24. jan/dez 1995<br />
Concilio Tridentino, que podem ser<br />
tanto as atas do Concilio de mesmo<br />
nome, como livros dos diferentes<br />
autores que se dedicaram ao estudo do<br />
assunto; em quatro delas. Dicionário<br />
geográfico, provavelmente de autores<br />
distintos, as Ordenações do Reino de<br />
Portugal, Examen ecclesiasticum e as<br />
Constituições do arcebispado da Bahia,<br />
de dom Sebastião Monteiro da Vide; em<br />
três livrarias, Brasília pontifícia e<br />
Caderno de santos novos, além de<br />
missais e de livros de cerimoniais. Os<br />
autores mais freqüentes, também em<br />
ordem decrescente, são: em sete<br />
livrarias, Francisco Larraga, com seu<br />
Prontuário de teologia moraP 0; em cinco<br />
delas, o padre Silveira, com seus<br />
comentários sobre os evangelhos e<br />
sermões; em quatro bibliotecas, o padre<br />
Antônio Vieira, com suas Cartas, História<br />
do futuro e Sermões, Bossuet e os<br />
teólogos Laurenti Berti e Jacob<br />
Besombes; em três livrarias, são Tomás<br />
de Aquino, o padre Manuel Bernardes,<br />
com Piova floresta, o comentador das<br />
escrituras e teólogo Francisco de Jesus<br />
Sarmento, o canonista Ludovici<br />
nogueira, o teólogo e canonista<br />
Bartholomaei Qavant, o poeta italiano<br />
Aurélio Bertola Qiorgi, com suas noites<br />
clementinas (homenagem ao papa<br />
Clemente XIV, que suprimiu a Sociedade<br />
de Jesus 31), o teólogo Danielo Concina,<br />
Carlos Joaquim Colbert, com seu<br />
Catecismo de fiontpelier, Petrus Collet,<br />
Cambacere, com seus Sermões, e<br />
Francisco José Freire, tratadista poético
R V O<br />
português. A freqüência de tais títulos,<br />
tipos de livros e autores mostra a<br />
ressonância da ortodoxia católica, pois<br />
eles, em grande parte, coincidem com<br />
os recomendados pelas autoridades<br />
eclesiásticas e com aqueles encontrados<br />
na biblioteca do Seminário de Mariana.<br />
As similitudes entre as bibliotecas<br />
verificam-se também na distribuição dos<br />
livros pelos assuntos e línguas,<br />
lnspirando-nos no trabalho de Evelyne<br />
Picard 32, classificamos os livros em dois<br />
grandes conjuntos: ciências sacras e*<br />
ciências profanas. O primeiro conjunto<br />
foi subdividido em: escritura santa,<br />
compreendendo a Bíblia e os<br />
comentários que sobre ela se fizeram;<br />
padres da Igreja, referente aos escritos<br />
dos primeiros padres; teologia,<br />
incluindo aí os livros de teologia moral;<br />
história sagrada; cânones; liturgia,<br />
subdivisão em que se somam os livros<br />
especificamente litúrgicos, os<br />
catecismos, os textos de oratória sacra,<br />
manuais de confissão, breviários, obras<br />
devocionais e sermões; e, finalmente,<br />
dicionários. O grupo das ciências<br />
profanas foi assim dividido: geografia;<br />
retórica; história; dicionário; literatura<br />
e gramática; filosofia; política; direito;<br />
e ciências físicas e naturais. Algumas<br />
obras receberam dupla classificação,<br />
pois cabiam em mais de uma seção<br />
simultaneamente. Os resultados<br />
encontram-se reunidos nas tabelas 1, II<br />
e III, e nos gráficos I, II e III.<br />
Mas bibliotecas clericais, com exceção<br />
da pertencente ao cônego inconfidente<br />
Vieira da Silva, as ciências sacras<br />
predominavam sobre as ciências<br />
profanas, em diferentes proporções<br />
(tabela I e gráfico I): o padre Francisco<br />
Alves não possuía nenhuma obra de<br />
ciências profanas, tendo-nos sido<br />
possível classificar 33 dos 37 títulos que<br />
lhe pertenciam entre as ciências sacras,<br />
que somavam, portanto, 89,2% das<br />
obras (não conseguimos classificar as<br />
quatro restantes). Entre os outros<br />
clérigos não-inconfidentes, a<br />
participação das ciências sacras oscilava<br />
entre 85,2% (23 obras e 49 volumes),<br />
situação da livraria do padre João<br />
Ferreira de Souza, e 32,8% (22 obras e<br />
31 volumes), caso da biblioteca do<br />
cônego Cordeiro - não nos foi possível<br />
classificar 42 livros desta biblioteca, de<br />
um total de 67, devido à ausência dos<br />
nomes dos seus autores e de seus<br />
títulos no inventário, fato que explica a<br />
baixa cifra das ciências sacras. As<br />
ciências profanas, inversamente, nâo<br />
ultrapassavam a marca de 19,2% (79<br />
obras e 208 volumes) entre tais<br />
sacerdotes, cifra essa atingida na<br />
biblioteca do bispo Pontevel. O mesmo<br />
não sucedia entre os clérigos<br />
inconfidentes: o côn. Vieira da Silva<br />
tinha mais obras de ciências profanas<br />
que de ciências sacras (52,7% versus<br />
35,5% ou, em termos absolutos, 147<br />
obras e 329 volumes versus 99 obras e<br />
236 volumes), e os demais, embora<br />
privilegiassem as últimas, não o faziam<br />
na mesma proporção que os padres não-<br />
inconfidentes: nas bibliotecas dos<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 19-52. Jan/del 1995 pag 25
A C E<br />
padres Carlos Toledo e Manuel Costa,<br />
as ciências profanas atingiam,<br />
respectivamente, 29,3% (17 obras e 19<br />
volumes) e 27,4% (20 obras e 54<br />
volumes) - cifras mais'elevadas que os<br />
19,2% da biblioteca do bispo Fontevel -<br />
e as ciências sacras 63,8% (37 obras e<br />
81 volumes) e 41% (30 obras e 128<br />
volumes), respectivamente. nos<br />
seqüestros dos bens do padre Costa, 15<br />
livros não tiveram seus títulos e seus<br />
autores mencionados. A maior<br />
participação das ciências profanas nas<br />
livrarias dos padres inconfidentes é,<br />
certamente, indicio da maior amplitude<br />
alcançada pelos interesses desses<br />
clérigos, mais atentos aos problemas<br />
profanos.<br />
Mas bibliotecas, dentre as ciências<br />
sacras (tabela II e gráfico II), o primeiro<br />
lugar cabia à seção de liturgia, variando<br />
entre 12,3% (9 obras e 26 volumes), na<br />
livraria do padre Manuel Costa, e 67,6%<br />
(25 obras e 32 volumes), na do padre<br />
Francisco Alves, composta basicamente<br />
por sermões (21 obras). As exceções<br />
eram as livrarias do bispo Manuel da<br />
Cruz, em que a liturgia compartilhava<br />
do primeiro lugar com a história sagrada<br />
(13,9% e 11 obras), a do bispo Pontevel,<br />
em que esta posição era ocupada pela<br />
teologia (14%, 58 obras e 191 volumes)<br />
e a do cônego Vieira da Silva, em que a<br />
primazia pertencia aos cânones (7,9%,<br />
22 obras e 51 volumes). Mestas duas<br />
últimas bibliotecas, a liturgia estava em<br />
segundo lugar, respectivamente, com<br />
11,4% (47 obras e 107 volumes) e 6,1 %<br />
pag 26. jan/dez 1995<br />
(17 obras e 29 volumes). Isso devia ser<br />
um reflexo, no caso do bispo Pontevel,<br />
de sua atuação como professor de<br />
teologia, em Portugal 33, e, no caso do<br />
cônego, de seu envolvimento em<br />
atividades administrativas na Igreja - ele,<br />
desde 1771, foi comissário da Ordem<br />
Terceira'de São Francisco, e, a partir de<br />
1783, na condição de cônego da Sé de<br />
Mariana, tornou-se membro do cabido<br />
diocesano 34. Para a igualdade numérica<br />
das seções de liturgia e história sagrada,<br />
na livraria do bispo Manuel da Cruz,<br />
pesaram dois livros sobre a história da<br />
ordem cisterciense, à qual o prelado<br />
estava estreitamente ligado, tendo<br />
chegado à condição de mestre dos<br />
noviços no mosteiro de Alcobaça, em<br />
Portugal 33.<br />
Mas demais bibliotecas, a segunda<br />
posição, dentre as ciências sacras, era<br />
ocupada por diferentes seções. A<br />
teologia encontrava-se em segundo<br />
lugar nas livrarias do padre Manuel<br />
Costa (10,9%, 8 obras e 36 volumes),<br />
do cônego Cordeiro (7,5%, 5 obras e 5<br />
volumes), do padre Toledo (17,2%, 10<br />
obras e 22 volumes) e do padre Alves<br />
(10,8%, 4 obras e 4 volumes). Mas<br />
bibliotecas dos padres João Souza e<br />
José Souza, teologia e cânones dividiam<br />
a segunda posição, com,<br />
respectivamente, 7,4% e 8,3% (duas<br />
obras). Mas livrarias do bispo Manuel da<br />
Cruz e do cônego Borges, o segundo<br />
lugar era ocupado pela seção de<br />
cânones, respectivamente com 1 1,1% (4<br />
obras e 4 volumes) e 7,8% (5 obras e 6
R V O<br />
volumes). O destaque relativo dos<br />
cânones, nessas bibliotecas,<br />
relacionava-se aos cargos exercidos por<br />
seus proprietários: de bispo, por dom<br />
frei Manuel, e de cõnego, provisor do<br />
bispado e vigário geral da Vara, por<br />
Borges 36. Mas livrarias do bispo Pontevel<br />
e do cõnego Vieira da Silva, a história<br />
sagrada não era de todo esquecida,<br />
constituindo, respectivamente, 3,8%<br />
(16 obras e 73 volumes) e 3,9 % (11<br />
obras e 28 volumes) do total dos<br />
acervos.<br />
Mas bibliotecas dos clérigos<br />
inconfidentes havia um traço singular:<br />
a seçào de teologia vinha logo atrás da<br />
de liturgia, estivesse esta na primeira ou<br />
na segunda colocação (caso do cõnego<br />
Vieira). A diferença, em termos<br />
percentuais, não ia além de 1,4%. Isso<br />
não sucedia com os clérigos náo-<br />
inconfidentes, exceto, como já<br />
dissemos, do bispo e professor de<br />
teologia Pontevel. Entre os não-<br />
inconfidentes, a diferença oscilava entre<br />
4,6%, caso do cõnego Borges e 56,8%,<br />
caso do padre Francisco Alves. Essa<br />
diferença talvez seja uma expressão do<br />
maior refinamento intelectual dos<br />
clérigos inconfidentes, na medida em<br />
que demonstra um maior desapego em<br />
relação às questões mais imediatas da<br />
vida sacerdotal ou concernentes à<br />
administração eclesiástica, respondidas,<br />
respectivamente, pelas obras de liturgia<br />
e cânones, e um interesse por<br />
problemas mais complexos no que<br />
concerne à salvação do rebanho cristão.<br />
Mas ciências profanas (tabela III e<br />
gráfico III), a primazia era concedida à<br />
literatura, que estava à frente das<br />
demais seções nas bibliotecas ou<br />
compartilhando o primeiro lugar com<br />
algumas delas. O cõnego Borges e o<br />
padre João Souza eram as únicas<br />
exceções. Entre esses o destaque cabia,<br />
respectivamente, às seções de direito,<br />
com 7,8% (5 obras e 8 volumes), e<br />
filosofia e história, com 3,7% (uma obra)<br />
cada uma - a excepcionalidade da<br />
situação do direito na biblioteca do<br />
cõnego Borges vinculava-se,<br />
provavelmente, ao exercício de cargos<br />
judiciais pelo mesmo. Assim, a literatura<br />
oscilava entre 2,8% (uma obra e dois<br />
volumes), na biblioteca do bispo dom<br />
frei Manuel - na qual, aliás, dividia a<br />
posição com a história e o direito -, e<br />
17,6% (49 obras e 91 volumes), na<br />
livraria do cõnego Vieira da Silva, sendo,<br />
neste último caso, a maior seção dentre<br />
todas. Os inconfidentes, ademais,<br />
demonstravam um maior apreço pela<br />
literatura do que os outros clérigos: a<br />
menor cifra da literatura entre eles,<br />
8,2% (6 obras e 1 1 volumes), na livraria<br />
do padre Costa, corresponde a mais que<br />
o dobro, em números relativos, que o<br />
maior indice atingido entre os não-<br />
inconfidentes, isto é, 4,6% (19 obras e<br />
27 volumes), na biblioteca do bispo<br />
Pontevel. Seriam esses números mais<br />
uma indicação de um certo<br />
despreendimento em relação às<br />
atividades estritamente sacerdotais? Mo<br />
caso do côn. Vieira da Silva, como<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 19-52, jan/dez 1995 - pag.27
A C E<br />
demonstraremos adiante, isso é<br />
inquestionável, parecendo suceder o<br />
mesmo ao padre Costa,<br />
Entre as ciências profanas, a segunda<br />
posição cabia a seções diferentes em<br />
cada uma das bibliotecas. Mas<br />
pertencentes ao bispo Pontevel e ao<br />
padre Toledo, este lugar pertencia aos<br />
dicionários, respectivamente, com 3,9%<br />
(1 6 obras e 44 volumes) e 6,9% (4 obras<br />
e 4 volumes), ria livraria do côn. Vieira<br />
da Silva, cabia à filosofia, com 11,1%<br />
(31 obras e 92 volumes), refletindo sua<br />
dedicação ao ensino de filosofia, no<br />
Seminário de Mariana, atividade em que<br />
esteve engajado de 1759 até sua prisão.<br />
Mas bibliotecas do cônego Borges e do<br />
padre Costa, as ciências ocupavam a<br />
segunda posição, respectivamente com<br />
1,6% (uma obra) e 6,8% (5 obras e 13<br />
volumes). A presença das ciências na<br />
biblioteca do cônego Borges, frise-se, é<br />
inexpressiva em números absolutos e<br />
relativos, o mesmo nào ocorrendo com<br />
o padre inconfidente Costa: sua livraria,<br />
embora 5,5 vezes menor que a livraria<br />
do bispo Pontevel, tinha quase o mesmo<br />
número de obras de ciências, em termos<br />
absolutos (5 versus 7), e comparava-se<br />
a do cônego Vieira da Silva, a qual,<br />
sendo 3,8 vezes maior, possuía menos<br />
que o triplo do número possuído pelo<br />
padre (5 versus 14). A trajetória<br />
posterior do padre Costa, ademais,<br />
como mostraremos a seguir, explica esta<br />
preeminência das ciências.<br />
O terceiro lugar pertencia à história na<br />
biblioteca do côn. Vieira, com 9,3% (26<br />
pag. 28. Jan/dez 1995<br />
obras e 85 volumes); ao direito, na<br />
livraria de Pontevel, com 2,2% (9 obras<br />
e 38 volumes); e à filosofia, na<br />
biblioteca do padre Toledo, com 3,4%<br />
(2 obras e 2 volumes). lia biblioteca de<br />
Pontevel, do terceiro lugar<br />
aproximavam-se a história (1,7%, 7<br />
obras e 26 volumes), a geografia (1,7%,<br />
7 obras e 18 volumes) e as ciências<br />
(1,7%, 7 obras e 7 volumes).<br />
Comparando-se as bibliotecas dos<br />
clérigos mineiros entre si, enfim,<br />
observamos uma nítida divisão<br />
separando os inconfidentes dos demais.<br />
Os primeiros possuíam interesses que<br />
ultrapassavam os limites imediatos do<br />
trabalho pastoral, voltando-se mais<br />
fortemente para questões teológicas e,<br />
até mesmo, profanas. O côn. Vieira da<br />
Silva, radical neste aspecto, era o mais<br />
singular, revelando maior interesse, em<br />
ordem decrescente, pela literatura,<br />
filosofia e história profana. Os clérigos<br />
não-conjurados, inversamente, à<br />
exceção do bispo Pontevel, eram<br />
prisioneiros de suas atribuições mais<br />
imediatas, fosse no trabalho pastoral,<br />
litúrgico, fosse nas atividades<br />
administrativas, que exigiam<br />
conhecimentos canônicos-jurídicos.<br />
Assim, dentre os clérigos não-<br />
inconfidentes, sobressaía a liturgia e, no<br />
caso específico dos cônegos e dos<br />
bispos, conferia-se um lugar especial<br />
aos cânones e ao direito. As bibliotecas<br />
do côn. Vieira da Silva e do bispo<br />
Pontevel refletiam ainda o exercício de<br />
suas atividades enquanto docentes.
espectivamente, de filosofia, no<br />
Seminário de Mariana, e de teologia, em<br />
Portugal. A livraria do bispo Manuel da<br />
Cruz, por seu turno, mostrava suas<br />
ligações com a ordem de são Bernardo<br />
e sua história. Por fim, devemos<br />
ressaltar a preeminência da literatura,<br />
mais nítida entre os inconfidentes, e<br />
V o<br />
inexistente nas bibliotecas dos padres<br />
Alves e João Souza e do cõnego Borges,<br />
e, ainda, o destaque das ciências, na<br />
biblioteca do padre Costa.<br />
As livrarias dos clérigos das Minas<br />
distanciavam-se e aproximavam-se, em<br />
alguma medida, de suas congêneres<br />
européias. Havia, primeiramente, a<br />
HIST01RE<br />
f PHILOSOPHÍQUE<br />
* ET POLITJQUE<br />
PS» ÍT4JLMMHM" ÍW «•* «W*Í*C» M»W»WtaP» <<br />
tim LI» »»*«,<br />
PAR G. T. RAYNAJL<br />
HOLVit.tR ÉBITIO».,<br />
m twMMii >Vn*> iu •»«*••»» mmttnm<br />
f TOM l.IXlífl^<br />
i \ PARIÍ<br />
MLABI£ COSTIW-WXÍS LI<br />
ISM.<br />
r». PMÜStf»<br />
Raynal, Guillaume-Thomas François. Historie philosophique et politique des êtablissemens<br />
et du com mercê des européens dans les deux Indes. Paris: Amable caster et cie, Ubraríes<br />
Éditeurs, 1 800. Tomo 10.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n» 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag 29
A C E<br />
Portugal sob a alegação de<br />
licenciosidade: estava contaminado<br />
pelas idéias de Molinos, heresiarca para<br />
quem o demônio podia atuar<br />
violentamente sobre os corpos, levando<br />
almas perfeitas a cometer pecados,<br />
inclusive carnais, sem que esses<br />
pudessem ser considerados como tais,<br />
pois seriam contra a vontade das<br />
pessoas que os praticavam 58.<br />
Na posse desses livros, contudo, longe<br />
de vermos a erupção de uma suposta<br />
voluptuosidade oculta do prelado,<br />
temos apenas a manifestação de seu<br />
anacronismo, sendo sua ação pastoral<br />
a mais perfeita prova deste<br />
descompasso com o tempo e, ainda, de<br />
sua fidelidade aos ensinamentos da<br />
Igreja. Em seu governo diocesano, o<br />
bispo Cruz foi um intrépido tridentino,<br />
tomando iniciativas disciplinadoras e<br />
aculturadoras: visitas pastorais,<br />
medidas contra as ilicitudes dos<br />
eclesiásticos, habilitação de sacerdotes<br />
segundo as normas de "pureza de<br />
costumes e de sangue", fundação do<br />
Seminário de Mariana, instrução dos<br />
fiéis e dos clérigos, e introdução de<br />
novos cultos (ao Coração de Jesus, por<br />
exemplo) e da oração mental 59, nada de<br />
'licencioso' maculou sua gestão, repleta<br />
de muitos dissabores: conflitos de<br />
jurisdição com a justiça laica e com o<br />
bispo do Rio de Janeiro, atritos com os<br />
cónegos, verdadeiras pestes que o<br />
infernizaram assim como a seus<br />
sucessores imediatos, a expulsão dos<br />
jesuítas por dom José 1, a punição do<br />
pag.52, jan/dez 1995<br />
amigo inaciano Qabriel Malagrida... 40 E,<br />
por fim, a vivência cotidiana num<br />
território que sobrepujava, segundo<br />
palavras do próprio antístite, "às<br />
maiores cidades do orbe na torpeza<br />
diversificada dos vícios", somando, à<br />
ganância do ouro, a ambição, a vaidade,<br />
a soberba e os "falazes prazeres<br />
carnais"* 1. Era dom frei Manuel a<br />
amargar a nostalgia de um mundo que<br />
nunca existiu (afinal, as Minas nasceram<br />
com o ouro); a utilizar topos literários<br />
que vinham da Roma da Antigüidade<br />
Clássica 42 para expressar o que sentia<br />
em Mariana, sua Altera Roma; e a<br />
denunciar sua mácula e a de sua livraria:<br />
nostalgia, nada além da nostalgia em<br />
relação a um mundo que nunca existiu;<br />
nada além de resquícios de um mundo<br />
que ruía, mas que, para o<br />
Reverendíssimo bispo, eram a razão de<br />
sua vida, nada tendo de perdição. Seu<br />
mal talvez fosse - como afirma Luiz Mott,<br />
ao referir-se ao suplício que impôs a<br />
negra Rosa Egípciaca - agir às vezes<br />
"mais com humor viperino do que<br />
pombalino" 45. Ele era apenas prisioneiro<br />
do pré-pombalismo!<br />
Dom Pontevel, nomeado bispo de<br />
Mariana em 1777 4 4, ao contrário de dom<br />
frei Manuel, era atingido pelo espírito<br />
do século. Em sua biblioteca<br />
encontravam-se dois autores ilustrados:<br />
Qenuensis, iluminista oficial 45, proibido<br />
por Roma 4 6, e Robertson, historiador<br />
escocês que denunciava as mazelas da<br />
colonização 47. A composição da seção<br />
de história parece indicar que o bispo
R V O<br />
se interessava pelo tema da<br />
colonização: dos seus sete livros de<br />
história, três o abordavam de algum<br />
modo. Supomos, todavia, que tais<br />
livros, longe de indicar a adesão a<br />
qualquer questionamento da dominação<br />
colonial, serviram, no máximo, como<br />
um instrumento para a compreensão<br />
dos desvios e das subversões da norma,<br />
exigência do próprio papel de guardião<br />
da ordem exercido pelo bispo 4 8. Sua<br />
biografia corrobora essa hipótese: o<br />
governador da capitania, visconde de<br />
Barbacena, avisara-o sobre a Conjura,<br />
antes mesmo de iniciada a prisão dos<br />
sediciosos 49, e sua única palavra sobre<br />
o levante foi um sermão em louvor à<br />
repressão. Por isso, foi considerado um<br />
"exagerado absolutista" 50.<br />
Cm sua biblioteca, sob o império da<br />
ortodoxia, havia os malvistos<br />
atricionistas 51, o Cursus de theologia et<br />
moralis, da Universidade de Salamanca,<br />
e Anecdotes, em dois volumes, sem<br />
referência a autor, possivelmente<br />
Anecdotes sur mme. Ia comtesse Du<br />
Barry,\\\ro proibido, misto de libelo e<br />
crônica escandalosa sobre a amante do<br />
rei Luís XV, a condessa Du Barry, que<br />
enlameava o rei e a monarquia".<br />
A historiografia ressalta o espírito pio,<br />
caridoso e a 'santidade' de Pontevel".<br />
Suspeitamos, porém, que ele ou um de<br />
seus apaniguados desviou-se da moral<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n" I -2. p. 19-52. Jan/dez 1995 • pag 33
A C E<br />
presença de alguns títulos comuns,<br />
como foi apontado anteriormente. Mo<br />
resto, as semelhanças evidenciam-se de<br />
modo mais acentuado em relação aos<br />
padres não-inconfidentes. Como os<br />
portugueses, os clérigos das Gerais<br />
possuíam fundamentalmente obras<br />
litúrgicas, seguidas, na maioria dos<br />
casos, pelas de teologia. Excetuavam-<br />
se o bispo Pontevel, para o qual a ordem<br />
era a inversa; o cônego Vieira da Silva,<br />
para o qual a literatura estava em<br />
primeiro lugar, seguida depois pela<br />
filosofia e história (que ficaria em<br />
segundo se juntássemos os livros de<br />
história profana aos de história sagrada);<br />
o bispo Manuel da Cruz, que se dividia<br />
entre a liturgia e a história sagrada; e o<br />
cônego Borges, para quem a segunda<br />
posição era reservada aos cânones. Ao<br />
contrário do que sucedia entre os<br />
portugueses, entretanto, a literatura,<br />
para a maioria dos sacerdotes, vinha<br />
antes da história, mesmo somando-se a<br />
história sagrada à história profana. As<br />
exceções, realizando-se essa adição,<br />
além do bispo Manuel da Cruz, eram o<br />
bispo Pontevel e o padre João Souza,<br />
que priorizavam mais a história (o<br />
último sequer possuía obras de<br />
literatura), e o cônego Borges, que se<br />
voltava, entre as ciências profanas,<br />
apenas para o direito e, em menor grau,<br />
para as ciências. Os únicos sacerdotes<br />
a aproximarem-se dos seus colegas de<br />
ofício parisienses eram o bispo dom frei<br />
Manuel e o côn. Vieira da Silva, os quais<br />
até iam além daqueles: em suas<br />
pag. 30 jan/dez 1995<br />
bibliotecas, a história não apenas rivali<br />
zava com a teologia, mas a superava.<br />
A distribuição dos livros pelas diferentes<br />
línguas (tabela IV) é um aspecto em que<br />
a singularidade dos inconfidentes se<br />
dissipa, tanto diante dos clérigos das<br />
Gerais como dos portugueses e, em<br />
alguma medida, dos franceses. A<br />
exceção é de novo o cônego<br />
inconfidente Vieira da Silva. Se entre os<br />
franceses, os livros escritos em latim,<br />
em 1790, chegavam a 27% das<br />
bibliotecas, nas Gerais, as livrarias, em<br />
sua maioria arroladas próximo aos anos<br />
1790, a média é de 26,7%. À<br />
semelhança do ocorrido com os<br />
portugueses, o que se via, na imensa<br />
maioria das bibliotecas, era o português<br />
ultrapassar o latim, variando entre<br />
86,5%, na livraria do padre Alves, e<br />
28,3%, na pertencente ao cônego<br />
Cordeiro, em cujo inventário omite-se<br />
grande parte dos títulos e dos autores<br />
dos livros. Todavia, nas bibliotecas do<br />
bispo Pontevel e dos cônegos Borges e<br />
Vieira da Silva, o latim era o primeiro<br />
colocado, indo de 46,6%, na livraria do<br />
côn. Vieira da Silva, até 73,5%, na<br />
biblioteca do bispo Pontevel. Em duas<br />
dessas três livrarias o segundo lugar era<br />
ocupado pelo português, que<br />
correspondia a 14%, na biblioteca do<br />
bispo, e a 39%, na possuída pelo côn.<br />
Cordeiro. Já na livraria do côn. Vieira<br />
da Silva, o francês se encontrava na<br />
segunda colocação, com 28,3%. nesta<br />
mesma biblioteca, o inglês talvez<br />
ameaçasse o português: se o último
R V O<br />
correspondia a 11,8% dos títulos, o<br />
inglês talvez compreendesse 8,6% (a<br />
incerteza deve-se ao fato dos livros<br />
ingleses não terem seus títulos ou<br />
autores arrolados nos seqüestros, não<br />
nos sendo possível afirmar que<br />
constituíam obras distintas). Portanto,<br />
se as bibliotecas eclesiásticas das Minas<br />
possuem algumas diferenças em relação<br />
às suas similares portuguesas e<br />
francesas, quanto à sua composição por<br />
assunto, o mesmo não se nota, de modo<br />
geral, com relação às línguas, em que<br />
as identidades, principalmente com as<br />
livrarias portuguesas, são maiores. A<br />
livraria do cõn. Vieira da Silva, no<br />
entanto, é a nota mais destoante,<br />
seguida, neste aspecto, pelas<br />
bibliotecas do bispo Pontevel e do<br />
cõnego Borges.<br />
Bibliotecas clericais nas Minas do<br />
século XVIII, heterodoxias e<br />
'inventividade'<br />
Malgrado as regularidades observadas<br />
nas bibliotecas clericais e a ortodoxia<br />
de grande parte dos seus títulos e<br />
autores, encontramos singularidades,<br />
em especial entre os inconfidentes, que<br />
revelam um despreendimento em<br />
relação às preocupações mais imediatas<br />
da vida sacerdotal. Em alguns casos,<br />
elas remetem a heterodoxias, que se<br />
evidenciam quando confrontamos a<br />
coloração política e moral de alguns<br />
títulos e autores de cada livraria aos<br />
comportamentos morais ou políticos<br />
dos clérigos leitores. Quanto a esses<br />
aspectos, frise-se, dispomos de<br />
informações muito limitadas, mais<br />
ainda em relação aos clérigos não-<br />
inconfidentes, salvo para os bispos<br />
Manuel da Cruz e Pontevel, e o cõnego<br />
Borges. Desse modo, primeiro<br />
focalizaremos tais clérigos e, depois, os<br />
conjurados mineiros.<br />
A biblioteca do bispo dom frei Manuel<br />
da Cruz era o retrato de um mundo que<br />
se encontrava em seus estertores. Se,<br />
por um lado, estava afinada com a<br />
ortodoxia católica, por outro, parecia<br />
um tanto anacrônica. Não havia nela o<br />
menor vestígio da Ilustração, muito pelo<br />
contrário, as obras de caráter devocional<br />
e de cunho jesuítico, então em baixa<br />
sob o reformismo de Pombal e de dona<br />
Maria I, pululavam: lá estavam, por<br />
exemplo, santa Tereza e o padre<br />
Antônio Vieira, de quem o bispo, além<br />
dos Sermões e das Cartas, possuía a<br />
sebastianista história do Futuro.<br />
A censura portuguesa na segunda<br />
metade do século XVIII, com efeito, se<br />
voltava suas baterias contra os<br />
"pervertidos filósofos", era implacável<br />
com os jesuítas, responsabilizando-os<br />
pelo "fanatismo", a "ignorância" e,<br />
ainda, a "licenciosidade" que se viam<br />
grassar em Portugal 37. O bispo possuía<br />
o já mencionado Cursus theologicus et<br />
moralis, da Universidade de Salamanca<br />
- de onde a Inquisição de Espanha<br />
riscou o trecho que permitiria tomar<br />
como lícitas, aos olhos de deus, as<br />
relações sexuais com mulheres, até<br />
mesmo as violentas - e, ainda, o livro<br />
Máximas espirituais, censurado em<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v 8, n' 1-2. p 19-52, jan/dez 1995 - pag 31
A C E<br />
ortodoxa, sendo pai de um dentre dois<br />
bebês que foram expostos - isto é,<br />
enjeitados - à porta de seu palácio, em<br />
abril de 1 780, um ano após sua sagração<br />
em Lisboa. Tal hipótese funda-se nos<br />
cuidados que o enjeitado mereceu do<br />
bispo e em alguns silêncios e regalias<br />
de que o mesmo foi objeto: primeiro,<br />
teve como padrinhos o bispo e Mossa<br />
Senhora do Rosário, recebendo nome<br />
similar ao do antistite. Domingos José<br />
da Encarnaçào Pontevel; em segundo<br />
lugar, foi, " a mando do dito senhor"<br />
bispo,"criado em casa de João José<br />
Correia" 54; terceiro, seu ingresso e sua<br />
ascensão no sacerdócio, anos mais<br />
tarde, foram marcados por silêncios.<br />
Como exposto. Domingos era, aos olhos<br />
da lei, ilegítimo; todavia, saiu-lhe a<br />
acusação de 'ilegitimidade de<br />
nascimento', em função da qual teve<br />
que obter dispensa do Múncio<br />
Apostólico em Lisboa. Minguém em seu<br />
processo de habilitação mencionou o<br />
nome de seu 'ilegítimo' pai, mas no<br />
breve de dispensa consta que Domingos<br />
tinha o "defeito" de ser "oriundo de<br />
presbítero". Domingos, porém, quis<br />
mais do que ordenar-se: pediu, depois,<br />
dispensa para ser promovido às<br />
dignidades e altos postos da hierarquia<br />
eclesiástica, no que foi atendido pelo<br />
provisor do bispado, que o dispensou<br />
na "irregularidade de defeito do<br />
nascimento proveniente de coito<br />
sacrílego" 55.Ora, por que se denunciou<br />
a ilegitimidade de Domingos sem que<br />
fosse identificado o nome de seu pai?<br />
pag. 54. jan/dez 1995<br />
0<br />
Esse silêncio não teria sido uma<br />
imposição da necessidade de preservar<br />
o presbítero que era seu genitor? Mão<br />
seria este clérigo importante demais<br />
para que sua condição de pai fosse<br />
explicitada? Isso tudo, enfim, faz-nos<br />
aventar a hipótese de que o pai de<br />
Domingos seria o bispo homônimo, ou<br />
então, algum apaniguado seu, e,<br />
ademais, de que tal paternidade não<br />
poderia ser revelada para preservar as<br />
aparências do prelado! Se tal hipótese<br />
for verdadeira, destaque-se, o bispo e<br />
os que o protegeram estavam<br />
acobertados pelas regras da civilidade<br />
barroca, comum às demais sociedades<br />
do Antigo Regime, que nào se<br />
importavam se o parecer e o ser se<br />
distanciavam, fazendo da civilidade<br />
falsa aparência 56.<br />
O bispo Pontevel ajudou a dissimular<br />
um arranjo que visava resguardar as<br />
aparências da mais alta autoridade da<br />
capitania: segundo Tomás Antônio<br />
Gonzaga, o governador Luís da Cunha<br />
Menezes solicitou e conseguiu que o<br />
bispo dispensasse sua amásia, Maria<br />
Joaquina, e Jerónimo Xavier de Souza,<br />
dos banhos (proclamas) necessários<br />
para a realização do casamento de<br />
ambos 5 7. Pontevel, assim, se por um<br />
lado, talvez usasse da posse e do<br />
conhecimento de obras politicamente<br />
heterodoxas para melhor guardar a<br />
ordem, por outro, talvez fizesse do<br />
recurso à dissimulação das ilicitudes<br />
sexuais um modo de também preservá-<br />
la. A benignidade das autoridades com
R V O<br />
Pontevel 'filho' e os silêncios sobre a<br />
identidade de seu pai, ademais, são o<br />
mais perfeito retrato de como esta<br />
tradição vicejava na ordem do Antigo<br />
Regime.<br />
O bispo, ademais, neste aspecto, além<br />
de seguir uma tradição de exercício de<br />
poder, não seria senão um homem de<br />
seu tempo, um 'homem do mundo',<br />
obedecendo à moral coletiva imperante<br />
nas Gerais. Separando o parecer do ser,<br />
como nas demais sociedades do Antigo<br />
Regime, esta moralidade, urdida no<br />
interior de uma sociedade colonial e<br />
escravocrata, era patriarcal, racista,<br />
misógina e centrava-se no princípio de<br />
igualdade, isto é, na defesa do<br />
casamento entre iguais na cor, no status<br />
social, na situação física e moral. Mas,<br />
diante das dificuldades para se acharem<br />
iguais para o matrimônio, dos seus<br />
custos e de sua burocracia, acabava por<br />
admitir algumas ilicitudes (como o<br />
concubinato, o adultério e a<br />
prostituição), especialmente entre os<br />
desiguais (os homens brancos e/ou<br />
senhores, livres ou forros, com as<br />
mulheres havidas como mulheres<br />
solteiras', isto é, não-virgens, negras,<br />
índias, mulatas; forras e escravas),<br />
desde que se preservassem as<br />
aparências 5 8. lia conduta sexual de<br />
Pontevel, assim, às vozes da moral<br />
coletiva vigente nas Gerais talvez se<br />
somassem os murmúrios heterodoxos<br />
engolfados em meio à ortodoxia católica<br />
de sua livraria: da moralidade coletiva<br />
e do Curso theologicus et moralis, o<br />
bispo pode ter extraído a idéia de que<br />
era admissível relacionar-se, até mesmo<br />
de forma violenta, com mulheres<br />
solteiras e, algumas vezes, com as<br />
mulheres puras e santas; das Anecdotes<br />
• hipótese pouco segura - o bispo talvez<br />
tenha estabelecido uma identidade<br />
entre sua experiência e as peripécias da<br />
condessa Du Barry. Afinal, se ele pode<br />
ter sido pai, Barry era filha de um<br />
monge, se Luís XV casava sua amâsia<br />
com o conde Du Barry, ele foi cúmplice<br />
de uma artimanha semelhante,<br />
patrocinada por Luís da Cunha Menezes.<br />
Pontevel, em suma, pode ter sido, por<br />
um lado, prisioneiro e protagonista de<br />
estratégias de um poder cuja<br />
preservação exigia o conhecimento das<br />
subversões e a cisão do parecer e do<br />
ser, e, por outro, expressão de uma<br />
moral heterodoxa (em relação às leis),<br />
que juntava o cotidiano a alguns livros<br />
e separava - também - o parecer e o ser,<br />
conjugando a defesa do casamento<br />
entre iguais à realidade das ilicitudes<br />
que vicejavam sob o celibato. Tais<br />
considerações, porém, são meras<br />
hipóteses.<br />
lia livraria do cônego Borges, território<br />
em que campeavam obras de cânones<br />
e direito, não vemos nada que pudesse<br />
ser considerado heterodoxo, o mesmo<br />
sucedendo em relação à sua postura<br />
política. Todavia, no uso que fazia<br />
daquelas obras, percebe-se que nem<br />
tudo estava em conformidade com as<br />
regras jurídicas e, além disso, que essas<br />
serviam para acobertar ilicitudes morais.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n» 1 -2. p I9-52. jan/dez 1995 - pag 35
não dele, mas de outrem. Apesar de ter<br />
uma passagem pelo ilícito- foi<br />
contemplado duas vezes com 'carta de<br />
seguro negativa ', espécie de habeas<br />
corpus, passada pelo Juízo Eclesiástico<br />
do bispado de Mariana -, devido às<br />
omissões da documentação, não nos foi<br />
possível saber qual era o delito de que<br />
era acusado 59. Como provisor e vigário<br />
geral do bispado, anos depois, Borges<br />
endossou a habilitação ao sacerdócio,<br />
recusada pelo bispo Pontevel, de José<br />
de Souza Barradas, apesar do candidato<br />
encontrar-se impedido para tanto, por<br />
viver publicamente concubinato com<br />
uma parda chamada Escolástica e ter<br />
uma filha. Embora Borges tenha<br />
reconhecido a existência "da culpa",<br />
julgou que a mesma não estava provada<br />
conforme determinavam as Ordenações,<br />
segundo as quais se deveria provar "que<br />
no espaço de seis meses entrara um<br />
(concubino) na casa do outro, sete ou<br />
oito vezes, circunstância que não<br />
descobrira nos autos" 60. Ao que parece,<br />
porém, a legislação fora pinçada para<br />
favorecer um rebento de uma família<br />
ilustre, constituída, no entender de<br />
Borges, por "bons pais tanto em honra<br />
como em cristandade", os quais<br />
"sempre criaram seus filhos com temor<br />
pag.56. jan/dez 1995<br />
de Deus, em sujeição e exemplar<br />
recolhimento" 61, todos eles, no caso dos<br />
homens, ocupando cargos importantes.<br />
Se nem os comportamentos nem as<br />
aparências do habilitando prestavam<br />
para dar-lhe o passaporte para o<br />
sacerdócio, o provisor apelou para as<br />
filigranas da lei e usou as aparências da<br />
família para habilitá-lo - e, com isso,<br />
também preservou-as. Borges, tão<br />
aferrado ao direito e aos cânones,<br />
mostrou-se assim enredado no ideal de<br />
civilidade que grassava nas sociedades<br />
do Antigo Regime: uma civilidade das<br />
aparências.<br />
Os inconfidentes, ao contrário dos<br />
outros clérigos - o que é óbvio - revelam-<br />
se heterodoxos do ponto de vista<br />
político. Ma biblioteca do padre Carlos<br />
Correia de Toledo, homem muito rico 62,<br />
vigário na vila de São José d'El Rei<br />
desde 1777 6 5, vemos a Lógica, de Luis<br />
Antônio Verney, iluminista português<br />
adversário dos jesuítas, pensador oficial<br />
da época pombalina 64, certamente um<br />
'libertino' aos olhos das autoridades<br />
eclesiásticas mais conservadoras. Havia<br />
também duas obras de Ovídio, autor<br />
proibido pela censura portuguesa:<br />
Compêndio de metamorfose e Triste<br />
velho. Tais títulos não representavam
grande afronta à ordem estabelecida e,<br />
no mais, prevalecia o 'bom cura' na<br />
biblioteca do padre Toledo. Mesmo<br />
assim, ele atendeu à convocação feita<br />
aos sacerdotes da América por seu<br />
colega de ofício, o abade Raynal:<br />
6 entronizou a pátria em seu altar 5,<br />
engajando-se na Inconfidência.<br />
Considerava Raynal, por sinal, um<br />
"escritor de grandes vistas", por ter<br />
previsto a sedição dos colonos ingleses,<br />
concluindo, de seu relato sobre a<br />
experiência dos colonos ingleses, que,<br />
se na América do norte os impostos<br />
levaram à rebelião, aqui, a derrama<br />
poderia produzir os mesmos efeitos 66.<br />
Portanto, a primazia numérica de livros<br />
ortodoxos de sua biblioteca e a<br />
irrelevância quantitativa da história não<br />
contiveram as repercussões do livrinho<br />
de Raynal, obra que sequer possuía,<br />
mas que leu ou, ao menos, escutou e<br />
discutiu, com os outros conjurados. Do<br />
ponto de vista moral, porém, a<br />
ortodoxia triunfou.<br />
na livraria do padre Costa, sacerdote<br />
desde o final da década de 1770 6 7, a<br />
quase igualdade numérica entre as<br />
obras de ciências e literatura e a<br />
presença de um livro de Pope, poeta<br />
satírico inglês que comprendia a razão<br />
como virtude pública, indicam certa<br />
heterodoxia: espelham uma opção de<br />
vida futura e uma determinada maneira<br />
de olhar o mundo, na qual este é<br />
compreendido mais à luz da razão e da<br />
observação do que da revelação. Duas<br />
das suas obras de ciências versavam<br />
sobre medicina. As outras eram:<br />
Aritmética, de Maia; Biologia, de Berti;<br />
e Instruções para a cultura das<br />
amoreiras. O padre Manuel preocupava-<br />
se possivelmente com aspectos<br />
relativos à saúde, mas sobretudo<br />
interessava-se pelo mundo da natureza,<br />
prestigiando a botânica, tal como era<br />
característico dos libertinos do século<br />
XVIII 68, concedendo uma atenção<br />
especial à razão e aos objetos das<br />
ciências naturais e, de resto, a elas<br />
mesmas. Tanto assim que, anos mais<br />
tarde, em 1801, em Lisboa, traduziu e<br />
publicou um Tratado da cultura dos<br />
pessegueiros 69, e, ao regressar de<br />
Portugal, livre do cárcere, tornou-se um<br />
notável e inovador fazendeiro. Passou<br />
a cultivar o linho em sua fazenda,<br />
obtendo sempre bons resultados, tendo<br />
trazido máquinas do Reino para tecê-lo,<br />
assim como a outros tecidos. Chegou<br />
mesmo a apresentar ao governo um<br />
projeto para desenvolver a tecelagem 70<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag 37
Mas a audácia de Costa, é bom lembrar,<br />
o fez entender que "esta América estava<br />
nos termos de ficar uma Europa* 71,<br />
levando-o a envolver-se na Conspiração<br />
Mineira. Ele driblou, assim, a ortodoxia<br />
dominante em sua biblioteca e deixou-<br />
se conduzir pela razão e pelo espírito<br />
de observação que emanavam de alguns<br />
de seus títulos. Atendeu, portanto, ao<br />
abade Raynal, colocando a pátria em seu<br />
altar - e nem a prisão logrou contè-lo,<br />
pois, depois, veio a engajar-se no<br />
processo de emancipação do país: o<br />
padre, elegeu-se deputado na<br />
Constituinte de 1823, reelegeu-se para<br />
a legislatura seguinte e meteu-se na<br />
revolta liberal de 1842 7 2. Contudo, este<br />
engajamento em questões profanas e<br />
políticas, não abalou sua fé ou os<br />
preceitos morais desta, pois, na<br />
Assembléia Constituinte, votou contra<br />
a liberdade religiosa e, no campo<br />
sexual, foi fiel à ortodoxia católica.<br />
O cônego Luís Vieira da Silva 7 3 possuía<br />
uma livraria, segundo Carlos Guilherme<br />
Mota, "recheada com a literatura mais<br />
crítica do ocidente" 7 4, com muitos<br />
autores iluministas. Dos autores<br />
encontrados, destacam-se alguns<br />
clássicos e ilustrados proibidos pela<br />
censura: Ovídio, Marmontel, Catulo,<br />
pag 38. Jan/dez 1995<br />
Anacreonte, Voltaire, Mably, Diderot,<br />
Condilac, Robertson e Montesquieu 75.<br />
Mela havia lugar, ainda, para livros de<br />
ilustrados moderados, como Genuensis,<br />
Verney e Bento Feijó. O olhar do cônego<br />
reservava espaço também para autores<br />
de ciências, alguns importantes para a<br />
ciência moderna: Descartes, Pinei (cuja<br />
obra era proibida), Fabri, Gravesande,<br />
Winslow, Tissot e Musschembroeck. A<br />
seção de história privilegiava os países<br />
europeus, sobre os quais havia seis<br />
obras, seguidos depois por Portugal,<br />
com cinco obras, e a América, com três.<br />
A Europa, todavia, era contemplada<br />
também com os títulos de história<br />
universal (três obras) e história moderna<br />
(duas obras), além da história antiga<br />
(duas obras). Mão havia livros<br />
específicos sobre o Brasil. O cônego se<br />
interessava pelas particularidades das<br />
gentes de sua 'pátria' e, ao mesmo<br />
tempo, pelos mais distintos povos, sem<br />
que houvesse qualquer contradição<br />
entre eles. Desta generalidade de povos<br />
particulares, ademais, destacava a<br />
América do Norte, motivo de estudo e<br />
discussão, e na qual o cônego enxergava<br />
identidades com sua capitania. A<br />
América era motivo de empréstimo de<br />
livros: o cônego não se contentava com
a obra de Robertson, que possuía, tendo<br />
emprestado de alguém, com certeza, o<br />
livrinho do abade Raynal e do<br />
intendente Bandeira, as Observations<br />
sur le gouvernement de les Etats Unis.<br />
O pensamento do cônego Vieira, de fato,<br />
encontrava-se marcado pela presença de<br />
Raynal e, de resto, pela Ilustração.<br />
Segundo Ernst Cassirer, o pensamento<br />
ilustrado caracterizava-se pela renúncia<br />
à dedução sistemática, isto é, àquela<br />
que, partindo de um ser supremo ou de<br />
uma certeza fundamental, máxima,<br />
expandia a luz desta a todos os seres e<br />
saberes derivados através do método da<br />
demonstração e da conseqüência<br />
rigorosa, enlaçando os últimos à certeza<br />
primordial de modo imediato 76. O ponto<br />
de partida, no pensamento ilustrado,<br />
deslocou-se da certeza fundamental<br />
para a experiência e a observação,<br />
invertendo-se, pois, a hierarquia<br />
metodológica. Procurava descobrir a<br />
lógica dos fatos, através da qual,<br />
primeiro, apreendia os fenômenos;<br />
depois, buscava cada uma das<br />
condições que os originaram, revelando<br />
a dependência que os ligava; e,<br />
finalmente, com base nestas<br />
descobertas, chegava às regularidades<br />
comuns a cada tipo de fenômenos,<br />
formulando princípios ou leis 7 7. O<br />
pensamento ilustrado, portanto,<br />
combinava os métodos resolutivo e<br />
compositivo; nele, a funçào mais<br />
importante da razão consistia, pois, em<br />
separar e juntar 78.<br />
O caráter ilustrado do pensamento do<br />
côn. Vieira explicita-se nas suas<br />
respostas ao interrogatório da Devassa<br />
da Inconfidência. Interrogado sobre sua<br />
posição favorável à revolta dos norte-<br />
americanos, depois de algumas<br />
tergiversações, afirmou que a rebelião<br />
tinha uma causa, a opressão e que -<br />
procurando enganar os inquiridores - ela<br />
inexistia nas Gerais. Questionado sobre<br />
a ausência de diferenças entre os povos<br />
rebelados do norte e os mineiros, disse<br />
que os povos podiam rebelar-se por<br />
diferentes causas e que, em Minas<br />
Gerais, não havia o problema dos<br />
impostos, motivo da sediçáo dos norte-<br />
americanos, pois o visconde de<br />
Barbacena noticiara que só faria a<br />
derrama depois de ouvir Sua Majestade.<br />
E o cônego, nào acreditando no<br />
"maravilhoso" - guiando-se pela razào,<br />
poderíamos dizer - sabia que para os<br />
povos rebelarem-se eram necessários<br />
"fatos de presente"; vê-se, nas<br />
entrelinhas, a importância estratégica da<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.39
A C E<br />
7 derrama para os conspiradores 9.<br />
Contraditado nas suas respostas pelo<br />
inquiridor, o cõnego, então, expôs uma<br />
teoria geral sobre as condições que<br />
tornam exeqüível uma rebelião, chegan<br />
do até ela a partir de um exemplo<br />
concreto. Com isso, pretendia mostrar -<br />
enganando o inquiridor - que em Minas<br />
Gerais era impossível pensar em sedição<br />
e que ele não poderia cogitar em realizá-la:<br />
as respostas dele respondente só<br />
tendem a mostrar os fundamentos, por<br />
que não seguiria semelhante partido,<br />
quando fosse para isso convocado,<br />
prescindindo inteiramente de que<br />
houvesse, ou nào, quem tivesse<br />
semelhantes idéias: sabe que na feliz<br />
aclamação de F.l-Rei D. João o quarto,<br />
sendo uma causa tão justa, e tanto da<br />
vontade dos povos, perguntou,<br />
segundo sua lembrança, D. João da<br />
Costa, quais eram os generais, as<br />
armas, as alianças, os soldados, que<br />
tinham prontos para se levantarem<br />
contra as armas de Castela, e que isto<br />
foi bastante para se suspender a ação<br />
por oito dias, e talvez se não<br />
executasse, se nisso não estivesse o<br />
maior perigo; e como poderia pensar<br />
que tivesse efeito a sublevação de<br />
Minas falta de tudo o necessário, e<br />
cercada de outras capitanias: em<br />
segundo lugar, ele respondente nào vê<br />
interesse nenhum próprio na<br />
sublevação; porque não foi para isso<br />
convidado, nem aceitaria o partido,<br />
quando o fosse, e menos evitar o dano<br />
pag.40. jan/dez 1995<br />
se este é obedecer aos superiores, e<br />
evitar tributos 80.<br />
Do exemplo concreto da Restauração<br />
Portuguesa, protagonizada por dom<br />
João IV, o cõnego extraiu a conclusão<br />
de que só era possível pensar em<br />
rebelar-se se houvesse condições para<br />
tanto - isto é, generais, armas, alianças,<br />
soldados - ou se fosse mais perigoso<br />
manter-se na sujeição. E em Minas, tudo<br />
isso faltava, além do que, obedecer aos<br />
superiores e pagar tributos não<br />
poderiam ser motivos de uma rebelião<br />
- de novo, vê-se o lugar estratégico dos<br />
impostos. Mesta passagem, ademais,<br />
estabelece-se uma analogia entre a<br />
Inconfidência e a Restauração, "causa<br />
tão justa, e tanto da vontade dos<br />
povos". Um indício seguro de que, para<br />
ele, era legítimo um povo rebelar-se<br />
contra a tirania; uma analogia que, por<br />
si só, indica que a Inconfidência, no<br />
pensamento do cõnego, era tão legitima<br />
quanto a Restauração.<br />
Mo pensamento do cõnego, assim,<br />
encontramos a afirmação da razão, a<br />
negação do maravilhoso, das certezas<br />
absolutas, e uma análise do real que,<br />
tendo como referência a própria<br />
experiência (o que habilidosamente se<br />
procura negar), compara três situações<br />
distintas (a Conjuração das Gerais, a<br />
Independência das Treze Colônias<br />
Inglesas e a Restauração Portuguesa),<br />
decompondo-as; depois, chegando-se a<br />
uma conclusão geral sobre a ocorrência<br />
das rebeliões; e, por fim, atingindo a
conclusão de que seria impensável uma<br />
rebelião em Minas. Mo sub-texto, ainda,<br />
temos a consagração do principio<br />
ilustrado do direito à rebelião e a<br />
expressão do lugar estratégico ocupado<br />
pela derrama na Conjuração. O cônego<br />
Vieira da Silva, em suma, por um lado,<br />
combinava os métodos resolutivo e<br />
compositivo, procurando estabelecer as<br />
condições que provocam os fenômenos<br />
e, depois, descobrindo as regularidades<br />
que se fazem presentes em fenômenos<br />
similares, formulando leis. Por outro,<br />
baseava-se num princípio caro aos<br />
ilustrados: aquele segundo o qual era<br />
legítimo rebelar-se contra um poder<br />
despótico, presente em Rousseau 81, e<br />
também em Raynal (que estendia a<br />
legitimidade àqueles que não viviam sob<br />
o despotismo) 82.<br />
Autêntico ilustrado, por seus princípios<br />
e pela maneira de estruturar o seu<br />
pensamento, o cônego Vieira<br />
influenciou-se, portanto, pelos autores<br />
ilustrados que se encontravam em sua<br />
biblioteca e atendeu ao abade Raynal,<br />
a quem tanto apreciava, entronizando a<br />
pátria em seu altar! Sua 'libertinagem',<br />
por fim, nào se limitou à Inconfidência:<br />
embora cônego, professor de teologia<br />
e comissário da Ordem Terceira da<br />
Penitência, Vieira da Silva era um<br />
'homem do mundo', tendo legado uma<br />
filha, Joaquina Angélica da Silva, à<br />
posteridade, nascida em 1765, quando<br />
Vieira já havia recebido as ordens<br />
sacras 8 3. A moralidade coletiva<br />
imperante nas Qerais deve ter-se<br />
V<br />
conjugado ao ideal de civilidade de<br />
Corneile, autor presente em sua<br />
biblioteca, levando o cônego a<br />
desobedecer as regras jurídicas e a<br />
sujeitar-se às normas sociais que<br />
admitiam algumas ilicitudes sexuais,<br />
desde que não prejudicassem as<br />
aparências: o cônego, enfim, convivia<br />
com a cisão entre o ser e o parecer.<br />
Examinando a apropriação dos livros<br />
pelos clérigos mineiros das Qerais do<br />
século XVI11, dentro dos estreitos limites<br />
que a documentação nos impõe,<br />
constatamos o fosso que separava os<br />
inconfidentes dos demais, no que se<br />
refere às idéias e aos comportamentos<br />
políticos. Ao mesmo tempo,<br />
percebemos que as diferenças se<br />
embaralham, quando o foco desloca-se<br />
para as questões morais. Do ponto de<br />
vista político, assim, vemos que, entre<br />
os inconfidentes, os livros ilustrados e/<br />
ou que focalizavam aspectos relativos<br />
ao mundo natural - insignificantes na<br />
biblioteca do padre Toledo,<br />
consideráveis na livraria do padre Costa,<br />
e razoavelmente numerosos na<br />
biblioteca do cônego Vieira da Silva -<br />
exerceram grande influência sobre tais<br />
leitores. As possibilidades de leitura dos<br />
inconfidentes, no entanto, não se<br />
limitaram aos livros que possuíam nem<br />
àquilo que os mesmos diziam: a<br />
inventividade, de alguma forma, valeu.<br />
O livrinho do abade Raynal, não<br />
possuído por nenhum deles, tornou-se<br />
centro da atenção e, em sua leitura, as<br />
idéias foram apropriadas de tal sorte a<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1 -2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag AI<br />
o
A C E<br />
iluminar a própria experiência dos<br />
leitores, norteando sua ação política. A<br />
inventividade dos leitores-inconfidentes<br />
teve no cõnego Vieira da Silva o seu<br />
maior expoente, de tal sorte que a<br />
própria estruturação de seu pensamento<br />
seguia parâmetros ilustrados e<br />
associava as experiências alheias à de<br />
sua pátria. Os clérigos que não se<br />
meteram na Conjuração, sobre os quais<br />
conseguimos obter informações mais<br />
substanciais, ao contrário, mostram-se<br />
ou presos a uma ordem politica-cultural<br />
que ruía, caso do bispo Manuel da Cruz,<br />
ou possivelmente usando de livros<br />
heterodoxos para melhor preservar a<br />
ordem, caso do bispo Pontevel.<br />
A moralidade coletiva, que consagrava<br />
a cisão entre o ser e o parecer, foi mais<br />
forte que a ortodoxia, justamente entre<br />
os proprietários das bibliotecas mais<br />
exuberantes: o cõnego Vieira da Silva<br />
e, quem sabe, o bispo Pontevel. Esta<br />
moralidade, ademais, triunfou no<br />
comportamento do cõnego Borges<br />
enquanto juiz. Venceu entre eles uma<br />
moralidade que aceitava as relações<br />
sexuais ilícitas desde que se<br />
mantivessem as aparências, inclusive a<br />
de respeito às normas jurídicas. Entre<br />
a maioria dos clérigos proprietários de<br />
livros, contudo, a ortodoxia parece ter<br />
saído vitoriosa.<br />
Conclusão<br />
Nas bibliotecas dos eclesiásticos<br />
mineiros do século XVIII, visualizam-se<br />
as tensões entre aquilo que as<br />
pag. 42, jan/dez 1995<br />
autoridades e os livros procuravam<br />
impor e a inventividade de alguns dos<br />
leitores, seja no sentido de privilegiar<br />
determinadas obras, seja no sentido de<br />
lê-las segundo uma ótica particular.<br />
Alguns títulos repetiam-se de uma<br />
biblioteca para outra; entre as livrarias<br />
das Gerais e suas congêneres francesas<br />
e portuguesas, havia similitudes no que<br />
toca aos títulos e à distribuição dos<br />
livros pelos assuntos e, em algum grau,<br />
pelas línguas - mas em meio a estas<br />
uniformidades, os inconfidentes<br />
destacaram-se por destoarem, em maior<br />
ou menor grau. O cõnego Vieira da Silva,<br />
dentre eles, foi o que mais se mostrou<br />
singular.<br />
Os eclesiásticos inconfidentes possuíam<br />
bibliotecas que expressavam interesses<br />
que iam além dos limites imediatos de<br />
seu trabalho pastoral, voltando-se mais<br />
fortemente que as dos demais clérigos<br />
para questões teológicas e profanas. O<br />
inverso se dava entre os clérigos não-<br />
conjurados. À maior profanidade, os<br />
inconfidentes aliaram uma inventividade<br />
bastante aguda em relação aos livros,<br />
apropriando-se das idéias apresentadas<br />
nos mesmos tendo em vista sua própria<br />
experiência nas Gerais. Sua inventividade<br />
chegou ao limite de levá-los a organizarem<br />
uma sedição fundada numa estratégia<br />
baseada no conhecimento livresco da<br />
experiência das Treze Colônias da<br />
América inglesa. Assim, mais do que a<br />
pátria, os inconfidentes parecem ter<br />
entronizado os livros - ao menos alguns<br />
deles - em seu altar.
Tabelas e Gráficos<br />
V o<br />
Fontes: <strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de Mariana (AEAM), <strong>Arquivo</strong> Episcopal da<br />
Arquidiocese de Mariana (ACSM) e Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (ADIM).<br />
* nas tabelas, os números absolutos referem-se a obras e volumes, estando registrados<br />
na ordem: obras/volumes.<br />
Nomes<br />
Tabela 1 - V dc Obras e Volumes das Bibliotecas Eclesiásticas por Área<br />
Totais Ciências Sacras Ciências Profanas<br />
Obra VoL<br />
Obras Volumes Obras Volumes<br />
ABS % ABS % ABS % ABS %<br />
B. Pontevel 412 1056 263 63,8 703 66,6 79 \9.2 208 19.7<br />
C6n. V. Silva 279 612 99 35,5 236 38,6 147 52,7 329 53,7<br />
Pe. M. Costa 73 212 30 41 128 60,4 20 27,4 54 25.5<br />
Côn. Cordeiro 67 76 22 32,2 31 40,8 1 1.5 1 1,3<br />
Côn. Borges 64 126 32 50 77 61,1 9 14 12 9,5<br />
Pe. C Toledo 58 105 37 63,8 81 77,1 17 293 19 18<br />
Pe. F. Alves 37 48 33 89,2 42 87,5 0 0 0 0<br />
B M. da Cruz 36 79 29 80,5 67 84,8 3 8.3 6 7,6<br />
Pe. J. F. Souza 27 62 23 85,2 49 79 2 7,4 6 9,7<br />
Pe. J. T. Souza 24 42 16 66,7 33 78,5 2 8,3 2 4,8<br />
Nomes<br />
Tabela II - Números Absolutos e Relativos de Obras e Absolutos de Volumes* de Ciências Sacras nas Bibliotecas Eclesiásticas<br />
Ljcritura Santa<br />
ABS<br />
o/v<br />
%<br />
ABS<br />
o/v<br />
Padres da<br />
Igreja<br />
%<br />
ABS<br />
o/v<br />
Teoloeia História Sagrada Canônej Liturgia Dicioairioa<br />
%<br />
B. Pontevel 7/32 1.7 2/15 0.5 58191 14 16/73 3.1 36/15 1.7 47/107 11,4 9/21 12<br />
Con V. Sirva S/19 1.» 2/14 0,7 13/27 4.7 11/21 3.9 22/51 7.9 17/2» 6,1 2/7 0,7<br />
Pe M Costa 3/33 4,1 0 0 t/36 10.9 2/16 2,7 1/1 1,4 9/26 12J VII 4,1<br />
Côn Cordeiro 0 0 0 0 5/5 7,5 1/2 1.5 1/2 1.5 12/13 17.9 0 0<br />
C6n. Borges 0 0 0 0 4/10 6.3 0 0 5/6 7,1 7/27 10,9 0 0<br />
Pe. C. Toledo 2/4 3.4 0 0 10/22 172 2/4 3,4 3/5 5.2 11/31 19 1/4 1,7<br />
Pe R Ah/es 1/3 2,7 0 • 4/4 10,1 l/l 2.7 0 0 25/32 67,6 0 0<br />
B. M da Cruz 0 0 0 • 1/4 2.1 5/7 13.9 4/4 11,1 5714 13.1 0 0<br />
Pe. J. F. Souza 3/4 U.l 0 0 2/2 7.4 0 0 2/2 7.4 U/31 40,7 0 0<br />
Pe. J. T. Souza 0 0 0 0 2/6 1.3 l/l 4.2 2/2 •.3 4/1 16,7 0 0<br />
ABS<br />
o/v<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
ABS<br />
o/v<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2, p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.45<br />
%
A C E<br />
Tabela [II • Nesa eros Abse luto. e Murro* de Obrai < Absolutos da ases' Vol• d* SM»! Prof.na. iu Bibliotecas Ecl -siaiticai<br />
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Naseea ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
o/v<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
ABS<br />
O/V<br />
%<br />
B PooKvel 7/11 1.7 2/2 0.5 7/26 1.7 16744 3,9 19/27 1/40 13 «3! 23 7/7 1,7<br />
V Sitva 2/6 17 5.7 u 26/15 93 13/27 4.7 49/91 3IV92 11,1 10/11 13 14-33 s<br />
Pe M Cofta 2/3 2.7 0 0 1/2 u 3/10 4.1 •711 •3 2/13 V 0 0 5/13 6.1<br />
C6o Cordcuo 0 0 0 0 0 0 0 0 l/l u 0 0 0 0 0 0<br />
Cõo. Borg.es 0 0 0 0 0 0 0 0 0 • 0 0 5/1 7.« l/l 1.6<br />
Pt. C. Toledo • • l/l 1.7 0 0 4M M 1/1 133 2/2 3.4 0 0 0 0<br />
Pe. F. Abres • • 0 0 • • • • 0 0 0 • 0 • 0 0<br />
B. M. deCraa 0 • t » l/l 23 • 0 1/2 23 0 t 1/3 W 0 0<br />
Pe J. F. Sovoa 0 0 0 • 1/2 3,7 0 0 • 0 1/4 3.7 0 t 0 0<br />
Pe J. T. Som 0 0 0 0 0 0 0 0 1/1 43 0 0 0 0 0 0<br />
Tabela IV - Número! Absolutos e Relativos de Obras e Absolutos de Volumes* por Línguas e Valor daa Bibliotecas Eclesiásticas<br />
laVjsBM<br />
Nossas •arara Port.tsès tr.eeès Espanhol lorlés Italiano Valor Valor era<br />
Mil-reis<br />
O/V % O/V % O/V % O/V % O/V % o/v %<br />
303-764 73.5 58,137 14 31/100 73 3/21 0.7 0 9/13 23 96ISSS0<br />
Còn V Sirva 1307212 46,6 33/63 11.« 79/72 213 3/6 1 24/24 «6 0 6615130<br />
Fe. M. Costa 9.40 123 36/121 49.3 1/1 13 0 2/11 2.7 0 -<br />
Con. Cordeiro 2/3 3 19/27 213 0 - 0 - 0 - 0 - 2755700<br />
Cón Rorges 30/59 46.9 25/57 39 0 - 0 0 • 0 - 4IS250<br />
Pe.C. Toledo 12/24 20.7 42/77 72,4 0 0 • - 0 - 1011350<br />
Pe-F Alves 1/3 2.J 32/36 *J 0 2/2 M 0 0 27J295<br />
B M. da Cruz 1GV20 273 24/57 66.7 0 l/l 2Jt 1/4 23 0 -<br />
Pe. J. F. Souza 7/1 25.9 11/49 66.7 0 0 0 - 0 - 66S070<br />
Pe. J. T. Souza M U 7JV37 •33 0 0 0 • 0 301055<br />
pag. 44, jan/dez 1995<br />
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Í.7 4J<br />
M O T A S<br />
1. CHARTIER, Roger. A história cultural:entre práticas e interpretações. Lisboa: DifeI;<br />
Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1990, p. 121. Colocações muito similares também<br />
são feitas por DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução: o submundo das<br />
letras no Antigo Regime. São Paulo : Cia. das Letras, 1989, p. 128; e DAV1S,<br />
Natalie Zemon. "O povo e a palavra impressa". In: Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz<br />
e Terra, 1990, pp. 159, 176 e 184-185.<br />
2. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans Ia France D'Ancien Regime. Paris :<br />
Éditions du Seuil, 1987, p. 167.<br />
3. Idem, ibidem, p. 168.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 pag 45
A C E<br />
4. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional.<br />
Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, s/d, p. 85.<br />
5. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans Ia France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />
p. 171.<br />
6. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, op. cit., p. 89.<br />
7. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />
p. 173.<br />
8. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, op. cit., p. 89.<br />
9. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />
p. 172.<br />
10. FURTADO, Júnia Ferreira. O livro da capa verde; a vida no distrito diamantino no<br />
período da Real Extração. São Paulo : 1991, pp. 24 e 33-34. Dissertação de<br />
mestrado.<br />
1 1. FURTADO, Júnia Ferreira, op. cit., p. 33-34.<br />
12. A relação de livros foi extraída do "Inventário dos bens do Seminário de Mariana",<br />
feito em 1831 e transcrito pela Revista do <strong>Arquivo</strong> Fúblico Mineiro sob o título:<br />
"O Seminário de Mariana em 1831". In: Revista do <strong>Arquivo</strong> Fúblico Mineiro. Belo<br />
Horizonte: (1/2) : 367-377, jan./jul. de 1904. Esses livros foram inventariados<br />
apenas em 1831, portanto, já no século XIX, mais adiante do período com o<br />
qual estamos trabalhando. Todavia, como este intervalo temporal coincidiu<br />
parcialmente com a crise do Seminário (de 1793 a 1820), fechado por vários<br />
anos, podemos supor que inexistiram sensíveis mudanças no acervo de sua<br />
biblioteca, à exceção da deterioração dos livros provocada pelo abandono e pela<br />
ação do tempo. Há pequenas diferenças entre a transcrição que aparece na revista<br />
e a cópia manuscrita do documento que consultamos na Biblioteca <strong>Nacional</strong>.<br />
Dos 566 volumes da biblioteca do Seminário, 230 não tiveram seus títulos e<br />
autores mencionados. Sobre a crise do Seminário de Mariana, veja: TRINDADE,<br />
cônego Raimundo. Breve noticia dos Seminários de Mariana. Mariana :<br />
Arquidiocese de Mariana, 1951, pp. 28-40.<br />
13. DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo : Cia. das Letras, 1991, pp.<br />
1 14-1 15.<br />
14. Idem, ibidem, p. 114.<br />
15. Idem, ibidem, p. 66.<br />
16. FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. 2* ed. rev. e aum. São Paulo :<br />
EDUSP; Belo Horizonte : Itatiaia, 1981, p. 45.<br />
pag. 46. jan/dez 1995<br />
/ \
K V O<br />
17. Mo inventário dos bens do Seminário consta "Hondres", porém julgamos que<br />
houve erro do escrivão na grafia do nome, que na realidade devia ser Vincent<br />
Houdry. Corrobora esta hipótese o fato de haver tomos de um exemplar da obra<br />
Biblioteca concionatoria, do citado autor, em edição de 1764, na biblioteca do<br />
palácio dos bispos de Mariana, neles estando anotado: "Pertence ao Seminário"<br />
e "Seminário de Mariana".<br />
18. DELUMEAU, Jean, op. cit., p. 115.<br />
19. TRIMDADE, cônego Raimundo. Breve notícia dos Seminários de Mariana, op. cit., p. 34.<br />
20. AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira (doravante, ADIM). Brasília : Câmara<br />
dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Qerais, 1980, vol. 6,<br />
pp.85-92, 307-322, 347-350 e 438-440.<br />
21. ARQUIVO EPISCOPAL DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA (doravante, AEAM).<br />
Inventário de dom frei Domingos da Encarnaçáo Pontevel - 1793 (doravante, IDEP).<br />
Armário 1, 4 S gaveta, livro.<br />
22. Os autores que se voltaram para o estudo das bibliotecas dos Inconfidentes<br />
empregaram critérios distintos na contagem dos livros e escolheram um ou outro<br />
segmento dos Autos de Devassa da Inconfidência - os autos do seqüestro ou as<br />
avaliações dos bens - para a coleta dos dados, o que os levou a chegarem a<br />
diferentes resultados. Veja: FRIE1RO, Eduardo, op. cit., p. 24; ARAÚJO, Emanuel.<br />
O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial.<br />
Rio de Janeiro : José Olympio, 1993, p. 327; RICARDINI, Beatriz. "Inventários e<br />
seqüestros: fontes para a história social". In: Revista do Departamento de História.<br />
Belo Horizonte: (9) : 31-45, 1989; e VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada<br />
dos vícios': celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas<br />
Qerais (1748-1801). São Paulo : FFLCH-USP, 1993, p. 147. Dissertação de<br />
mestrado.<br />
23. ARQUIVO DA CASA SETECENTISTA DE MARIANA (doravante, ACSM). Inventário do<br />
padre João Rodrigues Cordeiro, 1792. \- oficio, códice 82, auto 1.756.<br />
24. ACSM. Inventário do cônego Chantre José Botelho Borges, 1795. \ - ofício, códice<br />
14, auto 453.<br />
25. ACSM. Inventário do padre Francisco Vieira Alves, 1781. 1 9 ofício, códice 75, auto 1.587.<br />
26. AEAM. Testamento e inventário do bispo dom frei Manuel da Cruz, 1763-1764.<br />
<strong>Arquivo</strong> 1, prateleira 13, gaveta 1.<br />
27. ACSM. Inventário do padre João Ferreira de Souza, 1777. 2- ofício, códice 46, auto<br />
1.045.<br />
28. ACSM. Inventário do padre José Teixeira de Souza, 1768. 1 9 oficio, códice 149, auto 3.134.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n 9 1-2, p. 19-52, jan/dez 1995 - pag.47
A C E<br />
29. Contamos como livros distintos até mesmo volumes para os quais os inventários<br />
não mencionam nem títulos nem autores, ou ainda, para os quais a semelhança<br />
de títulos não implica necessariamente igualdade de autor. Em nossa dissertação<br />
de mestrado (op. citj e em outro artigo (VILLALTA, Luiz Carlos. "O diabo na<br />
livraria dos inconfidentes". In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São<br />
Paulo : Companhia das Letras ; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.367-<br />
395) não usamos este critério, havendo, por isso, diferenças entre as cifras<br />
apontadas nesses trabalhos e no presente artigo.<br />
30. Ao que tudo indica, essa obra circulou muito nas Minas do século XVIII. Era das<br />
mais solicitadas aos fornecedores pelo livreiro e capitão Manuel Ribeiro, caixa e<br />
administrador dos contratos dos dízimos, nas Qerais de meados do século XVIII<br />
- apud DIN1Z, Sílvio Gabriel. "Um livreiro em Vila Rica no meado do século XVIII".<br />
In: fíriterion. Belo Horizonte: (47/48): 180-198, jan./jun. de 1959. Lucas da Costa<br />
Pereira, cirurgião residente em Paracatu, preso em 1747 pelo crime de sodomia,<br />
tinha entre seus bens seqüestrados três livros, dentre eles, a obra de Larraga<br />
(<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> da Torre do Tombo - Inquisição de Lisboa - Processo n e 205).<br />
Essa informação foi-nos gentilmente passada por Luís Roberto de Barros Mott.<br />
31. FRIEIRO, Eduardo, op. cit., p. 32.<br />
32. PICARD, Evelyne. "Une bibliothèque conventuelle aux XV1II-- siècle: les théatins<br />
de Sainte-Anne-La-Royale". In: Revue dflistoire Moderne et Contemporaine. Paris:<br />
(27) : 235-255, abr./jun. 1979.<br />
33. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />
história. 2 a ed. Belo Horizonte : Imprensa Oficial, 1953, vol. 1, pp. 153-154 e<br />
RODRIGUES, José Carlos. Idéias filosóficas e políticas em Minas Gerais na primeira<br />
metade do século XIX. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : EDUSP, 1986, p. 31.<br />
34. AEAM. Processo de habilitação para ordens de Luiz Vieira. Encadernado, armário<br />
1, 3* prateleira; e TRINDADE, cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro<br />
Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1951, pp. 196-231.<br />
35. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />
história, op. cit., pp.76-81.<br />
36. VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada dos vícios', op. cit., pp. 96-100.<br />
37. Idem, ibidem, pp. 133-134 e 137-139.<br />
38. EDITAL da Real Mesa Censória de 06 de abril de 1769. In: Coleção das leis e<br />
alvarás que compreende o Feliz Reinado D'EI Rey Fidelíssimo D. José I, s/ref, pp.<br />
236-237. Sobre o molinismo, veja: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio<br />
de Janeiro : Campus, 1989, p. 202 e MORA, Adelina Sarrión. Sexualidad y<br />
pag 48. jan/dez 1995
R V O<br />
confesión:la solicitación ante el Tribunal dei Santo Oficio (sigios XV1-X1X). Madrid:<br />
Alianza Editorial, 1994, pp. 206-209.<br />
39. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />
história, op.cit., pp. 76-81.<br />
40. Idem, ibidem, pp. 76-81 e CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas<br />
mineiras coloniais. São Paulo: Cia. Editora <strong>Nacional</strong>/ EDUSP, 1968, p. 58.<br />
41. AEAM. Relatório do episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concilio<br />
de Trento. Tradução do monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues.<br />
42. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1991, pp. 272-273.<br />
43. MOTT, Luiz.Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand<br />
Brasil, 1993, p. 117.<br />
44. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., p. 31 e TRINDADE, cônego Raimundo.<br />
Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua história, op.cit., pp. 153-154.<br />
45. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., pp. 51-55 e WERNET, Augustin. A Igreja paulista<br />
no século XIX: a reforma de d. Antônio Joaquim de Melo (185 1 -186 1). São Paulo:<br />
Ed. Ática, 1978, pp. 29-30.<br />
46. FRIEIRO, Eduardo, op. cit., p. 26.<br />
47. Idem, ibidem, pp. 44-45.<br />
48. Hipótese similar é defendida em relação ao conde de Assumar em: SOUZA, Laura<br />
de Mello e. "Estudo crítico". In: Discurso histórico e político sobre a sublevação<br />
que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro,<br />
Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994, pp. 13-56. Veja também: BERGER,<br />
Q. "Litterature et lecteurs a Grenoble aux XVIIe siècle: le public litteraire dans<br />
une capitale provinciale". In: Revue d'Mistorie Moderne et Contemporaine. Paris:<br />
(33): 132, jan./mar. 1986.<br />
49. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil -<br />
Portugal, 1750-1808. 3a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 174.<br />
50. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />
história, op.cit., p. 154.<br />
51. Os atricionistas entendiam que os penitentes poderiam ser absolvidos pelo padre<br />
mesmo que se mostrassem arrependidos unicamente por temor do inferno<br />
(DELUMEAU, Jean, op. cit., pp. 45-57).<br />
52. DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução, op. cit., pp. 143-148 e 160-167,<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995-pag49
A C E<br />
e Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 179-193.<br />
53. A fidelidade de Pontevel aos ensinamentos da Igreja é apontada em BOSCHI,<br />
Caio César. 'As visitas diocesanas e a inquisição na Colônia". In: Revista Brasileira<br />
de História. São Paulo: 7(1 4): 161, mar./ago. 1987; TRINDADE, cônego Raimundo.<br />
Arquidiocese de Mariana, op.cit., vol.l, pp. 140-158 e CARRATO, José Ferreira,<br />
op.cit., p.64.<br />
54. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n- 345.<br />
55. Ibidem. Um 'defeito de costume' de Domingos sequer foi tangenciado nas<br />
investigações: em seu testamento, ele reconheceu ser pai de Libánia Rosa das<br />
Virgens, nascida antes que ele se tornasse presbítero (ACMS. Inventário e<br />
testamento de Domingos da Encarnação Pontevel, 1827-1829. 1. ofício, códice<br />
50, auto 1.139).<br />
56. Sobre a tensão entre o parecer e o ser no ideal de civilidade no Antigo Regime,<br />
veja: CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la Erance D'Ancien Regime, op.<br />
cit., p. 60, e REVEL, Jacques. "Os usos da civilidade". In: ARIES, Philippe &<br />
CHARTIER, Roger (org.). História da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1991, pp. 187-194.<br />
57. GONZAGA, Tomás Antônio. "Cartas chilenas". In: Obras Completas I - poesias/<br />
cartas chilenas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação/ Instituto <strong>Nacional</strong> do<br />
Livro, 1957, pp. 299-300.<br />
58. VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada dos vícios', op. cit.<br />
59. PIRES, Maria do Carmo. "De juiz a infrator: o dilema do sacerdócio mineiro no<br />
século XVIII". Comunicação apresentada na XII Encontro Regional de História da<br />
AríPUH - SãoPaulo, realizado em Campinas, em 1994, p. 7.<br />
60. VILLALTA, Luiz Carlos. A torpeza diversificada dos vícios', op. cit., pp. 96-97.<br />
61. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n- 1.318/08.<br />
62. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil -<br />
Portugal, 1750-1808, op.cit., p. 118.<br />
63. AEAM. Processo de colação do reverendo Carlos Correia de Toledo Melo como<br />
vigário da freguesia de Santo Antônio da vila de São José. Encadernado, armário<br />
1, 3" prateleira.<br />
64. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., pp. 47-48 e WERNET, Augustin. A igreja paulista<br />
no século XIX: a reforma de d. Antônio Joaquim de Melo (1 851 -186 1). São Paulo:<br />
Ed. Ática, 1978, pp. 29-30.<br />
pag.SO. jan/dez 1995
R V O<br />
65. QUILLAUME, Thomas François Raynal. A revolução da América. Rio de Janeiro:<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, 1993, p. 84.<br />
66. ADIM, vol. 1, p. 158 e vol.2, p. 246.<br />
67. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus. Encadernado, armário<br />
1, 3* gaveta.<br />
68. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 !<br />
ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, pp. 58-59.<br />
69. ADIM. op. cit.. vol. 2, p. 432.<br />
70. SA1NT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas<br />
Qerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, pp. 60-61; e<br />
CARRATO, José Ferreira, op. cit., p. 67.<br />
71. apud CARVALHO, côn. José Geraldo Vidigal. Ideologia e raízes sociais do clero<br />
da Conjuração - século XVIII, Minas Qerais. Viçosa: Imprensa Universitária da<br />
UFV, 1978, p.33.<br />
72. CARVALHO, côn. José Geraldo Vidigal de, op. cit., pp. 33-34.<br />
73. AEAM. Processo de habilitação para ordens de Luís Vieira. Encadernado, armário<br />
1, 3 8 prateleira e TRINDADE, cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro<br />
Preto, op. cit., pp. 196-231.<br />
74. MOTA, Carlos Guilherme. Idéias de revolução no Brasil (1789-1801): estudo das<br />
formas de pensamento. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 80.<br />
75. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit., p. 59.<br />
76. CASSIRER, Ernst. Filosofia de la llustración. 2» ed. Madrid: Fondo de Cultura<br />
Econômica, 1993, p. 21.<br />
77. Idem, ibidem, pp. 22-26.<br />
78. Idem, ibidem, p. 37.<br />
79. A associação, pelos inconfidentes, do problema tributário à sublevação da América<br />
inglesa, e, daí, à organização da sediçáo mineira, foi sublinhada em: CARVALHO,<br />
côn. José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 15 e FIGUEIREDO, Luciano Raposo de<br />
Almeida & MUNTEAL FILHO, Oswaldo. "Prefácio". In: GUILLAUME, Thomas François<br />
Raynal, op. cit., p. 31.<br />
80. ADIM, vol. 5, pp. 246-248.<br />
81. "A rebelião que finalmente degola ou destrona um sultão é um ato tão jurídico<br />
quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens dos<br />
seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba". Rousseau, apud LEITE,<br />
Paulo Gomes. "A Maçonaria, o Iluminismo e a Inconfidência Mineira". In: Revista<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n- 1-2, p. 19-52, jan/dez 1995 - pag 51
Minas Gerais. Belo Horizonte: (33): 20, jan.1991.<br />
82. GUILLAUME, Thomas François Raynal, op. cit., p. 75.<br />
83. ADIM, op. cit., vol. 3, p. 348.<br />
0-<br />
A B S T R A C T<br />
This article focuses attention on the clerical libraries in Minas Qerais in the second<br />
half of the eighteenth century, analyzing their composition and the probably influences<br />
that they had upon their owners. Firstly, it identifies the headlines and authors that<br />
the Catolic Church used to difuse among the cleric men and the position they occupied<br />
as owners of the books. After that, it presents a quantitative analyzis of some<br />
information from the books (authors' names, titles, languages in which the books<br />
were written, matters and prices), identifying regularities and singularities and relating<br />
them to the personal biography of their owners and to the clerical state. Finally, it is<br />
shown how these libraries unfluenced their owner's sexual and political behaviors.<br />
R É S U M É<br />
Cet article traite des bibliothèques cléricales du Minas Qerais à la seconde moitié du<br />
XVlIIe siècle. 11 analyse la composition de ces bibliothèques et explique les influences<br />
possibles qu'elles ont exerce sur leurs propriétaires. 11 décrit, d'abord, les titres et<br />
les auteurs que l'Eglise Catholique essayait de répandre entre les clercs et quelles<br />
étaient les positions que ceux-là occupaient tant que propriétaires de livres. Ensuite,<br />
il fait une analyse quantitative des quelques données concernant les livres trouvés<br />
dans le bibliothèques (norns d'auteurs, títres, langue dans laquelle les livres ont été<br />
écrits, sujets, et prix), tout en identifiant des régularités et des singularités, en<br />
établissant les rapports entre elles et l'histoire personelle de leurs propriétaires et<br />
1'état clerical. Finalement, il examine dans quelle mesure les livres ont influencé le<br />
comportement sexuel et politique de leurs propriétaires.<br />
pag 52. jan/dez 1995
Berenice Cavalcante<br />
Professora associada do Departamento de História da PUC-RJ. Coordenadora do<br />
Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da PUC-RJ.<br />
Os 4<br />
letrados' los A (tua sociedade<br />
colonial s as academias e a<br />
cultura do Iluminismo no final<br />
"Concórdia, união e<br />
constância, amados<br />
companheiros, para que<br />
desprezando as batalhas da<br />
ignorância e da inveja, vos<br />
coroeis triunfantes na honra<br />
dos templos da fama e da<br />
sabedoria".<br />
Academia dos Renascidos -<br />
sermão do acadêmico José<br />
Antônio Sarre<br />
y ' ^ fato consagrado na literatura<br />
sobre o tema, o reconhe-<br />
mento da 'influência' dos<br />
filósofos iluministas franceses sobre a<br />
elite intelectual da Colônia no final do<br />
século XVIII.<br />
Se, por um lado, é inegável o desen<br />
do século XVTII<br />
volvimento de um pensamento<br />
lustrado entre os 'letrados' da<br />
sociedade colonial, é igual<br />
mente inegável o reconhe<br />
cimento das diferenças e<br />
singularidades que caracterizam este<br />
pensamento tal como se apresenta na<br />
produção originada nas academias que<br />
por aqui se formaram. Acrescente-se<br />
que, face às diferenças entre as idéias<br />
dos filósofos do século XVIII, para<br />
alguns autores seria improcedente se<br />
falar em Iluminismo. Contudo, em meio<br />
a esta diversidade e pluralidade de<br />
pontos de vista, é possível reconhecer<br />
as questões comuns, a preocupação<br />
com um mesmo conjunto de problemas,<br />
as mesmas inquietações e a adoção das<br />
mesmas práticas. 1 É esta generalização<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n° 1-2, p. 53-66. jan/dez 1995 - pag.53
A C E<br />
de atitudes presentes tanto nos salões<br />
franceses, como nas universidades<br />
alemãs e escocesas, e nas sociedades<br />
literárias e academias coloniais, por<br />
exemplo, que tornam mais apropriado<br />
para o tratamento destas questões, o<br />
recurso à noção de clima de opinião 2,<br />
que designaria uma forma peculiar de<br />
se usar a inteligência, em outros termos,<br />
um tipo especial de lógica. É sob este<br />
prisma que a aludida 'influência' será<br />
(re)reexaminada.<br />
De forma resumida o que definiria o<br />
clima de opinião no século XVIII, e a<br />
sua identificação como século das<br />
Luzes, seria o privilégio concedido à<br />
filosofia como porta de entrada ao<br />
mundo do conhecimento; a utilização<br />
de um vocabulário cujas palavras-chaves<br />
seriam natureza, lei natural, razão,<br />
sentimento, humanidade e per-<br />
fectibilidade, e uma peculiar relação<br />
entre fé e razão na recusa a todo<br />
conhecimento revelado.<br />
Ao lado destas referências básicas para<br />
o tratamento de questões relacionadas<br />
ao problema do conhecimento tal como<br />
formulado no século XVIII, é ainda de<br />
se notar o predomínio de um certo<br />
estilo, particularmente no que diz<br />
respeito às formas de sociabilidade. A<br />
constituição das monarquias abso-<br />
lutistas nos séculos XVI e XVII,<br />
redefinindo as noções de esfera pública<br />
e privada, respectivamente, como<br />
espaço de exercício do poder - atributo<br />
exclusivo do monarca - e espaço da<br />
pag 54, jan/dez 1995<br />
liberdade de consciência 3, alimenta a<br />
vida nos salões, academias científicas,<br />
sociedades literárias e clubes, animados<br />
pela arte da conversação, pela<br />
curiosidade científica e apreciação<br />
estética, posto que o gosto ia, pouco a<br />
pouco, se impondo como critério de<br />
discernimento.*<br />
De forma abreviada, importa sublinhar<br />
que nestas instâncias privadas os<br />
súditos vivenciavam a experiência da<br />
liberdade da opinião e de igualdade no<br />
plano das idéias, bases sobre as quais<br />
se erigiria a utopia de uma nova<br />
sociedade que reinstaurasse a harmonia<br />
) U B U OS<br />
AMERICA,<br />
NA GLORIOSA O ALT AÇAU.E PROMOÇÃO<br />
GOMES FRElREl<br />
DE ANDRADA,<br />
fct»»i m »» mm *, • . f* in»i>»
entre os cidadãos. Se a política<br />
constituía-se em atributo exclusivo ao<br />
monarca, e os assuntos religiosos em<br />
fonte de sedição e conflito entre os<br />
súditos, a restauração da paz e<br />
harmonia no meio social adviria dos<br />
progressos conquistados no plano da<br />
moral, concebida então como a grande<br />
força reformadora da humanidade. Vale<br />
lembrar ser a reforma moral a forma<br />
indireta de se fazer política ou de se<br />
proceder à crítica ao estado absolutista. 5<br />
Combinam-se desta maneira os<br />
pressupostos da nova sociedade tal<br />
como concebida pelos filósofos, aos<br />
ideais de civilidade cultivado nos<br />
salões. Tal como praticada nos salões,<br />
esta noção de civilidade, cultivando a<br />
polidez como forma de sociabilidade,<br />
pretendia a criação de um espaço<br />
protegido onde a violência fosse<br />
interditada no trato cotidiano. Este seria<br />
também um espaço de prazer, de jogo,<br />
que estimulasse a vida do espírito, onde<br />
fossem igualmente interditados o<br />
aborrecimento e o tédio. 6<br />
O cultivo da vida do espírito abriu<br />
caminho para que as belles lettres<br />
adquirissem nova dignidade em<br />
substituição à destreza nas armas como<br />
critério para o reconhecimento de<br />
mérito e distinção social. Virtude e<br />
politesse, razão e perfectibilidade<br />
constituem-se como os novos dogmas<br />
pregados pelo credo das Luzes.<br />
Em que medida a elite intelectual da<br />
Colônia, os letrados reunidos nas<br />
V o<br />
academias do final do século XVIII,<br />
partilhavam estes ideais e compor<br />
tavam-se segundo estes parâmetros de<br />
civilidade? Em que medida nestas<br />
instâncias desenvolve-se também o<br />
estilo que caracterizava as novas formas<br />
de sociabilidade? 7<br />
Uma rápida consideração a respeito do<br />
elenco de questões que atraía o<br />
interesse da elite intelectual reunida<br />
nestas academias - os 'letrados' da<br />
sociedade colonial - pode indicar<br />
algumas pistas interessantes para o<br />
desnudamento destas indagações.<br />
Para os membros da Academia dos<br />
Esquecidos, seus propósitos voltavam-<br />
se para a implantação dos estudos<br />
históricos, divididos em quatro partes:<br />
natural, militar, eclesiástica e política,<br />
recontados através de 'máximas', e a<br />
produção de biografias - chamadas à<br />
época de 'retratos' - entre os quais os<br />
de André Vidal de Negreiros, Gaspar de<br />
Ataíde e Francisco de Morais. 8 Para os<br />
sócios da Academia dos Seletos, seus<br />
trabalhos resumiam-se a celebrar Gomes<br />
Freire de Andrade, quando de sua<br />
nomeação como comissário real para a<br />
resolução das questões de fronteira na<br />
região Sul. Este material foi reunido<br />
num volume intitulado Júbilos da<br />
América publicado em 1754. 9 Escrever<br />
uma história em homenagem ao rei d.<br />
José animava as reuniões da Academia<br />
dos Renascidos' 0 e o interesse em<br />
estudos de química e agronomia a<br />
Academia Científica do Rio de Janeiro.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1-2. p. 53-66. jan/dez 1995 - pag 55
A C E<br />
Além da definição destes objetivos em<br />
torno dos quais se congregavam, os<br />
acadêmicos organizavam um<br />
planejamento das sessões e .um<br />
programa de atividades em que «e<br />
elencavam os temas, os assuntos e os<br />
'problemas' a serem tratados nas<br />
reuniões ordinárias. A transcrição de<br />
partes desta documentação tornará mais<br />
claro o ponto desenvolvido neste artigo.<br />
Tomando-se como exemplo a Academia<br />
dos Renascidos, em sua primeira<br />
reunião foram apresentados os temas<br />
para o assunto lírico - O mútuo afeto do<br />
nosso Augustissimo Monarca -, e para<br />
os versos heróicos - Qual é de maior<br />
glória ao nosso Augusto Monarca, contar<br />
os seus felicíssimos anos depois do<br />
terremoto e geral perigo de 1 de<br />
novembro de 1755, ou contá-los depois<br />
do.sucesso de 3 de setembro do ano<br />
passado? Em qual destes horrorosos<br />
acontecimentos se mostra a providência<br />
divina mais empenhada em conservar-<br />
nos a preciosa vida de nosso Fidelíssimo<br />
Rei e Pai da Pátria?<br />
Ainda nesta primeira sessão, o<br />
secretário da academia Antônio Ferrão<br />
Castelo Branco discursou sobre o<br />
assunto que lhe fora atribuído, a saber:<br />
Paralelo entre S. M. Fidelíssima e o Pai<br />
Cristianíssimo Luiz XIV, examinando<br />
qual destes monarcas fez mais bem<br />
comum às manufaturas e ao comércio<br />
e qual deles escolheu melhores meios<br />
para fazer felizes os seus vassalos?<br />
E, finalmente, a leitura da dissertação,<br />
pag 56. jan/dez 1995<br />
da qual havia sido encarregado o<br />
terceiro censor José Pires de Carvalho<br />
e Albuquerque: O grande afeto Del Rei<br />
nosso Senhor às ciências e às artes. Em<br />
razão da quantidade de peças literárias<br />
lidas neste encontro inaugural, a sessão<br />
iniciou-se às três horas da tarde e<br />
encerrou-se às quatro da madrugada."<br />
Outro exemplo expressivo do interesse<br />
despertado pelas atividades do 'mundo<br />
do espírito', como no século XV11I se<br />
designavam as atividades relacionadas<br />
às belas letras e às artes em geral, pode<br />
também ser avaliado pelo conjunto de<br />
contribuições reunidas pelo doutor<br />
Manuel Tavares de Siqueira e Sá para a<br />
publicação de Júbilos da América: cento<br />
Júbilos da América. Lisboa: na oficina do<br />
doutor Manuel Alvares Solano, 17S4.
K V O<br />
e vinte e oito sonetos, dezesseis<br />
romances, dois elogios (um em latim),<br />
duas elegias (uma em latim), quinze<br />
epigramas em latim, cinco décimas,<br />
cinco máximas cristãs (uma em latim),<br />
oito máximas políticas (uma em latim),<br />
seis máximas militares, sendo também<br />
uma em latim.<br />
A utilização do latim era recomendada<br />
aos acadêmicos porque este idioma era<br />
o primeiro da lista das "cinco línguas<br />
mais polidas da Europa", segundo a<br />
recomendação feita pelo secretário da<br />
Academia dos Renascidos aos sócios,<br />
para elaboração de suas obras.' 2<br />
Tendo em vista este elenco de temas<br />
com os quais se ocupavam os<br />
acadêmicos - história, 'retratos', versos<br />
heróicos e assuntos líricos, comparação<br />
do monarca português ao rei francês<br />
pela via da promoção das manufaturas,<br />
ciência e artes, e a forma como seriam<br />
tratados a leitura e o debate nas<br />
reuniões 'ordinárias' - mesmo que,<br />
provisoriamente, não se considere o<br />
conteúdo e a qualidade literária das<br />
respostas apresentadas, é possível<br />
reconhecer o que acima foi identificado<br />
como o estilo da cultura do Iluminismo.<br />
São referências procedentes para que se<br />
perceba a presença de valores da vida<br />
civilizada e polida dos salões, entre os<br />
quais o apreço à arte da conversação<br />
erudita, do estímulo às belles lettres e<br />
à imaginação.<br />
Uma breve menção a alguns exemplos<br />
de temas tratados nas conferências da<br />
Academia Brasílica dos Esquecidos<br />
reforça estas interpretações acerca das<br />
relações entre o apreço da imaginação,<br />
a busca do prazer e das situações<br />
lúdicas: Um delfim salvando um<br />
naufrágio; Menino gentil que colhendo<br />
flores pisou um' áspide e A dama que<br />
revolvendo na boca pérolas, quebrou<br />
um dente. 13 Mo entanto, observa-se que<br />
não eram apenas os assuntos líricos e<br />
ditos jocosos que estimulavam a<br />
imaginação destes acadêmicos. Em<br />
outras ocasiões, os temas escolhidos<br />
revelaram inclinações eruditas, com<br />
particular predileção pela antigüidade<br />
clássica, como por exemplo: Uma<br />
estátua de Apoio ferida e desfeita por<br />
um raio; Diana assistindo o nascimento<br />
de Alexandre Magno na mesma noite em<br />
que Herostráto lhe estava queimando<br />
em seu templo ou Quem mostrou amar<br />
mais fielmente Clície ao Sol ou<br />
Endimião à Lua. Tais práticas sugerem<br />
que, nesta margem do Atlântico, criara-<br />
se uma ambiéncia que, em certos<br />
aspectos, em muito se assemelhava<br />
àquela experimentada em sociedades<br />
européias no mesmo período, quando<br />
se ensinava que: "L'áme a ses besoins<br />
comme les corps; et l'un des plus grands<br />
besoins de 1'homme est celui d'avoir<br />
1'esprit occupé. L'ennui qui suit bientôt<br />
1'inaction de l'àme est um mal si<br />
doulourex..." 14<br />
Em outro plano, a explícita comparação<br />
de d. José com o rei-sol é sugestiva. Vale<br />
lembrar que Voltaire escreveu o Século<br />
de Luiz XIV para revelar seus pontos de<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n- 1-2, p. 53-66, jan/dez 1995 - pag.57
vista acerca da história como<br />
inseparável das Luzes, isto é, da<br />
promoção das artes, ciências e belas<br />
letras. Dito de outra forma, o filósofo<br />
francês desvenda a racionalidade que,<br />
em sua perspectiva, atribuiria um<br />
sentido ao que ele mesmo inicialmente<br />
considerava um confuso amontoado de<br />
fatos. A identificação do século XVII ao<br />
soberano destaca o papel que caberia<br />
ao monarca esclarecido na promoção do<br />
progresso e felicidade de seus súditos.<br />
A proposição apresentada aos membros<br />
da Academia dos Renascidos transcrita<br />
acima sugere a presença de uma postura<br />
semelhante entre os 'letrados' da<br />
Colônia. Contudo, há algumas<br />
singularidades que devem ser<br />
destacadas. Se, por um lado, pode-se<br />
especular acerca de uma hipotética<br />
leitura' de Voltaire no que tange a<br />
adesão à concepção acerca do papel do<br />
príncipe iluminado e de sua intervenção<br />
no processo histórico, deve-se ressaltar,<br />
no entanto, que entre os letrados da<br />
sociedade colonial a compreensão da<br />
história não conquistara ainda<br />
independência em relação à crença da<br />
interferência da providência divina nos<br />
assuntos humanos, como se depreende<br />
do tema proposto para os versos<br />
heróicos, neste caso é possível<br />
identificar os traços de um mesmo<br />
pag. 58. jan/dez 1995<br />
estilo, numa certa medida de um mesmo<br />
clima de opinião, pelo partilhar de<br />
preocupações comuns que conviviam<br />
com interpretações e posturas vindas da<br />
tradição.<br />
Contudo, ainda que se mantivesse a<br />
crença na intervenção da providência<br />
divina nos acontecimentos históricos,<br />
ela não foi de porte a impedir que estes<br />
estudos históricos realizados por alguns<br />
destes acadêmicos se voltassem para<br />
novos objetos e novos campos do saber<br />
típicos do século XV1I1, como por<br />
exemplo, a 'história natural'.<br />
Consoante os princípios do Iluminismo,<br />
tratava-se de conhecer a natureza e a<br />
história como formas de conquista e de<br />
apropriação do mundo, sendo esta a<br />
face utilitária e pragmática com que se<br />
passou a conceber a razão e o sentido<br />
do conhecimento, diferenciando-se<br />
assim da noção tradicional da<br />
contemplação de verdades eternas, no<br />
caso do conhecimento histórico,<br />
buscava-se o estabelecimento da<br />
verdade em relação a fatos sobre os<br />
quais pairavam dúvidas, suspeitas de<br />
falsidade ou que se constituíssem em<br />
fonte de equívocos ou lendas. 15 Com os<br />
estudos biográficos entremeados com<br />
citações de 'máximas', buscava-se a<br />
'agudeza sentenciosa' com que<br />
deveriam ser construídos os textos<br />
E
R V O<br />
históricos. Os estudos de história apre<br />
sentavam-se então como campo privile<br />
giado para a valorização de comporta<br />
mentos e virtudes morais, pois nas<br />
palavras de um destes acadêmicos era<br />
"vulgar ignorância querer ajustar um<br />
historiador à seca narração dos<br />
sucessos, sem que comente, pondere<br />
nem censure". 16<br />
O tema da moral é uma das claves em<br />
que a mencionada obra da Academia<br />
dos Seletos Júbilos da América pode ser<br />
lida. Já foi dito acima que esta obra era<br />
voltada para a "gloriosa exaltação e<br />
promoção do Ilustríssimo e Excelen<br />
tíssimo Senhor Gomes Freire de<br />
Andrade",..."para exprimir (suas)<br />
agigantadas e superiores prendas" e,<br />
para destacar que "a todos (vários<br />
personagens de 'fama célebre') vence na<br />
erudição, nervosidade e elegância". 17<br />
A carta-circular aos acadêmicos apelava<br />
ao seu "apolíneo engenho" para uma<br />
"pública demonstração do quanto vivem<br />
completamente satisfeitos com o feliz<br />
governo do Ilustríssimo...*.<br />
Os acadêmicos dedicaram-se a tarefa de<br />
produzir uma obra voltada para a<br />
'pública demonstração', dando asas à<br />
imaginação para que os versos,<br />
romances e sonetos destacassem,<br />
invariavelmente, as suas virtudes, e para<br />
que suas ações se constituíssem em<br />
feitos dignos de louvor. É texto<br />
exemplar também para que se observe<br />
a aludida convivência das virtudes<br />
cristãs com as políticas militares, para<br />
que se conferisse mérito a um<br />
1 8<br />
personagem.<br />
Conforme os versos dos acadêmicos.<br />
Gomes Freire de Andrade "sobre os<br />
fundamentos da religião faz subir um<br />
edifício de virtudes civis e militares",<br />
"temperando a doçura com a<br />
bondade, a severidade com a alegria, a<br />
gravidade com a humanidade, a justiça<br />
com a benevolência, o respeito com o<br />
amor" alcançando assim a "concórdia<br />
das virtudes".<br />
Tendo em vista que este artigo pretende<br />
discutir questões relativas aos 'letrados'<br />
da sociedade colonial, é procedente<br />
indagar-se sobre o sentido que se pode<br />
atribuir a um texto desta natureza. Nota-<br />
se que o interesse não era apenas o de<br />
destacar qualidades morais mas, sobre<br />
tudo, proceder ao elogio de quem as<br />
personificava. Como obra de uma das<br />
academias fundadas no século XVIII,<br />
ilustra valores, atitudes e a prática<br />
destes 'letrados', permitindo que se<br />
conheça o estilo que se pretendia<br />
cultivar.<br />
A 'concórdia das virtudes' enaltecidas<br />
em Qomes Freire de Andrade permite<br />
desvendar, em níveis distintos, a<br />
Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p 53-66. Jan/dez 1995 - pag 59
A C E<br />
valorização de uma noção de civilidade<br />
como amabilidade, como polidez e<br />
afabilidade no trato cotidiano 19, e a bus<br />
ca da perfectibilidade humana e xia<br />
harmonia nas relações sociais, num<br />
sentido bem próximo daquele defen<br />
dido pelo membro da Academia dos<br />
Renascidos citado na epígrafe deste texto.<br />
A valorização da 'concórdia, união e<br />
constância' entre os membros de uma<br />
sociedade apresenta-se como condição<br />
para um 'coroamento', como pré-<br />
requisito para a conquista da 'fama e<br />
da sabedoria' na medida em que fossem<br />
eliminadas a ignorância e a inveja.<br />
Portanto, neste discurso em que se<br />
promovem as 'virtudes' em detrimento<br />
dos 'vícios' há um propósito reformador<br />
de natureza moral, do qual é<br />
indissociável a perspectiva de um tempo<br />
futuro construído sobre as bases da<br />
harmonia e do congraçamento dos<br />
2 0<br />
homens.<br />
Esta é uma das faces com que se<br />
apresenta a noção de progresso que os<br />
filósofos do século XV111 forjaram ao<br />
difundir a crença no papel das Luzes e<br />
do 'esclarecimento' e sua conseqüente<br />
vitória sobre as Trevas. Vale registrar<br />
que, para Koselleck 21, é esta crença em<br />
uma sociedade originada da reforma<br />
moral de seus membros que se consti<br />
tuiria na grande utopia do século XVUI.<br />
Ou seja, nossos acadêmicos não<br />
estariam muito distantes de um clima<br />
de opinião que alimentaria a crença<br />
numa sociedade mais próspera, mais<br />
pag 60. jan/dez 1995<br />
feliz e mais harmoniosa, em função da<br />
associação que estabelecem entre<br />
poder e saber.<br />
Todavia, em Júbilo da América as<br />
virtudes de Gomes Freire de Andrade<br />
'são trazidas a público' em tom<br />
laudatório, em que o elogio avizinha-se<br />
da fronteira da bajulação. Além disso,<br />
os elogios não se restringem ao<br />
governador e capitão geral das<br />
capitanias do Rio de Janeiro, Minas<br />
Gerais e São Paulo.<br />
Siqueira de Sá, no Prólogo ao leitor,<br />
justifica a aceitação do "honroso cargo"<br />
de secretário em razão da persuasão do<br />
presidente da Academia, padre mestre<br />
Francisco de Faria, da Companhia de<br />
Jesus. Discorrendo sobre as condições<br />
de sua indicação e o "inesperado" da<br />
situação, o secretário busca justificar a<br />
aceitação descrevendo o padre como<br />
alguém cujo "magistério temem os<br />
Platões, os Aristóteles, os Descartes e<br />
todos os demais corifeus das escolas e<br />
sistemas antigos e modernos". Se o<br />
elogio da filosofia é inquestionável, não<br />
deixa de chamar atenção o exagero em<br />
que as qualidades do jesuíta são<br />
ressaltadas. Este ponto será retomado<br />
em parte subsequente deste texto.<br />
Um pouco mais adiante enaltece a figura<br />
de outro acadêmico, Mateus Saraiva,<br />
"por sua vasta erudição", reconhecida<br />
até mesmo "nos reinos estranhos, onde<br />
melhor se conhecem, amam, estimam<br />
e premeiam os amantes e professores<br />
das belas letras e por isso nelas
florescem". Referindo-se às suas obras<br />
sobre medicina, destaca suas<br />
"descobertas adquiridas a força da<br />
experiência e observação judiciosa e de<br />
particular estudo e reflexão" (grifos<br />
nossos). Nestas passagens procede a<br />
uma dupla valorização: das atividades<br />
do mundo do espírito e do método de<br />
conhecimento preconizado pelos<br />
enciclopedistas. 22 São pontos de vista<br />
que não deixam dúvidas quanto as<br />
possibilidades em se reconhecer a<br />
aurora de um movimento ilustrado na<br />
Colônia. Contudo, esta interpretação<br />
não contempla a questão dos elogios.<br />
Mais do que isto, o que chama atenção<br />
é o elogio desmesurado - tanto no caso<br />
de Qomes Freire, quanto do padre<br />
mestre e de Mateus Saraiva,<br />
neste proceder observa-se um duplo<br />
movimento: aquele através do qual são<br />
valorizados a dedicação ao<br />
conhecimento e o cultivo da 'vida do<br />
espírito', e aquele em que se afirmava<br />
a capacidade que os acadêmicos se<br />
viam portadores de julgarem e de<br />
atribuírem mérito. Esta é uma das<br />
formas com que se buscou estabelecer<br />
a mencionada relação entre saber e<br />
poder. Este deveria ser exercido pelos<br />
homens esclarecidos, por aqueles que<br />
cultivaram as virtudes úteis, para<br />
promover a felicidade, a harmonia e a<br />
concórdia, na verdade, procede-se ao<br />
auto-elogio, ou ao auto-reconhecimento,<br />
através da identificação e enumeração<br />
das qualidades dos pares. Este tipo de<br />
discurso propunha-se a identificar neles<br />
V o<br />
próprios as virtudes que idealizavam<br />
para o homem esclarecido.<br />
numa outra perspectiva de análise, tais<br />
práticas promoviam formas de<br />
sociabilidade que alimentavam o<br />
componente narcisico dos indivíduos e<br />
do grupo a que pertenciam, em primeiro<br />
lugar por diferenciá-los e distingui-los<br />
daqueles que nào participavam das<br />
academias; em segundo lugar porque<br />
reforçava a expectativa de serem<br />
julgados favoravelmente pelo grupo que<br />
integravam e, finalmente, porque,<br />
reciprocamente, se autorizavam o poder<br />
de julgar as virtudes e de atribuir o<br />
mérito. Desta forma, compreende-se<br />
melhor duas referências anteriores: a<br />
importância adquirida na época pelos<br />
retratos e a expectativa de "coroamento<br />
nos templos da fama e da sabedoria",<br />
em tempo futuro. 23<br />
Esta é a dimensão em que a experiência<br />
da igualdade pode ser vivenciada, pois<br />
o que tais práticas viabilizavam era a<br />
confirmação da imagem que faziam de<br />
si mesmos. A almejada harmonia<br />
apresentava-se como cumplicidade pois<br />
a bajulação promovia um tipo especial<br />
de troca no convívio social em que<br />
palavras elogiosas eram trocadas por<br />
favores, razão pela qual os príncipes<br />
eram os alvos preferidos deste tipo de<br />
procedimento, no caso em tela, pode-<br />
se bem substituir a relação príncipe/<br />
súdito pela do colonizador/colono. Se,<br />
por um lado, o elogio exacerbado<br />
alimentava o prazer no nível da imagem<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 55-66. jan/dez 1995 - pag.61
não impedia, no entanto, que a<br />
violência expulsa do convívio social, em<br />
nome do estabelecimento de relações<br />
civilizadas, retornasse sob a máscara da<br />
palavra polida e promovesse a quebra<br />
da harmonia, porque mascarava, na<br />
figura do bajulador, a humilhação e<br />
alimentava, no polo oposto, o desejo de<br />
vingança , 2*<br />
Para não incorrer nos riscos de uma<br />
explicação extremamente simplificada<br />
dos conflitos latentes na sociedade<br />
colonial, nos limites deste artigo pode-<br />
se apenas sugerir, como hipótese, serem<br />
as condutas 'veladas' sua forma de<br />
manifestação. De resto, o 'masca-<br />
ramento', o recurso ao 'encoberto' e ao<br />
'segredo' foram marcas da cultura iluminista<br />
no século XVIII, como se pode confirmar,<br />
tomando-se como exemplo os estatutos da<br />
Sociedade Literária, redigidos por Silva<br />
Alvarenga em 1794 25:<br />
1. A boa fé e o segredo de modo a que<br />
ninguém saiba do que se tratou na<br />
sociedade; II. Não deve haver superio<br />
ridade alguma nesta sociedade que será<br />
dirigida igualmente por modo<br />
democrático; 111. O objeto principal será<br />
a filosofia em toda a sua extensão, no<br />
que compreende tudo quanto possa ser<br />
interessante; IV. Mão se trabalhará<br />
somente sobre matérias novas, mas<br />
também sobre as mais sabidas, porque<br />
pag 62. jan/dez 1995<br />
será útil conservar e renovar as idéias<br />
adquiridas e comunicá-las aos que<br />
tiverem falta do seu conhecimento; V.<br />
Aquele que escrever alguma memória e<br />
apresentá-la à sociedade, sem que antes<br />
nem depois comunique a pessoa<br />
alguma, exceto quando a mesma<br />
sociedade julgue que se deve por em<br />
prática, por utilidade pública; VI. Para<br />
ser admitido qualquer novo sócio deve<br />
receber boa informação de sua<br />
probidade, segredo e aplicação, de sorte<br />
que se possa esperar utilidade de sua<br />
companhia; será recebido por<br />
pluralidade de votos; Vil. Deve haver um<br />
secretário anual. Este guardará a chave<br />
do cofre, onde ficarão as memórias e<br />
tudo o mais que pertencer à sociedade,<br />
(grifos nossos).<br />
A referência explícita ao segredo, mais<br />
do que confirmar algumas das<br />
afirmações acima abre novas trilhas à<br />
investigação. O partilhar um segredo<br />
identifica os membros de uma<br />
determinada sociedade e, ipso facto,<br />
aqueles que dela estavam excluídos.<br />
Estabelecem-se assim as fronteiras entre<br />
'dois mundos' imaginários, cuja<br />
existência era fundamental para a<br />
compreensão da dualidade Luzes/<br />
Trevas, Saber/lgnorãncia. Mão se pode<br />
deixar de fazer uma menção, ainda que<br />
breve, a este paradoxo do pensamento
iluminista que náo deixa de reconhecer<br />
uma positividade no 'mal', isto é, na<br />
existência de um mundo a ser<br />
esclarecido e/ou civilizado, legitimidor<br />
do papel dos filósofos iluministas na<br />
promoção do progresso moral da<br />
2 6<br />
humanidade .<br />
O primeiro destes mundos, o das<br />
sociedades secretas, vale dizer, das<br />
academias, das sociedades literárias, ou<br />
das lojas maçônicas 27, identifica-se ao<br />
mundo 'solar', ao mundo do conheci<br />
mento, que 'compreende tudo',<br />
representando a 'filosofia em toda sua<br />
extensão'. Este é o mundo que reúne<br />
aqueles que postulam uma outra atitude<br />
diante do conhecimento. O documento<br />
é explícito na consideração do conheci<br />
mento como 'útil' e de 'utilidade<br />
pública' e, neste ponto em particular,<br />
deixando transparecer, com clareza, sua<br />
concepção pragmática, traço caracterís<br />
tico do clima de opinião do Iluminismo.<br />
Postular que a verdade e o mundo náo<br />
são dados e sim 'adquiridos' e que o<br />
conhecimento deveria ter uma aplicação<br />
prática indicam um afastamento do<br />
pensamento oriundo da tradição<br />
escolástica e, por extensão, a<br />
valorização do ideais enciclopedistas.<br />
Tendo-se como referência os propósitos<br />
especificados por Silva Alvarenga, os<br />
'letrados' da sociedade colonial<br />
pautavam-se por concepções típicas da<br />
identificação do par conhecimento/<br />
poder, náo se diferenciando muito das<br />
sociedades eruditas e academias reais<br />
fundadas nas sociedades européias "em<br />
busca de meios que lhes permitissem<br />
capturar a natureza e forçá-la a revelar<br />
seus segredos". 28 Seja como elemento<br />
de 'proteção' em relação ao mundo<br />
exterior 2 9, seja como razão impul-<br />
sionadora do conhecimento do mundo<br />
natural, a noção de secreto parece cons<br />
tituir-se em cerne destes movimentos.<br />
Foi esta irmandade criada em torno do<br />
secreto que, ao lado da liberdade de<br />
pensar vivenciada nestas agremiações,<br />
propiciou uma nova experiência para os<br />
membros destas "sociedades 'de<br />
idéias". 3 0 A denominação deriva da<br />
ênfase ao livre pensar, ao livre curso às<br />
especulações que, acreditava-se,<br />
satisfaziam às necessidades do espírito<br />
e promoveriam o 'coroamento triunfante<br />
nos templos da fama e da sabedoria'.<br />
Esta nova sociabilidade, vivenciada nas<br />
sessões e encontros dos acadêmicos -<br />
que colocavam lado a lado, o "bem<br />
nascido Qarçáo, o modesto Diniz e o<br />
cabelereiro Quita" 3 1 - propiciaram<br />
formas típicas da experiência de<br />
igualdade na sociedade colonial, em<br />
que pouco importavam as diferen<br />
ciações oriundas de riqueza ou dos<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1-2. p. 53-66. jan/dez 1995 - pag 63
A C E<br />
'cabedais'. Os membros de uma acade- valorizador das belles lettres. Se alcan-<br />
mia igualavam-se pela identidade de<br />
propósitos e na condição de livres<br />
0<br />
pensadores.<br />
Esta teria sido a ambiência em que os<br />
'letrados' da sociedade colonial acalen<br />
taram os sonhos de 'concórdia, uniáo e<br />
constância', e em que se expandiu um<br />
estilo tipicamente civilizado, polido e<br />
çaram os templos da glória, ou se<br />
promoveram a harmonia e felicidade é<br />
outra história, mas que (re)criaram a<br />
noção de prestígio, parece<br />
inquestionável.<br />
Pesquisa desenvolvida com apoio do<br />
CNPq.<br />
O T A S<br />
1. RE1LL, Peter Hanns. The german enlightenment and the rise of historicism. Berkeley<br />
University of Califórnia Press, 1975.<br />
2. BECKER, Carl. The heavenly city of the eighteenth century philosophers. New Maven<br />
ôt London: Yale University Press, 1932.<br />
3. KOSELLECK, Reinhart. Le règne de la critique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979.<br />
4. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A cor eloqüente. São Paulo: Siciliano, 1994.<br />
5. KOSELLECK, Reinhart, op. cit. e DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />
6. STAROBINSKY, Jean. L'invention de la liberte. Qenève: Albert Skira, 1987.<br />
7. Principais academias fundadas no século XVIII: Academia Brasílica dos Esquecidos<br />
(Bahia), Academia dos Felizes (Rio de Janeiro, 1736), Academia dos Seletos (Rio<br />
de Janeiro, 1752), Academia dos Renascidos (Bahia, 1758), Academia Científica<br />
do Rio de Janeiro (1881) e Sociedade Literária (Rio de Janeiro, 1794).<br />
8. PINHEIRO, cõnego J.C. Fernandes. "A Academia Brasílica dos Esquecidos. Estudo<br />
histórico e literário". In: Revista do IfíQB, 1868, vol. XXXI, pp.5-29.<br />
9. LEOPOLDO, visconde S. 'Programa histórico -. In: Revista do IfIQB. TI, 1839, pp.61-63.<br />
10. LAMEOO, Alberto. A Academia Brasílica dos Renascidos. Sua fundação e trabalhos<br />
inéditos. Paris: L'Editions d'Art, 1923.<br />
1 1. LAMEGO, Alberto, op.cit., pp.24 e 25.<br />
12. Idem, ibidem, p.26.<br />
13. CASTELO, José Aderaldo. O movimento academicista no Brasil. São Paulo:<br />
Conselho Estadual de Cultura, 1969, p. 130, passim.<br />
14. DU BOS, Abbé. Refletions critiques sur la poésie et la peinture, 1718, apud<br />
STAROBINSKY, Jean, op.cit., p. 10.<br />
pag 64. jan/dez 1995
R " V O<br />
15. Veja-se como exemplo a polêmica travada na Academia dos Renascidos em torno<br />
da dissertação do acadêmico José de Oliveira Bessa, intitulada 'Dos primeiros<br />
descobridores e povoadores da cidade da Bahia', que foi impugnada por outra,<br />
intitulada 'Apologia Cronológica em que se declara qual foi o primeiro capitão<br />
português que entrou pela barra da Bahia e qual foi o primeiro povoador que nela<br />
assentou casa e exerceu algum domínio', e que, segundo seu autor, teria gerado<br />
"uma controvérsia assás debatida", o que o levou a rever as afirmações de meia<br />
dúzia de crônicas sobre o assunto. LAMEGO, Alberto, op. cit., pp. 68-73.<br />
16. CAVALCAMTE, Berenice. "A ilustração brasileira: a leitura colonial' dos filósofos<br />
iluministas". In: Letterature D'America. Revista trimestrale. Roma: Bulzoni Editore.<br />
Anno XIII, n s 51, 1993, pp. 53-71.<br />
17. JÚBILOS DA AMÉRICA. Coleção das obras da Academia dos Seletos. Lisboa: oficina<br />
do dr. Manuel Alvares Solano, 1754.<br />
18. A titulo de exemplo pode ser citado o soneto: "Que importa, ilustre Freire, que<br />
brioso/ Reluzes, que teu nome esclarecido/ A força do buril seja esculpido/ No<br />
tempo, que edificas suntuoso! / Que importa, que pretendas cuidadoso/ Evitar o<br />
louvor, que te há devido, / Por querer que só Deus seja aplaudido/ Esse obséquio.<br />
Senhor, essa piedade/ Com que negas ao nome tanta glória,/ As raias te elevou<br />
da eternidade/ Pois ação tão ilustre e meritória/ Fará que em toda a idade/ Te<br />
eternizes nos bronzes da memória".<br />
19. STAROBINSKl, Jean. "Le mot civilization". In: Le remède dans le mal. Critique et<br />
légitimation de 1'artiflce à láge des Lumières. Paris: Gallimard, 1989.<br />
20. STAROBINSKY, Jean. "Luzes e poder em A flauta mágica". In: 1789. Os emblemas<br />
da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 132-153. Neste capitulo, o<br />
autor analisa a ópera de Mozart focalizando o embate entre Luzes e Trevas como<br />
a disputa pelo poder, encerrada, como se sabe, pela vitória do par Pamino/Tamina,<br />
que depois de vencerem todas as provas a que são submetidos, são recebidos no<br />
Templo do Sol, significando a conquista simultânea da felicidade e do saber. A ópera<br />
'lida' como maçônica, ainda sugere outra interpretação possível para as academias, como<br />
se verá em parte subsequente deste texto.<br />
21. KOSELLECK, Reinhart, op. cit., p. 147.<br />
22. DIDEROT e DALEMBERT. Enciclopédia ou dicionário racionado das ciências, das artes e<br />
dos ofícios, por uma sociedade de letrados. São Paulo: Editora UNESP, 1989.<br />
23. Ver nota 19.<br />
24. Esta hipótese toma emprestada a interpretação da fábula de La Fontaine, "A raposa<br />
e as uvas", feita por Jean Starobinsky no capítulo "Sur la flatteria", no livro Le<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 53-66. jan/dez 1993 • pag.65
emède dans le mal, pp. 61-91.<br />
25. AZEVEDO, Manuel Duarte Pereira. "Sociedades fundadas no Brasil". In: Revista do<br />
IHGB. Tomo XLV11I, p. 268. *<br />
26. MANUEL, E. Frank & MANUEL, P. Eritzie. Utopian thought in the western world.<br />
Cambridge: Belknap Press of Harvard University, 1979.<br />
27. Ver nota 19.<br />
28. ARENDT, liannah. A condição humana. Rio de Janeiro: forense Universitária, 1981,<br />
p. 291.<br />
29. COCH1N, Augustin. Sociétés et Démocratie. Paris: Librairie Plon, s/d.<br />
30. Idem, ibidem.<br />
31. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. Belo<br />
Horizonte: Itatiaia, 1981.<br />
A B S T R A C T<br />
The article discusses in what measure the 'literati' of colonial society in the academies<br />
which were founded during 18th century shared the climate of opinion which<br />
characterized the european intellectual movement of the period and developed the<br />
same style. that is, specific forms of sociability which sought civility and politeness.<br />
In the search for a happier and more harmonious society, the principies with which<br />
these men of letters intended to promote the progress of the Enlightenment will be<br />
analyzed through part of the documentation they produced.<br />
R É S U M É<br />
V article discute dans quelle mesure 'les lettrés' de la société coloniale, reunis dans<br />
les academies fondées au XVllIè siècle, partageaient la mêmepensée qui caractérisait<br />
le mouvement intellectuel européen de cette période et ont développé le méme style,<br />
c' est-à-dire, des formes spécifiques de sociabilité qui cherchaient la civilité et la<br />
politesse. Avec une partie de la documentation produite par ces hommes de lettres,<br />
sont analises les príncipes avec lesquels ils ont pretendu promouvoir le progrès des<br />
Lumières, à la recherche dune société plus heureuse et plus harmoniouse.<br />
pag.66. jan/dez 1995
Marcus Alexandre Moita<br />
Professor da UERJ. Chefe da Divisão de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> da<br />
Cidade do Rio de Janeiro. Doutorando em História - UFRJ.<br />
Servidão e dúvidas<br />
o leitor da História, do Futuro<br />
Que historiador há ou pode haver, por<br />
mais diligente investigador que seja<br />
dos sucessos presentes ou passados,<br />
que não escreva por informações? E<br />
que informações há de haver que não<br />
vão envoltas em muitos erros, ou da<br />
ignorância, ou da malícia? Que historiador<br />
houve de tão limpo coração e tão inteiro<br />
amador da verdade, que náo inclinasse o<br />
respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o<br />
amor, ou da sua, ou do seu estranho<br />
príncipe? Todas as penas nasceram em<br />
carne e sangue, e todos na tinta de escrever<br />
misturam as cores do seu afeto.'<br />
^Vara chegar a esta passagem, \<br />
o<br />
•—^leitor havia percorrido perco quase<br />
-ü. cento e cinquent íquenta páginas.<br />
Estava agora entre dois títulos: 'Verdade<br />
desta História' e 'Resposta a uma<br />
de Antônio Vieira<br />
Objeção, mostra-se que o melhor<br />
comentador das profecias é o<br />
tempo', no início do texto, havia<br />
se deparado com a gravidade da<br />
leitura de Antônio Vieira sobre a<br />
alma humana, 'quão própria é da<br />
curiosidade humana sua matéria'. 2 E<br />
diante do julgamento mordaz do jesufta,<br />
e de seu corolário inevitável - a remissão<br />
aos neo-arcaismos de nossa época -, não<br />
fora capaz de resistir ao esboço de um<br />
sorriso:<br />
... não havia coisa tão baixa e tão<br />
miúda por onde os homens não<br />
imaginassem que podiam alcançar<br />
aquele segredo que Deus não quis que<br />
eles soubessem: o ranger da porta, o<br />
estalar do vidro, o cintilar da candeia,<br />
o topar do pé, o sacudir dos sapatos.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1-2. p. 67*2. jan/dez 1995 - pag 67
A C E<br />
tudo notavam como avisos da<br />
providência e temiam como presságios<br />
do futuro. Talo da cegueira e desatino<br />
dos tempos passados, por não<br />
envergonhar a nobreza da nossa fé<br />
com a supertiçào dos presentes. 3<br />
0 anacronismo de que poderíamos ser<br />
acusados é perdoável, uma vez que se<br />
relaciona com a própria substância<br />
textual. O tempo é como o mundo,<br />
dividido em dois hemisférios, um<br />
visível-superior, o passado, e um<br />
invisível-inferior, o futuro. Vive-se indo,<br />
onde o pretérito termina e o porvir se<br />
inicia. O que resta são os horizontes do<br />
tempo, instantes presentes como nos<br />
diz Vieira. 4 É esta sensação espacial do<br />
tempo como 'superfície temporal' que<br />
subordina o leitor. Mais servo do que<br />
nunca dos malabarismos literários do<br />
jesuíta. Ma ânsia de ver o tempo<br />
realizado como matéria, afastando<br />
assim a angústia moderna, o leitor não<br />
duvida, e toma a ilusão por realidade.<br />
E o próprio Vieira é quem se encarrega<br />
de impedir o leitor de descobrir em suas<br />
linhas algo para além do que foi dito.<br />
Parece não haver escolha: se a dúvida<br />
persiste em demasia, cabe qualificar o<br />
autor como paranóico, ou outros<br />
equivalentes psicanalíticos; no caso de<br />
se manter exclusivamente servil, acaba<br />
por endossar a sua caracterização<br />
enquanto místico. Os mais refinados,<br />
dotados de um tanto mais de sutileza,<br />
preferem afirmar que a História do<br />
Futuro é uma utopia. Em qualquer dos<br />
pag 68. jan/dez 1995<br />
casos o paradigma é ainda a certeza<br />
positiva de que a linguagem está pari<br />
passu com o real.<br />
Descobrir e encobrir, estes são os<br />
verbos da graça em Antônio Vieira. Sob<br />
o domínio destes, as linhas escritas<br />
passam à vista do leitor, ansioso em<br />
interpretar, em dizer o que o escrito é.<br />
A interpretação fundada no 'é',<br />
entretanto, avaliza a resposta antes que<br />
ela compareça, permitindo a quem lê<br />
um domínio empírico sobre o texto.<br />
Poderíamos arriscar um paralelo<br />
estranho e atual: esse 'é', essa terceira<br />
pessoa do presente do indicativo,<br />
assemelha-se à terceirização da<br />
administração moderna. Dê a outros<br />
uma parte da sua responsabilidade<br />
pretérita. Se isso é elogiável no plano<br />
da gerência, não parece ser o caso no<br />
que se refere à leitura. A<br />
responsabilidade do leitor não se<br />
encontra na filiação teórica. Cabe à<br />
atividade da leitura impor a necessidade<br />
de se querer algo diferente, que não se<br />
encontra naquilo que já se sabia,<br />
mudando os propósitos e a vida<br />
anteriormente aceitos. Fora dessa tarefa<br />
o 'é' revela-se como privatização da<br />
existência, e o outro, o texto, só serve<br />
para alimentar esse projeto. O leitor se<br />
transforma em juiz a proferir sentenças,<br />
a perder de vista a imagem do sábio em<br />
permanente dúvida sobre o seu saber.<br />
É certo que em toda interpretação<br />
sobrevive uma certa defesa psíquica.<br />
Embora também nos pareça quase óbvio
o fato de estarmos tanto mais presentes<br />
na leitura quanto mais nos perdemos<br />
em analogias e anacronismos. Manter-<br />
se nesse confortável perder-se, porém,<br />
em nada acrescenta à obra lida. Se o 'é'<br />
pode identificar-se com uma leitura<br />
medíocre e passiva, a sua ruptura deve<br />
V o<br />
se processar através do verbo ser, agora<br />
tomado no pretérito imperfeito do subjuntivo:<br />
'fosse' forma idêntica ao mesmo tempo<br />
verbal do verbo ir. Dessa impressionante<br />
vinculação entre a existência e o<br />
movimento neste tempo quimérico e<br />
condicional, surge a posição de simulta-<br />
H I S T O R i Â<br />
D O<br />
FUTURO.<br />
L I V R O<br />
ANTEPRIMEYRO<br />
PROLOGOMENO A TODA A HISTOria<br />
do Faturo, cm que fe declara o fim, & fc<br />
provaó os fundamentos delia.<br />
Matéria, Verdade, & Utilidades da Hifioria<br />
dê Faturo.<br />
ESCRITO PELO PADRE<br />
ANTÔNIO VIEYR<br />
da Companhia dc JESUS, Pregador<br />
dc S. Magcftadc.<br />
LISBOA OCCIDENTAL»<br />
MtOficina
A C E<br />
neidade de subordinação e dúvida.<br />
Diante do 'é' o texto não consegue<br />
oferecer resistência, apaga-se. A<br />
interpretação subjuntiva, por mais<br />
paradoxal que pareça, alcança um grau<br />
mais elevado de realidade, no instante<br />
em que admite no texto um forte<br />
componente de resistência, a vontade<br />
de não se comunicar. Ao tentar<br />
compreendê-lo, o leitor vai descobrindo<br />
o texto e encobrindo o ser que<br />
gostaríamos que ele fosse. A leitura,<br />
agora, se encarrega de descobrir o<br />
encoberto, que ao ser descoberto<br />
necessita novamente se encobrir para<br />
garantir o seu segredo: a possibilidade<br />
ou impossibilidade da leitura, que são,<br />
enfim, a mesma coisa. Um ser e ir<br />
infindável, que obtém fim na medida em<br />
que imaginamos o 'fosse' do futuro.<br />
Os escritos de Vieira, ceifados por uma<br />
notável preocupação estética, fogem da<br />
interpretação, essa marca da moder<br />
nidade. Anseiam por um leitor ideal,<br />
que jamais existirá por completo, pois,<br />
tal qual o 'destino', nunca se concluirá.<br />
Essa incompletude humana, que num<br />
plano mais imediato poderíamos<br />
relacionar com o próprio pensamento<br />
religioso do pecado, manifesta-se como<br />
essência de toda ação mundana.<br />
Incluindo aí a criação literária. Talvez a<br />
história do Futuro seja a sua obra mais<br />
decididamente incompleta, sensação<br />
que o leitor tem apenas ao folhear esta<br />
peça de um quase-teatro. O excesso de<br />
personagens - profetas bíblicos e<br />
mundanos, filósofos, santos, reis.<br />
pag. 70. jan/dez 1995<br />
imperadores, heróis míticos ou reais,<br />
teólogos e historiadores antigos e<br />
modernos, povos, nações, estados,<br />
cidades e mares - faz com que o enredo<br />
não se realize por falta de um palco tão<br />
amplo. Mesmo sabendo que este é 'o<br />
teatro do mundo', tal como o define<br />
Vieira, o único palco capaz de abrigar<br />
tantas histórias, tempos e mundos seria<br />
a eternidade. Disso resulta que apenas<br />
um adjetivo serve tanto para o mundo,<br />
como para o homem, para a profecia,<br />
para a História, para o tempo, para o<br />
'destino': incompleto. Como então<br />
exigir de Vieira um fim, se é algo que só<br />
existirá no dia do juízo e, então, já não será<br />
mais término e sim julgamento pretérito.<br />
Alguns leitores poderão afirmar que<br />
esse escrito se manteve incompleto,<br />
porque Vieira fora derrotado em seu<br />
desejo de Quinto Império pela<br />
Inquisição. E ainda diriam que, após tal<br />
fato, o delírio, sinônimo da derrota, se<br />
apoderou cada vez mais de sua alma,<br />
impedindo-o de dar cabo de sua história<br />
do Futuro. São explicações possíveis,<br />
mas incapazes de dar conta dessa<br />
angustiante incompletude substantiva<br />
de sua poética. Há em Vieira, e mais<br />
particularmente nesta obra analisada,<br />
uma certa retração, que aproxima e<br />
afasta o leitor, que o torna íntimo e<br />
estranho, resistindo à tentação do<br />
diálogo mudo. Só pode existir diálogo<br />
com resistência, com a confissão de sua<br />
impossibilidade. O tom confessional<br />
dos escritos de Vieira dispensa a<br />
posição intimista que caracteriza as
R V O<br />
confissões modernas. Ao contrário, nos<br />
fala do escrúpulo do erro de que sabe<br />
ter cometido, pois admite o inconfesso.<br />
O autor vem nos apresentar aquilo que<br />
ele sabe existir tão somente por direito,<br />
e não de fato, o destino: 'esta nova e<br />
nunca ouvida História'.<br />
Seria esta mais uma das belas ironias<br />
de Antônio Vieira? Talvez pudéssemos<br />
enxergar nesta 'nova e nunca ouvida<br />
História' uma exaltação alegórica da<br />
vida, o que eqüivale à sua mortificaçáo:<br />
Sós e solitariamente entramos nela (na<br />
Profecia) (mais ainda que Noé no meio<br />
do dilúvio), sem companheiro, sem<br />
guia. sem estrela nem farol, sem<br />
exemplar nem exemplo.O mar é<br />
imenso, as ondas confusas, as nuvens<br />
espessas, a noite escuríssima;<br />
esperamos no Pai dos Lumes (a cuja a<br />
glória e de seu filho servimos), tirará a<br />
salvamento a frágil barquinha: ela com<br />
maior ventura que Argos, e nós com<br />
maior que Tífis. 5<br />
A citação da mitologia exerce uma<br />
atração quase irresistível. Quem não<br />
gostaria de correr ao Dicionário<br />
mitológico greco-romano em busca de<br />
alusões simbólicas? O texto, porém,<br />
impõe uma tarefa um pouco mais árdua,<br />
e certamente mais lenta: a fruição das<br />
frases. A metáfora náutica da citação<br />
mitológica deixa de ser apenas uma<br />
referência para ganhar o estatuto de<br />
cerne da construção textual. O ritmo<br />
sequenciado é uma tônica: na insistente<br />
imagem 'sós e solitariamente' do início.<br />
no compasso ondeado de 'sem/nem', na<br />
ressonância de raiz 'exemplar/exemplo',<br />
na sonoridade recorrente de 'imenso',<br />
'ondas confusas', 'nuvens', 'noite', no<br />
uso de preposições e artigos idênticos<br />
como em 'a cuja a glória' ou 'a salva<br />
mento a frágil barquinha', ou ainda na<br />
repetição maior/maior', da última sentença.<br />
Após esses recursos literários, a<br />
sensação predominante é a do<br />
movimento do mar. Sensação<br />
preposicional, pois manifesta-se por<br />
relação, estabelecendo proximidade<br />
entre os movimentos do mar, da vida e<br />
da profecia. Curiosa e significa<br />
tivamente, essa sensação de movimento<br />
não foi estabelecida a partir dos verbos.<br />
Ao contrário, nesta passagem os verbos<br />
são frágeis: 'entramos', 'esperamos',<br />
'servimos', ecos graves do ritmo<br />
ondulante, apenas cortado pela certeza<br />
aguda do 'mar é' e a força futura da ação<br />
divina, tirará'. O sentido do texto é<br />
maior do que os verbos podem<br />
comportar. Só podemos alcançá-lo por<br />
aproximação, nos relacionando com os<br />
seus derivativos. O movimento aí é a<br />
própria criação da vida, cuja<br />
pressuposiçào é a fluidez e mobilidade<br />
do mar: "e o Espírito de Deus movia-se<br />
sobre as águas" (Gênesis, 1-2).<br />
Em cada frase, "(mais ainda que Noé no<br />
meio do dilúvio)" e "(a cuja glória e de<br />
seu Filho servimos)", os parênteses<br />
assumem o papel de espelhos côncavos<br />
da memória histórica da cristandade.<br />
Somos nós leitores que nos vemos<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n- 1-2. p. 67-82. jan/dez I995 pag.71
A C E<br />
refletidos nesses parênteses. Somos<br />
nós que aparecemos comparados a Moé<br />
ou servindo a Cristo. Mas a nossa<br />
imagem é deformada pelos movimentos<br />
de aproximação e afastamento<br />
produzidos pelo recurso às expressões<br />
'mais ainda que' e 'a glória de'. A<br />
primeira dá ao texto o tom de solidão<br />
profética, aproximando-nos do espelho<br />
e nos suprindo da necessária arrogância<br />
da ação cristã. A segunda afasta-nos de<br />
nossa própria imagem e nos submete à<br />
servidão divina. Tudo funciona como se<br />
Vieira, por meio deste artifício, fosse<br />
capaz de oferecer ao leitor uma textura<br />
vitrea sobre a qual interagem a<br />
profundidade mnemônica da história<br />
cristã e a superfície da atualidade.<br />
As frases de Antônio Vieira sempre<br />
lembram ao leitor outras frases<br />
anteriormente lidas; qualquer de suas<br />
imagens possui algo de familiar com<br />
célebres passagens bíblicas e com<br />
máximas mundanas. Nesse estranho<br />
contágio. Vieira comunica à atualidade<br />
do leitor problemas insolúveis da<br />
própria existência. Os especialistas<br />
admitem que seus recursos advém de<br />
um patrimônio comum a outros autores<br />
de época. Apenas náo sublinham<br />
suficientemente a grande singularidade<br />
da obra de Viera, cuja percepção o<br />
próprio jesuíta manifesta através do<br />
título escolhido, capaz de provocar um<br />
sentido inesperado na História: perdurar no<br />
tempo é náo pertencer ao próprio tempo.<br />
Do diálogo da eternidade com o tempo<br />
provém a sustentação da cristandade e<br />
pag 72. jan/dez 1995<br />
da exata necessidade de História.<br />
Conflito que é corporificado pela<br />
convivência do 'dom' e do 'roubo' em<br />
sua escrita. Como cristão precisa<br />
usurpar da eternidade a permanência,<br />
dando ao tempo o complemento do qual<br />
carece: parar. Mas Vieira duvida<br />
suficientemente do mundo e, portanto,<br />
precisa roubar da verdade aceita aquilo<br />
que ela esconde. E diante da fácil rotina<br />
em se dizer cristào, faz-se mundano.<br />
Porém, aquilo que descobre é o que nào<br />
esperava e para compreendê-lo, deve<br />
reconhecer-se enquanto detentor de um<br />
dom, ao qual serve. Desta forma,<br />
encobre o furto à verdade: a fé que o<br />
guia no mundo é insustentável no<br />
próprio mundo.<br />
Antônio Vieira sempre aguardou da<br />
leitura de seus textos, que os homens<br />
se colocassem em 'ventura' e 'ousadia',<br />
forma de expectação da alma que<br />
antecipa o futuro para tê-lo face a face.<br />
Seu sentido de profecia eqüivale à<br />
imanència da providência, maneira com<br />
a qual a vontade pode contar para "ir<br />
por diante". 6 Seguir impedindo a<br />
facilidade dos símbolos das histórias,<br />
necessitando mortificá-los, para colocar<br />
uma pedra a mais nos muros protetores<br />
da antecámera da metafísica. Lugar de<br />
onde os homens podem refletir sobre a<br />
evidência: solitariamente, sós, a<br />
caminharem sobre um chão fluido, a<br />
acreditarem num lume que o mundo dá<br />
insuficiente prova de existir, mas que<br />
sem ele nào há verdadeiramente mundo.<br />
A leitura da História do Futuro
manifesta-se como esperança, de<br />
Portugal, da Colônia, ou mesmo de<br />
qualquer homem que habita os mundos<br />
periféricos: "ainda que seja muito<br />
segura, muito firme e muito fundada a<br />
esperança, é um tormento desesperado<br />
o esperar". 7<br />
O leitor demora-se nessa frase. Por tudo<br />
V o<br />
aquilo que nos diz de tão próximo, e de<br />
tão inacessível. A concessão ao futuro<br />
surge de maneira emocional no verbo<br />
ser no presente do subjuntivo ('seja').<br />
Sensação que se estende pela repetição<br />
do advérbio 'muito'. Os adjetivos<br />
'segura', 'firme' e 'fundada', parecem<br />
querer fugir do substantivo 'esperança'<br />
Vieira, Antônio (padre). Cartas seletas do padre Antônio Vieira. Paris: em casa de Va. J.P.<br />
Aillaud, Monlon e Ca., 1856.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 67-82. jan/dez 1995 • pag 73
A C E<br />
e são amarrados por meio deste<br />
advérbio. A primeira frase aguarda o<br />
retorno da oração seguinte sobre si. As<br />
experiências atormentam, mesmo que<br />
esteja escrito o que vai acontecer.<br />
Desesperados os homens aceitam<br />
apenas dois caminhos: ou descrêem da<br />
salvação e o mundo é a pura expressão<br />
trágica, ou esperam o desenlace da<br />
'comédia'. Ma segunda oração invertida,<br />
"é um tormento desesperado o esperar",<br />
os termos se arruinam mutuamente,<br />
criando um vínculo estreito entre a<br />
destruição e a geração. Onde o todo da<br />
frase termina é ali que existe início.<br />
Querer esse acontecimento é se fazer<br />
digno daquilo que acontece, ser filho do<br />
acontecido, e por aí renascer.<br />
Essa experiência, contudo, não basta<br />
para Vieira. Equilibrando o participio<br />
verbal e o adjetivo 'desesperado',<br />
impulsiona o afeto e o faz deter-se na<br />
substância verbal do 'esperar'. Esta ação<br />
apresenta-se como limite do tormento<br />
e do desespero na medida em que lhes<br />
concede novo sentido: a coragem de<br />
experimentar a tormenta da fé.<br />
Enquanto a esperança ainda pode ser<br />
vivenciada como algo razoavelmente<br />
sólido, embora um tanto fugidio, o<br />
esperar é uma ação aterradoramente<br />
abstrata. Sem referências passadas ou<br />
futuras, esperamos. Simplesmente. E<br />
para tal precisamos desenvolver uma<br />
dupla qualidade: a paciência corajosa.<br />
Essa matriz é talhada por Vieira usando<br />
os sentidos da esperança provenientes<br />
do Velho e do novo Testamento. Ma<br />
pag. 74, jan/dez 1995<br />
tradição velho-testamentária, o sentido<br />
relaciona certeza e incerteza. A<br />
segurança do esperar independe de<br />
qualquer força humana. A esperança é<br />
a busca de refúgio, de um lugar para se<br />
por a salvo dos homens e do próprio<br />
mundo. Dessa forma, a coragem é o seu<br />
contraponto, que do refúgio lança-se ao<br />
mundo para aguardar o momento de<br />
agir. A atitude justa, na medida da<br />
coragem, busca atingir o estado supra-<br />
humano do permanecer. Mas o que<br />
permanece não é uma causa, mas o<br />
efeito invisível dessa fortaleza da<br />
espera, cujos pilares são a confiança e<br />
a fidelidade em crer. Esses suportes,<br />
entretanto, estão apoiados em um<br />
terreno essencialmente débil, pois<br />
formado pela incerteza.<br />
Vieira, se pode aceitar essa associação<br />
de esperança e coragem, não pode<br />
admitir a existência desta incerteza.<br />
Pois, se assim o fizesse, estaria<br />
confessando que aquilo que o sustenta,<br />
a fé, é insustentável no mundo. Daí<br />
buscar o sentido do Novo Testamento.<br />
Neste a esperança articula-se, num<br />
primeiro momento, com prever, temer<br />
e presumir. Assume máxima<br />
significãncia em São Paulo, a partir da<br />
expressão "fé, esperança e amor"<br />
(Coríntios 13, 13). Na realidade, a<br />
esperança, colocada entre a fé e o amor,<br />
apresenta-se como passagem entre céu<br />
e terra. Diante do pecado, essência<br />
humana, a fé absoluta cede lugar a seu<br />
correlato mundano: a esperança.<br />
Antídoto à vergonha que se sente após
pecar, a esperança recoloca o homem<br />
na direção da fé, além de capacitá-lo à<br />
ação no mundo: o amor.<br />
Vieira não assiste àquelas definições<br />
passivamente. Amor, temor, glorifi-<br />
cação, como atitudes da alma cristã,<br />
tradicionalmente aparecem relacio<br />
nados à escatologia. O século XVII não<br />
pode mais alimentar o gosto esca-<br />
tológico. Seu simbolismo passeia como<br />
forma-limite do trágico nesse período<br />
histórico. A questão da vida não se<br />
apoia mais no transitório contraposto ao<br />
eterno, pois a transitoriedade é o assim<br />
deve ser. Sem escatologia, resta ao<br />
homem a naturalidade histórica, esse<br />
trágico que recita sua face oculta, a<br />
comédia. Nos instantes mais trágicos da<br />
vida, é possível adivinhar um sorriso<br />
mórbido. Esse sorriso é motivado, em<br />
última análise, pela certeza do sorriso<br />
final da morte. No barroco, a alegoria<br />
concede cidadania à comédia, pela<br />
mortificação aproxima tragédia e<br />
comédia, lágrimas e risos.<br />
A paciência corajosa faz fronteira, de um<br />
lado, com a morte sorridente e, de<br />
outro, com a vida em lágrimas. Para<br />
Vieira a esperança não podia ser mais<br />
uma confiança transcendental, pois o<br />
acesso ao céu está interrompido pela<br />
culpa histórica dos homens. Também<br />
inadmissível é a passividade no esperar,<br />
em função do tormento que lhe<br />
encobre, e que era fundamentalmente<br />
o erro que Vieira acusava nos judeus.<br />
Então, a matriz expressa o paroxismo<br />
da esperança, ou seja, a única forma<br />
V o<br />
cristã de estar no mundo. Paciência e<br />
coragem servem para limitar a<br />
esperança, para dar-lhe uma forma<br />
simultaneamente divina e mundana. No<br />
entanto, esse mundanismo precisa<br />
reconhecer a superioridade do domínio<br />
transcendental, o que impõe aos<br />
cristãos uma vivência periférica do<br />
próprio mundo. O amor ao mundo só<br />
pode parcialmente se confessar.<br />
Assim sendo, urge aos mundos<br />
periféricos e laterais da esperança uma<br />
paciência futura para ler todas as<br />
Histórias e a coragem ancorada no<br />
passado para escrever a 'nova e nunca<br />
ouvida História'. Que não pode se nutrir<br />
servilmente da dúvida como Descartes,<br />
e nem manter a ingênua posição de<br />
excluí-la ao servir à fé. Dar conta dessa<br />
tarefa de Hércules ou Davi é o seu<br />
projeto, necessitando, para isso,<br />
desafiar o que se sabe, arremessando<br />
um saber do que ainda náo se conhece.<br />
E, verdadeiramente, que se os bens da<br />
ciência se colhem e conhecem melhor<br />
pelos males da ignorância, achará<br />
facilmente que discorrer pelos<br />
sucessos do mundo, desde seu<br />
princípio até hoje, que foram muito<br />
menos os danos em que caíram os<br />
homens por lhes faltar a noticia do<br />
passado, que aqueles que cegamente se<br />
precipitam pela ignorância do futuro.*<br />
Segundo a ordem do tempo dessa<br />
passagem, há uma combinação entre o<br />
eterno e o agora. O acontecimento da<br />
ignorância valora, por medidas distintas.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2, p. 67-82, Jan/dez 1995-pag.75
o passado e o futuro. Pode-se até ignorar<br />
algo desse 'visivel-superior', o passado,<br />
mas improvável fica o mundo sem valor<br />
de futuro, esse 'invisível-inferior'. Ma<br />
leitura de Vieira nossos olhos fixam-se<br />
no horizonte, pois aí se encontram<br />
aquilo que ainda não existe e o que já<br />
deixou de ser. Morte e nascimento<br />
conjugam-se nessa forma de olhar,<br />
passando a ser de difícil distinção. O<br />
efeito causai torna-se inexorável; se<br />
houver desvio do horizonte, ocorre a<br />
cegueira e abre-se o abismo do porvir.<br />
Vieira propõe-se a espiar a morte de<br />
frente, como o homem renascentista,<br />
alicerçando-a, contudo, na ponte<br />
nascida da culpa necessária de matriz<br />
barroca, a História.<br />
O leitor, ao terminar aquela passagem,<br />
fica enebriado pela ressonância das<br />
terminações dos advérbios de modo,<br />
'verdadeiramente', 'facilmente', 'cega<br />
mente'. Com este artifício Vieira libera<br />
os verbos da função sintática de arcar<br />
com a ação. Os primeiros verbos,<br />
'colhem' e 'conhecem', compassam a<br />
rima no seu limite. A estridente<br />
mensagem do futuro do presente<br />
achará' é rebaixada através do advérbio<br />
'facilmente', apresentando um agora<br />
permanente no mundo, "discorrer pelos<br />
sucessos do mundo, desde seu<br />
princípio até hoje".<br />
pag. 76, jan/dez 1995<br />
ria frase seguinte, a primeira invenção<br />
de circunstância é construída pela<br />
articulação do 'que' e 'em que' com os<br />
verbos no pretérito perfeito, 'foram' e<br />
'caíram', materializados no infinitivo<br />
'faltar'. A última frase, porém, perde o<br />
caráter de circunstância para tornar-se<br />
causai. Sua forma reforça a<br />
circunstância do 'que' por uma causa<br />
'que' adverbialmente se precipita no<br />
fundo escuro da ignorância do futuro.<br />
O passado é um 'que' ou algo 'em que'<br />
se acredita, porém, o porvir é aquele<br />
que não permite o 'se' no acreditar.<br />
Tomemos agora a passagem no seu<br />
conjunto, destacando sobretudo a<br />
importância dada por Vieira aos<br />
advérbios de modo - 'verdadeiramente',<br />
'facilmente' e 'cegamente'. A insistência<br />
na terminação 'mente', ressaltada pela<br />
constante remissão à sonoridade 'em',<br />
parece restaurar o sentido inconfesso da<br />
idéia cristã do pecado como marca do<br />
comportamento humano. Prevalece a<br />
consideração de eterna atualidade sobre<br />
o modo dos homens. O que foi escrito<br />
nos serve tão bem que náo tínhamos a<br />
possibilidade de duvidar do assunto<br />
tratado. A única coisa disponível para<br />
os homens não manterem o passado<br />
sobre si, nos ensina Vieira, é o ideal<br />
onírico de projetar a crença, pois sendo<br />
de matriz fantástica assemelha-se ao
mentir, mas sem essa fantasia de futuro<br />
não há realmente crer. As histórias,<br />
mesmo quando "em grande parte foram<br />
tiradas da fonte da mentira..." 9, têm uma<br />
substância de idealidade que lhes<br />
permite deixar de ser pretérito para ser<br />
antecipação de futuro.<br />
A ignorância é indeterminável, pois a<br />
sua manifestação só pode ser notada<br />
quando acontece. Vieira precisa admitir<br />
que o estar na História exige dos<br />
homens uma certa dose de ignorância<br />
mentirosa. Para dar às histórias colhidas<br />
e conhecidas o bem que a ciência faz,<br />
basta medir o grau do desconhe<br />
cimento. Mas os 'sucessos do mundo'<br />
precisam superar esse bem, tornando-<br />
o natural ao próprio tempo, cujo fim é<br />
em si o seu início, a morte de qualquer<br />
bem adquirido. Valendo-se das palavras<br />
'colhem e conhecem', inscreve o<br />
sentido da escolha. Como se dissesse<br />
que o porvir é uma escolha responsável<br />
por manter o sonhar, impedindo o peso<br />
do passado, que faz do presente algo<br />
muito frágil. Náo há futuro sem projeção<br />
da enteléquia pretérita, cujo correlato<br />
individual é colocar tempo entre a vida<br />
e a morte. Tempo diferente daquela<br />
temporalidade que vai daquilo que<br />
ainda não existe para aquilo que já não<br />
mais existe, que deseja a diferença da<br />
morte antes de morrer, matéria do qual<br />
é feito qualquer sonho em todos os<br />
sonos. Pois é do fantástico dos sonhos<br />
que se colhem as futuras verdades e que<br />
deixam de ser verdades quando passam.<br />
O 'ofício' e a 'obrigação' da poesia.<br />
assim nos diz Vieira, definem-se como<br />
impedimento das causas históricas: a<br />
arte poética serve para colorir o que<br />
'havia de ser' e afirmar 'como era bem<br />
que fossem', e nào para pintar o que<br />
ou como havia sido. Logo, a História do<br />
Futuro absorve o estilo poético. Para<br />
reverter os quadros desfavoráveis e<br />
fazer valer o ideal não há arma mais<br />
poderosa do que o arranjo artesanal<br />
feito de arte e saber divino. 10 O leitor já<br />
havia percebido que, nesse livro<br />
anteprimeiro, poderia usar como<br />
referência o dizer de Aristóteles sobre<br />
as obras de Heródoto: "pois que bem<br />
poderiam ser postos em verso ... , e nem<br />
por isso deixariam de ser história, se fossem<br />
em verso o que eram em prosa"."<br />
Vieira escolhe, porém, Virgílio.<br />
Dobrado de sete lâminas dizem que era<br />
aquele escudo (o escudo de Enéias de<br />
Virgílio); e também o da nossa História,<br />
para que em tudo lhe seja semelhante,<br />
é publicado em sete livros. Mele verão<br />
os capitães de Portugal sem conselho,<br />
o que hão de resolver; sem batalha, o<br />
que hão de vencer e sem resistência,<br />
o que hão de conquistar. Sobretudo se<br />
verão nele a sl mesmos e suas<br />
valorosas ações, como em espelho,<br />
para que, com estas cópias de morte-<br />
cor diante dos olhos, retratem por elas<br />
vivamente os originais, antevendo o<br />
que hâo de obrar, para que o obrem, e<br />
1 2<br />
o que hão de ser, para que o sejam.<br />
A Eneida corre da verdade ao sentido,<br />
nào havendo como se deter em nenhum<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v 8, n' 1-2. p. 67*2,jan/dez 1995-pag.77
destes pólos. A crença desaparece no<br />
imediato de sua manifestação, em função da<br />
repressão ao fantasma que habita nas páginas<br />
que escreve, a llíada de Homero. Contudo, o<br />
Virgílio escolhido por Vieira, em detrimento<br />
de Heródoto como modelo de História, é<br />
aquele relido por Dante. Esse guia privilegiado<br />
do patrimônio comum europeu, que desce e<br />
passeia no inferno, que passa mais rápido<br />
no purgatório e se detém nas margens do<br />
paraíso terreal, dizendo: "não mais a minha<br />
voz irás ouvir: dispõe de livre e íntegra<br />
vontade, e só com ela deves prosseguir,<br />
lmponho-te o laurel da liberdade!" 15<br />
O leitor se pergunta haver algum lastro de<br />
certeza para a presença de Dante Alighierie<br />
como uma das leituras de Vieira, pois este se<br />
refere a Virgílio e não àquele. Tornar<br />
pertinente um contato que não houve de fato<br />
é uma das tarefas impostas pela leitura, que<br />
num sentido que beira o esotérico, admite a<br />
auto-interferència dos textos, independente<br />
dos sujeitos que escrevem. Caso isso não seja<br />
admitido, a configuração de um patrimônio<br />
comum seria totalmente dispensável.<br />
Após o Virgílio de Dante, toda a leitura de<br />
Eneida tornou-se uma forma poética de<br />
sentido teológico. Dante havia inaugurado<br />
a ficção como momento critico, onde o<br />
perigo reina sobre o ideal de Império e<br />
restauração da Igreja,' que é a própria<br />
expressão contrária à época em que a<br />
Esposa de Cristo se fez triunfante. Isso havia<br />
acontecido no século gótico por excelência,<br />
o XIII, para nào mais sair das vistas da<br />
religiosidade européia. O triunfo da<br />
universalidade da Igreja tinha sido pensado.<br />
pag. 78. jan/dez 1995<br />
e assim se mantinha no século de Viera,<br />
como uma obsessão de vigília na fronteira<br />
do temor de sua ruína.<br />
A máxima de Dante, "não mais a minha voz<br />
irás ouvir: dispõe de livre e íntegra vontade,<br />
e só com ela deves prosseguir. Imponho-te<br />
o laurel da liberdade!", repercute como<br />
sentido anterior à promessa de Vieira 'aos<br />
capitães portugueses', pois nunca a ruína da<br />
Igreja esteve tão presente, chegando a nós<br />
como maneira comum em se referir ao<br />
mundo. Eles e o leitor terão de se resolver<br />
sem conselhos porque no livro não há voz.<br />
Reina o silêncio, onde qualquer som expressa<br />
a gagueira da compreensão. Não há batalhas.<br />
Na leitura se vence o livro quando a ele não<br />
se resiste. Esse acontecimento é um combate<br />
conquistador dos sentidos textuais no<br />
mundo, que reavivam o que antes não se<br />
sabia querer. Onde a motivação se faz de<br />
integras vontades, despossuindo-se do que<br />
antes se amava, para desejar, livremente,<br />
descobrir o quanto de dúvidas existia naquilo<br />
que se dizia conhecer. Encobrindo a vergonha<br />
de por tanto tempo servir àquilo que<br />
realmente não acreditava.<br />
O leitor ideal de Vieira, de ontem e de<br />
hoje, se depara com a qualidade trágico-<br />
cômica da leitura. No livro se vé.<br />
Uudindo-se com as valorosas ações de<br />
sua leitura. Na frente do livro, toma as<br />
qualidades por inversão. Começa a<br />
leitura duvidando do tema, e no seu<br />
desenrolar se apresenta cada vez mais<br />
servil a ela, e qualquer outro, sentido<br />
que pudesse haver já não importa. Opta<br />
em servir ao texto, e com os deveres de
servo. Insustentável sempre, torna<br />
visível a superfície vítrea da dúvida, e o<br />
texto, agora, importa em demasia,<br />
admirando a ridícula dúvida criada.<br />
Nesse jogo de inversões imagéticas, as<br />
cópias da compreensão se anulam por<br />
um colorido sem cor, a morte-cor. Cabe<br />
entào perguntar: qual é o grau de<br />
independência quando se lê, já que o<br />
livro exige do leitor a servidão e a leitura<br />
deseja duvidar? Se o livro é a forma<br />
tradicionalmente humana de pôr o<br />
passado na frente dos olhos, tornando<br />
a leitura um futuro do pretérito, se do<br />
lado do leitor todo o olhar sobre as linhas<br />
são a maneira etimológica do futuro do<br />
presente, compreender significa ter<br />
presente o incompreensível como ideal.<br />
Sentimento estranho tanto ao leitor<br />
quanto à idéia de uma leitura metódica.<br />
O leitor vive, assim espera a<br />
honestidade, a intimidade de seu<br />
arbítrio e a autonomia de suas<br />
necessidades. Demandando as mais<br />
improváveis e insignificantes<br />
circunstâncias, onde nenhuma<br />
uniformidade de relação entre a<br />
grandeza do efeito da leitura e a<br />
importância da causa por que se lê se<br />
declaram em absoluto. O dado<br />
imcompreensível da compreensão é a<br />
questão do essencialmente incompleto<br />
e essa incompletude da leitura torna-se<br />
o laurel da liberdade ao impedir a<br />
manifestação fácil dos determinismos<br />
de diferentes matizes.<br />
Isso levaria o leitor a se pôr de<br />
Vieira, Antônio. História do Futuro. Livro<br />
anteprimeiro. Lisboa: 1755.<br />
sobressalto? Depende da vastidão de<br />
sua inteligência, que aqui não é<br />
sinônimo de informações exatas e<br />
tangíveis, e da amplitude de sua<br />
generosidade. Vieira pede um leitor<br />
generoso. Nesse tipo de homem<br />
residem as preocupações e<br />
responsabilidades mundanas, ou seja,<br />
fazer permanecer todas as obras<br />
humanas e gratuitamente pensar como<br />
fazê-las acontecer fora de seu tempo e<br />
de sua época. Dar a tudo o que é belo,<br />
a beleza do que ainda não aconteceu e<br />
saber que aquilo que a fez existir nào<br />
mais acontece, a História do Futuro.<br />
Para tal projeto necessita-se de uma<br />
espacialidade elástica, que pela atenção<br />
de alma, preocupa-se com o correr do<br />
tempo e por isso dá respostas, sejam<br />
elas antigas ou modernas, pois o mundo<br />
nào permanece sendo uma eterna<br />
problematizaçào.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 67*2. Jan/dez 1995 - pag.79
Vieira solicita aos homens viverem os<br />
originais, 'antevendo o que hão de<br />
obrar'. Talvez seja este o motivo que o<br />
impede de terminar o que pretendeu<br />
escrever em sete capítulos como as<br />
setes lâminas do escudo de Enéias. Ao<br />
terminar a leitura do Livro anteprimeiro,<br />
prolegõmeno a toda a História do<br />
Futuro, 'em que se declara o fim e se<br />
provam os fundamentos dela', o leitor<br />
admite a clara existência de um<br />
descompasso, já que se encontra sobre<br />
as linhas da História do Futuro. A<br />
liberdade estilística que até o momento<br />
se manifestava, onde numerosas<br />
máximas de Vieira criavam uma relação<br />
de intimidade e de afastamento por<br />
perplexidade pelo que diziam<br />
anacronicamente de tão próximo, cede<br />
a uma escrita menos poética. Vieira<br />
passa a escrever de maneira muito<br />
agarrada aos argumentos que escolhe<br />
para fazer valer o seu projeto, como se<br />
se defendesse de algo. A quantidade de<br />
personagens é tanta que as páginas<br />
assumem aspecto deformado. Aparenta-<br />
se a um desafio, cuja temática é: como<br />
podes ser cristão e não acreditar na<br />
providência divina? Mas para que isso<br />
aconteça, ou deixe de acontecer, basta<br />
apenas a própria providência.<br />
Vieira vai perdendo fôlego, respira em<br />
demasia seus argumentos históricos e<br />
o futuro, que por direito pertence a<br />
Deus, sopra ameaçando apagar a chama<br />
profética. De servil ao projeto passa a<br />
duvidar timidamente, por excesso de<br />
histórias, da ação profética. Tudo<br />
pag 80, jan/dez 1995<br />
acontece por resfriamento, a luz que o<br />
fazia ver, alimentada através da<br />
conjugação de arte poética e saber<br />
bíblico, torna-se a iluminação fria do<br />
amanhecer quando o sol ainda nào se<br />
pós de pé. Mas o sol teima em não fazer<br />
o seu costumeiro caminho e dos sete<br />
livros que projetava apenas resultaram<br />
sete capítulos incompletos. Quando<br />
voltar a escrever sobre o fato profético,<br />
a Clavis Frophetarum, Vieira se retirará<br />
para o segredo do latim, descobrindo<br />
aquilo que entardece, a língua sacra,<br />
cujo sentido universalista já não mais<br />
tem sentido e novamente a incompletude<br />
se faz sua parceira.<br />
Enquanto esteve declarando os fins que<br />
imaginava para a sua obra e provava os<br />
fundamentos dessa empresa, cuidando<br />
de perto da essência da natureza<br />
humana - a curiosidade -, Vieira tinha o<br />
domínio sobre o leitor e a leitura vinha<br />
acompanhada do acirramento de tudo<br />
ver e saber. Mas ele acaba sendo servo<br />
de seu projeto, pois enquanto antevia,<br />
tudo aparentava um desenlace primo<br />
roso. Chegando ambos ao momento<br />
próprio daquilo que antes fora preparado,<br />
o leitor frustra-se e Vieira se acanha.<br />
As fronteiras da esperança no mundo,<br />
mesmo forjadas na paciência corajosa,<br />
estão rompidas. O mundo se acelerou<br />
em demasia, não há tempo para o<br />
desenlace. Resta agora apenas antever<br />
e rezar para que aquilo que foi sonhado<br />
obtenha tempo. E sem desejar, Vieira<br />
nos deixa uma única lição: enquanto o<br />
homem projeta, antevendo o que
acontecerá, adquire a força de dar início<br />
ao tempo - criar; porém, quando quer<br />
consubstanciar o seu projeto, acontece<br />
a fatalidade - a inexistência de suficiente<br />
temporalidade.<br />
Como compreender algo é tê-lo em sua<br />
incompletude e incompreensão, se é do<br />
homem a trágica propriedade histórica<br />
do pecado, sendo o complemento<br />
intimo de seu estar no mundo, Vieira<br />
acaba deixando como rastro o modelo<br />
impossível e possível da leitura, que são<br />
a mesma coisa: antever. O ante,<br />
enquanto prefixo, significa antes ou<br />
diante. Como sufixo, é formador da<br />
terminação do particípio presente dos<br />
verbos latinos. Vieira, exímio<br />
conhecedor do latim, sabe que o<br />
particípio presente nào tem qualquer<br />
valor preciso de tempo, e, dessa<br />
maneira, figura o tempo por aquilo que<br />
lhe vê antes. A única potencialidade<br />
humana é o gerúndio, que tratando a<br />
ação e a duração ao mesmo tempo,<br />
transforma o tempo num modo de ser,<br />
o que doa ao futuro uma vida e uma<br />
vontade secreta.<br />
Aqui termina também o que poderíamos<br />
comentar sobre a História do Futuro do<br />
padre Antônio Vieira, da Companhia de<br />
Jesus. E se há algum relevo nessa<br />
antevisão da obra de Vieira é fazer<br />
ressoar, no momento desse ensaio, o<br />
que fora anteriormente sentenciado por<br />
Raymond Cantei, em 1959:<br />
... a ausência de uma edição critica<br />
moderna se faz sentir. Nenhum sermão<br />
foi publicado até aqui numa edição que<br />
merecesse verdadeiramente esse<br />
nome. Ora, é a totalidade dos discursos<br />
de Vieira que deve ser assim editada.<br />
A tarefa será longa e dificil, mas essa<br />
edição é o monumento que Portugal e<br />
o Brasil devem à glória daquele que foi<br />
o maior de seus predicadores. 14<br />
M O T A S<br />
1. VIEIRA, Antônio. História do Futuro. (Introdução, atualização e notas por Maria<br />
Leonor Carvalhào Buesco). Lisboa: Imprensa Macional-Casa da Moeda, 1982, p.<br />
146. A História do Futuro do padre Antônio Vieira tem como período provável de<br />
sua composição os anos compreendidos entre 1649-1661. Admite-se este contorno<br />
temporal com reservas. O professor Adma Eadul Muhana na organização e fixação<br />
do texto "Apologia das coisas profetizadas" (Lisboa: Cotovia, 1994) demonstra a<br />
continuidade das preocupações de Vieira com esta obra no período de seu<br />
processo inquisitorial; algumas partes do texto por ele organizado se adequam<br />
ao projeto da História do Futuro do jesuíta. Embora a incompletude da obra seja<br />
concreta, a investigação de Muhana acrescenta outras partes àquelas já<br />
consagradas, cujas edições anteriores estiveram sob o controle de João Lúcio de<br />
Azevedo (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1918) e Antônio Sérgio &í Hernani<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 67-82, jan/dez 1995 - pag 81
Cidade (Lisboa: Sá da Costa, 1953, vol. V1I1-IX). no <strong>Arquivo</strong> nacional se encontram<br />
o referido a J. L de Azevedo, o Livro anteprimeiro, prolegômeno a toda História<br />
do Futuro (nas edições Lisboa: Editores J. M. C Seabra Sc F. Q. Antunes, 1855 e<br />
oficina de Antônio Pedrozo Gahan, 1718) e a História do Futuro publicada em<br />
1755 pela Oficina de Domingos Rodrigues.<br />
2. VIEIRA, Antônio, op. cit., 1982, p. 41.<br />
3. Idem, ibidem, p. 44.<br />
4. Idem, ibidem, p. 45.<br />
5. Idem, ibidem, p. 47.<br />
6. Essa expressão encontra- se no "Sermão da Sexagésima", pregado por Vieira na capela Real,<br />
em 1655.<br />
7. VIEIRA, Antônio, op. cit., 1982, p. 51.<br />
8. Idem, ibidem, p. 64.<br />
9. Idem, ibidem, p. 147.<br />
10. Idem, ibidem, p. 95.<br />
11. ARISTÓTELES. "Poética". In: Tópicos; Dos argumentos sofísticos; Metafísica; Ética<br />
a liicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores IV) p. 451.<br />
12. VIEIRA, Antônio, op. cit., p. 95.<br />
13. ALEQHIERI, Dante. A divina comédia. Belo Horizonte-Brasília: Editora Itatiaia/<br />
Fundação Pró-Memória, 1984, p. 245.<br />
14. CANTEL, Ravmond. Les sermons de Vieira - étude du style. Paris: Ediciones tlispano-Americanas,<br />
1959, p. 36.<br />
A B S T R A C T<br />
The paper is about father Antônio Vieira's prophetic History of the Future, written between<br />
1640-1660 and with several editions since the 18th Century. The Jesuits prophesying allow<br />
us to think about the question of reading, as well as to discuss the readers standpoint<br />
starting from the leveis of submission to the text and of doubt in the act of reading.<br />
R É S U M É<br />
Cest un article sur VHistória do Futuro (Histoire de 1'Avenir), ouvrage prophétique du<br />
Père Antônio Vieira, écrit en 1640-1660, qui a merlté plusieurs publications après le<br />
XVlllè siècle. Le prophétisme du Jésuite nous permet de réfléchir sur le problème de<br />
la lecture, de discuter la position du lecteur à partir des niveaux de soumission au<br />
texte et du doute dans 1'acte de lecture.<br />
paB.82.jan/oez 1995
Prof 3<br />
. Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />
Professora de História Medieval da UERJ. Doutora em História Social pela USP.<br />
Leitores do Ri© de Janeiros<br />
"Viva. assim como animais<br />
domésticos dos quais se<br />
precisa cuidar, a biblioteca<br />
particular exige que se<br />
esteja atento a ela. Da<br />
mesma forma que se muda<br />
uma planta de vaso, pode<br />
se modificar o conteúdo de<br />
suas pratileiras."<br />
Alain Nadaud<br />
Os leito :itores cariocas mais<br />
bibliotecas como jardins<br />
preocuf ipados com o cultivo<br />
de uma «ma espécie de jardim<br />
das delícias, à maneira de Montaigne,<br />
grande apreciador de livros e<br />
freqüentemente ocupado com a<br />
sobrevivência de sua biblioteca,<br />
deixaram vestígios das suas preferências<br />
das delícias<br />
literárias, sobretudo em<br />
inventários. Médicos e advogados,<br />
ciosos das escolhas feitas em vida,<br />
cuidaram para que seus acervos<br />
ficassem preservados em família ou<br />
entre amigos.<br />
Uma das maiores dificuldades que se<br />
apresentam para o aprofundamento do<br />
estudo das bibliotecas examinadas é a<br />
compreensão do diálogo entre a<br />
novidade e a herança que envolve cada<br />
um dos modelos de coleção. Para Daniel<br />
Roche falar das bibliotecas é sobretudo<br />
"tentar descrever a história da facilidade<br />
de acesso aos impressos e manuscritos<br />
nos quais intervém simultaneamente a<br />
extensão, quantificável, dos meios e das<br />
práticas, e a mudança, qualificável, da<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p 83-104. jan/dez 1995 pag83
A C E<br />
cultura de um tempo em comparação às<br />
suas práticas". 1 Esta conduta permitiria<br />
uma melhor troca de conhecimentos em<br />
virtude desta pluralidade de situações<br />
que se apresenta para o estudioso.<br />
Perceber as mudanças e as<br />
permanências através das<br />
transformações do acervo das<br />
bibliotecas pressupõe um diálogo entre<br />
o historiador e as fontes.<br />
g i j, r h.M'JJV1Í 0'Jfj££Éj}''X g/R,'<br />
A estas possibilidades acrescentam-se<br />
dificuldades, na medida que o livro<br />
guardado no espaço privado contrapõe-<br />
se, em situação, ao livro instalado para<br />
uso no espaço público. O primeiro pode<br />
ser instalado na desordem, como<br />
podemos perceber estudando os<br />
inventários, e os outros se instalavam<br />
na ordem e na classificação que se<br />
buscava aperfeiçoar, como tivemos uma<br />
amostra no caso das bibliotecas para<br />
uso público.<br />
O gabinete ideal do colégio jesuíta que<br />
testemunha, por exemplo, a obra<br />
Vocationes Autumnalis, a biblioteca de<br />
Voltaire em Ferney, a biblioteca de<br />
Montaigne como a de Diderot expõem<br />
algumas maneiras de criar um espaço que<br />
organize a vontade de proteger, de exibir,<br />
de criar um lugar adaptado ao trabalho do<br />
intelectual como a sociabilidade. 2<br />
Mas tomar esta aparente desordem das<br />
bibliotecas particulares como falta de<br />
organização é projetar nossas ansiedades<br />
contemporâneas nas formas das diversas<br />
práticas de ter, utilizar e exibir livros nos<br />
Finais do século XIX e início do século XX,<br />
pag 84 jan/dez 1995<br />
segundo as práticas em voga na época. As<br />
funções da utilização dos livros nos espaços<br />
privados envolviam leituras em voz alta,<br />
livre e fácil acesso aos livros para leituras,<br />
aqui e ali, sem compromissos rígidos com<br />
a continuidade, o tempo aberto para<br />
presença dos amigos e leitores eventuais,<br />
interessados no cultivo das sociabilidades<br />
culturais, no momento do registro cartorial<br />
durante o processo dos inventários estas<br />
diferenças também mantinham-se nítidas.<br />
Cada um deles pensou em uma<br />
organização especial para as bibliotecas,<br />
de modo que todas se formaram com<br />
características bem próprias, tendo, no<br />
entanto, alguma organicidade comum,<br />
que era o privilégio para obras de cunho<br />
profissional. Como registrou Alain<br />
Madaud\ os cuidados com a disposição<br />
que os donos deram a suas bibliotecas<br />
ajudam a organizar e compreender melhor<br />
o conteúdo de suas prateleiras e suas<br />
escolhas bibliográficas ao longo da vida.<br />
Repetindo as antigas indagações de<br />
Mornet: que livros possuíam estas<br />
pessoas? Ou, ainda, perguntando de<br />
forma mais ambiciosa, o que liam estes<br />
homens? Teremos boas respostas<br />
através dos inventários. De um total de<br />
97 advogados e 192 médicos com<br />
documentação específica no <strong>Arquivo</strong><br />
<strong>Nacional</strong> 4, foram localizados inventários<br />
que pertenciam a familiares próximos e<br />
antepassados. As datas definidas nos<br />
documentos abarcavam da segunda<br />
metade do século XIX até a segunda<br />
década do século XX.
O estudo de bibliotecas, principalmente<br />
das remanescentes de inventários,<br />
apresenta certas armadilhas para o<br />
pesquisador, como o expurgo de parte<br />
do acervo por controle da família, ou<br />
simplesmente por empréstimos ou<br />
Ari. 686<br />
Livraria».<br />
V o<br />
doações não especificados, que<br />
mascaram o perfil do conjunto, no<br />
tocante às bibliotecas examinadas,<br />
procurei, na medida do possível,<br />
diversificar as fontes de informações<br />
sobre o conjunto de livros que as<br />
A. J. Castilho d C., r. S José, 107.<br />
Adolpho de Castro Silva & C., r. Rosário, 81, Telfph. Íi02 ; sócios :<br />
'Adolpho de Castro e Silva, r. Rosário, SI e r. Barão de Mesquita, 1}.<br />
* Albino José de Castro e Silva; 2, r Rosário, 81 e r. liarão de Mesquita,<br />
12, Teleph. 5031.<br />
Alexandre Ribeiro «t C, r. Quitanda, 79 B e Rosário, 64 e depósitos r. Quitanda.<br />
58 e r. S. lose. íi8 ; sócio* :<br />
* Alexandre Augusto Ribeiro, r. Quitanda, 79 B.<br />
'Augusto Gonçalves Moreira, r. Quitanda, 79 R.<br />
Alves & C, especialidades : Urros eoilegiaea e acadêmicos, r. Gonçalves<br />
Dia*, 66 e 68, C. do Correio B. (Vide Álmanak das Províncias,<br />
pag. 10!i5 : sócios :<br />
"Francisco Alves de Oliveira, r. Gonçalves Dias, 46 e 48.<br />
* Nicolau Antônio Alves, r. Gonçalves Dias, 46 e 48, e ladeira do Senado,<br />
25 A, coiiimanditario.<br />
'Manoel Maria dos Santos, r. Gonçalves Dias, 46 e 48, interessado.<br />
I Antônio Augusto da Silva Lobo, r. Sete de Setembro, 81.<br />
Antônio Roberto Costa, r. S. José, 118.<br />
Antônio Teixeira de Castro Dias, r. Andradas, 28.<br />
Augusto Fancho, r. S. José, 94.<br />
Augusto Richanl, r. Bern. de Yasccncellot, 101.<br />
B. L. Garnier, a} 6 ; •}> 3 de P., r. Ouvidor, 71.<br />
-Brandão & Moreira Maximino. r. João Alfredo, 90, antiga da Quitanda,<br />
(Vide Notab. pag. 1918). sócio :<br />
'Antônio José Gomes Brandão, 4 5 '• • 3» Quitanda, 90, e r.<br />
Santa Amaro, 35.<br />
aVitish * P. Hblie Society, r. 7 de Setembro, 71. (Vide Notab. pag. 198»),<br />
agente:<br />
'Joio M. C. ilos Santos, r. 7 de Setembro, 71 e r. S. Joaquim, 175.<br />
Carlos Gaspar da Silva, r. Quitanda, 111 e 113, Teleph. 30<br />
Carvalhaes A C, r. Ourivrs, 55; sócios:<br />
'Carlos de Carvalhaes Pinheiro, r. Ourives, 55.<br />
'Leandro B. Pereira, r. Ourivea, 53.<br />
Crus Coutinho, r. S. J jsé 76 ; dono :<br />
* Francisco Rodrigues ds Crus Coutinho Carvalho, r. S. José, 76.<br />
Fernandes, Ribeiro & C, r. Quitanda, 71, e r. Rosário, 47 ; sócios:<br />
•Joaé Fernandes Couto, r. Quitanda, 72.<br />
'Maximiano Xavier Vas Osório, r. Quitanda, 72.<br />
'Heitor Ribeiro da Cunha, r. Quitanda, 72.<br />
ti. de Araújo A C., r. Gen. Câmara, 9; sócio :<br />
'Gabriel Pinto de Araújo, r Gen. Câmara, 9.<br />
ves Mendes AC, r. Ouvidor, 25 B e 38 ; sócios :<br />
'Júlio Gonçalves Mendes, r. Ouvidor, 25 B e 38, er. Bispo, 36 C<br />
* Antônio Manoel Fernandes da Silva, r. Ouvidor, 25 B e 38, como.<br />
* Antônio Plácido Marques, r. Ouvidor, 25 Be 88, inter.<br />
'Joaquim Cardoso Pereira, r. Ouvidor, 25 B e 38, inter.<br />
h<br />
Almamaque administrativo, mercantil e industrial da Corte e da província do Rio de Janeiro. Rio<br />
de Janeiro: Livraria Universal de E. & H. Laemmert, 1876.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n s 1-2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag 85
A C E<br />
compunham. Apesar da maioria náo<br />
estar catalogada com rigor, foi sobre<br />
esses registros que elaborei estas<br />
reflexões.<br />
Status, educação, riqueza e influência<br />
política enfeixavam-se em poucas mãos,<br />
numa cidade como o Rio de Janeiro na<br />
virada do século. 5 Os inventários, verbas<br />
testamentárias, escrituras e outros<br />
documentos de cunho particular são<br />
ótimos indicadores desta relação.<br />
Ma sua forma básica, um inventário post-<br />
mortem apresentava-se dividido em três<br />
partes: a primeira, onde o inventariante<br />
- que podia ser membro da família,<br />
amigo ou um representante legal<br />
nomeado - identificava a si e ao morto,<br />
indicando deste a profissão, o endereço<br />
residencial, os possíveis herdeiros e a<br />
causa da morte, e fazendo menção, de<br />
forma resumida, aos bens pessoais do<br />
falecido. Nessa fase poderiam ser<br />
incluídos, se existissem, o testamento<br />
e a escritura antenupcial; a segunda, na<br />
qual se apresentava a relaçào completa<br />
dos bens, com a respectiva avaliação,<br />
elaborada por profissional<br />
especialmente nomeado para esse fim,<br />
que visitava os locais onde se<br />
encontravam os pertences e relatava por<br />
escrito todos os seus passos neste<br />
processo; e a terceira, que concentrava<br />
petições e quaisquer outros pedidos<br />
formais dos interessados na herança e<br />
a conclusão sobre a partilha e/ou<br />
meaçào, quando cabíveis. 6<br />
Em diversos casos, no entanto, essa<br />
pag.86, jan/dez 1995<br />
padronização nào ocorreu. Às vezes, o<br />
escrivão generalizava suas declarações<br />
sobre os bens móveis, até pela ausência<br />
de um critério padronizado para a<br />
descrição de alguns bens, como<br />
gabinetes e bibliotecas, por parte dos<br />
funcionários encarregados desse tipo de<br />
tarefa. Com isso, prejudicava-se a<br />
caracterização dos objetos que se<br />
deseja estudar. Ao contrário, alguns<br />
eram bastante minuciosos e faziam<br />
anotações precisas. Uns ficaram<br />
inconclusos; outros, por problemas de<br />
má conservação, tornaram-se<br />
inacessíveis.<br />
Advogados e médicos eram categorias<br />
sócio-profissionais com grande<br />
participação no conjunto das atividades<br />
político-administrativas brasileiras. A<br />
produção historiográfica já tratou dessa<br />
relaçào em diversos estudos<br />
importantes. Roderick Jean Barman e<br />
José Murilo de Carvalho realizaram<br />
acuradas análises sobre a atuação dos<br />
advogados na vida política do Império<br />
e os desdobramentos do bacharelismo<br />
na vida pública brasileira, através de<br />
análises prosopográficas. Na sólida obra<br />
de Licurgo Santos filho, o tratamento<br />
dado ao papel dos médicos criou uma<br />
espécie de biografia coletiva alentada,<br />
representando uma abordagem única<br />
sobre a evolução dos conhecimentos<br />
médicos no Brasil. 7<br />
Médicos e advogados faziam parte dos<br />
17% da população livre que podiam ler<br />
e escrever. Estavam entre os eleitores.
R V O<br />
que por volta de 1889 não<br />
ultrapassavam o total de 125.000<br />
pessoas. 8 Em meados do século XIX, os<br />
currículos adotados por escolas do Rio<br />
já evidenciavam uma forte influência de<br />
autores clássicos ou franceses, ou ainda<br />
clássicos comentados por estudiosos<br />
franceses, tendência que era reforçada<br />
nos cursos universitários. 9 Ma passagem<br />
do século, esta influência se atenuou,<br />
acrescentando-se às humanidades e à<br />
gramática cursos de ciências naturais,<br />
geografia, matemática e história, que<br />
enriqueciam e ampliavam a formação. 10<br />
A verdadeira ruptura em direção a novas<br />
leituras e novas práticas ocorreu<br />
sobretudo no início do século XX, a<br />
partir dos cursos de Medicina que, desta<br />
forma, lutavam pela sua modernização.<br />
Sobretudo a partir de 1900, com a<br />
introdução de métodos científicos e<br />
experimentais, o anacronismo<br />
intelectual em vigor foi-se<br />
transformando. novas técnicas<br />
cirúrgicas, a criação de assistência<br />
sistemática aos alienados, a fundação<br />
do Instituto Oswaldo Cruz, que permitiu<br />
avanços nos estudos de medicina<br />
tropical, tudo isso colaborou na criação<br />
de uma nova tendência das pesquisas<br />
científicas, que se soltaram de suas<br />
amarras acadêmicas e oratórias para<br />
inaugurar uma nova proposta, que<br />
alcançou, inclusive, grande respeito<br />
internacional. Quanto aos advogados e<br />
juristas, as mudanças tornaram-se<br />
possíveis a partir de novas leituras de<br />
obras que lentamente se libertavam do<br />
quase exclusivismo de alguns autores,<br />
como Bentham, por exemplo."<br />
Frente às novas necessidades da clientela,<br />
as obras consumidas pelos profissionais<br />
mudaram gradativamente de perfil,<br />
obrigando a uma modificação do tipo de<br />
oferta que se fazia na propaganda das<br />
livrarias e anúncios especiais sobre livros.<br />
Estas mudanças também podem ser<br />
observadas nas obras localizadas nas<br />
bibliotecas dos profissionais em atividade,<br />
nas duas primeiras décadas de nosso<br />
século, em relação aos períodos anteriores.<br />
As novas perspectivas nacionais e<br />
internacionais exigiam uma reformulação<br />
dos critérios de formação e atualização de<br />
juristas e advogados, que foram<br />
substituindo pouco a pouco obras de<br />
Benthan por outras de Spencer e, em alguns<br />
casos, Proudhon, Tucker, Carlyle. 12<br />
Estas obras ficavam, muitas vezes,<br />
incorporadas ao acervo de livros de<br />
diversos médicos e advogados, algumas<br />
delas em razão de referências explícitas,<br />
que as tornavam de uso obrigatório em<br />
face de exigência dos currículos de<br />
colégios e outros cursos preparatórios,<br />
como Racine, Chateaubriand, Sainte-<br />
Beuve, Corneille e Molière, que podiam<br />
ser encontradas em muitas bibliotecas<br />
particulares. Outras eram adquiridas por<br />
interesses pessoais do leitor. Mas qual<br />
seria o tipo de livro que realmente<br />
ocupava os espaços das prateleiras de<br />
advogados e médicos e como as<br />
escolhas foram-se modificando? 13<br />
Em bibliotecas já compulsadas por<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n s 1-2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag.87
A C E<br />
vários estudos que trataram do tema, na<br />
transição do século XVIII para o XIX, o<br />
'livro sedicioso' ou a 'perigosa literatura<br />
francesa' 1 4 guardava um lugar<br />
especialíssimo. De uma forma ou de<br />
outra, pareciam marco de bibliotecas<br />
I.lvrarlüH (w«.«W)<br />
Guimarães A Fenlinando, r. Oufid r,S5; sócios:<br />
•Joaquim ria Coda Leite Guimarães, r. Ouvidor, 35.<br />
'Alberto Feroioando Cogorno de Oliveira, r. Ouvidor, S5.<br />
H. Lonibaert» & C, r. Ourives, l.Teleph. 20íi.e r. A»»emblc i, 76.<br />
Henrj Berger, r. Brolitlo. 26 P*. i". Milão. (Vide Notab., da Itália).<br />
J. G. de Azevedo, r. Iruguayana, 33.<br />
J. Guimarães St C.,r. Gen. (amara, 22.<br />
loão M. G doi Santos, agencia da» Kscriptura* Sagradas em diversa* línguas,<br />
r. Sete de Selem ro, 71, •• r. S. Joaquim, 173 (Vide Solai,,<br />
pag. 1989).<br />
José Aniiin o Pe rira de Araújo, r. Gonçalves Dias, 64.<br />
José Gomrs de Asevedo, r. Uruguayaoa, 33.<br />
José Joaquim de Sousa Peixoto, r. S. José, 93<br />
José de Mello:+ :! :e P., r. Quitanda, 38, C. do Correio 571<br />
Filial da antiga casa editora D.i vid Cnraiti, de Lisboa. Recebe asaignaturaa<br />
para toda* a* publicações da mesma casa. Jornves de moda* para<br />
homens e senhora*, peiiodicos illustrados, romances rm fasciculo»,<br />
obras de instrucção e recreio, etc Remessa gratuita
tinha acesso aos livros de maneira<br />
quotidiana. A leitura, por parte dos<br />
grupos escolarizados, tornou-se mais<br />
freqüente; sua presença em bibliotecas<br />
públicas ou particulares, uma rotina. 15<br />
Os inventários, verbas testamentárias,<br />
testamentos e alguns acervos particulares<br />
podem dar algumas respostas sobre o gosto<br />
pelos livros entre médicos e advogados.<br />
Muitos dos documentos do acervo<br />
vinculado ao poder judiciário, no <strong>Arquivo</strong><br />
nacional, são fontes de raro valor, mas não<br />
possuem características tão homogêneas<br />
entre si, nas referências a livros.<br />
Para que fosse possível quantificá-las e<br />
analisar seu conteúdo, cada caso foi<br />
objeto de estudo isolado quando havia<br />
vinculação com livros, bibliotecas ou<br />
quaisquer indícios que registrassem a<br />
sua existência. Havia escrivãos<br />
diligentes, que registraram cada um dos<br />
volumes encontrados; outros, menos<br />
atenciosos, ao perceberem que as obras<br />
não tinham valor significativo em<br />
relação ao monte dos bens, registraram-<br />
nas genericamente. Houve, ainda,<br />
famílias que não tiveram o cuidado de<br />
incluir os volumes existentes nas casas<br />
ou nos escritórios como parte integrante<br />
do que deveria ser avaliado.<br />
Alguns testamentos, verbas<br />
testamentárias ou inventários registram<br />
casos esporádicos de livros deixados<br />
como herança, onde se declarava o<br />
conhecimento que o doador tinha do<br />
apreço manifestado pelo herdeiro e pela<br />
V o<br />
obra que lhe havia sido destinada. As<br />
verbas testamentárias eram, por sua<br />
natureza, sintéticas, e nelas não se<br />
especificavam os volumes doados. Esse<br />
fato deixa dúvidas sobre uma outra<br />
questão, que muitas vezes não ficou<br />
explicitada: quais as obras que<br />
despertavam maior interesse nesses<br />
espaços íntimos, ou ainda, as mais<br />
valiosas dentre as existentes nas<br />
bibliotecas? na medida do possível, isto<br />
é, dentro do que o diálogo com a<br />
documentação permitiu, procurei<br />
analisar o perfil destes acervos<br />
particulares e as relações de interesse<br />
e gosto específico que uniam os<br />
integrantes de um círculo privilegiado<br />
de leitores.<br />
Estudos anteriores e a movimentação do<br />
comércio livreiro, no período, levam a<br />
respostas específicas quanto ao<br />
aparecimento habitual de determinadas<br />
obras nos acervos particulares: obras<br />
em francês, tanto clássicas quanto de<br />
literatura leve, do tipo folhetim,<br />
narrativas de viagens, poesias,<br />
romances, textos de teatro e leituras<br />
técnicas ou específicas de cada ramo<br />
profissional. A censura formal, nesse<br />
período, nào pesava tanto sobre a<br />
seleção de textos quanto, por exemplo,<br />
no começo do século XIX. Porém, as<br />
tradições morais e culturais eram fatores<br />
preponderantes na escolha dos livros a<br />
serem introduzidos no espaço<br />
doméstico. A transição do século,<br />
contudo, foi marcada por novas<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag 89
A C B<br />
tendências e influências: textos em<br />
alemão e inglês se tornaram mais<br />
habituais, além da produção de livros<br />
baratos e com textos referentes a temas<br />
de fácil vulgarização.<br />
Qilberto freire tratou por muitas vezes<br />
da questão das preferências por<br />
determinadas leituras. Examinou<br />
questionários que enviou a pessoas<br />
conhecidas, nos quais indagava sobre<br />
as opções de leitura ao longo de suas<br />
vidas. Com outras abordagens,<br />
Lawrence Mallewell, Brito Broca e<br />
Antônio Cândido trataram do tema, mas<br />
a especificidade das fontes exigirá<br />
outros tipos de abordagem, adaptadas<br />
às nossas condições, a partir dos<br />
estudos de Roger Chartier, Henry Jean<br />
Martin, Parent-Landeur, Michel Marion e<br />
Robert Darnton. 18<br />
Produzidos dentro de suas próprias<br />
casas e com o registro de seus bens<br />
mais pessoais, os documentos relativos<br />
à vida e à morte desses homens nos<br />
deixaram importantes informações,<br />
mesmo que truncadas, de suas relações<br />
com o objeto livro. Muitas vezes os<br />
documentos localizados não dizem<br />
respeito diretamente ao profissional<br />
nomeado nas listagens do Almanaque<br />
Laemmert, mas a pessoas da família.<br />
São inventários de esposas, filhos,<br />
irmãos, cunhados que expõem com<br />
bastante detalhes a vida privada de<br />
todos os envolvidos.<br />
O conselheiro Antônio Pereira Rebouças<br />
teve uma descrição de sua biblioteca<br />
pag.90. jan/dez 1995<br />
quando do falecimento de sua mulher.<br />
Os títulos arrolados apontavam para<br />
obras de interesse profissional do<br />
meeiro. Em móveis de escritório a<br />
avaliação foi de Rs. 613$000 e em<br />
livros, uma 'enorme quantidade', de Rs.<br />
2:757$500, valor importante em um<br />
monte liquido de Rs. 54:971 $446. O dr.<br />
Rebouças era advogado aprovado pelo<br />
governo brasileiro perante a Comissão<br />
1 7<br />
mista entre Brasil e Inglaterra.<br />
Primeiramente registrou-se de forma<br />
genérica algumas obras:<br />
(...) Coleções de Ordenações e seus<br />
repertórios, um deles de grande<br />
formato. Sistemas de Regimentos,<br />
Coleções de leis de edição portuguesa<br />
e das do Brasil, obras jurídicas em<br />
língua portuguesa, latina e francesa,<br />
dicionários de todas as línguas cultas,<br />
obras de politica, de ciências e de<br />
literatura em geral."<br />
O registro foi um dos mais minuciosos,<br />
definindo-se inclusive os locais das<br />
estantes onde se encontravam os livros:<br />
(...) 2' estante a direita<br />
134 - Repertório geral das leis<br />
extravagantes - 2 vols. Rs.8$000<br />
135 - Repertório geral - 3 vols. Rs.9*000<br />
136 - Legislação brasileira - 4 vols.<br />
Rs.4$000 l»<br />
Com rica e sólida mostra de exemplares<br />
vinculados a questões de<br />
jurisprudência, a biblioteca tinha<br />
numerosos livros de história, obras<br />
completas de autores franceses, como<br />
Molière, Corneille, Pascal,
R V O<br />
Chateaubriand, Montesquieu, Mirabeau.<br />
Até o número 405 da relação as obras<br />
eram todas encadernadas, sendo o<br />
restante brochuras. Pelo perfil jurídico<br />
apresentado e pelo conjunto dos livros<br />
pode-se avaliar que a biblioteca<br />
pertencia ao conselheiro. Apesar de ter<br />
deixado testamento e definido vários<br />
pequenos quinhões suplementares a<br />
cada um de seus oito herdeiros,<br />
inclusive a liberdade de uma escrava,<br />
d. Carolina não se preocupou em<br />
destinar a biblioteca, possivelmente por<br />
considerá-la como bem de seu esposo.<br />
Acervo da biblioteca da família Rebouças<br />
Teologia 10 lotes<br />
Jurisprudência 223 lotes<br />
Ciências e Artes 26 lotes<br />
Belas letras 89 lotes<br />
História 82 lotes<br />
Fonte: Inventário de Carolina Pinto Rebouças - An<br />
O doutor Luiz Pientzenauer formou-se<br />
pela Faculdade de Medicina do Rio de<br />
Janeiro, em 1845. Era membro da<br />
Academia Imperial de Medicina, sendo<br />
citado em elogio biográfico proferido<br />
pelo dr. Eduardo Augusto Pereira de<br />
Abreu, em 30 de junho de 1880, na<br />
sessão de aniversário da Academia,<br />
falecido nesse mesmo ano, em 23 de<br />
setembro, aos 50 anos de idade, teve o<br />
inventário aberto pela sua mãe, dona<br />
Emilia Carolina Viana Pientzenauer, na<br />
ausência de sua mulher, no entanto, o<br />
inventariante foi o dr. Manuel de Araújo<br />
dos Santos, responsável pelos cinco<br />
herdeiros deste médico que tivera uma<br />
prática intensa durante o exercício da<br />
profissão. Ha avaliação de seus bens foi<br />
preponderante a presença de seus<br />
instrumentos de trabalho: esqueleto<br />
desarticulado, peças anatômicas,<br />
microscópio, fórceps, sanguessugas. 20<br />
Uma maciça quantidade de livros de<br />
medicina, desde dicionários até tratados<br />
muito específicos, e dez volumes<br />
daquilo que o escrivão chamou<br />
genericamente de 'biblioteca de<br />
algibeira'. Os livros estavam assim<br />
distribuídos:<br />
Acervo da biblioteca de Luiz<br />
Pientzenauer<br />
Teologia 1 lote<br />
Jurisprudência<br />
Ciências e Artes 222 lotes<br />
Belas letras 36 lotes<br />
História 25 lotes<br />
Fonte: Inventário de Luiz Pientzenauer - AM<br />
O dr. Pientzenauer morreu deixando<br />
seus filhos em má situação financeira.<br />
A penúria em que ficaram seus<br />
herdeiros apareceu ao longo do<br />
inventário: estudaram pouquíssimo e<br />
não o seguiram nos estudos de<br />
medicina. Arthur, o filho mais velho, foi<br />
tutor do irmão Oscar, a partir do<br />
momento em que o último fez 15 anos.<br />
Hão houve registro de suas atividades e<br />
sobre Arthur mencionou-se ter<br />
trabalhado como desenhista na Estrada<br />
Acervo, Rk> de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 85-104, jan/dez 1995-pag 91
A C E<br />
de Ferro Pedro II. Júlia, a mais nova, ao<br />
fazer seu pedido de emancipação, para<br />
ter o direito de receber a doação de<br />
apólice da dívida pública, obtida por<br />
uma subvenção levantada entre alguns<br />
comerciantes da Corte, dirigiu uma<br />
petição muito enfática ao Juizo dos<br />
Órfãos: "É a suplicante pobre e sendo<br />
de pública notoriedade a sua<br />
capacidade, pede dispensa de prová-la<br />
por testemunhas, o que acarretaria<br />
despesas, incompatíveis com o seu<br />
estado atual de fortuna". 21<br />
O acervo do dr. Pientzenauer confirma<br />
a hipótese de que a formação do médico<br />
na época era abrangente. As obras<br />
arroladas passavam pelos mais<br />
diversificados temas de medicina: um<br />
guia de memória, manual de farmácia,<br />
biologia, anatomia, cirurgia, doenças de<br />
Biblioteca <strong>Nacional</strong>.<br />
pag. 92, jan/dez 1995<br />
olhos, obstetrícia, dissecação, higiene<br />
nas mulheres nervosas, sífilis, cólera<br />
morbo. Mas gostava de literatura,<br />
história e filosofia, pois entre os livros<br />
havia romances de Júlio Verne e Victor<br />
Hugo, Alexandre Herculano, Ponson de<br />
Terrail (24 volumes do Rocambole), e<br />
obras de Cantu e Pascal, além de atlas,<br />
dicionários, teses e jornais.<br />
A biblioteca foi leiloada, junto com<br />
objetos da casa, pelo leiloeiro João<br />
Bancalari, que apurou a importância<br />
líquida de Rs. 2:275$640, recolhida ao<br />
cofre dos órfãos juntamente com Rs.<br />
63$58, comissão do leiloeiro, que abriu<br />
mão em favor dos menores. 22 O monte<br />
declarado pelos avaliadores foi de Rs.<br />
10:347$235, do qual deduziram-se<br />
algumas despesas, restando Rs.<br />
9:020$065. A administração deste
quinhão náo foi suficiente para dar aos<br />
herdeiros conforto e recursos<br />
suficientes no seu processo de<br />
educação, nem para manter entre eles<br />
uma biblioteca muito diversificada e rica<br />
para os padrões estudados.<br />
O conselheiro dr. Antônio Correia de<br />
Souza Costa resolveu fazer testamento<br />
quando se deu conta de 'quão precária<br />
é a vida'. Era lente da Faculdade de<br />
Medicina da Corte. 2 4 Devido ao seu<br />
cuidado teve tempo para definir tudo<br />
que julgou importante: instituiu sua<br />
mulher, dona Camila Barreto de Souza<br />
Costa, sua primeira testamenteira, e seu<br />
cunhado o segundo, nomeou tutores<br />
para os sete filhos, o que foi positivo,<br />
pois acabou morrendo em 16 de<br />
fevereiro de 1884, deixando-os todos<br />
menores. Tinha um lastro considerável<br />
em bens: apólices e ações, dinheiro em<br />
conta-corrente no Banco Rural<br />
Hipotecário, imóveis, jóias, ouro, prata,<br />
objetos preciosos como tinteiros e<br />
escrivaninhas de prata, móveis, livros<br />
avulsos e uma livraria contendo obras<br />
de medicina e outros assuntos. 25<br />
Excetuando alguns dicionários - dois<br />
volumes do Moraes, dois de um<br />
dicionário de português-francês, outro<br />
de português-francês-latim e um lote de<br />
diversas brochuras sem maiores<br />
informações sobre títulos ou autores -<br />
os demais livros eram sobre medicina,<br />
inclusive história da medicina, filosofia<br />
da medicina e dicionários sobre higiene,<br />
em um total de volumes avaliado em Rs.<br />
V o<br />
196$000. Os temas das obras estavam<br />
assim organizados:<br />
Teologia<br />
Acervo da biblioteca de<br />
Antônio Correia de Souza Costa<br />
Jurisprudência<br />
Ciências e Artes 123 lotes<br />
Belas letras 6 lotes<br />
História 4 lotes<br />
não especificados 2 lotes<br />
fonte: Inventário de Antônio Correia de Souza Costa - ATI<br />
A avaliação dos bens atingiu Rs.<br />
94:503$405. Na sua casa, um sobrado<br />
na rua das Marrecas n. 17, estava<br />
instalado seu gabinete, onde os livros<br />
eram guardados em estantes de<br />
vinhático. Todos os itens estavam<br />
cuidadosamente registrados no<br />
inventário. A biblioteca guardava<br />
semelhanças com um espaço reservado<br />
mais ao seu saber médico do que a um<br />
local de lazer através da leitura. Os<br />
jardins das delícias, nestes casos<br />
estudados, parecem se associar mais ao<br />
conhecimento científico do que a<br />
leituras diletantes.<br />
Apesar das dívidas, o inventário de<br />
Cândido Mendes de Almeida deixa<br />
entrever uma fortuna considerável,<br />
talvez desperdiçada por maus negócios.<br />
Sua biblioteca não foi descrita quanto<br />
aos livros de outros autores, mas com<br />
as obras de autoria do proprietário, e<br />
parecia concentrar eventuais 'encalhes'<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n ! 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag.93
A C E<br />
de edições de seus livros. O número de<br />
volumes indicados era de cinco mil<br />
exemplares de obras diversas, avaliadas<br />
em dezessete contos de réis, sobretudo<br />
de exemplares extras de tiragens de<br />
textos, como o do Atlas do Império do<br />
Brasil, de Lições de um pai a um filho,<br />
Direito mercantil e de Memórias do<br />
Maranhão. O direito de contrato com<br />
B.L. Qarnier para publicação de todos<br />
os Arestos do Supremo Tribunal foi<br />
avaliado em quatrocentos mil réis. 26<br />
Cândido Mendes de Almeida nasceu em<br />
vila do Brejo, no Maranhão, no dia 16<br />
de outubro de 1818, filho do capitão<br />
Fernando Mendes de Almeida e dona<br />
Esmeria Alves de Almeida. Tornou-se<br />
bacharel em direito pela Faculdade de<br />
Olinda em 1839. Entre 1841 e 1842 foi<br />
promotor público em São Luís e obteve,<br />
por concurso, a nomeação para o cargo<br />
de professor de geografia e história no<br />
Liceu São Luís. Posteriormente,<br />
estabeleceu-se na Corte, onde exerceu<br />
numerosos cargos, chegando a senador<br />
no ano de 187 1. Jurisconsulto,<br />
historiador, sócio do IHQB, oficial da<br />
Ordem da Rosa, produziu numerosas<br />
obras durante sua vida, algumas já<br />
citadas em seu inventário. 27<br />
Por ocasião de sua morte, em 1881, parecia<br />
estar significativamente endividado,<br />
existindo no processo de inventário<br />
numerosas cobranças à viúva e<br />
inventariante, sobretudo de livreiros e<br />
editores. Alguns cálculos registrados no<br />
inventário chegaram a um total de Rs.<br />
57:000$000 de dívidas do casal, com<br />
pag. 94, jan/dez 1995<br />
exceção dos juros. Estas dificuldades<br />
refletiram-se na família, inclusive na<br />
educação dos herdeiros, que passaram a<br />
ter problemas financeiros, recorrendo a<br />
negócios com antigas ou novas edições dos<br />
livros do pai com a finalidade de obter<br />
recursos suficientes para suas despesas. Em<br />
1885, por exemplo, seu filho Cândido,<br />
menor e púbere, acadêmico do quinto ano<br />
da Faculdade de Direito de Recife, solicitou<br />
autorização ao juiz para vender ao livreiro<br />
editor B. L. Qarnier "a compra da 2a. edição<br />
do Código Filipino e auxiliar jurídico,<br />
anotado por aquele Finado pela quantia de<br />
dois contos de réis (Rs. 2:000$000) paga<br />
logo que for publicar a obra e incumbindo-<br />
se o mesmo livreiro editor de pagar a<br />
impressão do papel e a encadernação e<br />
brochura a sua custa". O juiz autorizou. 20<br />
Seus credores tornaram-se presentes no<br />
inventário. Cândido Qil Castelo, por<br />
exemplo, pretendia receber<br />
determinada quantia emprestada ao<br />
senador. Para tanto apresentou uma<br />
'escritura de dívida e penhor', cuja<br />
quarta cláusula dizia:<br />
que o outorgante para garantia desta<br />
divida (doze contos de réis originais, à<br />
época do processo nove contos e<br />
cinqüenta e sete mil réis) dà em penhor<br />
(...), a biblioteca tanto jurídica como<br />
literária excedente os mil volumes e<br />
uma apólice de seguro de sua vida (...)<br />
no valor de mil e quinhentas libras<br />
esterlinas da companhia inglesa The<br />
Royal Insurance Company (...)."<br />
Portanto sua biblioteca pessoal já estava
empenhada em vida. As dívidas<br />
acumulavam-se e compromissos como<br />
este expuseram a integridade de sua<br />
biblioteca.<br />
Ma ocasião da avaliação dos bens. em 3 de<br />
junho de 1881. os funcionários<br />
encarregados dos registros dirigiram-se à<br />
rua do Catete para descrever seus bens no<br />
domicílio e depois deslocaram-se para a rua<br />
Sete de Setembro n. 62 para anotar os bens<br />
existentes no escritório, náo sendo precisos<br />
quanto à especificação dos livros que não<br />
fossem os de sua autoria.<br />
Em 18 de agosto a Livraria Laemmert<br />
apresentou ao juiz dos Órfãos da 2 a Vara<br />
uma fatura, devida por Cândido Mendes<br />
de Almeida, onde se incluíam despesas<br />
realizadas desde 14 de setembro de<br />
1880 até janeiro de 1881 com cromos,<br />
livros de história, poesias, folhinhas,<br />
revistas, livros didáticos, textos diversos<br />
sobre legislação, que somou Rs.<br />
3 0<br />
186S000.<br />
Os negócios com livros eram bastante<br />
comuns e o inventário estava juncado<br />
de questões que envolviam este tipo de<br />
situação. Os direitos de publicação do<br />
inventariado com a livraria Qarnier, seus<br />
direitos autorais e cerca de mil obras<br />
diversas que se encontravam<br />
espalhadas, segundo o próprio original,<br />
nas bibliotecas nacional e Fluminense.<br />
Preservavam direitos de propriedade das<br />
seguintes publicações: Atlas do Império<br />
do Brasil (original). Código Filipino (com<br />
comentários pessoais e aumentado),<br />
Direito mercantil e leis da marinha.<br />
V o<br />
Memórias do Maranhão e Direito civil<br />
eclesiástico brasileiro, além de<br />
numerosos opúsculos que publicou em<br />
seu nome. Devia a H. Laemmert, por<br />
outras compras ali relacionadas, um<br />
total de 174$000 réis. 31<br />
A correspondência de Cândido Mendes<br />
caracterizou-se pela grande ênfase dada<br />
por ele a questões relacionadas com a<br />
doação de suas obras, consultas sobre<br />
catálogos das mais diversas instituições<br />
e sobre o fato de ter predileção especial<br />
por determinadas leituras. Sua<br />
biblioteca, considerando-se a ênfase<br />
dada em toda sua vida aos livros, devia<br />
ser de uma riqueza significativa.<br />
Mantinha correspondência com José<br />
Carlos Rodrigues quando este morava<br />
nos Estados Unidos da América:<br />
discutiam custos de publicações de<br />
livros, comentavam artigos do Jornal do<br />
Commercio e comparavam os<br />
problemas da escravidão no Brasil e na<br />
América. Em uma carta ao visconde de<br />
Ourem sobre a vendagem do Atlas do<br />
Brasil e publicações da Sociedade<br />
Geográfica de Londres, confessou-se<br />
maníaco por geografia. 32 Esta condição<br />
parecia ser comum a diversas<br />
personalidades da época e as vendas de<br />
livros de viagem como os Baedeker e<br />
os Quide Joanne atestavam um alto<br />
nível de interesse.<br />
Consultava seus amigos em viagens ao<br />
exterior para obter indicações de livros<br />
e publicações, como parecia ser um<br />
hábito freqüente no grupo. Alguns se<br />
Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag 95
A C<br />
justificavam na correspondência<br />
alegando que eram mal servidos pelos<br />
livreiros locais. Foi uma personalidade<br />
de convívio muito freqüente com<br />
políticos, editores, juristas, destacando-<br />
se nos meios político-culturais que<br />
compunham o círculo de leitores."<br />
Manuel da Costa Honorato, cuidadoso com<br />
o destino de seus livros, não aguardou a<br />
decisão da posteridade para definir seus<br />
caminhos. Preparou uma verba testamentária<br />
onde deixou clara a destinaçáo de todos os<br />
seus bens. Era bacharel em ciências jurídicas<br />
formado por Recife, sacerdote e vigário da<br />
igreja da Glória. Durante sua vida trabalhou<br />
como professor, tornou-se sócio do Instituto<br />
Histórico e Geográfico Brasileiro, foi muito<br />
importante para o conforto de feridos e<br />
desvalidos da Guerra do Paraguai, prestando<br />
serviços através de hospital que criou no<br />
Convento de Santo Antônio. Morreu em 1891<br />
e seu irmão dr. João Batista da Costa<br />
Honorato foi seu testamenteiro. Deixou<br />
nomeados 17 herdeiros entre irmãos,<br />
sobrinhos, amigos e afilhados de batismo. 34<br />
pag 96, jan/dez 1995<br />
Foi extremamente minucioso quanto à<br />
distribuição de seus bens em dinheiro,<br />
jóias, mitra, peitoral, distintivos<br />
pontificados, o cálice de seu uso e um<br />
grande missal. Seus sapatos, roupa<br />
branca, crucifixo de marfim e<br />
paramentos receberam destinaçáo<br />
precisa, definindo uma série de<br />
situações que parecia não querer deixar<br />
pendentes, inclusive a forma de<br />
sustento de uma 'velhinha', sua tia, que<br />
morava em Pernambuco.<br />
E como não poderia listar todas as suas<br />
obras no espaço do livro da verba<br />
testamentária, deixou-os repartidos por<br />
temática para cada um que julgava mais<br />
compatível com sua utilização: "... os livros<br />
de assentamentos militares para o tenente<br />
Jorge Gustavo Tinoco da Silva; os de<br />
matérias eclesiásticas para o padre João<br />
Martins Alves de Loreto; a Coleção da<br />
Ordem do Dia do Exército para o coronel<br />
Joaquim Fernandes de Andrade e Silva; os<br />
de matéria de direito para o irmão João ...";<br />
os de literatura e 'outros' deveriam ser<br />
distribuídos entre o mesmo irmão João, o<br />
dr. Pilar Tinoco e o irmão José. ria avaliação<br />
os livros chegaram a Rs. 90$000, enquanto<br />
que as outras heranças líquidas chegaram<br />
a Rs. 2:500$000, Rs. 10:000$000 e Rs.<br />
5:902$733 com distribuições específicas<br />
em importâncias que variavam de Rs.<br />
5$000 a Rs. 500$000, salvo as heranças<br />
mais significativas restritas aos irmãos. 39<br />
O borráo do inventário e da partilha do<br />
advogado dr. Luiz José de Carvalho Melo<br />
Matos, ambos de 1882, foram muito<br />
importantes para detalhar uma biblioteca<br />
E
R V O<br />
particular dos fins do século XIX. A viúva e<br />
inventariante d. Mariana de Melo Souza<br />
Menezes Matos foi a declarante dos bens<br />
do casal. Os imóveis, um terreno e um<br />
prédio, estavam localizados na praia de<br />
Botafogo n. 156 e eram foreiros do marquês<br />
de Olinda a quem os proprietários pagavam<br />
foro de três mil réis, por cada braça de<br />
frente sobre a praia. Era um prédio de ótima<br />
qualidade, com quatro salas, três alcovas,<br />
três quartos, com a parte superior em telha<br />
vã, mas precisando de alguns reparos,<br />
sendo por isto avaliado em Rs.<br />
40:000$000. 36<br />
O casal possuía também sete escravos,<br />
móveis e demais alfaias que<br />
compunham o conjunto de bens.<br />
Específicos das instalações do gabinete<br />
eram: uma secretária de jacarandá,<br />
outra de mogno, uma estante de pinho<br />
e o conjunto de livros listados pelos<br />
avaliadores. O total era de 431 obras,<br />
com lotes organizados por temas, e às<br />
vezes autores:<br />
Acervo da biblioteca de<br />
Luiz José de Carvalho Melo Natos<br />
Teologia 9 lotes<br />
Jurisprudência 223 lotes<br />
Ciências e Artes 26 lotes<br />
Belas letras 96 lotes<br />
História 77 lotes<br />
Fonte: Inventário de L J. de Carvalho Melo Matos - Ali<br />
A maioria das obras compunha-se de títulos<br />
relativos a direito e jurisprudência (51,7%<br />
do total). 37 Quanto aos idiomas, havia 146<br />
títulos em português, 187 em francês, 43<br />
em inglês, 19 em italiano, dois em alemão,<br />
cinco em espanhol, um em grego e sete<br />
em latim. Ho final da listagem os avaliadores<br />
registraram que o valor correspondente aos<br />
livros era de Rs. 2:475$200, aí incluído o<br />
preço de um cofre.<br />
Outro jurista com livros registrados em<br />
inventário foi Carlos Frederico Taylor. 38<br />
Falecido em julho de 1890 e tendo por<br />
inventariante o conselheiro dr. Eduardo<br />
de Andrade Pinto, deixou testamento<br />
legando sua fortuna para numerosos<br />
parentes e amigos, além de ex-escravos<br />
e dependentes. Seu herdeiro universal<br />
era o filho único, Carlos Taylor. Seus<br />
bens estavam concentrados sobretudo<br />
em propriedades urbanas, algumas<br />
fazendas, carros (uma Victoria, um<br />
Phieton e um Tilbury), móveis, pratas,<br />
jóias e livros, esses últimos orçados no<br />
inventário em Rs. 246$700. O<br />
patrimônio inventariado chegou a ser<br />
3 9<br />
avaliado em Rs. 1.456:506$500.<br />
Foram listados no inventário quarenta itens<br />
em livros, sendo mencionadas em<br />
conjunto, sem maiores referências, obras<br />
em brochura localizadas em casa situada<br />
na rua São José n. 5. Porém, a casa onde<br />
foram localizados os livros náo era utilizada<br />
para moradia, pois a indicação de<br />
residência era na rua Marquês de São<br />
Vicente n. 20, em uma chácara que ficou<br />
entre os legados da viúva.<br />
Ha descrição das obras registravam-se<br />
sobretudo livros pertinentes ao exercício<br />
profissional: 32 lotes de obras de direito<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 85-104, jan/dez 1995-pag97
A C E<br />
comercial, civil e códigos criminais; dois<br />
de revistas judiciárias; cinco de obras de<br />
literatura e história e, nos itens 38 e 39,<br />
a informação 'oitenta e dois volumes<br />
diversos", avaliados em oitenta e dois mil<br />
réis, e 'cinqüenta e duas brochuras<br />
diversas" em quinhentos réis cada uma,<br />
totalizando vinte mil réis. Esta não devia<br />
ser a biblioteca particular completa do dr.<br />
Taylor. Tenho como provável que fosse<br />
um acervo utilizado para consultas<br />
profissionais, pela sua pequena dimensão<br />
e por não estar localizada em seu imóvel<br />
residencial. No entanto, este pequeno<br />
acervo foi destinado à viúva, conforme<br />
ficou caracterizado na partilha.<br />
(...) O inventariante, devidamente<br />
autorizado pagou a d. Paulina Luiza<br />
Croix Taylor, viúva do inventariado, o<br />
seu dote na importância de Rs.<br />
50:000$000, fazendo-se pagamento<br />
pela maneira seguinte: Rs. 6:317$700<br />
em bens a saber, carros na rua Marquês<br />
de S. Vicente n. 20, animais e arreios<br />
na mesma rua e número, móveis e<br />
livros (grifo meu) na rua S. José n. 5,<br />
móveis, animais, liteira... 40<br />
Sizenando Barreto Nabuco de Araújo era<br />
filho do conselheiro José Tomaz Nabuco<br />
de Araújo. Nasceu em Pernambuco,<br />
graduou-se em direito por São Paulo,<br />
vindo depois para o Rio de Janeiro onde<br />
exerceu suas tarefas profissionais como<br />
advogado e promotor público. Poi<br />
deputado à Assembléia da província do<br />
Rio e à Assembléia Qeral por<br />
Pernambuco. Considerado por<br />
pag 98. Jan/dez 1995<br />
Sacramento Blake um grande talento,<br />
dedicou-se também à literatura. 41 Seu<br />
inventário foi aberto pelo genro em 11<br />
de março de 1892. Na ocasião seus dois<br />
filhos e herdeiros - Heloise Nabuco<br />
Leonardos e José Tomaz Nabuco de<br />
Araújo - tinham respectivamente 25 e<br />
26 anos e passaram a tarefa de<br />
inventariante para Othon Leonardos<br />
Júnior, marido de Heloise. 42<br />
O dr. Sizenando faleceu sem testamento e<br />
residia à época em um quarto na ladeira da<br />
Glória n. 26. A relação dos móveis, livros e<br />
outros objetos neste endereço e no seu<br />
escritório na rua Sete de Setembro<br />
caracterizou bem as diferenças que<br />
começavam a definir-se no final do século,<br />
em relação aos padrões de vida urbanos<br />
no Rio de Janeiro.<br />
No quarto da ladeira da Glória os objetos e<br />
móveis não diferiam dos de seus colegas<br />
de profissão: um armário para livros, um<br />
outro com gavetas para papéis, uma<br />
escrivaninha, um lote de folhetos diversos<br />
e 37 volumes de obras não discriminadas.<br />
Na relação dos móveis, livros e outros<br />
objetos que existiam em seu escritório na<br />
rua Sete de Setembro n. 83 o ambiente era<br />
mais requintado e moderno, além de<br />
abrigar a maior parte de sua biblioteca<br />
composta de 451 volumes de obras<br />
diversas, com mapas, folhetos, litografias,<br />
gravura, além do mobiliário, que incluía<br />
biombo, armários para a guarda de livros,<br />
geladeira, mesa de escritório, cadeiras,<br />
relógio de parede. 43<br />
Os bens descritos foram levados a
R V O<br />
leilão, pois os credores deveriam ser<br />
ressarcidos e para tal os herdeiros<br />
abriram mão da herança. O leiloeiro<br />
Afonso A. Munes arrecadou o produto<br />
líquido de Rs. 2:610$050, de onde<br />
foram deduzidas as despesas do<br />
inventariante, ficando um saldo de Rs.<br />
702$610 à disposição dos credores. 44<br />
Somente nos itens que foram vendidos<br />
em leilão e registrados no inventário,<br />
pudemos obter uma indicação mais<br />
precisa dos livros que possuía, tais<br />
como mapas da província de São Paulo,<br />
do Brasil, cinco lotes de folhetos, sete<br />
volumes de códigos criminais italianos,<br />
nove volumes de direito criminal, 14<br />
volumes do Código Felício dos Santos,<br />
dez volumes de Ação Pública e Servil,<br />
108 volumes de legislação brasileira,<br />
entre outros.<br />
O dr. Sizenando era sócio do dr. Cândido<br />
Mendes de Almeida em um negócio de<br />
abastecimento de carnes verdes que havia<br />
falido. Pelo processo de inventário ficou<br />
clara a urgência na arrecadação para<br />
ressarcir os credores. A quantia arrecadada<br />
no leilão ficava muito aquém das dívidas<br />
do inventariado (Rs. 3:410$ 162), mesmo<br />
tendo seus herdeiros aberto mào da<br />
herança. Seus bens, reunidos com os<br />
recursos obtidos na venda de sua<br />
biblioteca, não foram suficientes para cobrir<br />
as dívidas que tinha feito durante a vida.<br />
Alguns profissionais passaram eles mesmos<br />
a organizar formas de facilitar a divulgação<br />
de obras entre seus confrades. Entre os<br />
médicos era cada vez mais acentuada esta<br />
tendência. Desde a criação da Escola de<br />
Medicina do Rio de Janeiro, em 1808, que<br />
se chamou inicialmente Escola Anatômica,<br />
Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro,<br />
denominando-se depois, em 1 s de abril de<br />
1813, Academia Médico-Cirúrgica do Rio de<br />
Janeiro, a presença de estudantes e<br />
médicos fez crescer a necessidade de<br />
publicações pertinentes na cidade, no seu<br />
estudo da medicina brasileira, Licurgo<br />
Santos Filho enfatizou a importância da<br />
escola francesa na formação dos médicos,<br />
seja por estudos na França, pelo consumo<br />
de material médico com essa origem ou<br />
pela tendência predominante da língua<br />
francesa na bibliografia utilizada, tanto na<br />
biblioteca dos cursos de medicina quanto<br />
na incidência de ofertas de publicações.<br />
A enumeração ora feita dos<br />
pesquisadores médicos franceses, bem<br />
mais numerosos do que os ingleses e<br />
alemães, patenteia o nível cultural<br />
atingido pela França no século XIX.<br />
Paris era então a capital mundial da<br />
cultura. Pois lá se formaram ou se<br />
aperfeiçoaram muitos médicos<br />
brasileiros. E foi decisiva a influência<br />
gaulesa no ensino médico-cirúrgico. no<br />
Brasil, que se exerceu através do<br />
material escolar, dos livros, dos<br />
métodos, dos regulamentos, dos<br />
programas, das leituras. 45<br />
Em 1884, Carlos Antônio de Paula<br />
Costa, bibliotecário da Faculdade de<br />
Medicina do Rio de Janeiro, preparou a<br />
Exposição Médica Brasileira e organizou<br />
seu catálogo, onde descriminou 8.079<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag,99
A C E<br />
títulos nacionais e estrangeiros,<br />
lançando em seguida uma nova<br />
publicação. Movimento científico<br />
médico brasileiro: anuário médico<br />
brasileiro, que foi divulgada de 1886 até<br />
1892. As indicações bibliográficas<br />
chegaram a atingir nove mil títulos,<br />
sendo a maioria das referências<br />
extraídas de obras francesas. 46<br />
O mais destacado exemplo de uma<br />
biblioteca médica é a de Luís<br />
Pientzenauer. Esta hipótese foi<br />
reforçada consultando a obra de Qiffoni.<br />
Mo arrolamento que fez sobre os<br />
médicos e a produção de teses e outros<br />
textos, percebe-se o interesse entre os<br />
estudiosos de medicina por obras de<br />
cunho literário ou histórico. Aparecem<br />
muito mais epígrafes inspiradas em<br />
poemas e romances do que outra<br />
citação cientifica da área. Gilberto<br />
Freire, em sua obra Ordem e progresso,<br />
enfatiza a formação humanista desses<br />
indivíduos, que usavam pseudônimos<br />
de franceses ou ingleses ilustres à guisa<br />
de homenagens ou por reconhecer neles<br />
"perfeita e idêntica comunhão com as<br />
nossas opiniões, casados com as nossas<br />
idéias". 47 Também na obra de Licurgo<br />
Santos está enfatizada essa tendência,<br />
que abrange "letras poéticas,<br />
romanescas e históricas". 48<br />
Os inventários que registraram a<br />
existência destes livros e revistas dentre<br />
pag, 100, Jan/dez 1995<br />
os acervos de médicos e advogados não<br />
são muito numerosos, fias unidos a<br />
outras fontes, dentro do universo<br />
pesquisado, é provável que esta<br />
tendência representasse uma corrente<br />
predominante, ou pelo menos fosse<br />
representativa das transformações que<br />
ocorreram nas relações entre homens e<br />
livros na passagem do século. Os livros<br />
que se perpetuaram através dos<br />
registros dos inventários privilegiavam<br />
a necessidade de ampliação dos<br />
conhecimentos profissionais, tanto no<br />
caso dos advogados, que tinham<br />
preferencialmente livros de direito,<br />
quanto no dos médicos, que ostentavam<br />
obras quase que exclusivamente<br />
pertencentes ao campo da medicina,<br />
completadas por literatura.<br />
Advogados e médicos tornaram-se, cada<br />
vez mais, clientes potenciais para<br />
livreiros e bibliófilos, tendência<br />
compulsada em catálogos e anúncios<br />
que privilegiavam os temas de interesse<br />
profissional. A história do livro, das<br />
bibliotecas e das relações culturais no<br />
Brasil, na transição do século XIX para<br />
o XX, ainda necessita de estudos que<br />
aprofundem melhor o conhecimento<br />
sobre os leitores e suas leituras, porque<br />
as bibliotecas particulares precisam da<br />
diligência dos historiadores, que<br />
deveriam cuidar delas como verdadeiros<br />
jardins das delícias.
R V O<br />
N O T A S<br />
1. ROCHE, Daniel. "Lumières". In: FIQU1ER, Richard (dir.). La Bibliothèque. Paris:<br />
Autrement, (1992) pp. 92-94.<br />
2. Idem, ibidem, p. 94.<br />
3. Ver NADAUD, Alain. "Le Jardin Prive". In: FIGUIER, Richard , op. cit., pp. 207-212.<br />
4. ARQUIVO NACIONAL. Rio de Janeiro. Seção de Documentos Privados e Inventários,<br />
Testamentos, Verbas Testamentárias.<br />
5. BARMAN, Roderick Jean. "A formação dos grupos dirigentes políticos do Segundo<br />
Reinado: a aplicação da prosopografia e dos métodos quantitativos à história do<br />
Brasil Imperial*. In: RltlQB. Anais do Congresso do Segundo Reinado. Rio de<br />
Janeiro, 2:61-86,1984.<br />
6. Ver, por exemplo, os seguintes inventários no <strong>Arquivo</strong> Macional: José Tomás<br />
Nabuco de Araújo, cx. 4.174, n s 2.108, 1850; Carlos Ferreira França, cx. 106, n 9<br />
845, 1868 e Francisco de Carvalho Figueira de Melo, cx. 7.057, maço 373, n fi<br />
3.364, 1875.<br />
7. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro. História geral da medicina brasileira. São Paulo:<br />
Hucitec/Ed. da Universidade de Sào Paulo, 1991, 2vols.; BARMAN, Roderick Jean.<br />
"The role of the law graduate in the political elite of Imperial Brazil". In: Journal<br />
of interamerican studies and world affairs. 18(4):423-450, nov. 1976; CARVALHO,<br />
José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Ed<br />
Universidade de Brasília, 1981.<br />
8. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries estatísticas<br />
retrospectivas. Separata do Anuário estatístico do Brasil, ano V, 1939/40. Ed. fac-<br />
similar, 1941. Rio de Janeiro: IBGE, 1986 (Repertório estatístico do Brasil. Quadros<br />
retrospectivos, 1).<br />
9. Cf. NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no<br />
Rio de Janeiro da virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />
10. FREIRE, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro/Brasília: J. Olímpio/INL. 1974,<br />
2vols. Do mesmo autor, ver Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: J.<br />
Olímpio, 1960, 2vols.<br />
11. Idem, ibidem.<br />
12. ARQUIVO NACIONAL. Inventários de Luiz Pientzenauer, cx. 4.286, n s 551, 1880.<br />
Luiz José de Carvalho Melo Matos, maço 490, n 8 9.550, 1882 e também do mesmo<br />
borrão de partilha, maço 197, cx. 6.880, n 9 3.860, 1885. Seção de Documentos<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* l -2. p. 85-104. jan/dei 1995 - pag 101
A C E<br />
Privados. Antônio Ferreira Viana, cód. 02, cx. 15, CP 10, does. 07 e 08, 1891.<br />
13. NEEDELL, Jeffrey D, op. cit., pp. 127-142; BELLO, José Maria. Memórias. Rio de<br />
Janeiro: J. Olímpio, 1958, pp. 35-39.<br />
14. Ver NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das e FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone<br />
da Cruz. 'O medo dos 'abomináveis princípios franceses': a censura dos livros no<br />
início do século XIX no Brasil". In: Acervo. Revista do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Rio de<br />
Janeiro: v.4, n. 1, jan./jun. 1989, pp. 113-120. Das mesmas autoras, "Livreiros<br />
franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823". In: História hoje: balanço e perspectivas.<br />
IV Encontro Regional da ANPUIi-RJ, 16/19out. 1990. Rio de Janeiro: Taurus Timbre,<br />
pp. 190-202.<br />
1 5. CHARTIER, Roger e ROCHE, Daniel. "Le livre: un changement de perspective". In:<br />
LE QOFF, Jacques e NORA, Pierre (dir.). Faire de 1'histoire: nouveaux objects.<br />
Paris: Qallimard, 1974, pp. 115-136.<br />
16. CHARTIER, Roger (dir.). Pratique de la lecture. Paris: Rivages, 1985; ROCHE, Daniel.<br />
Le peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XVIIIe siècle. Paris: Aubin<br />
Montaigne, 1981; DARNTON, Robert. O lado oculto da Revolução. Mesmer e o<br />
final do Iluminismo na França. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; MARION,<br />
Michel. Recherches sur les bibliothèques privées à Paris au millieu du XVIIIe siècle<br />
(1750-1759). Paris: Bibliothèque Nationale, 1978; PARENT-LANDEUR, Françoise.<br />
Les cabinets de lecture: la lecture publique à Paris sous la Restauration. Paris:<br />
Pillot, 1982.<br />
17. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. D. Carolina Pinto Rebouças, esposa do<br />
conselheiro André Pereira Rebouças. Caixa 4.029, n. 693, 1865.<br />
18. Idem, ibidem, fl. 14.<br />
19. Idem, ibidem, fls. 14-15.<br />
20. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />
ns. 24-29.<br />
21. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />
anexo fl. 2.<br />
22.0 livro de Ponson de Terrail, O Rocambole, aparecia com freqüência nos anúncios<br />
do Jornal do Commercio e parece ter sido muito apreciado. O conjunto de<br />
aventuras chegou a formar vários volumes, alguns deles incluídos na biblioteca<br />
do dr. Luiz Pientzenauer. <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa<br />
4.286, n. 551, 1880, anexo fl. 2.<br />
pag. 102. jan/dez 1995
R V O<br />
23. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />
fls. 55-57.<br />
24. ARQUIVO NACIONAL. Inventário/Testamento. Antônio Correia de Souza Costa.<br />
Caixa 4.007, n. 294, 1897, fl. 3.<br />
25. Idem, ibidem, fls. 37-44.<br />
26. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881.<br />
27. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881,<br />
fls. 125-129.<br />
28. Idem, ibidem.<br />
29. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881,<br />
anexo 2.<br />
30. Idem, ibidem.<br />
31. Idem, ibidem.<br />
32. INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Col. Ourem. L. 147, doe. 17.<br />
Col. A. H. Leal. L. 466, f. 48; BN-SMss I - 3,1,8; I - 3,1,9; I - 3,1,10; I - 3,1,1 1; I -<br />
3,1,12.<br />
33. BN-SMss 1-3,1,13,1-3,1,14.<br />
34. ARQUIVO NACIONAL. Verba testamentária. Manuel da Costa Honorato. Livro 58,<br />
n 8 129, galeria B, 1891, n. 38. Divisão dos bens.<br />
35. Idem, ibidem.<br />
36. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço 490, n 9<br />
9.550, 1882, tts. 1-3; Borrào de Partilha. Maço 197, caixa 6.880, n. 3.860, 1885;<br />
Borrào de Partilha. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço 197, caixa 6.880, n.<br />
3.860, 1885.<br />
37. ARQUIVO NACIONAL. Borrào de Partilha. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço<br />
197, caixa 6.880, n. 3.860, 1885, fls. 15-16. <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />
38. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Carlos Frederico Taylor. Caixa 105, n. 840, galeria<br />
A, 1890, 2 v.<br />
39. Idem, ibidem.<br />
40.Idem, ibidem, ns. 367 e 368.<br />
41.ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Sizenando Barreto Nabuco de Araújo. Caixa<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« I -2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag. 105
4.1 19, n. 1.051, galeria A , 1892.<br />
42. Idem, ibidem, fls. 10 e 11.<br />
43. Idem, ibidem.<br />
44. Idem, ibidem.<br />
45. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro, op.cit., v.2, p. 12.<br />
46. FREIRE, Gilberto, op.cit., v. 1, p. LXIV.<br />
47. Idem, ibidem.<br />
48. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro, op. cit., v. 2, p. 12.<br />
A B S T R A C T<br />
As elsewhere, inventories are an important source for the study of private libraries of<br />
physicians and lawyers from Rio de Janeiro, at the turn of the 19 th to the 20 t h Century.<br />
Their wide-ranging contents witness their importance for the city cultural life. On the<br />
other hand, the care their owners bestowed them shows that this libraries had been<br />
converted for them into a kind of Garden of Eden.<br />
R É S U M É<br />
A Rio de Janeiro, comme d'ailleurs, les inventaires constituent une de plus importantes<br />
sources pour 1'étude des bibliotèques privées de quelques catégories socio-professionnelles,<br />
comme les médicins et les avocats, au tournant de XX e siècle. Quelques-unes étaient três<br />
riches et diversifiées, ce quétalait leur importance pour leurs propriétaires et pour Ia vie<br />
culturelle de 1'époque. Le traitement soigné et sophistiqué dont elles étaient 1'objet en<br />
faisait de quelque sorte des Jardins des Délices.<br />
pag. 104. jan/dez 1995
Vem, ó rlinfa, ao Cajueiro.<br />
Que no oiteiro desprezamos;<br />
Que em seus ramos tortuosos<br />
Amorosos frutos dá.<br />
(O cajueiro do amor. de<br />
Manuel Inácio da Silva<br />
Alvarenga)<br />
O'<br />
Lorelai Brilhante Kury<br />
Doutora em História pela Ecole des Hautes Etudes<br />
en Sciences Sociales (Paris).<br />
Oswaldo Munteal Filho<br />
Historiador do Setor de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Doutorando em<br />
História Social - IFCS/UERJ.<br />
um es<br />
s estudos que têm por objeto<br />
a cultura científica, os<br />
espaços de sociabilidade<br />
intelectual no Brasil e a recepção de<br />
leituras de caráter especulativo ainda<br />
são relativamente escassos. Em geral,<br />
se dá ênfase ao 'atraso' do<br />
desenvolvimento científico e da cultura<br />
letrada brasileira, buscando-se suas<br />
causas na atuação 'retrógrada' da Igreja<br />
- dos jesuítas em particular -, ou na<br />
Cultura científica e<br />
sociaLilidade<br />
intelectual no Brasil<br />
setecentistao<br />
o acerca cia oociecLacLe<br />
CLAVRA:<br />
POEMAS ERÓTICOS.<br />
axcnrao uiMiiifo<br />
v<br />
tlllQA<br />
Literária<br />
«do Rio (fie Janeiro<br />
dependência econômica e<br />
intelectual com relação a<br />
potências internacionais.<br />
Nossa proposta é desenvolver<br />
alguns temas que poderão ser<br />
úteis para a compreensão do<br />
lugar ocupado pela ciência na cultura<br />
letrada brasileira no final do século<br />
XVIII. Parte da historiografia referente a<br />
esse tema tende a acentuar a<br />
'defasagem' existente entre os projetos<br />
idealizados pelos reformistas ilustrados<br />
luso-brasileiros e a efetiva concretização<br />
destes projetos. Este hipotético<br />
descompasso entre pensamento e ação<br />
explicaria, de certo modo, o atraso' do<br />
Brasil e de Portugal relativamente à<br />
Europa e à América do Norte.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n° 1-2, p. 103-122. jan/dez 199S - pag. 105
A C E<br />
considerar entretanto que as discussões<br />
e as idéias científicas não são apenas<br />
um campo de preparação da aplicação<br />
prática de teorias. Os espaços de socia-<br />
bilidade intelectual, constituídos pelas<br />
academias, museus de história natural,<br />
sociedades científicas e literárias e as<br />
demais agremiações congêneres,<br />
formam por si mesmos um campo de<br />
dinamismo e transformação científica e<br />
cultural, independentemente da eficácia<br />
técnica proporcionada pela utilização da<br />
ciência.<br />
Mo Brasil, pode-se registrar a presença<br />
destes pólos de atração e difusão<br />
cultural desde os anos vinte do século<br />
XVIII. A Sociedade Literária do Rio de<br />
Janeiro constitui um exemplo de<br />
instituição letrada particularmente<br />
significativo por causa da maneira pela<br />
qual seus membros concebem a<br />
natureza brasileira. A Sociedade<br />
Literária é uma das primeiras<br />
instituições da Colônia que integra em<br />
seu programa a necessidade de<br />
descrever os produtos naturais<br />
brasileiros com base nos métodos<br />
fornecidos pela história natural e a partir<br />
de objetivos pragmáticos que visavam<br />
a utilização imediata destes produtos.<br />
Desde o final do século XVIII este tipo<br />
de apreensão científica do mundo<br />
natural começa a fazer parte das<br />
atividades desenvolvidas normalmente<br />
pela administração do Estado<br />
português. A pesquisa e a exploração<br />
das riquezas naturais brasileiras sob<br />
este novo modelo de conhecimento<br />
pag. 106. jan/dez 1995<br />
marcarão fortemente o conjunto da<br />
cultura brasileira desde esta época e<br />
durante todo o século XIX. A<br />
historiadora da Ilustração brasileira<br />
Maria Odila Leite da Silva Dias considera<br />
que o estudo deste movimento<br />
intelectual e prático de conhecimento<br />
da natureza brasileira "oferece um<br />
interesse mais específico para o estudo<br />
das origens de uma cultura brasileira,<br />
do que a análise das primeiras<br />
manifestações revolucionárias e<br />
republicanas da Colônia..." 1<br />
A partir deste tipo de consideração,<br />
importa-nos aqui fazer não um estudo<br />
de 'história da ciência' strícto sensu,<br />
mas investigar a cultura luso-brasileira,<br />
entendendo que a concepção de ciência<br />
veiculada pela Sociedade Literária do<br />
Rio de Janeiro faz parte da política<br />
pombalina de reformas efetivadas a<br />
partir da década de 1750 e defendidas<br />
por um determinado grupo de<br />
intelectuais 'ilustrados'. 2<br />
O Absolutismo Ilustrado 3 vai tentar o<br />
difícil equilíbrio entre uma monarquia<br />
que sustentava setores improdutivos,<br />
ligados à antiga estrutura agrária e de<br />
Corte, e o pensamento iluminista 4 de<br />
base anticlerical e potencialmente<br />
critico com relação às estruturas de<br />
poder do Antigo Regime. A<br />
especificidade da Ilustração portuguesa<br />
reside, entre outros fatores, na adoção<br />
de uma concepção pragmática de<br />
utilização das 'artes', aliada a um<br />
sentimento de decadência do Reino. 5 A
'decadência' portuguesa já se fazia notar<br />
na Europa, e mesmo muitos 'filósofos'<br />
reconheciam a total dependência de<br />
Portugal com relação à Inglaterra. A<br />
pequenez do território português e da<br />
sua população pareciam incapacitar o<br />
Reino para o bom aproveitamento das<br />
riquezas de suas conquistas. O abade<br />
Raynal, por exemplo, em sua famosa<br />
obra História filosófica e política dos<br />
estabelecimentos e do comércio dos<br />
europeus nas duas índias, escreve que<br />
"desde que a Grã-Bretanha o condenou<br />
(a Portugal) à inação, tombou numa<br />
barbárie quase inacreditável..."*<br />
Os próprios ilustrados lusos sentiam a<br />
necessidade de transformações<br />
imediatas da economia, vendo no<br />
desenvolvimento da 'indústria'<br />
(compreendida como atividade<br />
empreendedora em geral, e nào no<br />
sentido atual da palavra) a tábua de<br />
salvação do Reino. Daí a importância<br />
dada à agricultura. Era fundamental a<br />
pesquisa de novas técnicas para<br />
promover uma maior produtividade das<br />
culturas, bem como todo um trabalho<br />
de aclimatação de novas plantas que<br />
tivessem alguma utilidade 'para o<br />
comércio e para as artes', como se dizia<br />
na época. É necessário frisar aqui a<br />
importância que vão assumir as ciências<br />
da natureza como possibilitadoras<br />
destes 'progressos'.<br />
A concepção de 'riqueza' para os<br />
ilustrados portugueses vai se basear na<br />
noção da natureza encarada de forma<br />
V o<br />
quase divina, produtora de valores,<br />
onde cabia ao homem tirar proveito<br />
dela, por meio da agricultura e com o<br />
auxilio da história natural. Um dos<br />
principais representantes deste tipo de<br />
concepção foi Domenico Vandelli, que<br />
adota o "ecletismo reformista" 7 pelo<br />
qual se posiciona em favor de algumas<br />
idéias antimercantilistas, adotando<br />
tanto os princípios fisiocráticos italianos<br />
e franceses quanto algumas noções de<br />
Adam Smith. Somente a agricultura<br />
apresentaria caráter produtivo e,<br />
segundo os fisiocratas lusos, era<br />
fundamental a proteção às atividades<br />
econômicas. Em primeiro lugar devia-se<br />
proteger a atividade agrícola, em<br />
segundo a comercial, e em último a<br />
industrial. Nas palavras de Vandelli:<br />
"Mão se dando preferência à agricultura<br />
sobre as fábricas, terminarão por se<br />
arruinar ambas as atividades". 8 Meste<br />
sentido, a ilustração portuguesa vai<br />
incorporar diversos aspectos da<br />
fisiocracia, na busca de um governo<br />
regulado pelas leis da natureza.<br />
As concepções de riqueza e natureza<br />
dos 'ilustrados' luso-brasileiros<br />
contribuem para a valorização da<br />
história natural, ciência que permitiria<br />
descrever as "produções" dos "três<br />
reinos da natureza", nomeá-las e, mais<br />
ainda, conhecer seus usos e<br />
propriedades, assim como saber<br />
extingui-las ou multiplicá-las. 9<br />
A produção intelectual do século XVIII<br />
em Portugal é rica em autores que<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n'-' 1-2. p. 105-122. jan/dez 1995 - pag 107
A C E<br />
defendem uma vertente pragmática do<br />
Iluminismo. 1 0 Escolhemos aqui as<br />
afirmações de Domenico Vandelli"<br />
como exemplares para a compreensão<br />
das relações que estes ilustrados<br />
estabeleciam entre o progresso do Reino<br />
e o desenvolvimento da história natural.<br />
Este naturalista italiano, Domenico por<br />
nascimento, fora convidado por<br />
Pombal 12 para lecionar inicialmente no<br />
Colégio Real dos nobres de Lisboa e<br />
depois na Universidade de Coimbra,<br />
onde foi lente de química e história<br />
natural. Vandelli era ainda diretor do<br />
Real Jardim Botânico, onde realizava<br />
numerosas tentativas de aclimatação de<br />
plantas 'úteis'.<br />
Em uma memória econômica da<br />
Academia Real das Ciências de Lisboa,<br />
Vandelli escreve:<br />
não sendo outra coisa as manufaturas,<br />
ou fábricas, que um preparo,<br />
purificação, ou modificação das<br />
produções naturais para algum uso,<br />
assim os primeiros conhecimentos, que<br />
devemos ter são das mesmas<br />
produções da natureza, como base, ou<br />
primeiras materiais... 13<br />
Ou ainda, numa obra de história natural:<br />
O homem só com a força da sua<br />
imaginação não podia comer, nem<br />
vestir-se, nem executar os seus<br />
desejos; enfim nada podia fazer sem o<br />
auxilio das produções naturais, que são<br />
a base de todas as artes, de que<br />
dependem, principalmente os cômodos<br />
e prazeres da vida. Pois, que o<br />
conhecimento delas contribui à<br />
pag. 108. Jan/dez 1995<br />
felicidade humana. 14<br />
Assim é possível afirmar que o<br />
movimento ilustrado português se<br />
caracterizou pelo uso pragmático das<br />
ciências. Este uso representou um<br />
esforço decisivo das autoridades e dos<br />
grupos ilustrados luso-brasileiros no<br />
sentido da adequação do conhecimento<br />
acumulado às necessidades de uma<br />
retomada da exploração colonial, de<br />
uma redefinição, podemos dizer, do<br />
'exclusivo' metropolitano. Importava<br />
agora, investir num outro ramo que<br />
redundasse na acumulação das<br />
riquezas, fundamentalmente a<br />
agricultura.<br />
G L A V R A :<br />
POEMAS ERÓTICOS<br />
DE HUM AMERICANO.<br />
Carmmibus quíra mijerarmm oB.<br />
üvia rerum :<br />
Prtmia fi Jludio confequar ifta<br />
fst eft.<br />
Ovid.<br />
Alvarenga, Manuel Inácio da Silva. Glaura,<br />
poemas eróticos. Rio de Janeiro: Imprensa<br />
<strong>Nacional</strong>, 1943.
R V O<br />
Com a criação da Academia Real das<br />
Ciências de Lisboa, em 31 de dezembro<br />
de 1779, os quadros intelectuais das<br />
mais variadas vertentes ilustradas<br />
passaram a integrá-la. Esta instituição<br />
contava com o apoio e beneplácito da<br />
rainha d. Maria 1, que manteve muitos<br />
dos ministros da época pombalina na<br />
sua própria administração e à frente dos<br />
planos e projetos da Academia. Como<br />
já frisamos aqui, muitos ilustrados que<br />
participaram da 'governação' pombalina<br />
se uniram em torno da formação de uma<br />
academia que fosse capaz de elaborar<br />
projetos e redimensionar o papel das<br />
colônias. Essas duas funções tinham um<br />
objetivo essencialmente prático:<br />
recuperar a economia do Reino, agora<br />
funcionalizada em torno da exploração<br />
metódica das riquezas produzidas pela<br />
natureza.<br />
A produção ilustrada de base naturalista<br />
- que acabou por congregar nos espaços<br />
de sociabilidade intelectual luso-<br />
brasileiros um núcleo de pragmáticos e<br />
homens de Estado - propôs alternativas<br />
para a superação da crise econômica do<br />
Império ultramarino, as quais passavam<br />
prioritariamente por um melhor<br />
aproveitamento das 'produções<br />
naturais' das colônias. Estas propostas<br />
visavam flanquear as fragilidades do<br />
Império em duas frentes: a política<br />
fomentista, que desde a administração<br />
pombalina era implementada, deveria<br />
ser intensificada; a valorização da<br />
agricultura, fundamentada pelas<br />
práticas discursivas que viam na<br />
natureza tropical uma fonte de riqueza<br />
que deveria ser cientificamente<br />
conhecida e explorada.<br />
Estas duas frentes que destacamos,<br />
assinalavam a preocupação de uma<br />
fração do grupo reformista ilustrado da<br />
Academia, que aqui denominaremos de<br />
iiustrados-naturalistas ou naturalistas<br />
utilitários. Era uma espécie de sub<br />
grupo, dentro da Academia, que<br />
continha membros egressos da época<br />
pombalina e outros que, formados no<br />
espírito da Universidade de Coimbra<br />
reformada, tiveram uma aproximação<br />
mais íntima com os temas da Ilustração,<br />
no plano estritamente pragmático, as<br />
Luzes em Portugal tinham assumido,<br />
após a ' Viradeira', um contorno<br />
francamente aberto às especulações<br />
científicas. O ideário da Academia Real<br />
das Ciências de Lisboa e a base das<br />
propostas reformistas partiam de uma<br />
maior abertura do grupo dirigente<br />
português e de seus quadros<br />
intelectuais aos esquemas mentais<br />
ilustrados. Relativamente ao período<br />
que vai do fim da época pombalina aos<br />
primeiros anos do reinado de d. Maria<br />
I, Fernando A. Movais nos oferece uma<br />
contribuição decisiva:<br />
...o período que se segue ao 'consulado<br />
pombalino' aparece-nos muito mais<br />
como seu desdobramento que sua<br />
negação. Da fase autoritária de criação<br />
dos pré-requisitos ou melhor das<br />
condições das reformas, passa-se, a<br />
partir de 1777, para uma etapa de<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 105-122. jan/dez !995-pag.l09
A C<br />
maiores aberturas para o pensamento<br />
ilustrado. mas isso era um<br />
desdobramento do processo de<br />
reformas.!...) Neste sentido, a chamada<br />
'viradeira' tem muito reduzida sua<br />
importância efetiva; houve sim uma<br />
viragem significativa, mas no sentido<br />
de uma maior integração nas linhas do<br />
reformismo ilustrado.' 5<br />
Ainda sobre o espirito da 'Viradeira',<br />
Francisco Falcon observa que este<br />
movimento estava distante de sinalizar<br />
para uma ruptura decisiva com o ideário<br />
e com o conjunto de práticas de cunho<br />
ilustrado em curso desde a época<br />
pombalina. Ao contrário, o período<br />
mariano se caracteriza pelo fortale<br />
cimento da corrente cientificista e<br />
pragmática do Iluminismo, centralizada<br />
em grande parte, pela Academia Real<br />
das Ciências. Enfim,<br />
suas principais linhas de pensamento<br />
e de ação configuram uma política<br />
colonial que, embora fosse ainda<br />
mercantilista, assimilava os elementos<br />
novos do pensamento da época,<br />
sobretudo o incentivo à produção,<br />
inclusive na Colônia, sem abrir mão<br />
evidentemente do patrimônio e do<br />
'exclusivo'."<br />
Esta abordagem pode ser verificada na<br />
atuação do naturalista Domenico<br />
Vandelli, que demonstra a importância<br />
que a revitalização da exploração<br />
colonial estava assumindo. Numa<br />
memória onde descreve as causas<br />
físicas e morais da decadência da<br />
agricultura no Reino, ele afirma:<br />
pag. 110, jan/dez 1995<br />
Se em Portugal nào fossem tão<br />
dificultosos, e quase insuperáveis, os<br />
obstáculos que impedem o aumento da<br />
agricultura, e se a indústria tivesse<br />
chegado ao estado de se aproveitarem<br />
todas as úteis produções da natureza;<br />
infelizes seriam os estrangeiros, que<br />
nào possuem conquistas, como em<br />
uma carta exclama o célebre Lineu:<br />
Bone Deusl Si Lusitani noscent sua<br />
bona naturae, quam infelices essent<br />
plerique alii, qui non possident terras<br />
exóticas! (sic) "<br />
Das 'terras exóticas' portuguesas,<br />
certamente a mais valorizada de todas<br />
era o Brasil, conhecido desde o século<br />
XVI como particularmente belo e<br />
favorecido pela natureza. No século das<br />
Luzes, a própria Encyclopédie de<br />
Diderot e D'Alembert veicula, no<br />
verbete Brésil, uma imagem positiva das<br />
produções naturais da colônia<br />
portuguesa. Se o clima e a natureza da<br />
América eram considerados especial<br />
mente perversos por alguns 'filósofos-<br />
naturalistas' como Buffon e Corneille De<br />
Pauw 18, é certo que a valorização da<br />
natureza brasileira aparece claramente<br />
nas concepções dos ilustrados luso-<br />
brasileiros. Citando novamente<br />
Vandelli, desta vez quando dissertava<br />
sobre as possibilidades agrícolas das<br />
terras daqui:<br />
Posto que seja conhecido o mesmo<br />
pais do Brasil, quase despovoado e<br />
inculto..., nào deixarei de indicar<br />
brevemente o estado da agricultura nos
arredores das poucas povoações<br />
européias. É escusado indicar a<br />
bondade do clima, a fertilidade dos<br />
terrenos; porque tudo isto é bem<br />
conhecido."<br />
Visando aproveitar lucrativamente as<br />
riquezas de suas colônias, a política<br />
metropolitana adotada com relação ao<br />
Brasil vai ser, por um lado, de inserção<br />
da Colônia na atmosfera da ilustração,<br />
fortalecendo pesquisas para aclima<br />
V o<br />
tação de plantas, promovendo<br />
expedições de naturalistas portugueses<br />
e brasileiros 20 com o intuito de conhecer<br />
melhor os 'três reinos da natureza'<br />
(vegetal, animal e mineral) - segundo a<br />
expressão lineana utilizada na época -<br />
e favorecendo a criação de sociedades<br />
'letradas', que tivessem por objetivo o<br />
desenvolvimento 'das artes, do<br />
comércio e da agricultura'; por outro<br />
lado este mesmo movimento visava<br />
Diderot, Denis et alil. Encyclopédie. Dictlonnalre ralsonné des sciences, des arts et des métlers.<br />
Parts: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 111
A C E<br />
exatamente um acirramento da<br />
exploração colonial. 21<br />
É no interior desta política que<br />
florescerá a Sociedade Literária do Rio<br />
de Janeiro. Em 1771 foi fundada<br />
inicialmente uma 'Academia Científica',<br />
composta principalmente por médicos 22<br />
e incentivada pelo próprio vice-rei, o<br />
marquês do Lavradio. Com a morte de<br />
alguns fomentadores do espírito<br />
especulativo e o fim da administração<br />
de Lavradio, a Academia não prossegue<br />
seus trabalhos, extinguindo-se em 1 779.<br />
Em 1786, já sob a proteção do novo<br />
vice-rei d. Luís de Vasconcelos e Sousa,<br />
renasce com o nome de Sociedade<br />
Literária do Rio de Janeiro, liderada pelo<br />
poeta Manoel Inácio da Silva Alvarenga.<br />
Ela prossegue até 1790, quando<br />
esmorece devido à chegada de um novo<br />
vice-rei, o conde de Resende, pouco<br />
simpático às elocubrações ilumi-<br />
nistas." Somente em 1794 é que a<br />
Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />
retomará por quatro meses suas<br />
atividades, quando é proibida pelo<br />
conde de Resende. Após esta proibição,<br />
Silva Alvarenga e alguns outros<br />
membros são objeto de denúncias, que<br />
os acusam de professarem contra a<br />
religião, a monarquia, e a favor da<br />
República francesa. Ao que tudo indica,<br />
estas acusações ocorreram por motivos<br />
pessoais, devido à ganância de um<br />
rábula local. 24<br />
Os acusados principais eram Silva<br />
Alvarenga, o médico Jacinto José da<br />
Silva, e o bacharel Mariano José Pereira<br />
pag 112. jan/dez 1995<br />
da Fonseca, futuro marquês de Maricá. 25<br />
Eles são interrogados e ficam presos por<br />
três anos, após o que são soltos graças<br />
à intervenção da própria d. Maria I, por<br />
intermédio do ministro d. Rodrigo de<br />
Sousa Coutinho, ilustrado que compar<br />
tilhava da política de valorização das<br />
ciências. 26 A amizade de Silva Alvarenga<br />
com Basílio da Gama (que transitava<br />
pelos círculos intelectuais metropo<br />
litanos), sua estada em Portugal na<br />
época da reforma da Universidade de<br />
Coimbra (1772), a correspondência<br />
mantida com outros ilustres do Reino,<br />
inclusive a troca de cartas entre Mariano<br />
da Fonseca e Domenico Vandelli,<br />
permite-nos avaliar que os membros da<br />
Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />
faziam parte pessoalmente do grupo<br />
ilustrado ao qual pertenciam Sousa<br />
Coutinho, Vandelli, e tantos outros que<br />
compartilhavam dos ideais de<br />
desenvolvimento 'do comércio, das<br />
artes e da agricultura no Reino e em suas<br />
conquistas'.<br />
Consta nos autos da devassa, relativa<br />
mente à defesa de Mariano, o seguinte:<br />
...argumentou que se ele respondente<br />
tivesse idéias contrárias ao governo<br />
monárquico isto havia de constar da<br />
sua correspondência com as pessoas<br />
do seu conhecimento, assistentes em<br />
Lisboa como eram o desembargador<br />
Francisco Franco Pereira, o dr.<br />
Domingos Vandelli, e o negociante José<br />
Ramos da Fonseca... não havia de<br />
constar coisa, porque pudesse ser
R V O<br />
argüido de serem seus sentimentos<br />
menos fiéis. 27<br />
Certamente os inquisidores poderiam<br />
encontrar trechos de correspondências<br />
mais suspeitos, como é o caso da carta<br />
recebida pelo médico Jacinto, de um<br />
outro médico de Lisboa, onde consta o<br />
seguinte:<br />
...há de ser naqueles tempos, em que<br />
todo o novo hemisfério se há de dividir<br />
todo, em duas repúblicas, uma<br />
compreenderá todo o norte, outra todo<br />
o meio-dia; queira Deus que isto suceda<br />
sem efusão de sangue; eu então já<br />
dormirei no Senhor. ...enquanto os reis<br />
não forem filósofos e os filósofos não<br />
2 8<br />
forem reis nào há de haver justiça.<br />
Mas, apesar destas demonstrações<br />
claras de idéias renovadoras, é muito<br />
improvável que houvesse qualquer<br />
plano de sedição 2 9 por parte destes<br />
sinceros 'filósofos', cuja sorte foi<br />
determinada em grande parte pelos<br />
germens contidos na própria Ilustração<br />
vinda do Reino, e nas idéias aprendidas<br />
nos cursos feitos em Coimbra 3 0, e vez<br />
por outra na França. A oposição que<br />
havia entre os membros da Sociedade<br />
Literária do Rio de Janeiro e o conde<br />
de Resende, por exemplo, existia<br />
também no interior da própria<br />
Metrópole, o que fica patente quando<br />
da morte de d. José I e do exílio do<br />
marquês de Pombal.<br />
Analisando os documentos da<br />
Sociedade Literária do Rio de Janeiro e<br />
os particulares deixados por seus<br />
membros, verificamos uma adequação<br />
aos ideais utilitários da Ilustração<br />
portuguesa.<br />
Os membros da Sociedade Literária do<br />
Rio de Janeiro frisavam para sua defesa<br />
durante os inquéritos promovidos pelo<br />
conde de Resende, o caráter utilitário<br />
dos seus trabalhos, e se vinculavam à<br />
Academia Científica. Em um dos<br />
depoimentos do médico Jacinto José da<br />
Silva, ele traça um pequeno histórico<br />
das atividades científicas destas<br />
agremiações que tinham sido bem<br />
Diderot, Denis et alii. Encyclopédie. Dictlonnalre<br />
ralsonné des sclences, des arts et des métiers.<br />
Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* I -2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 113
A C E<br />
sucedidas:<br />
...tivera o seu nascimento no tempo em<br />
que fora vice-rei deste Estado o<br />
marquês de Lavradio e que então se<br />
deveria à mesma a cultura do anil, e<br />
se introduzira e propagara a da<br />
cochoniiha. e que, esmorecendo a<br />
mesma sociedade pela ausência do<br />
referido vice-rei. se tornara a renovar,<br />
e florescer no tempo do seu sucessor<br />
Luís de Vasconcelos e Sousa, e que<br />
então se descobrira pelos trabalhos da<br />
mesma sociedade o álcali tirado dos<br />
engastes das bananas, a extração da<br />
aguardente da raiz do sapé. o álcali do<br />
Mangue e outros descobrimentos úteis<br />
à sociedade e ao comércio... 51<br />
Alguns anos depois de extinta a<br />
Sociedade Literária, o mesmo dr.<br />
Jacinto comenta, relembrando o<br />
passado:<br />
...Ali náo só se tratava de filosofia,<br />
matemática, astronomia, modos de<br />
facilitar os trabalhos do agricultor,<br />
fazendo-lhe conhecer a qualidade do<br />
terreno para não ser infrutuosa a sua<br />
lavoura, como se tratava da saúde<br />
pública entre os médicos e cirurgiões<br />
peritos e dignos de serem membros<br />
daquela sociedade; respondendo a<br />
consultas, decidiam questões sobre as<br />
moléstias que grassavam, analisando<br />
águas e mais substâncias necessárias<br />
5 2<br />
à vida do homem...<br />
Os próprios Estatutos da Sociedade<br />
Literária do Rio de Janeiro se norteiam<br />
por alguns princípios fundamentais<br />
pag. 114. jan/dez 1995<br />
marcados pelos estudos pragmáticos<br />
das ciências, que se unem à<br />
regulamentação democrática e<br />
igualitária estabelecida para as relações<br />
entre seus filiados, e à necessidade de<br />
difusão das Luzes. 55 O artigo 25 ilustra<br />
bem estas características:<br />
Ma proposta, que se fizer à assembléia,<br />
das matérias; será a escolhida destas<br />
dividida sempre pela sua maior<br />
utilidade: pelo mais próximo proveito,<br />
que pode resultar: pela menos<br />
complicação com obstáculos, que na<br />
infância da Sociedade destituída<br />
atualmente de meios, só poderiam<br />
servir de abater os ânimos e fazer<br />
desvanecer as esperanças, que<br />
concebe para o futuro. 54<br />
O sentimento da necessidade de<br />
ilustrar-se já se fazia presente nas<br />
propostas de Silva Alvarenga para os<br />
estatutos: "Será útil conservar, e renovar<br />
as idéias adquiridas, e comunicá-las aos<br />
que tiverem falta desses<br />
conhecimentos". 55<br />
Quanto ao espírito 'democrático' que os<br />
orientou, baseado nos exemplos<br />
legados pela Antigüidade Clássica e na<br />
organização de sociedades de letrados<br />
européias, lembramos outra passagem<br />
do punho de Alvarenga: "Não deve haver<br />
superioridade alguma nesta sociedade,<br />
e será dirigida igualmente por modo<br />
democrático". 56<br />
No entanto, nos artigos 30 e 31, são<br />
formulados nitidamente princípios de
K V O<br />
obediência à religião cristã e de<br />
fidelidade às políticas governamentais. 37<br />
A confiança na possibilidade de uma<br />
monarquia esclarecida adquire um tom<br />
bastante sincero quando se vê a come<br />
moração dos aniversários de d. José I e<br />
de dona Maria 1, além das produções em<br />
louvor destes como a seguinte pas<br />
sagem de um poema de Silva Alvarenga,<br />
dedicado a Basílio da Gama: "Consulta,<br />
amigo, o gênio, que mais em ti domine/<br />
Tu podes ser Molière, tu podes ser<br />
Racine/Marqueses tem Lisboa, se<br />
cardeais Paris/José pode fazer mais do<br />
que fez Luís". 38<br />
Foi por ocasião do aniversário de dona<br />
Maria 1 que o professor de retórica<br />
Manuel Inácio da Silva Alvarenga recitou<br />
o didático poema As Artes, onde<br />
desfilam alegoricamente as musas das<br />
diversas 'artes', a saber, a matemática,<br />
a física, as ciências naturais, a química,<br />
a medicina, a geografia, a história e, por<br />
fim, a poesia:<br />
Já fugiram os dias horrorosos/De<br />
escuros nevoeiros, dias tristes,/Em que<br />
as artes gemeram desprezadas/Da<br />
nobre Lísia no fecundo seio/Hoje<br />
cheias de glória ressuscitam/Até nestes<br />
confins do Movo Mundo/Graças à mào<br />
augusta que as animal (...) E tu, quem<br />
és, oh ninfa. tu que ajuntas,/Indagas e<br />
descobres os tesouros/Que fecunda<br />
produz a natureza? Recebe as tuas leis<br />
todo o vivente,/0 nobre racional, o vil<br />
inseto,/O mudo peixe, as aves<br />
emplumadas,/as indômitas feras e<br />
escamosas/mortiferas serpentes, e os<br />
anfibios/que respiram diversos<br />
elementos./Dos vegetais na imensa<br />
variedade/Tu conheces os sexos, e<br />
distingues/Quais servem ao comércio,<br />
e quais restauram/A perdida saúde; tu<br />
nos mostras/A prata, o ouro, as pedras<br />
preciosas/Com que a opulenta e ínclita<br />
Lisboa/Vaidosa sobre o Tejo se<br />
levanta. 39<br />
A especificidade deste grupo de letrados<br />
Diderot, Denls et alil. Encyclopedie. Dictlonnaire ralsonné des sclences, des arts et des métiers.<br />
Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 105-122. jan/dez 1995 - pag 1 15
A C E<br />
coloniais 4 0 se dá na medida em que<br />
imbuídos da noção de valorização da<br />
natureza como produtora de riquezas e<br />
4 1<br />
como 'mestra' da própria vida,<br />
começam a valorizar também sua<br />
posição de maior proximidade para com<br />
ela, já que as produções naturais eram<br />
particularmente pródigas nestes<br />
'confins do Movo Mundo'. Silva<br />
Alvarenga foi a alma da Sociedade<br />
Literária do Rio de Janeiro, além de ter<br />
sido mestre de muitos de seus<br />
membros. Formado em direito pela<br />
Universidade de Coimbra, ensinava<br />
retórica e latim, recebendo alunos até<br />
de outras cidades da Colônia. Sua<br />
atuação como professor e como poeta<br />
influenciou uma geração de intelectuais<br />
que mais tarde promoveria a<br />
emancipação política destas terras.<br />
Embora Manuel Inácio da Silva<br />
Alvarenga não tivesse planos de<br />
independência, forneceria elementos<br />
intelectuais que embasariam a<br />
construção da idéia de uma 'nação<br />
brasileira', algumas décadas mais<br />
tarde. 42 O poeta na sua obra demonstra<br />
que seu caráter 'brasileiro', ou antes<br />
'americano', estava mais presente em<br />
sua própria atividade artística do que em<br />
qualquer plano nativista de sediçáo.<br />
Portador de uma concepção idealizada<br />
da natureza, que exaltava sua<br />
amenidade, utilidade e beleza, 4 3 ele<br />
chega, em vários momentos de sua<br />
obra, entre um pastor grego e outro, a<br />
descrever as singularidades de sua terra<br />
natal, como beija-flores, cajueiros e<br />
pag. 116, jan/dez 1995<br />
mangueiras. 44<br />
Provavelmente Silva Alvarenga morreu<br />
sem realizar completamente o seu<br />
sonho de homem 'rústico' inspirado de<br />
uma leitura pastoril da Antigüidade<br />
Clássica. Consta numa passagem dos<br />
autos da devassa, quando discutem dois<br />
dos envolvidos no processo:<br />
Silva Alvarenga, João Marques, Mariano<br />
e Jacinto queriam fazer uma república<br />
de animais nas cabeceiras ou sertão<br />
do rio de Tageahi, dizendo o dito Silva<br />
Alvarenga que havia de levar os quatro<br />
evangelistas, quais eram Horácio,<br />
Homero, Virgílio e mais outro, e que<br />
se haviam de queimar todos os mais<br />
livros que houvesse, e daqui<br />
disputavam sobre se devia fazer-se<br />
guerra aos mesmos animais, ou deixá-<br />
los comer todo o gênero de plantas que<br />
eles quisessem, o que tudo vinha em<br />
conseqüência dos louvores que davam<br />
as mesmas repúblicas e felicidade que<br />
nelas gozavam os povos. 45<br />
Assim, os temas desenvolvidos pelos<br />
membros da Sociedade Literária do Rio<br />
de Janeiro incluem-nos no universo<br />
intelectual mais amplo dos ilustrados<br />
luso-brasileiros. Suas preocupações<br />
utilitárias fazem parte do movimento de<br />
acirramento da política colonial<br />
portuguesa, baseada na exploração<br />
metódica da natureza, da brasileira em<br />
particular. A eficácia das atividades<br />
cientificas empreendidas pela<br />
Sociedade Literária não foram<br />
relevantes no âmbito estrito do
desenvolvimento econômico do Reino<br />
e de seus domínios ultramarinos.<br />
Entretanto, o espaço de debate e de<br />
reflexão criado por esta instituição<br />
ultrapassa o pragmatismo desejado<br />
pelas autoridades portuguesas, no<br />
esforço que fizeram para a recuperação<br />
material do Estado. Meste sentido,<br />
consideramos fundamental sublinhar<br />
dois aspectos da vida desta Sociedade.<br />
Em primeiro lugar, a Sociedade Literária<br />
constitui um espaço privilegiado para a<br />
constituição de uma cultura científica ao<br />
mesmo tempo local e cosmopolita, que<br />
traz consigo elementos potencialmente<br />
críticos da ordem política da época. Em<br />
segundo lugar, as atividades da<br />
Sociedade anunciam a adoção de uma<br />
maneira singular de conceber a natureza<br />
tropical, a partir de métodos próprios<br />
às ciências naturais e de um sentimento<br />
que valoriza a especificidade da<br />
natureza brasileira. O poeta Silva<br />
Alvarenga e os demais membros da<br />
Sociedade Literária lançam mão do<br />
arsenal intelectual oriundo das Luzes<br />
européias para refletirem sobre a<br />
condição do homem que vive em<br />
contato quase direto com a natureza.<br />
A especificidade das Luzes no Rio de<br />
Janeiro poderia, então, ser caracterizada<br />
pelo fato que estes 'ilustrados'<br />
perceberam o lugar central da natureza<br />
brasileira no pensamento ilustrado<br />
português. Meste sentido, a Sociedade<br />
Literária é uma das primeiras<br />
associações de letrados que inclui a<br />
história natural como um dos funda<br />
mentos de suas atividades. A<br />
valorizaçào dos produtos naturais<br />
brasileiros promovida pelos ilustrados<br />
luso-brasileiros permite aos intelectuais<br />
nascidos na Colônia vislumbrarem os<br />
contornos de uma identidade<br />
'americana' e 'tropical'.<br />
M O T A S<br />
1. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. "Aspectos da Ilustração no Brasil". In: Revista<br />
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: jan./mar. 1968, p.<br />
105.<br />
2. DIAS, M. O. L. da S., op. cit. e FALCOM, Francisco José Calazans. A época<br />
pombalina - política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.<br />
3. Conferir FALCOM, F. J. C. Despotismo esclarecido. São Paulo: Ática, 1988.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1 -2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 117
A C E<br />
4. A esse respeito conferir HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII.<br />
Lisboa: Presença, 1980 e FALCON, F. J. C. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1988.<br />
5. Sobre a especificidade da Ilustração portuguesa, cf. MUNTEAL FILHO, Oswaldo.<br />
Domenico Vandelli no anfiteatro da natureza - a cultura científica do reformismo<br />
ilustrado português na crise do Antigo Sistema Colonial. Rio de Janeiro:<br />
dissertação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro<br />
- mimeo, capítulo 1, 1993.<br />
6. Apud QONNARD, René. "L' epopée portugaise et 1' abbé Raynal". In: Revue<br />
dtlistoire Économique et Sociale. Paris: XXVII (1), 1948, p. 24.<br />
7. Cf. FALCON, F J. O, op. cit. e NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do<br />
Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1983.<br />
8. VANDELLI, D. "Memória sobre a preferência que em Portugal se dá a agricultura<br />
sobre as fábricas", apud SERRÀO, Joel. Dicionário da história de Portugal. Porto:<br />
Figueirinhas, s.d., pp. 42-44.<br />
9. VANDELLI, D. Dicionário de história natural. Lisboa: Tipografia da Academia Real<br />
das Ciências de Lisboa, 1786, p. 1.<br />
10. Conferir a esse respeito QODINHO, Vitorino de Magalhães. A estrutura da antiga<br />
sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968.<br />
11. Para maiores detalhes acerca da vida e da obra do naturalista luso-italiano, conferir<br />
MUNTEAL FILHO, Oswaldo, op.cit.<br />
12. Conferir a esse respeito as correspondências entre o marquês de Pombal e o<br />
naturalista italiano contidas na Coleçáo Negócios de Portugal, sob a guarda do<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />
13. VANDELLI, D. 'Sobre algumas produções naturais deste Reino, das quais se poderia<br />
tirar utilidade". In: Memórias econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Qulbenkian - Banco de Portugal, 1991, p. 176.<br />
14. VANDELLI, D. Dicionário de história natural, op. cit., p. 5.<br />
15. NOVAIS, Fernando A., op.cit., p. 224.<br />
16. FALCON, Francisco J. C. Da Ilustração à revolução- percursos ao longo do espaço-<br />
tempo setecentista. In: Revista Acervo. Rio de Janeiro: v.4, n.l, jan./jun. 1989, p. 80.<br />
17. VANDELLI, D. "Sobre algumas produções naturais deste Reino, das quais se poderia<br />
tirar utilidade", op.cit., p. 177.<br />
18. Cf. QERBI, Antonello. La disputa dei Píuevo Mundo - historia de una polêmica<br />
(1750-1900). México: Fondo de Cultura Econômica, 1960.<br />
19. VANDELLI, D. "Sobre a agricultura deste Reino, e das suas conquistas". In: Memórias<br />
pag. II8, jan/dez 1995
R V O<br />
econômicas .... p. 170.<br />
20. Apesar de favorecer expedições científicas no território brasileiro, a administração<br />
metropolitana se preocupava extremamente com a defesa de seus domínios. Daí<br />
a má acolhida a expedições estrangeiras, como as de Bougainville e Humboldt.<br />
Consultar: TAILLEMITE, Étienne. Bougainville et ses compagnons autour du monde<br />
(1766-1769) • journaux de navigation. Paris: Imprimerie Mationale, 1977; e PIMTO,<br />
Olivério M. O. "Viajantes e naturalistas". In: História geral da civilização brasileira.<br />
Sâo Paulo: D1FEL, 1983, t.III, v.3.<br />
21. Cf. DIAS, M. O. L. da S., op.cit.<br />
22. Sobre a atividade dos médicos na Sociedade Literária do Rio de Janeiro, cf.<br />
FOHSECA, Maria Rachel Fróes da. Ciência e identidade nacional no Brasil no<br />
início do século XIX. Comunicação apresentada no IV Congresso Latinoamericano<br />
de Historia de la Ciência y de Ia Tecnologia. Cali: janeiro de 1995.<br />
23. Sobre a administração do conde de Resende consultar: SAMTOS, Afonso Carlos<br />
Marques dos. Ho rascunho da fiação: Inconfidência no Rio de Janeiro. Rio de<br />
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Qeral<br />
de Documentação e Informação Cultural, 1992.<br />
24. Cf.QARCIA, Rodolfo. "Introdução aos autos da devassa ordenada pelo vice-rei<br />
conde de Resende". In: Anais da Biblioteca fiacional. Rio de Janeiro: 1939, v.<br />
LX1, p. 241.<br />
25. Cf. especialmente sobre esse personagem da sociedade letrada, seus papéis<br />
particulares, correspondências com membros da Academia Real das Ciências de<br />
Lisboa, livros seqüestrados e outros registros, o códice 749 - marquês de Maricá,<br />
sob a guarda do <strong>Arquivo</strong> nacional.<br />
26. Sobre d. Rodrigo de Sousa Coutinho consultar: DIAS, M. O. L. da S., op.cit. e<br />
nOVAIS, F. A., op.cit.<br />
27. AHA1S da Biblioteca nacional. Autos da devassa ordenada pelo vice-rei conde de<br />
Resende. 1939, LX1, p. 439.<br />
28. Idem, ibidem, pp. 368 e 370.<br />
29. Cf. a esse respeito DARnTOn, Robert. Edição e sedição - o universo da literatura<br />
clandestina no século XVIII. Sào Paulo: Companhia das Letras, 1992.<br />
Especialmente quando R. Darnton chama a atenção para o fato de que "Deve-se<br />
entender sedição nào como uma tomada de armas nem como uma violência<br />
esporádica contra as autoridades, e sim como um desvio que, mediante o texto<br />
e no texto, se instaura com relação às ortodoxias do Ancien Regime - isto é, com<br />
relação ao conjunto das crenças aceitas, das razões comuns, dos discursos de<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1 -2, p. 105-122. jan/dez 1995 - pag. 119
A C E<br />
legitimação que, no correr dos séculos, haviam sido considerados os fundamentos<br />
da ordem monárquica. Essa distinção que opero no sentido do termo sedição é<br />
importante. Na verdade, náo pretendo afirmar que a simples leitura - individual<br />
ou coletiva - de uma obra ilegal desembocaria numa tomada de consciência, na<br />
cristalização de uma opinião e, enfim, num levante. Em contrapartida, sustento<br />
que o livro ilegal - tratado de filosofia, libelo político e crônica escandalosa -<br />
corrói a ideologia monárquica e seus pilares - o rei, a Igreja e os bons costumes<br />
- pelo uso sistemático, desenfreado e desmesurado das seguintes armas:<br />
zombaria, escárnio, razão crítica e histórica, pornografia, irreligiáo e materialismo<br />
hedonista." p. 11. Cf. ainda para maiores detalhes acerca da estrutura e conteúdo<br />
das bibliotecas: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros - leitores, autores e<br />
bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XV111. Brasília: Editora UnB, 1994.<br />
30. Cf. a esse respeito, objetivando estudos mais aprofundados acerca da estrutura<br />
dos cursos e dos diplomas obtidos pelos letrados luso-brasileiros: ARQUIVO<br />
NACIONAL. Coleção Negócios de Portugal, caixa 652, Universidade de Coimbra -<br />
1790-1820.<br />
31. ANAIS da Biblioteca <strong>Nacional</strong>, op.cit., p. 449.<br />
32. O Patriota, Rio de Janeiro, out. 1813, n.4, apud DIAS, M. O. L. da S., op. cit., p. 115.<br />
33. Sobre o funcionamento das sociedades 'savantes' francesas cf. ROCHE, Daniel.<br />
Les républicains des lettres. Paris: Fayard, 1988 e Le siècle des Lumiêres en<br />
province: académies et académiciens provinciaux, 1680-1789. Paris: Mouton,<br />
1978, 2 vol.<br />
34. ANAIS da Biblioteca <strong>Nacional</strong>, op. cit., p. 520.<br />
35. Idem, ibidem, p. 395.<br />
36. Idem, ibidem, p. 395.<br />
37. No que se refere ao interesse das autoridades metropolitanas pela utilidade dos<br />
domínios ultramarinos, particularmente de membros do subgrupo naturalista-<br />
ilustrado da Academia Real das Ciências de Lisboa, devemos nos reportar às<br />
narrativas testemunhais contidas nas memórias econômicas da Academia ou em<br />
registros documentais como numa correspondência de d. Rodrigo de Souza<br />
Coutinho ao entào vice-rei conde de Resende, acerca de um antigo membro da<br />
Sociedade Literária do Rio de Janeiro e das atividades especulativas em geral:<br />
"Desejando Sua Majestade aumentar os conhecimentos sobre as riquezas, que<br />
encerram algumas das suas capitanias do Brasil, pela imediata utilidade, que<br />
deles deve necessariamente resultar para a Sua Real Coroa, e para os Seus<br />
vassalos em geral: Tem determinado, que João Manso Pereira passe a visitar a<br />
capitania de São Paulo, e depois a de Minas Qerais, e que V. Exa, além dos<br />
pag. 120. jan/dez 1995
R V O<br />
quatrocentos mil réis de pensão ordenados pelo aviso de 1 1 deste mês, e que V.<br />
Exa. lhe fará pagar pelo subsídio literário dessa capitania, lhe dê alguma ajuda<br />
de custo proporcionada às despesas que exigir a viagem, que por ordem da mesma<br />
penhora vai empreender o referido João Manso Pereira, a quem V. Exa. permitirá<br />
também, que tire das fundições quaisquer objetos, de que ele possa carecer<br />
para os seus exames mineralógicos, e para em tudo V. Exa. lhe facilitar os meios<br />
de fazer a sua viagem. Palácio de Queluz - 18 de março de 1797". <strong>Arquivo</strong> nacional,<br />
códice 67, volume 22, fl. 68.<br />
38. EPÍSTOLA a José Basílio da Gama. In: SALLES, Fritz Teixeira. Silva Alvarenga •<br />
antologia e crítica. Brasília: Ed. de Brasília, 1973.<br />
39. AS ARTES. In: SALLES, Pritz Teixeira, op. cit.<br />
40. Sobre este aspecto consultar: FALCOn, Francisco J. C. "As reformas pombalinas<br />
e a cultura colonial*. In: AMÉRICA 92. Rio de Janeiro: 1992, mimeo; JOB1M,<br />
Leopoldo J. C. O reformismo pombalino e a continuidade mariana no Brasil:<br />
Luís dos Santos Vilhena, marco do pensamento político brasileiro. Lisboa: Editorial<br />
Estampa, 1984; MAXWELL, Kenneth. "The generation of the 1790's and the idea<br />
of luso-brazilian empire". In: ALDEn, D. (org). Colonial roots of modem Brazil.<br />
London: University Press, 1973; noVAIS, Fernando A. "O reformismo ilustrado<br />
luso-brasileiro: alguns aspectos". In: Revista Brasileira de História. São Paulo: v.<br />
2, n. 7, pp. 105-1 18, mar. 1984; SAnTOS, Afonso Carlos Marques dos, op. cit. e<br />
WEHLinG, Arno. "O fomentismo português no final do século XV1I1: doutrinas,<br />
mecanismos, exemplificações". In: R.I.H.G.B., v. 316, 1978, pp. 170-278.<br />
41. Cf. a esse respeito: EHRARD, Jean. L' idée de nature en France a I' aube des<br />
lumières. Paris: Flammarion, 1970 e LEnOBLE, Robert. História da idéia de<br />
natureza. Lisboa: Edições 70, 1990.<br />
42. Sobre a valorização da natureza e a formação do sentimento de nacionalidade<br />
brasileira na primeira metade do século XIX, cf. KURY, Lorelai. "Entre nature et<br />
civilisation: les médecins brésiliens et 1'identité nationale (1830-1850)". In:<br />
Cahiers du Centre de Recherches Historiques. n. 12, avril 1994, pp. 159-172.<br />
43. Sobre as concepções estéticas de Silva Alvarenga consultar: CÂnDIDO, Antônio.<br />
Formação da literatura brasileira - momentos decisivos. São Paulo: Martins, 2<br />
vols., 1959.<br />
44. Cf., por exemplo, ALVAREnGA, Manuel Inácio da Silva. Glaura. Poemas eróticos.<br />
Lisboa: Oficina Munesiana, 1799. na página que segue a folha de rosto desta<br />
edição. Silva Alvarenga precisa o título de sua obra: Glaura: poemas eróticos de<br />
um americano.<br />
45. AnAIS da Biblioteca nacional, op. cit., p. 440.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 105-122, Jan/dez 1995 - pag. 121
A B S T R A C T<br />
This article studies the insertion of the Literary Society of Rio de Janeiro's activities<br />
in the universe of Luso-Brazilian education. It highlights the role played by the sciences<br />
of nature in developing a feeling of Brazilian specificity, which will be one of the<br />
elements of the national identity fashioned by the future generation.<br />
R É S U M É<br />
Larticle analyse les activités de la Sociedade Literária do Rio de Janeiro et les integre<br />
dans l'ensemble des Lumières luso-brésiliennes. On a mis en évidence le role joué<br />
par les sciences de la nature dans la construction du sentiment d'une spécificité<br />
brésilienne, élément qui fera partie de 1'idée d'identité nationale, telle qu' elle a été<br />
mise en place par les générations ultérieures.<br />
pag 122. jan/dez 1995
Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />
Professora de História Moderna e Contemporânea da UERJ. Doutora em História pela USP.<br />
Leié lei£( .Brasil,<br />
ura e leitores no ioras'^<br />
Na visão do<br />
o estoco frastraílo (de uma<br />
XVIII, os escritos e<br />
ornamentav ivam a<br />
esfera púMica cie poder<br />
século<br />
verdade, pois "os bons livros" jâ<br />
norteavam a Europa, esclare<br />
cendo "o governo sobre os seus<br />
deveres, sobre sua falta, sobre o seu<br />
verdadeiro interesse, sobre a opinião<br />
pública que devem escutar e seguir".<br />
Instrumentos de transmissão de<br />
conhecimentos e de experiências para<br />
círculos restritos, os textos, no final do<br />
Antigo Regime, transformavam-se em<br />
meios de mobilização, capazes de<br />
atingir um público mais amplo. Afinal,<br />
os 'meios de comunicação universal',<br />
sobretudo os jornais e as folhas avulsas,<br />
segundo Keith Baker, foram os<br />
responsáveis pelo esboço da voz geral.<br />
que, paulatinamente, se tornava<br />
uma opinião pública, cuja<br />
objetividade provinha da razão<br />
e cuja força resultava do<br />
progresso das Luzes. 1<br />
Mo Brasil, foi ao longo dos anos<br />
de 1821-1822 que a idéia de opinião<br />
pública iniciou seu balbuciar, cabendo<br />
aos homens de letras o papel de<br />
produzi-la. O clima de intensa efer<br />
vescência política, nesta época,<br />
propiciou o surgimento de jornais e<br />
folhetos, que possibilitaram uma tênue<br />
ampliação da esfera de poder para além<br />
dos círculos restritos da Corte. Esse<br />
novo momento, em que a política<br />
tornava-se pública, foi detonado pelo<br />
movimento constitucional, iniciado em<br />
Portugal em 1820, e que repercutiu no<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 123-138. Jan/dez 1995 pagl23
A C E<br />
Brasil no ano seguinte. A Regeneração<br />
propunha pôr fim ao Antigo Regime, ao<br />
convocar, à revelia do soberano. Cortes<br />
Extraordinárias para elaborarem uma<br />
constituição, no espírito de um<br />
liberalismo mitigado, resultado das<br />
práticas culturais ilustradas. Ma reali<br />
dade, o projeto revolucionário, ao invés<br />
de hostilizar a religião, apoiava-se na<br />
Igreja católica, a fim de garantir o caráter<br />
moderado que o movimento pretendia,<br />
evitando-se "os perigosos tumultos,<br />
filhos da anarquia", típicos de uma<br />
revolução, como convinha a uma con<br />
juntura dominada pela ação restaura-<br />
dora e conservadora da Santa Aliança. 2<br />
Traçando um caminho entre a história<br />
e a política, as publicações, vindas de<br />
Lisboa ou impressas no Rio de Janeiro<br />
e Salvador, permitiram a circulação de<br />
idéias e informações em quase todos os<br />
setores sociais. Os acontecimentos<br />
diários transferiram-se do domínio<br />
privado ao público e adquiriram o status<br />
de novidades. Os artigos dos periódicos<br />
passavam a ser discutidos na esfera<br />
pública dos cafés, das academias e das<br />
livrarias, no sentido que se depreende<br />
dó trabalho de J. tlabermas. 3<br />
Ingressavam nesses espaços de socia-<br />
bilidade e criavam as condições para<br />
que neles se manifestassem as<br />
principais posturas da época compro<br />
metidas com o ideário liberal.<br />
Quais eram, contudo, as obras publi<br />
cadas nessa época que despertavam o<br />
debate político e ideológico? Uma das<br />
vias possíveis para a análise dessa<br />
pag, 124, jan/dez 1995<br />
produção é o levantamento das<br />
publicações na Tipografia nacional, no<br />
Rio de Janeiro, ao longo dos anos de<br />
1821 e 1822. Encontraram-se, para o<br />
período, 516 títulos, nào levando em<br />
consideração as leis, cartas e alvarás,<br />
número bastante expressivo, uma vez<br />
que entre 1808, ano da criação da<br />
Imprensa Regia, e 1820, a Tipografia<br />
nacional publicou apenas 569<br />
trabalhos. Devem acrescentar-se ainda<br />
115 títulos,, publicados por tipografias<br />
particulares, também no Rio de Janeiro,<br />
a partir de 1821, totalizando 651 obras.<br />
A classificação do conjunto desses<br />
trabalhos, com base no critério adotado<br />
pelo catálogo da biblioteca do conde da<br />
Barca (1818), apresenta o seguinte<br />
resultado:<br />
Obru Impressas DO no de Janeiro. 1821 1822<br />
I Catajorta. 9uantid.de. Percntagem<br />
Jurisprudência 8 1.37<br />
Ciências e Artes 15 2.37<br />
Belas Letras 195 30.9<br />
História 161 25.51<br />
Teologia 6 0.95<br />
Periódicos 36 5.8<br />
Documentos Oficiais 210 33.29<br />
Total j «si] - " "lOOJ<br />
Fonte: A. do Vale Cabral. Anais da Imprensa<br />
<strong>Nacional</strong> do Rio de Janeiro de 1808 a 1822. Rio<br />
de Janeiro: Tip <strong>Nacional</strong>, 1881; A. do Vale Cabral.<br />
Suplemento aos Anais da Imprensa <strong>Nacional</strong>:<br />
1808-1823. Anais da Biblioteca <strong>Nacional</strong>. Rio de<br />
Janeiro, 73:109-115, 1954; Biblioteca <strong>Nacional</strong>-<br />
Divisão de Obras Raras. Catálogo das tipografias<br />
nacionais; Ana Maria de A. Camargo & Rubens<br />
Borba de Morais. Bibliografia da Impressão Regia<br />
do Rio de Janeiro. São Paulo: EDUSP/Kosmos,<br />
1993.
À primeira vista, o pequeno número de<br />
obras de cunho religioso pode<br />
surpreender, mas essa fragilidade pode<br />
ser explicada porque a parenética<br />
incluía-se na categoria de Belas Letras.<br />
Além disso, esse número exíguo era<br />
compensado por uma boa quantidade<br />
de livros de religião vindos de Portugal,<br />
por meio de livreiros, que desde 1799<br />
pediam licença à Mesa Censória para<br />
expedirem-nos para o Brasil. 4 Se os<br />
títulos publicados forem considerados<br />
cronologicamente, no entanto, verifica-<br />
se que mais da metade do total<br />
(52.58%) saiu à luz no biênio 1821-<br />
1822. Dentre esses, a categoria História<br />
perfaz 25.5%, em função do grande<br />
número de folhetos políticos que<br />
surgiram no período. Da mesma forma,<br />
o crescente número de periódicos indica<br />
que hábitos de leitura de jornal estavam<br />
sendo adquiridos.<br />
Foram, portanto, os folhetos, panfletos<br />
e periódicos, publicados entre 1821 e<br />
1823, que, sem dúvida, mais<br />
contribuíram para as leituras da elite,<br />
mais intelectual do que social, que<br />
participou do movimento da<br />
Independência. Por outro lado, a<br />
característica fundamental dessa<br />
literatura era a homogeneidade dos<br />
princípios e dos mecanismos mentais<br />
que a informavam, pois, em sua<br />
essência, difundiam uma mesma cultura<br />
política, plasmada na tradição de uma<br />
ilustração mitigada portuguesa. Cultura<br />
política que identificava o Antigo<br />
Regime à esfera privada do poder, sob<br />
V o<br />
a forma de despotismo, responsável<br />
pela situação de colônia a que Portugal<br />
se vira reduzido após 1808. Em<br />
contrapartida, buscava no liberalismo<br />
incipiente os argumentos e as<br />
instituições capazes de assegurar uma<br />
maior participação nos negócios<br />
públicos, embora sem abalar a ordem.<br />
Dai, regeneração, ao invés de revolução.<br />
Tanto pelas publicações, quanto pelos<br />
anúncios em jornais, observa-se que<br />
eram pouquíssimas as menções às<br />
obras de cunho teórico, que fizeram a<br />
fama da ilustração francesa. Seria<br />
possível concluir daí que a elite<br />
intelectual do Brasil não lia esses<br />
autores famosos, há muito proibidos em<br />
Portugal e seus domínios? Certamente<br />
que não, pois o rigor da censura nào<br />
impediu, em ambas as margens do<br />
Atlântico, o acesso sous le manteau. 5<br />
Mo Brasil, são bem conhecidos os<br />
estudos que indicam a presença de<br />
algumas dessas obras nas bibliotecas<br />
mineiras, baianas e cariocas do final do<br />
século XVIII. Também, um folheto de<br />
1822 afirmava que "os escritos<br />
filosóficos dos Mablys, dos Rainaes, dos<br />
Rousseaus, dos Voltaires, dos De<br />
Pradts", introduzidos "pelas brechas<br />
feitas nas barreiras coloniais",<br />
circulavam pelas mãos dos brasileiros. 6<br />
Muitas vezes, a simples interdição pela<br />
censura despertava a curiosidade do<br />
público leitor, que as obtinha por<br />
intermédio de conhecidos vindos do<br />
exterior ou através do contrabando. Era<br />
ainda comum o pedido, por parte dos<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 123-138. jan/dez 1995-pag. 125
A C E<br />
livreiros franceses no Rio de Janeiro, de<br />
licença ao Desembargo do Paço, desde<br />
1808, para importar obras de<br />
Montesquieu, Rousseau, Beauchamps e<br />
outros, embora sempre negada pelos<br />
censores régios, como José da Silva<br />
Lisboa e Mariano José Pereira da<br />
Ponseca, que mostravam, por sua vez,<br />
em seus pareceres, estarem<br />
perfeitamente a par do conteúdo de tais<br />
trabalhos. 7<br />
Após a proclamação da liberdade de<br />
imprensa (28 de agosto de 1821), a<br />
referência aos autores da ilustração<br />
européia tornou-se uma constante nos<br />
periódicos. De um lado, nos escritos<br />
redigidos por indivíduos mais<br />
moderados, citavam-se aqueles cujas<br />
idéias haviam iluminado o mundo<br />
civilizado, como Edmund Burke,<br />
Montesquieu, Jeremias Bentham e<br />
Benjamim Constant. 8 De outro, nas<br />
folhas mais radicais, cujos redatores se<br />
deixavam levar por seu imaginário<br />
revolucionário, assimilavam-se<br />
sobretudo as idéias dos philosophes<br />
franceses, como Voltaire, Rousseau,<br />
Mably, Condorcet, Raynal e De Pradt.<br />
Neste último grupo, pelo menos um<br />
periódico trazia uma epígrafe de<br />
Rousseau; e outro defendia uma postura<br />
democrática, baseada principalmente na<br />
idéia da soberania popular. Se esses<br />
nomes proibidos circularam<br />
anteriormente entre os segmentos da<br />
elite intelectual, a grande novidade, a<br />
partir desse momento, era levar esse<br />
ideário a um público mais amplo, que<br />
pag 126. jan/dez 1995<br />
começava a conviver em seu cotidiano com<br />
novos valores políticos, relacionados à<br />
construção de um Estado liberal. 9<br />
Em geral, a característica básica dos<br />
folhetos políticos era o caráter polêmico<br />
e didático, sob a forma de comentários<br />
de fatos recentes ou de discussões<br />
sobre as grandes questões da época.<br />
Muitas vezes, encadeavam-se uns aos<br />
outros, ou a algum outro tipo de<br />
publicação, como os jornais, consti<br />
tuindo uma verdadeira 'rede de<br />
polêmicas'. 10 Em sua maioria, apresen<br />
tavam as idéias de forma bastante<br />
organizada, explicando o autor seu<br />
posicionamento sobre o assunto e<br />
procurando fornecer opiniões e<br />
ensinamentos que pudessem influenciar<br />
o público leitor.<br />
Já que, em 1821, a censura ainda estava<br />
atuante, as obras apareciam<br />
inicialmente anônimas. Somente a partir
R V O<br />
de 1822, muitos desses folhetos<br />
começaram a ser identificados pelas<br />
iniciais de seus autores, o que se pode<br />
atribuir à lei que proibia a publicação<br />
de obras anônimas pela imprensa<br />
oficial. De igual modo, nessa mesma<br />
época, aumentou consideravelmente o<br />
número de folhetos publicados pelas<br />
tipografias particulares."<br />
Instrumentos fundamentais da<br />
divulgação da cultura política, essas<br />
publicações assumiram várias formas.<br />
Algumas procuravam explicar certos<br />
pontos do vocabulário político, sendo<br />
então chamados de folhetos<br />
constitucionais. Era o caso da<br />
Constituição explicada e do Catecismo<br />
político constitucional. Outras<br />
assumiam a forma de diálogos, como o<br />
Diálogo entre o corcunda abatido e o<br />
constitucional exaltado ou o Alfaiate<br />
constitucional, conversa entre um<br />
alfaiate e seus fregueses, seguindo o<br />
modelo clássico do Spectator, de<br />
Addison e Steele. 12<br />
Freqüentes foram as cartas escritas aos<br />
amigos e compadres, ao lado de<br />
algumas farsas em verso. A preocupação<br />
de levar os ensinamentos sobre a<br />
Constituição e as críticas ao despotismo<br />
a um público mais amplo também<br />
conduziu ao antigo costume de se<br />
parodiar formas religiosas, rio folheto<br />
A regeneração constitucional ou guerra<br />
e disputa entre os corcundas e<br />
constitucionais, os corcundas (os<br />
absolutistas) arrependidos deviam se<br />
apresentar ao Congresso nacional,<br />
recitando em voz alta e clara várias<br />
orações, como o Padre nosso<br />
Constitucional:<br />
Constituição portuguesa, que estás em<br />
nossos corações, santificado seja o teu<br />
nome, venha a nós o teu regime<br />
constitucional, seja feita sempre a tua<br />
vontade, um melhoramento de<br />
agricultura, navegação e comércio nos<br />
dá hoje e cada dia,- perdoa-nos os<br />
defeitos e crimes passados, assim<br />
como nós perdoamos aos nossos<br />
devedores, que nào nos podem pagar,<br />
nào nos deixes cair em tentação dos<br />
velhos abusos, mas livra-nos destes<br />
males, assim como do despotismo<br />
ministerial, ou anarquia popular.<br />
1 3 Amém.<br />
Cronologicamente, enquanto canal para<br />
a divulgação das idéias políticas do<br />
liberalismo, o biênio 1821-1822 foi a<br />
época áurea do periodismo, podendo<br />
avaliar-se em cerca de trinta e seis o<br />
número de jornais que saíram então à<br />
luz. Embora houvesse alguns com<br />
função meramente informativa, como o<br />
Diário do Rio de Janeiro e o Volantim,<br />
muitos transcreviam artigos de jornais<br />
publicados em outras regiões,<br />
adquirindo, assim, um certo caráter<br />
político. Começando como semanários,<br />
mas transformando-se algumas vezes<br />
em diários, visavam a uma informação<br />
de ação mais direta sobre os aconte<br />
cimentos e refletiam um discurso muito<br />
mais ideológico e político do que<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1 -2. p. 123-138. jan/dez 1995 - pag 127
A C E<br />
ücí' o£às ^t^dtt s^L+t.<br />
<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, códice 327, f.90, 20 out. 1820.<br />
cultural, como por exemplo, O Correio<br />
do Rio de Janeiro, t certo que muitos<br />
deles tiveram duração efêmera, como O<br />
Be/n c/a Ordem, O Amigo da fiação e do<br />
Rei e o Despertador Brasiliense.<br />
Constituindo uma espécie de jornal<br />
oficial, havia, naturalmente, a Qazeta do<br />
Rio de Janeiro, o primeiro periódico<br />
estampado no Brasil, a partir de 1808.<br />
Limitava-se a repetir atos oficiais, a<br />
copiar trechos das folhas européias<br />
quando fosse conveniente ao governo<br />
e a fazer inumeráveis elogios à família<br />
pag 128. jan/dez 1995<br />
real. Com propostas de um periodismo<br />
de cunho mais político, O Espelho,<br />
publicado a partir de 1" de outubro de<br />
182 1, tinha como objetivo fornecer<br />
minuciosas informações a respeito das<br />
sessões das Cortes e relatar notícias das<br />
gazetas portuguesas e baianas. Em<br />
verdade, dava a versão oficial dos acon<br />
tecimentos, sem emitir juízo próprio.<br />
Ainda na linha política, destacaram-se<br />
o Revérbero Constitucional Fluminense,<br />
A Malagueta e o Correio do Rio de<br />
Janeiro. O primeiro, de grande
epercussão na Corte, era escrito pelos<br />
brasileiros Joaquim Gonçalves Ledo e<br />
Januário da Cunha Barbosa e, no<br />
interior do liberalismo, apresentava uma<br />
tendência mais radical, ligada às lojas<br />
maçônicas. O segundo, de autoria do<br />
português Luís Augusto May, era<br />
composto por um único artigo do<br />
redator, um liberal moderado e um dos<br />
grandes polemistas da Independência.<br />
O terceiro era redigido pelo português<br />
João Soares Lisboa, que adotara<br />
posturas mais radicais e democráticas.<br />
Fiel às preocupações políticas, embora<br />
com inovações nos temas, como o seu<br />
próprio título indicava, surgiu, em<br />
inícios de 1822, O Compilador<br />
Constitucional, Político e Literário<br />
Brasiliense. Outros jornais ainda<br />
poderiam ser citados, como O Regulador<br />
Brasílico-Luso, que defendeu a união<br />
com Portugal, sendo considerado a<br />
primeira folha oficiosa, no sentido de<br />
servir ao governo às custas dos cofres<br />
públicos. De menor duração, embora<br />
com grande interesse pelas questões<br />
políticas, foram os periódicos O<br />
Papagaio, portador de um liberalismo<br />
moderado, além do Constitucional, do<br />
Brasil e do Macaco Brasileiro.<br />
Além do Rio de Janeiro, o periodismo<br />
também era relevante nas outras<br />
províncias. Os jornais de maior peso<br />
foram os da Bahia que, em sua maioria,<br />
defenderam a união com as Cortes de<br />
Lisboa, mas adotando sempre uma<br />
postura constitucionalista. Também o<br />
Maranhão, o Pará e Pernambuco<br />
V o<br />
conheceram algumas folhas de cunho<br />
informativo e político. 1*<br />
Esses periódicos, por sua vez, não<br />
deixaram de constituir o reflexo de uma<br />
inédita preocupação coletiva em relação<br />
ao político, com seus artigos sendo<br />
discutidos, como indicam as<br />
inumeráveis cartas de particulares que<br />
os redatores divulgavam semanalmente,<br />
na esfera pública dos cafés, livrarias e<br />
sociedades secretas, como a Maçonaria.<br />
Curiosamente, porém, nem uma dessas<br />
publicações defendia o absolutismo.<br />
Todas moviam-se no interior de um<br />
mesmo sistema de referências, que era<br />
o do liberalismo mitigado.<br />
Se os folhetos, panfletos e periódicos<br />
publicados entre 1821 e 1822<br />
revelavam um ideário político traduzido<br />
de algumas idéias ilustradas do século<br />
XVIII, toda essa produção cultural,<br />
elaborada pela elite intelectual luso-<br />
brasileira, não podia deixar de destinar-<br />
se a um público leitor que devia ser<br />
capaz não só de ler essas publicações,<br />
mas também de extrair delas um<br />
significado. Como argumenta R.<br />
Darnton, "a leitura não é simplesmente<br />
uma habilidade, e sim uma maneira de<br />
fazer sentido que deve variar de cultura<br />
para cultura". 1 5 Quem eram, então,<br />
esses leitores?<br />
Em primeiro lugar, o potencial de leitura<br />
está, evidentemente, relacionado ao<br />
número de habitantes. Apesar da<br />
precariedade dos dados, pode-se, no<br />
entanto, avaliar a população livre do<br />
Brasil, em 1823, em torno de 2 milhões<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1 -2. p. 123-138, jan/dez 1995 - pag. 129
A C E<br />
e 810 mil homens livres, dos quais, em<br />
1821, cerca de 43 mil residiam na<br />
cidade do Rio de Janeiro. 16<br />
A simples dimensão demográfica,<br />
porém, não é suficiente para avaliar o<br />
público com que as discussões de 1821-<br />
1823 contaram. É necessário verificar<br />
também o grau de alfabetização da<br />
população e a distribuição social desta<br />
aptidão, uma vez que a leitura de uma<br />
obra exige sua disponibilidade física,<br />
por compra ou empréstimo, e implica a<br />
decifraçáo de signos, que só o convívio<br />
com os conceitos de uma tradição<br />
cultural possibilita.<br />
Mo Brasil, em princípio dos oitocentos,<br />
a educação estava longe de<br />
desempenhar o papel que iria adquirir<br />
mais tarde, ao menos na Europa, como<br />
um elemento de controle social em<br />
relação às camadas mais baixas. Ma<br />
realidade, servia de atributo às elites,<br />
como um ornamento precioso que as<br />
distinguia da massa, enquanto os<br />
mecanismos tradicionais de controle,<br />
como demonstra a própria escravidão,<br />
mostravam-se suficientes para conservar<br />
o status quo.<br />
Para o início do século XIX, não há<br />
dados oficiais sobre o número de<br />
pessoas alfabetizadas no Brasil.<br />
Entretanto, por meios indiretos, alguns<br />
resultados podem ser alcançados.<br />
Roderick J. Barman salientou que as<br />
oito mil assinaturas que subscreveram<br />
o Manifesto do Fico. em fins de 1821,<br />
revelam um percentual bastante elevado<br />
pag. 130. jan/dez 1995<br />
de alfabetização da população<br />
masculina adulta e livre do Rio de<br />
Janeiro. Partindo de um total de 43.139<br />
habitantes livres, ele deduziu um pouco<br />
mais de um terço referente aos menores<br />
de idade e, em seguida, dividiu o<br />
resultado pela metade, a fim de<br />
distinguir os sexos. Chegou, assim, a<br />
14.380 homens adultos e livres, em<br />
relação aos quais os oito mil assinantes<br />
do Manifesto constituem quase 56%.<br />
Esta taxa de alfabetização, apesar das<br />
deficiências notórias do método de<br />
contagem de assinaturas, eqüivale à<br />
verificada em cidades francesas do<br />
século XVIII, como Aix-en-Provence,<br />
Lyon e Caen, onde variou entre 46 e<br />
86%. 1 7 Evidentemente, a situação não<br />
era a mesma no restante do território,<br />
nem mesmo nas demais cidades, com<br />
a possível exceção de Salvador e, talvez,<br />
do Recife e de São Luís.<br />
Por outro lado, não se pode afastar a<br />
hipótese de que a comunicação oral<br />
substituísse a leitura propriamente dita.<br />
Um Rapport sur la situation de 1'opinion<br />
publique ao intendente-geral de Polícia<br />
da Corte, elaborado pelo emigrado<br />
francês Cailhé de Qeine, em 1820,<br />
alertava para a gravidade da situação,<br />
uma vez que muitas obras eram lidas<br />
"diante de um auditório já predisposto"<br />
a "passagens mais infestadas do espírito<br />
revolucionário das obras francesas mais<br />
perniciosas", traduzidas "para o<br />
português, para a edificação dos<br />
ignorantes". Esta propaganda não se<br />
limitava a "reuniões secretas", mas se
R V O<br />
manifestava "no salão dourado, na humilde<br />
loja e mesmo na praça pública." nesse caso,<br />
o público real atingido por essas idéias seria<br />
bem mais amplo do que se poderia supor<br />
à primeira vista. 18<br />
Outro meio indireto bastante sugestivo<br />
para tentar captar esse público leitor é<br />
o de proceder a uma avaliação das<br />
atividades relacionadas ao comércio de<br />
livros, sobre o qual as informações são<br />
menos escassas. Um exame acurado da<br />
documentação revela que, no Rio de<br />
Janeiro, em especial após a instalação<br />
da Corte na cidade, esse comércio era<br />
bem mais intenso do que se costuma<br />
imaginar. Para os anos de 1821-1822,<br />
através dos anúncios na Gazeta e no<br />
Diário do Rio de Janeiro, foi possível<br />
identificar nove livreiros especializados,<br />
além de outras três lojas ligadas às<br />
tipografias. Mais onze nomes devem ser<br />
igualmente acrescentados, pois, como<br />
negociantes, vendiam, entre artigos<br />
variados, as publicações do dia. Para<br />
fins de comparação, de acordo com os<br />
dados de Laurence flallewell, em 1826<br />
existiam em Buenos Aires apenas cinco<br />
livrarias. 19 Para o público, elas também<br />
funcionavam como um novo espaço da<br />
esfera pública, servindo como ponto de<br />
encontro e de conversas da elite<br />
intelectual. Segundo visão de época, em<br />
fins de 1822, a livraria de Manuel<br />
Joaquim da Silva Porto era "o ponto de<br />
união dos mais exaltados demagogos",<br />
pois ali ajustavam e combinavam o que<br />
iam escrever, discutindo seus planos,<br />
a "sós ou com a maior publicidade",<br />
tramando-se os golpes a favor da<br />
república e contra o futuro do Império<br />
brasileiro. 20<br />
Sob o ângulo da disponibilidade, esses<br />
escritos de circunstância não eram, de<br />
certo, inacessíveis, quanto ao preço, a<br />
um público mais vasto. Os periódicos<br />
custavam, por número, em 1821, entre<br />
80 e 120 réis. Os folhetos, segundo os<br />
catálogos do livreiro Paulo Martim,<br />
vendiam-se por um valor entre 80 e 320<br />
réis. Chegava-se a afirmar que o povo,<br />
por nào ter condição para ir ao teatro,<br />
divertia-se com os "bufões (os periodi-<br />
queiros) por pouco dinheiro". 21 na mesma<br />
época, uma empada de recheio de ave<br />
custava 100 réis; um arrátel de lingüiça,<br />
280; a aguardente de cana, 80 réis a garrafa;<br />
um sabão inglês, 120 réis a libra. 22<br />
A preocupação de informar as camadas<br />
mais baixas da população ficava restrita<br />
pela própria organização social do<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 12. p. 123-138. jan/dez 1995 - pag, 131
A C E<br />
Brasil-Reino, em que cerca de um terço<br />
da população era constituída de<br />
escravos, rio entanto, as primeiras<br />
eleições para as Cortes de Lisboa<br />
(1821), embora utilizassem um método<br />
indireto, não tinham estabelecido censo<br />
algum, podendo ser votante todo<br />
cidadão com mais de 25 anos. Talvez<br />
por isso, uma parte nada desprezível<br />
dessa literatura de circunstância tenha<br />
assumido a forma de cartilhas e de<br />
catecismos sobre os princípios constitu<br />
cionais, visando de certa forma às<br />
camadas mais baixas, em especial aos<br />
soldados, com o intuito de didatica<br />
mente transformá-los em cidadãos.<br />
Os indivíduos pertencentes a essas<br />
camadas, que se situavam nas fímbrias<br />
da elite, constituíam um público virtual.<br />
uma vez que, numa sociedade ainda<br />
regida pela oralidade, tomavam<br />
conhecimento das novidades ouvindo<br />
as leituras e participando das conversas<br />
e discussões sobre os acontecimentos<br />
políticos que ocorriam nos lugares<br />
públicos. Era a agitação, o falar 'de<br />
boca' do cotidiano, um certo imaginário<br />
que se fazia circular, traduzindo a<br />
apreensão de idéias e de concepções de<br />
mundo novas entre o povo, pois as<br />
mensagens já não se restringiam ao<br />
círculo estreito da obra escrita. Segundo<br />
o 'Mestre Periodiqueiro', personagem de<br />
um folheto, o botequim era lugar de<br />
grande 'falácia', em que se discutiam<br />
autores como Locke, Qrotius,<br />
Montesquieu e outros, mas também<br />
"casa de reuniões patrióticas", em que<br />
pag, 132. Jan/dez 1995<br />
a "opinião pública encontrava os seus<br />
verdadeiros intérpretes", formulando-se<br />
questões por "vozes estrondosas", que<br />
retumbavam "nas vidraças da loja". 23 Ao<br />
lado desses indivíduos na fronteira da<br />
desclassificação social, os militares<br />
mais graduados, os pequenos<br />
comerciantes e os funcionários públicos<br />
faziam o papel de um público ideal. 1*<br />
fio entanto, nào pode haver dúvida de<br />
que, para os autores dos folhetos, era<br />
o letrado,. sábio e prudente, que<br />
conhecia a 'verdadeira política'. Os<br />
demais nào passavam de<br />
'melquetrefes', que se metiam a<br />
"discorrer em política", dizendo<br />
"despropósitos e tolices, como os<br />
curandeiros e barbeiros da roça em<br />
medicina", ou demonstrando conhecer<br />
tanto dessa arte quanto o vigário<br />
conhecia de teologia. 2 5 Se, algumas<br />
vezes, havia a preocupação em também<br />
escrever "para aquela classe de<br />
cidadãos que não freqüentaram<br />
estudos", como afirmava o redator do<br />
Bem da Ordem, era necessário, no<br />
entanto, pedir desculpas 'aos literatos'<br />
por utilizar exemplos simples e<br />
vulgares, mas que, para o povo, eram<br />
fundamentais, pois "um exemplo bem<br />
aplicado, vale mais que o discurso mais<br />
concludente e enérgico". 2 6 Ma<br />
realidade, para a visão de época,<br />
somente a elite reunia condições<br />
intelectuais para ter acesso aos folhetos<br />
e, por conseguinte, à cultura política,<br />
convertendo-se ela própria no principal<br />
público de si mesma.
R V O<br />
Essa identificação do público com a<br />
elite pode ser verificada por um meio<br />
indireto, a análise das listas de<br />
subscrições. Como exemplo de<br />
subscrição, isto é, o pagamento de uma<br />
quantia inicial para garantir ao<br />
assinante a aquisição da obra, que<br />
assim se autofinanciava, pode-se citar<br />
a obra editada por Paulo Marfim, notícia<br />
histórica da vida e das obras de José<br />
tlaydn. Foram 44 subscritores, dos quais<br />
28 podem ser identificados: cinco<br />
professores de música; quatro<br />
desembargadores; quatro proprietários;<br />
quatro funcionários públicos; três<br />
sacerdotes; três militares; três cônsules;<br />
um médico e um negociante. Um deles<br />
estudara na Universidade Imperial da<br />
França e quatro, em Coimbra. A única<br />
subscritora era proprietária de um<br />
terreno no lugar denominado Caminho<br />
Movo. Fica patente a predominância de<br />
membros da elite.<br />
Entretanto, permeando toda a discussão<br />
sobre o novo ideário político, não se<br />
deixava de encontrar a preocupação de<br />
formar uma opinião pública. Assim<br />
acreditavam muitos dos autores de<br />
folhetos e jornais, um dos quais<br />
afirmava "ser um dever do cidadão, que<br />
(escrevia), dirigir a opinião pública, e<br />
levá-la, como pela mão, ao verdadeiro<br />
fim da felicidade social". O jornal O<br />
Papagaio suspendeu seus trabalhos<br />
porque julgava que os objetivos<br />
propostos tinham sido alcançados, uma<br />
vez que se achava "consolidada a<br />
opinião pública sobre os verdadeiros<br />
interesses do Brasil e de toda a família<br />
portuguesa". Enfim, em quase todos os<br />
periódicos pode ser encontrada a<br />
preocupação de dirigir ou de ser um<br />
porta-voz da opinião pública. 27<br />
Sem dúvida, seria um anacronismo<br />
atribuir, nesse momento histórico, à<br />
idéia de opinião pública a concepção de<br />
uma "pluralidade de indivíduos que se<br />
exprimem em termos de aprovação ou<br />
sustentação a uma ação, servindo de<br />
referencial a um projeto político<br />
clefinido", com o poder de alterar os<br />
rumos dos acontecimentos. Apesar<br />
disso, em 1821-1822, ela não era<br />
ignorada. Como informava o redator de<br />
O Macaco Brasileiro, o príncipe d. Pedro<br />
conhecia e buscava 'este termômetro'-,<br />
percebendo que o idolatravam pelo calor e<br />
energia com que soube merecer o título de<br />
Perpétuo Defensor do Brasil. 28<br />
Sobretudo, conceder a essa<br />
preocupação de formar uma opinião<br />
pública um papel de destaque seria<br />
ignorar a persistência de procedimentos<br />
tradicionais para conter as idéias que<br />
poderiam revolucionar a população. Em<br />
1820, um registro da polícia comprova<br />
que soldados espanhóis tinham sido<br />
presos porque, num domingo, depois<br />
das três horas da tarde, passavam pelas<br />
ruas do Rio de Janeiro "cantando coisa<br />
que parecia ser o seu hino<br />
constitucional". 29 De modo semelhante,<br />
o redator do Conciliador do Reino<br />
Unido, o censor régio José da Silva<br />
Lisboa, julgava seu "dever dirigir bem a<br />
opinião pública, a fim de atalhar os<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v a, n 12. p, 123-138, jan/dez 1995 - pag. 133
desacertos populares, e as eferves-<br />
cências frenéticas", pois "os periódicos<br />
e papéis avulsos" eram também "lidos<br />
sôfrega e inconsideradamente pelas<br />
classes ínfimas". Em novembro de<br />
1822, o imperador d. Pedro autorizou a<br />
abertura de uma devassa sobre as<br />
pessoas que conspiravam contra o<br />
governo e inflamavam a opinião pública.<br />
Por conseguinte, longe de viabilizar os<br />
escritos como meios de influência para<br />
dirigir a opinião pública, pela predicação<br />
de seus próprios valores, a principal<br />
preocupação do governo continuava sendo<br />
a de cercear as idéias que circulavam e que<br />
podiam ser perigosas aos planos<br />
arquitetados por seus agentes. 30<br />
Desta forma, de um lado, os autores<br />
dessa literatura de circunstância -<br />
fossem folhetos, fossem jornais -<br />
enquanto membros da elite intelectual<br />
e política, náo deixaram de ver na<br />
palavra escrita uma fonte de poder,<br />
capaz de produzir reformas, sem<br />
transtornos para a ordem social. Ao<br />
revelarem e divulgarem o ideário do<br />
liberalismo, por meio de uma pedagogia<br />
do constitucionalismo, criaram as<br />
bases, após 1822, para o separatismo e<br />
pag. 134. jan/dez 1995<br />
a dissolução do Império luso-brasileiro.<br />
rio processo, transformaram seus escri<br />
tos, principais veículos da cultura<br />
política da época da Independência, em<br />
instrumentos educacionais da própria elite<br />
e asseguraram para si um lugar na estrutura<br />
de poder do futuro Império Brasil.<br />
De outro lado, porém, contido talvez<br />
pela estrutura social escravista, o poder<br />
oficial não quis, ou não pôde,<br />
vislumbrar a mesma possibilidade de<br />
também transformar a palavra escrita<br />
em arma de combate, capaz de formar<br />
uma opinião pública a seu favor. O<br />
Estado em elaboração relegou, assim,<br />
o processo de subordinação das<br />
camadas menos favorecidas (e, em<br />
casos limites, até mesmo dos setores<br />
mais radicais da elite) às persistentes<br />
práticas repressivas características de<br />
uma esfera privada de poder. Ao fazê-<br />
lo, limitou a ação daquela cultura<br />
política da Independência, ainda que de<br />
um liberalismo mitigado, às elites;<br />
condenou os intelectuais à função<br />
decorativa que a tradição bacharelística<br />
soube desenvolver; e, por último, mas<br />
nem por isso menos importante,<br />
inviabilizou a construção da nação.
i V o<br />
n O T A s<br />
1. Para a primeira citação, ver MERCIER, Louis Sebastien . Hotions claires sur les<br />
gouvernements. Amsterdan, 1787, p. VII. Apud HABERMAS, J. Mudança estrutural<br />
da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 118. Cf. BAKER,<br />
Keith M. "Politique et opinion publique sous 1'Ancien Regime". In: Annales.<br />
Êconomies. Sociétés. Civilisations. Paris, 42 (1): 41-7 1, jan./fév. 1987.<br />
2. O Pregoeiro Lusitano: história circunstanciada da Regeneração Portuguesa, (v.<br />
1). Lisboa: Tip. João Baptista Morando, 1820, p. 353.<br />
3. Para o conceito de esfera pública de poder, ver HABERMAS, J., op. cit., p. 42.<br />
4. ARQUIVO MACIONAL DA TORRE DO TOMBO. Real Mesa Censória. Exame dos livros<br />
para saírem do Reino para o Rio de Janeiro, 1799-1808. Caixas 153-154.<br />
5. A expressão é de ROCHE, Daniel. Les républicains des Lettres: gens de culture et<br />
Lumières au XVIII' siècle. Paris: Fayard, 1988, p. 28.<br />
6 . BURMS, Bradford. "The Enlightment in two colonial brazilian libraries" . In: Journal<br />
of the History of Ideas. New York, 24: 430-38, 1964; FRIEIRO, Eduardo. O diabo<br />
na livraria do cõnego. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957; MATTOSO, Ratia de Queirós..<br />
Presença francesa no movimento democrático de 1798. Bahia: ltapuã, 1969;<br />
CAMPELLO, Ignácio M. Pinto. "Relação dos livros apreendidos ao bacharel Mariano<br />
José Pereira da Fonseca - seqüestro feito em 1794". In: Revista do Instituto<br />
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. 63: 15-18, 1901. Para o folheto,<br />
ver O Brasil indignado contra o projeto anticonstitucional sobre a privação das<br />
suas atribuições por um filopatrico. Rio de Janeiro: Tipografia nacional, 1822,<br />
p. 5.<br />
7. Para a divulgação de obras estrangeiras no Brasil, ver nEVES, Lúcia M. Bastos P.<br />
& FERREIRA, Tânia Maria T. Bessone da C. "O medo dos abomináveis princípios<br />
franceses: a censura dos livros nos inícios do século XIX no Brasil". In: Acervo.<br />
Rio de Janeiro, 4: 113-19, jan./jun. 1989 e HEVES, Lúcia M. Bastos P. "Comércio<br />
de livros e censura de idéias no Brasil (1795-1822)". In: Ler História. Lisboa, 23:<br />
61-78, 1992.<br />
8. nesse grupo destacam-se, entre outros jornais, O Conciliador do Reino Unido, O<br />
Bem da Ordem e o Espelho.<br />
9. Os jornais eram A Malagueta e o Correio do Rio de Janeiro.<br />
10. JOUHAUD, Christian. "Propagande et action au temps de la Fronde". In: VIQUEUR,<br />
Jean Claude M. 6c PIETRI, Charles (org.). In: Culture et idéologie dans la genèse<br />
de 1'État Moderne. Roma: École Française de Rome, 1985, p. 352.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n 1 I -2. p. 123-138, Jan/dez 1995 - pag. 135
A C E<br />
11. BRASIL. Portaria de 19 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tip. nacional, 1822.<br />
12. QAY, Peter. The Enlightement: the science of freedom. new York: norton, 1977,<br />
pp. 53-55.<br />
13. A REQEnERAÇÀO constitucional ou a guerra e disputa entre os corcundas e os<br />
constitucionais. Rio de Janeiro: Imprensa Regia, 1821, p. 20. Para as paródias<br />
das formas religiosas como um dos gêneros de cultura popular, ver BURKE, Peter.<br />
Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp.<br />
146-147.<br />
14. Para o estudo do periodismo, ver RIZZini, C. O livro, o jornal e a tipografia no<br />
Brasil: 1500-1822. Rio de Janeiro: Kosmos, 1945. Cf. ainda nEVES, Lúcia M.<br />
Bastos P. "Periódicos -. In: SILVA, Maria Beatriz nizza da. Dicionário da história da<br />
colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, pp. 624-628.<br />
15. DARnTOn, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1990, p. 150.<br />
16. MEMÓRIA estatística do Império do Brasil. In: Revista do Instituto histórico e<br />
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 91 (58): 91-99, 1895; Mapa da população<br />
da Corte e província do Rio de Janeiro em 1821. In: Revista do Instituto Histórico<br />
e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 40 33 135-42, 1870.<br />
17. BARMAn, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1822). Stanford:<br />
University Press, 1988, p. 268. Para os dados da França, ver CHARTIER, R.,<br />
COMPÈRE, H. M. & JULIA, D. féducation en France du XVF au XVllF siècle. Paris:<br />
SEDES, 1976, p. 93.<br />
18. RAPPORT sur la situation de lopinion publique. In: PEREIRA, Ângelo. D. João VI,<br />
príncipe e rei. (v.3). Lisboa: Empresa nacional de Publicidade, 1956, p. 306.<br />
19. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz/<br />
EDUSP, 1985, p. 47.<br />
20. Cf. PROCESSO dos cidadãos Domingos Alves, João da Rocha Pinto, Luís Alves de<br />
Azevedo, ... pronunciados na devassa que mandou proceder José Bonifácio de<br />
Andrada e Silva para justificar os acontecimentos do famoso dia 30 de outubro<br />
de 1822. Rio de Janeiro: Tip. de Silva Porto, 1823, p. 21.<br />
21. JÁ fui carcunda, ou a zanga dos periodiqueiros. Lisboa: of. da viúva de Lino da<br />
Silva Qodinho, 1821, p. 4.<br />
22. Para o preço dos folhetos, ver Catálogo de algumas obras modernas e<br />
pag. 136. Jan/dez 1995
R V O<br />
constitucionais chegadas modernamente à loja de Paulo Martim. Rio de Janeiro:<br />
Imp. nacional, (1821), 2 fl.; Catálogo de algumas obras que se vendem na loja<br />
de Paulo Martim, rua da Quitanda n° 33. Rio de Janeiro: Imp. nacional, (1822), 1<br />
fl. Para o preço dos produtos de época, cf. SILVA, M. Beatriz Mizza da. "Livro e<br />
sociedade no Rio de Janeiro: 1808-1821". In: Revista de História. São Paulo, 94:<br />
451, 1973; Diário do Rio de Janeiro, out. 1822 e jan. 1823.<br />
23. A FORJA dos periódicos ou o exame do aprendiz periodiqueiro. Lisboa: nova<br />
Tip. da viúva neves & Filhos, 1821, p. 8.<br />
24. Para a noção de público ideal, ver ESCARP1T, R. Sociologie de la littérature. 7 1<br />
ed.. Paris : P.U.F., 1986, pp. 97-107.<br />
25. DIÁLOGO político e instrutivo, entre dois homens da roça, André Rapozo e seu<br />
compadre Bolonio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro e novidades<br />
da mesma. Rio de Janeiro: Imprensa Regia, 1821, p. 16.<br />
26. O Bem da Ordem, n° 3, 1821. Rio de Janeiro.<br />
27. As citações foram retiradas, respectivamente, de: Conciliador nacional, n° 1,<br />
Pernambuco, transcrito de O Volantim, n° 13, 16 set. 1822, Rio de Janeiro ; O<br />
Papagaio. n° 12, 8 ago. 1822, Rio de Janeiro.<br />
28. OZOUF, Mona. "L'opinion publique". In: BAKER, K. (ed.). The French Revolution<br />
and the creation of modern political culture. (v. 1). Oxford: Pergamon Press, 1987,<br />
p.427; O Macaco Brasileiro. n° 5, (1822). Rio de Janeiro.<br />
29. ARQUIVO nACIOnAL. Códice 327. Registro de ofícios da Polícia (v. 1), f. 90, 20<br />
out. 1820.<br />
30. Ver, respectivamente, O Conciliador do Reino Unido, n° 4, 31 mar. 1821 e n° 6,<br />
14 abr. 1821, Rio de Janeiro; Gazeta do Rio de Janeiro, n° 134, 7 nov. 1822, Rio de<br />
Janeiro.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 125-138. jan/dei 1995 - pag, 137
A B S T R A C T<br />
ln the Luzo-Brazilian world, the Constitutional movement of 1821 unleashed an<br />
intense debate upon the ideas proposed by liberalism. Printing - of political tracts<br />
and papers - held a fundamental role in this slight widening of the sphere of power<br />
beyond the narrow circles of the Court. Government, however, remained addicted to<br />
the practices inherited from the Ancien Regime. In fact, it was unable to transform<br />
the printed word into a tool, with which to draw public opinion on its side.<br />
R É S U M É<br />
Dans le monde luso-brésilien, un vif débat sur les idées du liberalisme fut declenché<br />
par le mouvement constitutionnel de 1821. Les publications - des pamphlets et des<br />
journaux - tinrent un role décisif dans cette timide amplification de la sphère de<br />
pouvoir, au-delà des cercles limites de la Cour. Cependant, 1'État, ne sut renoncer à<br />
son penchant pour les pratiques de 1'Ancien Regime et ne fut capable de rendre le<br />
mot écrit en instrument pour former 1'opinion publique en sa faveur.<br />
pag. 138. jan/dez 1995
Maria do Carmo Teixeira Rainho<br />
Chefe da Divisão de Pesquisa e Promoções Culturais do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Mestre em<br />
História Social da Cultura - PUC/RJ.<br />
A distinção e suias normass<br />
leituras e leitores dos manuais<br />
de eiiquieta e civilidade *=* Rio<br />
As alterações na<br />
paisagem urbana, a<br />
europeização da<br />
vida social a partir da vinda da<br />
Corte em 1808, uma sócia<br />
bilidade marcada por festas<br />
particulares e pelos salões imperiais<br />
constituem o pano de fundo para as<br />
transformações nos modos e nos<br />
comportamentos da 'boa sociedade' do<br />
Rio de Janeiro ao longo do século XIX.<br />
Para a 'boa sociedade' era imperativo<br />
aristocratizar-se, isto é, adotar costumes<br />
e valores que a possibilitassem ao<br />
mesmo tempo nivelar-se (pelo menos na<br />
aparência) aos seus pares europeus e<br />
distinguir-se do resto da população, ou<br />
seja, "do povo mais ou menos miúdo e<br />
de Janeiro, século X I X<br />
dos escravos". 1 Para tal, era<br />
necessário náo apenas buscar<br />
o refinamento das maneiras e<br />
a sofisticação do gosto mas,<br />
sobretudo, abandonar os rústicos<br />
costumes que a caracterizavam até o<br />
momento da chegada da Corte.<br />
Neste processo de 'civilização dos<br />
modos' 2 os cuidados com a higiene, a<br />
correção dos modos, as boas maneiras<br />
à mesa e a adequação e a distinção no<br />
vestir passam a contar quase tanto<br />
quanto o dinheiro e os títulos de<br />
nobreza. É neste contexto que proli<br />
feram na cidade do Rio de Janeiro as<br />
edições da chamada literatura de<br />
civilidade.<br />
Tratados de cortesia, manuais de savoir-<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1-2. p. 139-152. jan/dez 1995 - pag, 139
A C E<br />
vivre, regras de etiqueta, elementos de<br />
moral, guias do bom-tom, tudo isso<br />
compõe a chamada literatura de<br />
civilidade.<br />
Qrosso modo, este corpus é constituído<br />
pelos livros voltados para o ensino das<br />
maneiras tidas como corretas. Estas<br />
obras que circularam na Europa a partir<br />
do século XVI ensinavam entre outras,<br />
as maneiras de comer e os hábitos à<br />
mesa, a higiene corporal (incluindo aí<br />
os modos de assoar o nariz, cuspir etc),<br />
os comportamentos em casa, na igreja,<br />
na rua e os cuidados com a vestimenta.<br />
Para Roger Chartier 3, tentar<br />
compreender o que os homens entre os<br />
séculos XVI e XVIII entendiam por<br />
civilidade é entrar no cerne de uma<br />
sociedade antiga, que muitas vezes nos<br />
é opaca, onde as formas sociais sáo<br />
geralmente representações codificadas<br />
de níveis e onde numerosos<br />
comportamentos durante muito tempo<br />
considerados lícitos passam a ser<br />
proibidos, mesmo no domínio do<br />
privado.<br />
Mas, segundo o autor, a pesquisa sobre<br />
a noção de civilidade e sobre os livros<br />
que a contém não se dá sem<br />
dificuldade. A primeira delas refere-se<br />
à impossibilidade de se delimitar o<br />
campo de estudo. Mesmo privilegiando-<br />
se os textos que apresentam os usos<br />
mais comuns (dicionários, jornais,<br />
memórias, manuais, tratados etc), o<br />
corpus constituído pelos usos da noção<br />
de civilidade jamais poderá ser<br />
pag 140, jan/dez 1995<br />
circunscrito, pois esta está presa num<br />
campo semântico móvel e variável. Uma<br />
segunda dificuldade se refere às<br />
condições da determinação do sentido.<br />
Por necessidade, o corpus de textos<br />
sobre os quais é possível trabalhar<br />
privilegia os enunciados normativos que<br />
dizem o que é ou o que deve ser<br />
civilizado, uns visando o emprego da<br />
palavra, outros enumerando as práticas<br />
que os deixam ver. Cada emprego da<br />
palavra, cada definição da noção reflete<br />
uma estratégia enunciativa que é<br />
também representação das relações<br />
sociais. A dificuldade é de poder, a cada<br />
caso, reconstruir a relação entre aquele<br />
que escreve, os leitores que ele supõe<br />
e para quem ele fala e aqueles que, no<br />
ato da leitura, produzem um significado<br />
do texto. Uma última dificuldade reside<br />
na caracterização da noção de<br />
NOVO ,MANUAU<br />
BOM TOM<br />
rWTOtt»<br />
H au ii MM imutm * É *<br />
*•*>*• i • m \-Àm m mmmmmim 4» **% wàii mima *<br />
« —. -i*ltn *•>
R V O<br />
civilidade, uma vez que ela designa um<br />
conjunto de regras que não têm a<br />
realidade dos gestos que as efetuam.<br />
Sempre enunciada como modo de dever<br />
ser, a civilidade visa transformar em<br />
esquemas incorporados, reguladores,<br />
automáticos e não ditos de condutas,<br />
as disciplinas e censuras que ela<br />
enumera e unifica numa mesma<br />
categoria.<br />
Jacques Revel em sua análise da<br />
literatura de civilidade, que considera<br />
um "corpusevidente e ambíguo", afirma<br />
que às vezes é possível confrontar com<br />
os modelos prescritos nestes tratados,<br />
práticas efetivas de uma determinada<br />
sociedade. Além disso, para ele "a<br />
representação social da norma náo é<br />
menos 'real' que a conservada pelos<br />
comportamentos observáveis".*<br />
Para o historiador francês, o trabalho<br />
com esta documentação é factível se<br />
"identificarmos nas entrelinhas de cada<br />
um destes textos seus destinatários e<br />
sobretudo um uso particular da<br />
civilidade". 5<br />
Portanto é necessário encarar a<br />
literatura de civilidade não como<br />
espelho dos modos da 'boa sociedade'<br />
do Rio de Janeiro, ou "reflexo realista<br />
de uma realidade histórica" 6, mas como<br />
um corpus que reflete a representação<br />
dos modelos de civilidade e os<br />
comportamentos esperados daqueles<br />
que compunham este grupo e que<br />
prescreve e regulamenta condutas que<br />
não são necessariamente condutas<br />
f<br />
efetivas da 'boa sociedade'.<br />
Neste sentido, e a partir das sugestões<br />
de Chartier e Revel, deve-se fazer uma<br />
leitura destes tratados e manuais que<br />
permita, de maneira geral, enfocar os<br />
modelos de civilidade impostos por<br />
estas obras, seus destinatários e a forma<br />
como reforçavam distâncias sociais,<br />
pela instrução dos comportamentos<br />
ditos civilizados.<br />
No Brasil, ao longo do século XIX,<br />
inúmeros tratados e manuais de<br />
etiqueta e civilidade foram editados e<br />
reeditados. Um exemplo disso é O novo<br />
manual do bom-tom que em 1 900 chega<br />
a sexta edição.<br />
Um fato que aponta para a difusão<br />
destas obras no decorrer do século<br />
passado, e que elas eram facilmente<br />
encontradas nas ruas da Corte, é o<br />
relato de Thomas Ewbank a propósito<br />
dos pregões dos ambulantes da cidade.<br />
Em A vida no Brasil, o autor cita o<br />
Manual de polidezpara os rústicos como<br />
exemplo de uma das milhares de obras<br />
vendidas nas ruas da capital brasileira. 7<br />
Anúncios nos jornais também sugerem<br />
que a leitura destes livros era<br />
indispensável para aqueles que<br />
desejavam ser bem sucedidos na<br />
sociedade. O Correio das Damas, jornal<br />
português que circulou no Rio de<br />
Janeiro entre 1836 e 1850, era um dos<br />
que estampava alguns anúncios do<br />
Manual de etiqueta e civilidade, "para<br />
aqueles pouco familiarizados com a vida<br />
na Corte". 8<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 139-152. jan/del 1995 pag 141
A C E<br />
Outra referência à circulação dos<br />
manuais encontra-se no prólogo do<br />
primeiro tratado de civilidade brasileiro<br />
dedicado às crianças. Ma apresentação<br />
à obra Entretenimentos sobre os<br />
deveres da civilidade, José Manuel<br />
Garcia enumera o que considera alguns<br />
dos mais importantes tratados em língua<br />
portuguesa: "a Escola de política, o<br />
Manual de civilidade e etiqueta, o<br />
Código do bom-tom, o Manual de<br />
civilidade brasileira, o novo código do<br />
bom-tom, os Elementos de civilidade"'. 9<br />
É importante ressaltar que os manuais<br />
de civilidade que circulavam na corte no<br />
século XIX chegaram aqui num<br />
momento em que estas obras estavam<br />
amplamente difundidas na Europa,<br />
onde eram editadas desde o século XVI<br />
sob a forma de tratados de cortesia,<br />
regras de moral e nas "artes de agradar<br />
ou artes de amar". 1 0 Da codificação e<br />
simplificação dessas obras é que<br />
surgem os manuais de civilidade, dos<br />
quais o primeiro, Civi/itate morum<br />
pueriiium, de Erasmo, data de 1530.<br />
Dedicado à educação das crianças, esta<br />
obra tratava das posturas, dos<br />
comportamentos sociáveis (na escola,<br />
à mesa, nas brincadeiras) e por fim do<br />
deitar-se. Embora considerado uma obra<br />
menor, o manual escrito por Erasmo<br />
inova em três pontos essenciais, como<br />
demonstra Jacques Revel." Em<br />
primeiro lugar, o livro dirige-se às<br />
crianças, enquanto os textos anteriores<br />
tratavam indiferentemente - com poucas<br />
pag. 142. jan/dez 1995<br />
exceções - adultos e crianças. Em<br />
segundo lugar, dirige-se de forma geral<br />
à todas as crianças, diferenciando-se<br />
dos antigos livros de cortesia que<br />
destinavam-se exclusivamente às jovens<br />
elites. Por fim, é preciso reconhecer na<br />
obra de Erasmo um desejo de ensinar<br />
um código válido para todos, já que o<br />
autor pretendia "fundamentar numa<br />
aprendizagem gestual comum uma<br />
transparência social (...), pré-condição<br />
necessária à concretização de uma<br />
sociabilidade generalizada". 12<br />
A partir da obra de Erasmo e até o final<br />
do século XIX, inúmeras edições e<br />
reedições dos manuais de civilidade se<br />
sucederam.<br />
Morbert Elias mostra como ao longo de<br />
quatro séculos elas foram fundamentais ao<br />
'processo civilizador' e como os antigos<br />
costumes 'bárbaros' vão sendo<br />
abandonados em nome dos preceitos da<br />
civilidade. Grosso modo, para Elias, as<br />
sensibilidades e os comportamentos são<br />
nesse período profundamente modificados<br />
por dois fatos fundamentais: o monopólio<br />
da força, originado com a instauração das<br />
monarquias absolutistas e o estreitamento<br />
das relações pessoais, o que implicava<br />
forçosamente num controle mais rígido das<br />
emoções e afetos.<br />
Através da leitura dos manuais é<br />
possível perceber como são 'civilizadas'<br />
as maneiras de comer, todas as<br />
maneiras relacionadas às funções<br />
corporais (assoar o nariz, escarrar,<br />
cuspir), os comportamentos no quarto,
R V O<br />
r x oi. t ,<br />
M<br />
M<br />
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No final do século XVI, a civilidade se<br />
impõe na França a um público mais<br />
amplo e mais diversificado. A partir daí,<br />
existe uma civilidade "para as pequenas<br />
escolas e para os colégios burgueses,<br />
para a corte e para a cidade, para a alta<br />
aristocracia, a pequena nobreza da<br />
província e os 'burgueses gentis-<br />
1 7<br />
homens".<br />
no decorrer do século XV111 e na<br />
primeira metade do XIX, a civilidade<br />
obtém a sua mais ampla divulgação<br />
social. É grandemente difundida,<br />
inclusive nos meios rurais, pelas<br />
edições de grande circulação dos<br />
manuais que chegam até lá. Contudo, e<br />
graças ao seu próprio sucesso, é nesse<br />
período que os fundamentos da<br />
\ SOENCIA<br />
DA CIVILISAÇÀO<br />
JBJSJOAÇAO 8ÜPKRÍ0R REJCJICSA<br />
i «ii ua tosu tom 11<br />
pag 144. jan/dez 1995<br />
civilidade vão ser abalados.<br />
Segundo Jacques Revel, essa passagem<br />
do culto da civilidade a uma civiiidaae<br />
depreciada ocorre pouco a pouco,<br />
quando ela oscilava entre duas<br />
definições: um modelo válido para<br />
todos e um "sistema de conivências que<br />
distingue o pequeno número". 18<br />
Quando os códigos se revelavam<br />
demasiado acessíveis e difundidos por<br />
toda a parte, a civilidade começava a<br />
apagar os privilégios das elites. Face ao<br />
perigo que representava um eventual<br />
nivelamento das condutas, a civilidade<br />
é depreciada e torna-se um mero<br />
sinônimo de polidez.<br />
Mo momento em que se difunde por<br />
toda a parte, ela já não passa de, um<br />
vestígio. Enrijecido, empobrecido,<br />
desacreditado, desgastado por suas<br />
próprias contradições, o projeto de um<br />
sistema de reconhecimento que deveria<br />
permitir a construção de uma<br />
sociabilidade regulamentada já não<br />
evoca senão normas autoritárias e uma<br />
comédia das aparências à qual as<br />
pessoas humildes ainda têm a fraqueza<br />
de conceder algum crédito. Antes que<br />
novos códigos de comportamentos<br />
coletivos se imponham, a civilidade faz<br />
um triste papel face ao triunfo<br />
provisório do indivíduo e de sua<br />
irredutível espontaneidade. A bem dizer<br />
da verdade, reduzida a pura<br />
exterioridade, ela provoca risos. 19<br />
Norbert Elias, que estudou a evolução<br />
da palavra civilidade, afirma que já em
R V O<br />
meados do século XVIII, o conteúdo<br />
desta palavra e de termos correlatos foi<br />
"absorvido e ampliado em um novo<br />
conceito, na expressão de uma nova<br />
forma de autoconsciência, o conceito de<br />
civilisation. Cortesia, civilidade e<br />
civilização assinalam três estágios de<br />
desenvolvimento social, indicam qual<br />
2 0<br />
sociedade fala e é interpelada".<br />
Segundo o autor, a expansão de<br />
modelos de comportamentos chamados<br />
civilizados ocorreu na fase intermediária<br />
desse processo, sendo que o conceito<br />
de civilização indicaria em seu uso no<br />
século XIX, que o "processo de<br />
civilização - ou, em termos mais<br />
rigorosos, uma fase desse processo -<br />
fora completado e esquecido". 21 Ainda<br />
segundo o filósofo, a partir daí, "as<br />
pessoas querem apenas que esse<br />
processo se realize em outras nações,<br />
e também, durante um período, nas<br />
classes mais baixas de sua própria<br />
sociedade*. 22<br />
As regras de civilidade contidas nos<br />
tratados que chegaram ao Rio de<br />
Janeiro, no século passado,<br />
expressavam o momento em que estava<br />
consolidado o 'processo civilizador' em<br />
nações como a França e quando a leitura<br />
dos manuais de civilidade - já em<br />
declínio - era feita apenas pela<br />
burguesia em ascensão. Por<br />
conseguinte, o corpus ao qual estamos<br />
nos referindo náo apresenta as<br />
variações nos modos e princípios de<br />
civilidade que são encontradas nos<br />
tratados europeus entre os séculos XVI<br />
e XIX. Ma verdade, este material fornece<br />
a reprodução de modelos de<br />
comportamentos consolidados, já<br />
aceitos e absorvidos em outras nações,<br />
especialmente a França - nosso modelo<br />
de civilização -, comportamentos que<br />
eram difundidos na prática, na chamada<br />
'europeização' dos costumes.<br />
Os manuais de civilidade que circulavam<br />
na corte no século XIX podem ser<br />
divididos, grosso modo, em duas<br />
categorias: pedagógicos e cortesãos.<br />
Embora, de maneira geral, toda<br />
literatura de civilidade tenha um cunho<br />
pedagógico, estamos considerando<br />
como tal as obras dedicadas à educação<br />
dos jovens, enquanto os tratados<br />
cortesãos seriam aqueles direcionados<br />
para a "prática do mundo" 2 3, para a vida<br />
na corte ou nos salões.<br />
Os tratados pedagógicos possuíam um<br />
duplo objetivo: reforçar as práticas de<br />
leitura e, ao mesmo tempo, ensinar as<br />
regras de civilidade. A metodologia<br />
empregada neste ensino é que variava:<br />
alguns, como A escola de política,<br />
apelavam para um misto de perguntas<br />
e respostas quanto à civilidade em geral<br />
e textos separados para assuntos<br />
específicos como era o caso do<br />
vestuário. Outros tratados, como os<br />
Entretenimentos sobre os deveres da<br />
civilidade, da professora primária<br />
Quilhermina de Azambuja neves,<br />
buscavam nos "exemplos tirados das<br />
cenas da vida de família no Brasil", a<br />
"instrução moral" dos jovens, incutindo<br />
neles "lições e advertências". 24<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 139-152. Jan/dez 1995 - pag. 145
A C E<br />
A importância da difusão da civilidade<br />
através dos manuais pedagógicos era<br />
enfatizada por seus autores que davam<br />
como exemplo as "nações civilizadas,<br />
que não confiaram somente aos pais e<br />
mestres esta instrução, mas lha tem<br />
dado em admiráveis tratados". 25<br />
Já os tratados cortesãos, embora<br />
também se voltassem para a difusão da<br />
civilidade, ressaltavam o papel da<br />
etiqueta, que consistia justamente na<br />
"observância restrita de todas as regras<br />
da civilidade, do decoro e do bom-<br />
tom". 2 8 Ainda segundo estes manuais,<br />
haveriam duas qualidades de etiqueta:<br />
"a da corte e a da sociedade ou dos<br />
salões", sendo a da corte "indispensável<br />
para manter as hierarquias sociais". 27<br />
Embora estes tratados fossem<br />
destinados a públicos diferentes, os<br />
pedagógicos "para meninos e meninas<br />
que freqüentam nossas escolas públicas<br />
primárias" 2 8 e os cortesãos voltados<br />
para a elaboração de "preceitos que<br />
mais convém a adultos do mundo<br />
elegante" 29, não há divergências entre<br />
os conceitos de civilidade destas obras.<br />
Segundo os Elementos de civilidade,<br />
pag 146. jan/dez 1995<br />
esta se definiria como "o modo de<br />
qualquer pessoa se comportar na<br />
sociedade para com os demais, segundo<br />
os princípios da moral e da religião, que<br />
5 0<br />
são a base da educação do homem".<br />
Já o novo manual do bom-tom utiliza<br />
conceitos de Voltaire, Duelos e<br />
Labruyère para definir a civilidade.<br />
Enuncia também o seguinte conceito: "a<br />
civilidade, a nosso ver, compreende: a<br />
moral, a decência, a honestidade, a<br />
cortesia, e em uma palavra, todas as<br />
agradáveis virtudes que formam os laços<br />
mais fortes da sociedade civilizada, isto<br />
é, falando com propriedade, a moral em<br />
ação". 51<br />
Mão é apenas o conceito de civilidade<br />
que conhece poucas variações entre os<br />
manuais do século XIX. O conteúdo das<br />
regras também variava pouco, assim<br />
como as situações e locais que, segundo<br />
eles, exigiam a prática da civilidade. A<br />
não ser pela linguagem utilizada, mais<br />
apropriada às crianças no caso dos<br />
manuais pedagógicos, têm-se de forma<br />
geral uma convergência nas regras de<br />
civilidade propostas por estas obras.<br />
Segundo os Elementos de civilidade<br />
aquelas deveriam ser observadas "na<br />
igreja, nas companhias, na conversação,<br />
nos encontros e passeios, no andar, na<br />
postura do corpo, no vestido e no<br />
asseio, na mesa, com os superiores,<br />
com os inferiores, com os iguais, no<br />
deitar e levantar da cama, nas cartas e<br />
no luto". 52<br />
O exemplo acima, que aponta locais e
R V O<br />
situações aonde se exigia a<br />
manifestação das regras de civilidade,<br />
mostra como estas regras serviam para<br />
reproduzir as diferenças e hierarquias<br />
da sociedade, ao definir o tratamento a<br />
ser dado 'aos superiores, aos iguais e<br />
aos inferiores'.<br />
Os tratados pedagógicos, e dentre eles,<br />
os voltados para a instrução pública,<br />
também insistiam na manutenção das<br />
distâncias sociais. O autor dos<br />
Elementos de civilidade, por exemplo,<br />
afirma que "a civilidade nos ordena que<br />
sejamos modestos conosco mesmos;<br />
humildes com os nossos superiores;<br />
afáveis com os nossos iguais; humanos<br />
com os nossos inferiores". 33<br />
O novo manual do bom-tom por sua vez,<br />
enuncia "que é preciso que cada um<br />
conheça bem o seu lugar, assim como<br />
o das outras pessoas, segundo a sua<br />
hierarquia" e ensina que "nunca se deve<br />
passar para diante do superior, e<br />
havendo-se entrado na sala, fica-se de<br />
pé até ser mandado assentar". 34<br />
O papel dos manuais de etiqueta, que a<br />
princípio pode parecer o simples ensino<br />
das boas maneiras ou a inculcação das<br />
regras de etiqueta, ia além destes<br />
propósitos, ao buscar preparar os seus<br />
jovens leitores para a vida em<br />
sociedade.<br />
Ao analisar as normas prescritas pela<br />
literatura de civilidade e levando-se em<br />
consideração que muitas destas obras<br />
eram destinadas às escolas, torna-se<br />
importante associá-las à política<br />
educacional vigente no Rio de Janeiro,<br />
no século XIX.<br />
Tratando da instrução pública no Rio de<br />
Janeiro, durante o governo Saquarema,<br />
limar Rohloff de Mattos mostra como na<br />
visão destes dirigentes<br />
a instrução cumpria - ou deveria<br />
cumprir - um papel fundamental, que<br />
permitia - ou deveria permitir - que o<br />
Império se colocasse ao lado das<br />
'nações civilizadas'. Instruir todas as<br />
classes era pois, o ato de difusão das<br />
Luzes que permitiam romper as trevas<br />
que caracterizavam o passado<br />
3 5<br />
colonial....<br />
Mas, segundo ele, instruir todas as<br />
classes ou elevar o povo a um estado<br />
de civilização, significava na prática<br />
possibilitar à 'boa sociedade' "não só<br />
conservar o lugar que ocupava na<br />
sociedade, mas também reconhecer e<br />
reproduzir as diferenças - e<br />
hierarquizações no seu próprio interior".<br />
Ma proposta educacional dos<br />
Saquaremas<br />
primordialmente buscava-se<br />
possibilitar a inclusão na sociedade<br />
daqueles que eram apresentados como<br />
futuros cidadãos do Império. Por meio<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1 -2. p. 139-152, Jan/dez 1995 - pag. 147
A C E<br />
da difusão de uma civilidade,<br />
procurava-se a uniformização mínima<br />
entre os elementos constitutivos de<br />
uma sociedade civil.... 36(grifo meu).<br />
O conhecimento da civilidade como<br />
insígnia de classe também aparecia nos<br />
conteúdos dos manuais dedicados aos<br />
adultos. Afinal, dominar as regras da<br />
civilidade representava de alguma<br />
maneira uma superioridade em relação<br />
aos outros estratos da sociedade.<br />
Segundo Gilberto Freire desde cedo<br />
muitos rapazes e moças eram levados<br />
pelos pais a ler as obras dedicadas às<br />
regras de etiqueta e bom-tom.<br />
'A sociedade tem também sua<br />
gramática', escreveu em 1845 o autor<br />
de certo Código de bom-tom que<br />
alcançou grande voga entre os barões<br />
e viscondes do Império, os quais, para<br />
tomarem ar de europeus, (adotaram)<br />
regras de bom-tom francesas e inglesas<br />
nas criações dos filhos. 37<br />
Apreender todo esse conhecimento,<br />
sem exagerar na exibição das boas<br />
maneiras, fazer com que a civilidade<br />
aparecesse como algo natural, quase<br />
inato, era o que daria a 'boa sociedade'<br />
a possibilidade de se distinguir do resto<br />
da população, igualando-se aos seus<br />
pag. 148. Jan/dez 1995<br />
pares europeus.<br />
Wanderley Pinho ao falar do movimento<br />
da rua do Ouvidor, afirma que, a<br />
despeito de um aparente nivelamento<br />
entre os diversos estratos sociais que<br />
visitavam ou passeavam simplesmente<br />
pela rua, ficava sempre clara a<br />
existência de símbolos exteriores e<br />
marcas que distinguiam a 'boa<br />
sociedade'.<br />
A seleção se fazia ali numa singular<br />
concorrência da aristocracia com a<br />
plebe, que tinha a ilusão salutar da<br />
igualdade. Ombreando com a nobreza,<br />
o povo nào se dava conta do trabalho<br />
sutil que operavam vestuários e<br />
maneiras, gostos, relações e<br />
hierarquias. 36<br />
Para finalizar, pode-se dizer que a<br />
civilidade mostrava-se como um meio de<br />
clivagem social, cujos instrumentos eram<br />
a maneira de falar, de comer, de andar,<br />
entre outras. Era ela que conferia aos<br />
gestos, ao discurso, aos comportamentos<br />
em geral, uma propriedade distintiva,<br />
transformando-se em insígnia da 'boa<br />
sociedade' no século XIX. Claro está que<br />
numa sociedade escravista e<br />
hierarquizada como a brasileira, a<br />
distinção já estava inscrita na própria<br />
estrutura social. Podemos afirmar a partir<br />
da obra de Pierre Bourdieu 3 9 que a<br />
distinção se manifestava como uma<br />
diferença reconhecida, legitimada e<br />
aprovada como tal.<br />
Entretanto, e mesmo para aqueles que<br />
apareciam no espaço social de forma
K V O<br />
naturalmente distinta, o conhecimento<br />
da civilidade era fundamental, pois<br />
viabilizava o reconhecimento e a<br />
classificação dos indivíduos ou, em<br />
N O<br />
outras palavras, fazia com que a 'boa<br />
sociedade' exteriorizasse o lugar que<br />
ocupava na sociedade.<br />
1. Cf. REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações. São Paulo:<br />
Itatiaia, 1988, p. 171. Para o autor, bacharel mineiro do início do século XIX, a<br />
sociedade aparece dividida nas seguintes classes: "a dos brancos e sobretudo<br />
daqueles que por sua posição constituíam o que se costuma chamar a boa<br />
sociedade; a do povo mais ou menos miúdo; e finalmente a dos escravos".<br />
2. Expressão cunhada por Norbert Elias. Cf. do autor O processo civilizador. Rio de<br />
Janeiro: Zahar, 1990.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, i 8 ir 12. p 139-152, jan/dez 1995 - pag. 149
A C E<br />
3. CHARTIER, Roger. "Distinction et divulgation: la civilité et ses livres." In: Lectures<br />
et lecteurs dans la France dAncien Regime. Paris: Éditions du Seuil, 1987, pp.<br />
45-48.<br />
4. REVEL, Jacques. "Os usos da civilidade." In: História da vida privada. São Paulo:<br />
Cia. das Letras, 1991, vol. 3, p. 170.<br />
5. Idem, ibidem, p. 171.<br />
6. Sobre a utilização de textos literários pelo historiador, afirma Roger Chartier que,<br />
a "relação do historiador com o real (...) constrói-se segundo modelos discursivos<br />
e delimitações intelectuais próprios de cada situação de escrita. O que leva,<br />
antes de mais nada, a não tratar as ficções como simples documentos, reflexos<br />
realistas de uma realidade histórica, mas a atender a sua especificidade enquanto<br />
texto situado relativamente a outros textos (...)". Cf. CHARTIER, Roger. "História<br />
intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação." In: História<br />
cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.<br />
7. EWBANK, Thomas. A vida no Brasil ou diário de uma visita ao país do cacau e das<br />
palmeiras. São Paulo: Itatiaia, 1976, p. 79.<br />
8. O Correio das Damas. Lisboa, 1850.<br />
9. Cf. NEVES, Quilhermina de Azambuja. Entretenimentos sobre os deveres da<br />
civilidade colecionados para uso da puerícia brasileira de ambos os sexos. Rio<br />
de Janeiro: Tip. Cinco de Março, la. ed., 1875.<br />
10. Para as origens dos manuais de etiqueta e civilidade, cf. ARIES, Philippe. História<br />
social da criança e da família. Rio de Janeiro: Quanabara, 1986, p. 68.<br />
1 1. REVEL, Jacques, op. cit., p. 172-73.<br />
12. Idem, ibidem, p. 174.<br />
13. Fórmula de edição surgida na França no século XVIII que permitia a circulação<br />
de livros de baixo preço, impressos em grande número e divulgados através da<br />
venda ambulante. Cf. CHARTIER, Roger. "Textos e edições: a literatura de cordel."<br />
In: A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, pp.<br />
165-187.<br />
14. Segundo Jacques Revel, "as civilidades que se inscrevem na tradição erasmiana<br />
repousam, pelo menos implicitamente, num duplo postulado: os bons<br />
comportamentos podem ser ensinados e aprendidos de maneira útil e são os<br />
mesmos para todos". Cf. REVEL, Jacques, op. cit., p. 192.<br />
pag. 150. jan/dez 1995
15. Loc.cit.<br />
16. ELIAS, Norbert, op. cit., p. 54.<br />
17. REVEL, Jacques, op. cit., p. 203.<br />
18. Loc. cit.<br />
19. Idem, ibidem, p. 206.<br />
20. ELIAS, Morbert, op. cit., pp. 1 12-1 13.<br />
21. Idem, ibidem, p. 113.<br />
22. Loc. cit.<br />
V o<br />
23. Cf. VERARDI, Luís. Novo manual do bom-tom. Rio de Janeiro: Laemmert, 6a. ed., 1900.<br />
24. MEVES, Quilhermina de Azambuja, op. cit., p. 9.<br />
25. SIQUEIRA, d. João de nossa Senhora da Porta. Escola de política ou tratado prático<br />
da civilidade portuguesa. Pernambuco: Tip. de Santos e Cia., 2a. ed., 1845.<br />
26. VERARDI, Luís, op. cit., p. 74.<br />
27. Loc. cit.<br />
28. nEVES, Quilhermina de Azambuja, op. cit., p. 5.<br />
29. Loc. cit.<br />
30. Cf. Elementos de civilidade, s. d., p. 1.<br />
31. VERARDI, Luís, op. cit.<br />
32. Cf. Elementos de civilidade, op. cit.<br />
33. Idem, ibidem.<br />
34. VERARDI, Luís, op. cit.<br />
35. MATTOS, limar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo:Hucitec, 1987, p. 259.<br />
36. Idem, ibidem, pp. 259-260.<br />
37. Cf. PREIRE, Qilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olímpio, 25a.<br />
ed., 1987, p. 420.<br />
38. PinHO, Wanderley. Salões e damas no Segundo Reinado. São Paulo: Martins<br />
Pontes, 1970, p. 284.<br />
39. Cf. do autor Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990 e La distinction - critique<br />
sociale du jugement. Paris: Edition du Minuit, 1979."<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* I -2. p. 139-152. jan/dez 1995 pag. 151
A B S T R A C T<br />
This article spotlights the circulation and reading of manuais on etiquette and civility<br />
in Rio de Janeiro during the 19th century. It also looks into how the "good society"<br />
endeavored to distinguish itself by assimilating the behavior and decorum<br />
recommended by these books.<br />
R É S U M É<br />
Cet article parle sur la circulation et la lecture des manuels d'étiquette et de civilité<br />
à Rio de Janeiro pendant le XIXè siècle. On y trouve une analyse de comment les<br />
"gens bien" essaient dincorporer les manières et comportements décrits dans les<br />
livres comme les plus distingues.<br />
pag. 152. jan/dez 1995
Paulo Gomes Leite<br />
Professor de História. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.<br />
Revolução e lieresia na<br />
LiUioteca cie mm a
A C E<br />
Contou o tenente-coronel Francisco de<br />
Paula Freire de Andrada num dos seus<br />
depoimentos que, em sua casa,<br />
Tiradentes, Alvarenga Peixoto, o padre<br />
Toledo e o padre Rolim comentaram que<br />
o abade Raynal tinha sido um escritor<br />
de grandes vistas, porque prognosticou<br />
o levantamento da América<br />
setentrional, e que a capitania de Minas<br />
Qerais. com o lançamento do tributo<br />
da derrama, estaria agora nas mesmas<br />
circunstâncias. 4<br />
Era grande o interesse dos inconfidentes<br />
pelos livros que tratavam da<br />
independência dos Estados Unidos.<br />
Segundo o padre José Lopes de Oliveira,<br />
Tiradentes andava procurando nas<br />
bibliotecas obras relativas ao levante<br />
dos norte-americanos. 5<br />
Mos Autos de Devassa, há várias<br />
referências a essa intensa atividade<br />
livresca do Alferes, que pediu a<br />
Francisco Xavier Machado, porta-<br />
estandarte do Regimento de Cavalaria<br />
Regular, para lhe traduzir um capítulo<br />
da Coleção das leis constitutivas dos<br />
Estados Unidos da América<br />
e o capítulo que apontava vinha a ser<br />
a seção oitava, sobre a forma da<br />
eleição do conselho privado, por cujo<br />
conteúdo ser invulgar ao dito Alferes,<br />
ele, testemunha (F.X. Machado),<br />
traduziu; o qual (Tiradentes), depois ,<br />
folheou muito o mesmo livro e como<br />
quem queria achar outro lugar,<br />
deixando-lhe ficar o mesmo livro, que<br />
pag, 154. Jan/dez 1995<br />
é o próprio em oitavo, com capa de<br />
papel pintado, apenso desta Devassa. 6<br />
rio termo de entrega das duas devassas<br />
ao desembargador conselheiro<br />
Sebastião Xavier de Vasconcelos<br />
Coutinho, de 26 de janeiro de 1791, há<br />
uma citação do apenso 26 da Devassa<br />
de Minas, "que é um livro em francês<br />
das leis constitutivas dos Estados<br />
Unidos da América Inglesa, e tem<br />
trezentas e setenta páginas". 7 Trata-se<br />
do Recueil des loix constitutives des<br />
colonies angloises, confédérées sous la<br />
dénomination d'Etats Unis de<br />
L'Amérique Septentrionale. editado na<br />
Suíça em 1778, traduzido do inglês por<br />
Claude Ambrose Régnier. O volume foi<br />
destacado dos autos pelo historiador<br />
Melo Morais," em 1860, e oferecido à<br />
Biblioteca Pública de Florianópolis,<br />
tendo sido, posteriormente, transferido<br />
para o Museu da Inconfidência, de Ouro<br />
Preto, onde atualmente se encontra.<br />
Joaquim José da Silva Xavier procurou<br />
também Simão Pires Sardinha, "levando-<br />
Ihe uns livros ingleses para lhe traduzir<br />
certos lugares que também diziam<br />
respeito a coisas da América" 8» ainda<br />
segundo o depoimento de Francisco<br />
Xavier Machado.<br />
José Álvares Maciel também trouxe da<br />
Europa um exemplar da coleção das leis<br />
dos Estados Unidos, conforme<br />
depoimento de Francisco Antônio de<br />
Oliveira Lopes. 9 Há indicação docu<br />
mental da entrada na capitania de Minas<br />
Qerais de apenas dois exemplares das
K V O<br />
mencionadas leis: o de Álvares Maciel e<br />
o do dr. José Pereira Ribeiro, advogado<br />
em Mariana.<br />
Embora nunca tivesse saído do Brasil,<br />
o cõnego Luís Vieira da Silva conseguiu<br />
adquirir obras proibidas e incendiadas,<br />
como as de Bielfeld, Voltaire, Robertson,<br />
Mably, Qiannone, e fEsprit de<br />
/'Encyc/opédie, uma seleção dos<br />
principais artigos da Enciclopédia, de<br />
Diderot e d'Alembert. Estava, pois, a par<br />
da revolução que se processava no<br />
mundo das idéias.<br />
Conhecia as leis dos Estados Unidos,<br />
como ele próprio confessou, e devia<br />
conhecê-las muito bem para ser aceito<br />
como um dos redatores das leis da<br />
projetada República do Brasil, ao lado<br />
de Cláudio e Qonzaga. Para isso, era<br />
fundamental que tivesse em mãos o<br />
Recueil des loix constitutives...Assim<br />
como pediu emprestado um livro de<br />
Mably ao intendente Bandeira, é<br />
possível que também tivesse pedido<br />
emprestado ao dr. José P. Ribeiro o<br />
exemplar do Recueil que ele trouxe da<br />
Europa para Mariana. Outrossim, parece-<br />
nos lícito supor que Domingos Vidal<br />
tenha se servido do exemplar da obra<br />
de Raynal, que o dr. José Ribeiro<br />
igualmente trouxe. Recorde-se que Vidal<br />
foi seu companheiro de viagem de<br />
Lisboa ao Rio de Janeiro e que sabia<br />
trechos de cor do revolucionário<br />
iluminista.<br />
A biblioteca do cõnego Luís Vieira da<br />
Silva, notável para a época e o meio em<br />
que viveu, objeto de freqüentes<br />
referências e citações, sempre<br />
impressionou os estudiosos, que não se<br />
cansam de louvar o valor cultural e<br />
histórico das obras que a compõem.<br />
Como só acontecia em tais casos, a<br />
admiração, aliás justa, acabou por fazer<br />
acréscimos ao admirável acervo,<br />
alterando a realidade dos fatos e<br />
levando a falsas implicações históricas.<br />
Apesar da relevância dos filósofos<br />
iluministas ali presentes, a biblioteca<br />
deve ser reduzida às suas devidas<br />
proporções, e para isso cumpre atentar<br />
nos dois seguintes fatos:<br />
1) Ressalte-se, em primeiro lugar, que a<br />
imaginação de alguns historiadores se<br />
encarregou de colocar nas estantes do<br />
cõnego livros que ali nunca estiveram,<br />
como a tiistoire philosophique et<br />
politique des etablissemens et du<br />
commerce des européens dans les deux<br />
Indes, do abade Raynal 10, e obras de<br />
Rousseau. Embora conste dos Autos de<br />
Devassa que a obra de Raynal era<br />
sobejamente conhecida dos incon<br />
fidentes, não há nenhuma evidência<br />
concreta, nos Autos ou em qualquer<br />
outro documento, de que ela figurasse<br />
na biblioteca de Luís Vieira, apesar da<br />
sua avidez de informações e<br />
conhecimentos e da afinidade de<br />
princípios entre o ativo revolucionário<br />
mineiro e o incendiário autor francês. É<br />
até provável que o cõnego a tivesse lido,<br />
mas uma coisa é formular uma hipótese,<br />
e outra é materializar uma probabilidade<br />
e pô-la numa prateleira.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n 1-2. p. 153-166, jan/dez 1995-pag,155
A C E<br />
2) Ao contrário do que geralmente se<br />
pensa, a biblioteca do cônego nào é a<br />
única grande biblioteca na capitania de<br />
Minas no século XV1I1. FÍào é, nem<br />
mesmo a mais relevante no que<br />
concerne à bibliografia iluminista e<br />
revolucionária. Sob esse aspecto, a mais<br />
importante, embora menor quanto à<br />
quantidade de livros, é a do dr. José<br />
Pereira Ribeiro, advogado em Mariana,<br />
formado pela Universidade de Coimbra.<br />
O inventário dos seus bens encontra-se<br />
no <strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de<br />
Mariana." Data de 1798 e traz a relação<br />
dos livros da sua biblioteca. São 201<br />
obras em 486 volumes. O cônego Luís<br />
Vieira da Silva tinha 276 obras em 563<br />
volumes. Sabe-se, pelos Autos de Devassa<br />
da Inconfidência Mineira, que o dr. Ribeiro<br />
tinha a Mstoire philosophique et<br />
po/itique...e as leis dos norte-americanos,<br />
como atrás já ficou dito.<br />
É importante notar que nào constam do<br />
inventário a obra de Raynal e as leis dos<br />
Estados Unidos. A primeira obra teria<br />
sido emprestada a Domingos Vidal, e a<br />
segunda ao cônego. De qualquer modo,<br />
é significativa a ausência delas no<br />
arrolamento dos livros, pois eram obras<br />
altamente comprometedoras. Se não<br />
foram emprestadas, podem ter sido<br />
queimadas logo que se começaram a<br />
fazer as prisões dos conjurados, para<br />
evitar suspeitas ou represálias.<br />
Pelo fato de o dr. José P. Ribeiro ter sido<br />
depositário dos livros do cônego Luís<br />
Vieira, não se pense que os volumes<br />
pag. 156. jan/dez 1995<br />
arrolados no inventário daquele são os<br />
do cônego. Trata-se de duas bibliotecas<br />
completamente diferentes, embora haja -<br />
é claro - coincidência de algumas obras.<br />
O dr. José Pereira Ribeiro nasceu em<br />
Congonhas do Campo, comarca de Vila<br />
Rica, em 1764, e morreu em Mariana,<br />
em 28 de fevereiro de 1798, com 34<br />
anos. Bacharelou-se em Leis pela<br />
Universidade de Coimbra em 1787 e no<br />
ano seguinte veio para o Brasil, em<br />
companhia de Domingos Vidal de<br />
Barbosa Laje, trazendo a incendiaria<br />
obra de Raynal e as leis dos Estados<br />
Unidos. Era tio (porém mais moço) do<br />
dr. Diogo Pereira Ribeiro de<br />
Vasconcelos, que foi preso e depois<br />
solto. Depôs duas vezes na Devassa,<br />
mas nada revelou e não foi molestado.<br />
Advogou em Mariana e foi também<br />
poeta, como afirma seu sobrinho, o dr.<br />
Diogo: "De uma suavidade inimitável em<br />
suas composições poéticas, que todos<br />
admiram, até merece ser chamado o<br />
Anacreonte de Minas". 12<br />
Era casado com Rita Caetana Maria de<br />
Sào José, com quem teve cinco filhos e<br />
náo um, como já se escreveu. O quinto<br />
nasceu depois de sua morte. Esses<br />
dados constam do inventário.<br />
As obras iluministas (muitas delas<br />
proibidas), revolucionárias e heréticas,<br />
abundam em sua biblioteca. Aí estão<br />
D'Alembert, Robertson, Qenuense,<br />
Mably, Febrônio, Voltaire, Bielfeld,<br />
Vattel, Montesquieu, Condillac e Wolff.<br />
nenhuma referência à obra de Raynal.
Ela só vai aparecer nas páginas dos Autos<br />
de Devassa, e é importante notar que todas<br />
às vezes em que ela é citada está associada<br />
ao exemplar do dr. José Pereira Ribeiro.<br />
Pode-se até mesmo observar a seguinte<br />
seqüência nos Autos:<br />
V o<br />
1) Domingos Vidal afirma que viu o livro<br />
de Raynal com o dr. José Pereira Ribeiro<br />
durante a viagem de regresso ao Brasil.<br />
2) Domingos Vidal sabia de cor algumas<br />
passagens da obra e fala sobre ela com<br />
o seu primo, o também inconfidente<br />
RAYNAL, Guilhaume Thomaz. Histoire philosophique et politique des établissements et du<br />
commerce des européens dans les deux Indes. Paris: Anable, Cost.es et Cie, 1820.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 153-166, jan/dez 1995-pag. 157
A C E<br />
coronel Francisco Antônio de Oliveira<br />
Lopes.<br />
3) Oliveira Lopes fala do livro ao padre<br />
Toledo e diz que ele "estava na mão de<br />
um doutor na cidade de Mariana". Dá<br />
pormenores da obra.<br />
4) O tenente-coronel Francisco de Paula<br />
Freire de Andrada revela que, em sua<br />
casa, Tiradentes, Alvarenga Peixoto, o<br />
padre Toledo e o padre Rolim<br />
comentaram a obra. Enfim, a obra é<br />
minuciosamente debatida a partir do<br />
exemplar do dr. Ribeiro, o único citado<br />
nos Autos e só lá citado. Mão há notícia,<br />
documentalmente comprovada, de<br />
nenhum outro exemplar em Minas<br />
naquela época (até 1789).<br />
Como se vê, um inconfidente passava<br />
para outro os dados essenciais da obra<br />
de Raynal, de modo que os que não<br />
tiveram a oportunidade de manusear o<br />
livro assimilaram auditivamente sua<br />
mensagem revolucionária. Ma casa de<br />
Andrada, ela se transmitiu através de<br />
uma 'leitura' coletiva, já que a obra foi<br />
comentada. Tal leitura', embora<br />
superficial, tinha a vantagem de ser<br />
esclarecedora, por se processar por<br />
meio de debates e troca de idéias.<br />
Assim, os inconfidentes menos cultos<br />
tiveram a oportunidade de alcançar um<br />
razoável grau de conscientização.<br />
A notável biblioteca iluminista do dr.<br />
José Pereira Ribeiro foi o mais<br />
importante suporte ideológico da<br />
Inconfidência Mineira, tendo<br />
contribuído para conscientizar os<br />
pag. 158. Jan/dez 1995<br />
mineiros e excitar-lhes o ânimo<br />
revolucionário.<br />
Muitos são os livros de Jurisprudência<br />
que ali se encontram, havendo também<br />
as obras-primas da literatura universal,<br />
gramáticas, dicionários, livros de<br />
história, geografia, teologia,<br />
matemática, medicina, química, história<br />
natural, filosofia etc, formando um<br />
acervo diversificado, que evidencia<br />
amplo interesse cultural.<br />
Entre as obras literárias, destacam-se as<br />
de Anacreonte, Safo, Horácio, Virgílio,<br />
Terêncio, Cícero, Milton, Le Sage (Qil<br />
Blas de Santillane, uma das novelas<br />
mais lidas no século XVIII), Oesner,<br />
Correia Qarçáo, frei José de Santa Rita<br />
Durão (Caramuru).<br />
Também merecem destaque Fernáo<br />
Mendes Pinto, frei Luís de Sousa (Vida<br />
de dom frei Bartolomeu dos Mártires),<br />
Matias Aires (Reflexões sobre a vaidade<br />
dos homens), Sebastião da Rocha Pitta<br />
(História da América Portuguesa), Tissot<br />
(em dois vols.), Lineu (Filosofia<br />
botânica). Pufendorf (Direito natural),<br />
Platão (Diálogo moral).<br />
Mencionamos a seguir obras de<br />
escritores iluministas (muitas delas<br />
proibidas) e obras que, ou por serem<br />
consideradas heréticas, ou por motivos<br />
morais, foram condenadas pela Igreja:<br />
1) D'Alembert: Mélanges de littérature,<br />
d'histoire et de philosophie. 5 vols.<br />
D'Alembert foi, juntamente com Diderot,<br />
um dos organizadores da famosa<br />
Enciclopédia, obra condenada nào só
pelo poder espiritual, como também<br />
pelo temporal.<br />
Em Mélanges..., D'Alembert diz que os<br />
filósofos e cientistas foram<br />
injustamente perseguidos por causa das<br />
suas idéias e das suas descobertas,<br />
responsabilizando a Inquisição pelo<br />
atraso cultural em que alguns países se<br />
encontravam. 13<br />
2) Millot: Histoire générale. 9 vols.<br />
Com o intuito de combater a<br />
superstição, o abade Millot dirige<br />
sarcasmos contra os padres e os papas.<br />
3) Robertson: Histoire de 1'Amérique. 4 vols.<br />
Robertson, um dos luminares do<br />
Iluminismo escocês, afirma que o<br />
Tribunal da Inquisição, em todos os<br />
lugares onde era estabelecido, tolhia o<br />
espírito de pesquisa e o progresso das<br />
Letras. 1*<br />
4) Qenuense: Lógica e Metafísica. 2 vols.<br />
O padre Antônio Qenuense,<br />
representante do Iluminismo italiano, é<br />
considerado um autor perigoso. Seus<br />
Elementos de teologia, publicados em<br />
1751, foram condenados pelo arcebispo<br />
de Mápoles, Spinelli, e Qenuense foi<br />
afastado da cátedra de Teologia, que<br />
ocupava desde 1741.<br />
5) Histoire du Parlement. O escrivão não<br />
cita o autor. Pode ser a Histoire du<br />
Parlement d'Angleterre, de Raynal , ou<br />
Histoire du Parlement de Paris, de<br />
Voltaire. Mesta segunda obra, Voltaire<br />
critica o Parlamento, apresentando-o<br />
como um órgão composto por<br />
jansenistas reacionários.<br />
V o<br />
6) Obras de Mably. 11 vols. Mais adiante,<br />
o escrivão menciona o Droit public de<br />
1'Europe, de Mably, em três vols., livro<br />
proibido na Trança por suas idéias<br />
audazes em matéria de política e<br />
economia social. O autor ataca a<br />
Inquisição, dizendo que ela é contrária<br />
aos princípios do Cristianismo e às luzes<br />
da razão , bem como um possante<br />
obstáculo às revoluções domésticas,<br />
pois acostuma os espíritos a pensar<br />
1 5<br />
sempre do mesmo modo.<br />
7) Justino Febrônio. 2 vols.<br />
É autor de De Statu Ecclesiae, obra<br />
proibida pela Igreja por defender os<br />
princípios do galicanismo, isto é, a<br />
autonomia dos bispos franceses diante<br />
da autoridade do Papa.<br />
8) Voltaire: Siècle de Louis XIV, Carlos<br />
XII. Henriade.<br />
O Siècle de Louis XIV publicou-se em<br />
Berlim, em 1751, e foi proibido'na<br />
França. Mo fim do livro, Voltaire diz que<br />
esse século teria sido, em todos os<br />
aspectos, notável, se não tivesse dado<br />
lugar à superstição, e que Luís XIV teria<br />
sido o rei ideal, se não tivesse tido um<br />
jesuíta por confessor.<br />
9) Samuel Richardson: Pamela. 4 vols.<br />
Editado em 1740, o romance do escritor<br />
inglês foi incluído no Index Librorum<br />
1 6<br />
Prohibitorum em 17 44.<br />
10) Obras de Linguet. 5 vols.<br />
Linguet, um dos que mais combateram<br />
o despotismo monárquico, escreveu<br />
inúmeros livros , sobre os mais variados<br />
assuntos. Seus escritos mordazes e sua<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 155-166. Jan/dez 1995-pag.l59
extrema audácia levaram-no ao exílio e<br />
à prisão, tendo sido condenado à morte<br />
em 1794, sob o regime do terror. Esteve<br />
encarcerado na Bastilha durante dois<br />
anos, de onde saiu em maio de 1782.<br />
Mo ano seguinte, foram publicadas em<br />
Londres suas Memórias da Bastilha, obra<br />
que alcançou grande repercussão e foi<br />
uma das mais vendidas na França no<br />
século XVIII. 17<br />
Sua História imparcial dos jesuítas,<br />
editada em 1768, foi queimada por<br />
decreto do Parlamento de Paris, ao pé<br />
da escadaria do palácio, apesar do<br />
'imparcial' do titulo.<br />
11) História da América Inglesa, sem<br />
indicação do autor.<br />
As obras que abordavam a<br />
independência dos Estados Unidos<br />
despertavam grande interesse nos<br />
intelectuais brasileiros da época.<br />
12) Bielfeld: Institutions politiques.<br />
Esta obra, de um dos maiores expoentes<br />
do Iluminismo alemão, contém o mais<br />
violento ataque que já se fez à<br />
Inquisição. Diz o autor que era preciso,<br />
secretamente, pôr fogo no palácio e nas<br />
prisões da Inquisição, que ele chama de<br />
'horrível Tribunal' e de 'monstro<br />
hediondo'. Tacha Portugal de nação<br />
'carola e supersticiosa'. 18<br />
13) Vattel: Direito das gentes. 3 vols.<br />
Obra proibida e queimada pela<br />
Inquisição espanhola em 1779.<br />
14) Obras de Montesquieu. 6 vols.<br />
Montesquieu foi um importante marco<br />
pag. 160, jan/dez 1995<br />
do Iluminismo francês. Segundo o<br />
abade Raynal, O espírito das leis virou<br />
a cabeça de todo o povo da França.<br />
15) Obra elementar de Condillac,<br />
iluminista francês.<br />
16) Wolff: Princípios de direito natural.<br />
3 vols.<br />
Wolff foi um dos grandes nomes do<br />
Iluminismo alemão.<br />
A análise de bibliotecas esbarra em<br />
várias dificuldades. Uma delas, de difícil<br />
solução, diz respeito a um livro da<br />
biblioteca do cônego, objeto de dúvidas<br />
e especulações e matéria controversa<br />
entre os historiadores. Trata-se de<br />
Elementos da arte militar. Uma obra de<br />
estratégia militar na estante de um<br />
sacerdote revolucionário suscita<br />
indagações , suspeitas e interpretações<br />
polêmicas. O livro estaria ali servindo o<br />
padre-filósofo ou o padre-conspirador?<br />
Sua função era formar o intelecto ou<br />
dilacerar a carne?<br />
Eduardo Frieiro náo vê mais do que<br />
febre de instrução. 19<br />
Márcio Jardim discorda do ponto de<br />
vista de Frieiro, alegando que no acervo<br />
do cônego não se nota nenhuma<br />
inutilidade, "nada estava ali por acaso<br />
numa simples composição de<br />
estante". 20<br />
Frieiro cita o depoimento de Domingos<br />
Vidal na Devassa de Minas, mas náo o<br />
considera suficiente para provar que o<br />
cônego tenha desempenhado o papel de<br />
estrategista militar, não cita, contudo,
R V O<br />
o depoimento de Vidal na Devassa do<br />
Rio. Cotejando-se os dois depoimentos,<br />
pode-se verificar que o da Devassa do<br />
Rio acrescenta um dado importante,<br />
através de uma única palavra. Senão,<br />
vejamos:<br />
"...tinha feito um plano..."(Devassa de<br />
Minas). 21<br />
"...tinha feito um papel..."(Devassa do<br />
Rio). 22<br />
Pela Devassa do Rio, sabe-se que o<br />
plano do cõnego era por escrito, no<br />
papel, possivelmente com um gráfico,<br />
e não, um simples plano verbal, um<br />
palpite que entra por um ouvido e sai<br />
pelo outro. A Conjuração não foi uma<br />
è<br />
%<br />
quimera ideada em tertúlias literárias<br />
nem um simples devaneio romântico em<br />
amenos entretenimentos pós-prandiais.<br />
Ela teve uma fundamentação ideológica<br />
e estratégica, e o plano militar<br />
realmente coube ao cõnego Luís Vieira<br />
da Silva.<br />
Vê-se que a participação do cõnego no<br />
movimento foi intensa e da maior<br />
relevância. Graças à sua erudição e aos<br />
livros que conseguiu, foi um dos<br />
redatores das leis sem ser advogado e<br />
o responsável pela estratégia militar<br />
sem ser militar. Do mesmo modo que<br />
não leu as leis dos norte-americanos por<br />
'febre de instrução', parece que não leu<br />
também os Elementos da arte militar<br />
A revolucionária obra do abade Raynal, tachada pela Sorbonne de "delírio de uma alma ímpia e<br />
queimada por ordem do Parlamento francês. Exemplar da Biblioteca Municipal de São João dei Rei.<br />
Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 155-166. jan/dei 1995-pag.l6l
A C E<br />
pelo mesmo motivo. O fato de ter esse<br />
livro em sua biblioteca náo prova que o<br />
tenha lido, mas é provável que sim.<br />
A biblioteca do dr. José Pereira Ribeiro<br />
ajuda a esclarecer a questão, pois ele<br />
tinha também os Elementos da arte<br />
militare. igualmente náo era militar, mas<br />
é provável que tenha dado apoio<br />
intelectual ao movimento. Por que um<br />
advogado e poeta se interessaria por tal<br />
assunto? não se fale outra vez em 'febre<br />
de instrução'. Isso não explica tudo. Mão<br />
se sabe de nenhuma outra pessoa em<br />
Minas, naquela época, que tivesse o<br />
livro. Procuramos nos arquivos de Ouro<br />
Preto e Mariana os inventários de todos<br />
os oficiais do Regimento de Cavalaria<br />
Regular de Minas Qerais. Encontramos<br />
alguns, não conseguimos localizar<br />
outros. Em nenhum dos inventários<br />
consultados figura a obra.<br />
Para compreender a sua presença na<br />
biblioteca do dr. Ribeiro, temos que<br />
examiná-la no contexto bibliográfico em<br />
que ela está inserida. Compõem o<br />
acervo obras jurídicas, científicas,<br />
literárias, e nota-se um conjunto de<br />
obras iluministas e de obras que dizem<br />
respeito aos Estados Unidos. Destacam-<br />
se, sobretudo, a obra de Raynal, as leis<br />
dos norte-americanos e uma História da<br />
América Inglesa. O dr. Ribeiro estava na<br />
Europa', vivendo em meio à<br />
efervescência intelectual da época, era<br />
jovem e deve ter participado da<br />
expectativa da separação do Brasil,<br />
seguindo o exemplo dos Estados<br />
pag. 162. Jan/dez 1995<br />
Unidos. Havia pressão psicológica dos<br />
outros países sobre os brasileiros para<br />
fazerem também a sua independência.<br />
Mais cedo ou mais tarde ela se daria, com<br />
luta, naturalmente, e para ela seriam de<br />
utilidade os Elementos da arte militar.<br />
A biblioteca do cônego tinha a mesma<br />
característica, com a diferença de que<br />
em vez de obras jurídicas havia obras<br />
filosóficas e teológicas. Mas o interesse<br />
por obras iluministas e relativas aos<br />
Estados Unidos é o mesmo. Os<br />
Elementos da arte militar nào se<br />
encontravam aleatoriamente nas duas<br />
bibliotecas, mas estavam dentro de um<br />
mesmo contexto bibliográfico, corres<br />
pondendo aos mesmos interesses e<br />
expectativas e não a uma epidemia de<br />
febre cultural. Meias havia o exemplo a<br />
ser seguido e a teoria e prática<br />
revolucionárias. As duas bibliotecas<br />
formavam um arsenal ideológico de<br />
primeira ordem, principalmente a do dr.<br />
José Pereira Ribeiro, que parece ter sido<br />
o grande suporte ideológico da<br />
Inconfidência Mineira. Só alguns oficiais<br />
tinham livros, porém poucos e sem nada<br />
de extraordinário a notar quanto à<br />
revolução das idéias ou à estratégia<br />
militar, com exceção do tenente Antônio<br />
da Silva Brandão, em cuja pequena<br />
biblioteca havia uma obra da maior<br />
importância.<br />
Um irmão desse oficial, capitão Manuel<br />
da Silva Brandão, esteve implicado na<br />
Inconfidência."<br />
O inventário dos bens do tenente
Antônio da Silva Brandão (que morreu<br />
no posto de sargento-mor) foi feito em<br />
Mariana em 1827. Mele, são arrolados<br />
19 livros, em sua maioria de assunto<br />
militar. Citamos apenas os seguintes:<br />
Tratado das evoluções militares;<br />
Instrução do Regimento de Cavalaria<br />
Miliciana; Máximas da guerra;<br />
Instruções militares de...(ilegível);<br />
Instruções secretas de Frederico<br />
Segundo; Das instruções para a<br />
infantaria.<br />
O manuscrito é de leitura difícil, porque<br />
em muitos pontos está com a tinta<br />
bastante apagada. Encontra-se no<br />
<strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de<br />
Mariana. 24<br />
As Instruções secretas são instruções<br />
militares de Frederico II, rei da Prússia,<br />
um dos maiores estrategistas do século<br />
XVIII, amigo e protetor dos filósofos<br />
iluministas, entre os quais Voltaire. Mão<br />
se sabe quando esse precioso livro foi<br />
adquirido, se no fim do século XVIII ou<br />
no início do século XIX, já que o<br />
inventário é de 1827. O mais provável<br />
é que esse e alguns outros volumes de<br />
estratégia militar tenham penetrado em<br />
Minas Gerais na segunda metade do<br />
século XVIII, pois o visconde de<br />
Barbacena considerava o tenente<br />
Antônio da Silva Brandão 'hábil', e essa<br />
habilidade naturalmente decorria da<br />
leitura e estudo de tais livros. Em 11 de<br />
fevereiro de 1790, o visconde enviou<br />
um ofício a Martinho de Melo e Castro,<br />
secretário da Marinha e Ultramar,<br />
V o<br />
juntamente com uma relação dos<br />
oficiais do Regimento de Cavalaria<br />
Regular, em cujas margens fez obser<br />
vações acerca de alguns oficiais. Ao lado<br />
do nome do capitão Manuel da Silva<br />
Brandão escreveu: "Com seu efetivo,<br />
muito suspeito". E sobre o tenente<br />
Antônio da Silva Brandão anotou:<br />
"Irmão do capitão Brandão; é hábil. 25<br />
Seria interessante saber também o que<br />
liam os alunos de Mariana e como os<br />
livros chegavam até eles. Encontramos<br />
numa das prateleiras do <strong>Arquivo</strong> do<br />
Museu da Inconfidência, de Ouro Preto,<br />
numa pilha de fragmentos de<br />
inventários, um traslado do seqüestro<br />
dos bens do inconfidente Vicente Vieira<br />
da Mota, guarda-livros do contratador<br />
João Rodrigues de Macedo. O<br />
documento estava erroneamente<br />
classificado como inventário de 1721,<br />
apesar do zelo com que o material é ali<br />
guardado. Esse equívoco repete outro,<br />
cometido no Fórum de Ouro Preto, de<br />
onde procede o manuscrito: escreveram<br />
na folha inicial, aliás parcialmente<br />
dilacerada e de difícil leitura, '1721<br />
lnventr". Como dissemos, trata-se de<br />
um traslado. O documento original<br />
encontra-se no Instituto Histórico e<br />
Qeográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.<br />
Um trecho do manuscrito nos informa<br />
que o tenente Antônio Gonçalves da<br />
Mota, testamenteiro do padre Francisco<br />
de Paula Meireles, professor régio de<br />
Filosofia em Mariana, comunicou que o<br />
referido padre pedira em seu<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 133-166. Jan/dez 1995 - pag. 163
A C E<br />
testamento 26 que fossem entregues ao<br />
Juizo do Fisco vários livros pertencentes<br />
ao confiscado Vicente Vieira da Mota,<br />
que os tinha encomendado de Portugal<br />
para serem vendidos aos seus alunos<br />
(não indicamos o número da folha<br />
porque elas não estão numeradas).<br />
Os livros que o padre Meireles ia vender<br />
aos seus alunos são, entre outros,, os<br />
seguintes: 11 vols. da Lógica e 10 da<br />
Metafísica, de Qenuense.<br />
É curioso notar que os alunos<br />
estudavam nas obras do padre Antônio<br />
Qenuense ou Qenovesi, nome<br />
representativo do Iluminismo italiano,<br />
sacerdote tido como avançado e<br />
perigoso. Apesar disso, suas obras<br />
estavam em muitas bibliotecas de<br />
padres e leigos da capitania de Minas<br />
Qerais. liada podia deter o fluxo das<br />
inovações. Era difícil manter a ortodoxia<br />
num mundo marcado pela inquietação<br />
mental e pelo alvoroço das novas<br />
aspirações. Quem escapava de uma<br />
pag 164. Jan/dez 1995<br />
heresia caía em outra.<br />
Aí está uma pequena amostra do que<br />
padres e alunos liam em Mariana. O<br />
cõnego Luís Vieira da Silva também teria<br />
adquirido livros por meio de Vicente<br />
Vieira da Mota? Este é que<br />
habitualmente mandava vir livros de<br />
Portugal para os letrados de Mariana e<br />
Vila Rica? Eis um indício que merece<br />
reflexão e pesquisa. O capitão Vicente<br />
V. da Mota era guarda-livros do rico<br />
contratador João Rodrigues de Macedo,<br />
cuja casa foi um dos locais de encontro<br />
dos inconfidentes . Afirmou a Basílio de<br />
Brito que era amigo do cõnego, como<br />
revela Basílio em sua carta-denúncia. 27<br />
Mo traslado do auto de seqüestro dos<br />
bens de Mota, Luís Vieira figura como<br />
um dos seus devedores. A amizade<br />
entre os dois e as relações de compra e<br />
venda ou de empréstimo levam-nos a<br />
considerar a possibilidade da<br />
intermediação de Mota na aquisição de<br />
livros do cõnego.
R V O<br />
H O T A S<br />
1. AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira (A.D.I.M.). Edição da Câmara dos<br />
Deputados e do Governo do Estado de Minas Gerais, 1976, vol.11, p.67.<br />
4<br />
2. Idem, ibidem, II, pp. 100-101.<br />
3. Idem, ibidem, V, pp. 149-150.<br />
4. Idem, ibidem, V, p.173.<br />
5. Idem, ibidem, I, p. 206.<br />
6. Idem, ibidem, I, pp. 189-190.<br />
7. Idem, ibidem, VII, p. 125.<br />
8. Idem, ibidem, I, p. 190.<br />
9. Idem, ibidem, II, p. 46.<br />
10. Recentemente, foi traduzida para o português a Révolution de /'Amérique, do<br />
abade Raynal. Esse trabalho pioneiro se deve a Regina Clara Simões Lopes, em<br />
edição do <strong>Arquivo</strong> nacional. Rio, 1993. Para maiores informações acerca da obra<br />
do grande iluminista francês, veja-se o substancioso estudo introdutório dos<br />
professores Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Oswaldo Munteal Filho.<br />
11.2° Ofício, códice 51, auto 1.162.<br />
12. REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO M1MEIRO, ano I, fascículo 3 o, 1896, pp. 447-448.<br />
13. Cf. a edição dos irmãos Murray, Leiden, 1783, 4 o vol., p. 321.<br />
14. Cf. a edição de Pissot, Paris, 1780, I o vol., pp. 350-351.<br />
15. Cf. a edição de Bailly, Genebra, 1776, 2 o vol., pp. 418-419.<br />
16. Cf. Index Librorum Frohibitorum, SS.MI D.M. PP. Xll iussu editus anno MCMXLV1II.<br />
Typis Polyglottis Vaticanis, pp. 354 e 407.<br />
17. Ver DARTOri, Robert. Boêmia literária e Revolução. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1987, pp. 144-145.<br />
18. Cf. a edição de Samuel e Jean Luchtmans, Leiden, 1772, vol. 3 o., pp. 15 e 22.<br />
19. Cf. O diabo na livraria do cõnego. Itatiaia e USP, 2 a edição, 1981, p. 37.<br />
20. Cf. A Inconfidência Mineira - uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do<br />
Exército, 1989, pp. 282 e 355.<br />
21. A.D.I.M., I, p. 214.<br />
22. A.D.I.M., IV, p. 146.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. %* 1-2, p. 153-166, jan/dez 1995 - pag 165
23. José Cruz Rodrigues Vieira considera-o "um sério simpatizante do movimento".<br />
Cf. Tiradentes : a Inconfidência diante da história. Belo Horizonte: 1993, 2 o vol.,<br />
2° tomo, p.703. Oíliam José considera que houve uma "proteção estranha, em<br />
meio a tanto excesso de poder", aos capitães Maximiano de Oliveira Leite e Manuel<br />
da Silva Brandão, excluídos da devassa, "embora sabidamente comprometidos<br />
pelo menos por omissão". Cf. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974,<br />
p. 235.<br />
24. I o Ofício, códice 101, auto 2.096.<br />
25. A.D.I.M., VIII, pp. 255-257.<br />
26. O testamento, de 29/3/1793 (o óbito deu-se em 1794), encontra-se no <strong>Arquivo</strong><br />
da Casa Setecentista de Mariana (Livro de Registro de Testamentos n° 42, I o<br />
Ofício).<br />
27. A.D.I.M., I, p. 100.<br />
A B S T R A C T<br />
Dr. José Pereira Ribeiro, attorney in Mariana, a University of Coimbra graduate, owned<br />
the most important illuminist library of Minas Qerais in the 18th century, more<br />
noteworthy in this regard (although a bit smaller) than the famous library belonging<br />
to canon Luís Vieira da Silva. Dr. Ribeiro's inventory comprises numerous books<br />
regarded as subversive and pernicious, many of them banned by public authorities<br />
and the Church.<br />
R É S U M É<br />
Me. Pereira Ribeiro José, avocat à Mariana, a fait ses études àTUniversité de Coimbre;<br />
il possédait la plus importante bibliothèque de 1'état des Minas Qerais sur le Siècle<br />
des Lumières. De ce point de vue, quoique moins vaste, elle était plus remarquable<br />
que la fameuse bibliothèque du Chanoine Luís Vieira da Silva. Dans 1'inventaire de<br />
Me. Vieira figure une grande quantité de livres consideres comme subversifs et<br />
pernicieux, plusieurs interdits par le pouvoir civil et par 1'Eglise.<br />
pag. 166, jan/dez 1995
Cláudia Heynemann<br />
Mestre em História Social da Cultura - PUC/RJ.<br />
Chefe do Setor de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />
Edições perigosas?<br />
a Encyclopédie para Rofeeré<br />
Ao escolher o<br />
tema da<br />
Encyclopédie<br />
para abordar a obra de<br />
Robert Darnton, nossa<br />
intenção é a de ter a<br />
oportunidade de articular este<br />
objeto a outros temas relacionados com<br />
a história da leitura presentes no<br />
conjunto de sua produção. Assim, falar<br />
de um livro como a Encyclopédie,<br />
certamente sugere pensarmos no<br />
universo de livros clandestinos, nos<br />
panfletos, na pornografia e em toda uma<br />
literatura que será consumida no<br />
período pré-revolucionário. Significa<br />
também e sobretudo, refletir sobre as<br />
origens ideológicas da Revolução e<br />
sobre o surgimento dos intelectuais.<br />
Darnton<br />
philosophes.<br />
Certamente que a<br />
discussão sobre o<br />
caráter das Luzes,<br />
ultrapassa em muito os<br />
limites deste artigo e<br />
*"»•""*" sabemos ser inesgotável o tema'<br />
do Iluminismo e da Ilustração, bem<br />
como a sua própria conceituaçào e<br />
delimitação espaço-temporal. Ainda<br />
assim, a Encyclopédie, marcada pelo<br />
seu conteúdo filosófico e pela sua<br />
proposta de sistematização do<br />
conhecimento e mesmo pela plasti<br />
cidade de suas imagens, pelos autores<br />
com que contou e pelo processo de<br />
edição e comercializaçáo, é sem dúvida<br />
nenhuma o centro irradiador para uma<br />
reflexão que é também sobre a natureza<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 167-182. Jan/dez 1995-pag, 167
A C E<br />
de uma história da leitura e daquilo que<br />
ela pode comunicar como história<br />
cultural. Às infinitas imagens<br />
espelhadas pelo 'livro sobre um livro',<br />
acrescentamos então um comentário<br />
centrado em faventure de<br />
l'Encyclopédie.<br />
Edições perigosas: a Encyclopédie<br />
para Robert Darnton<br />
Um best seller na época das Luzes, é o<br />
sub-titulo que Robert Darnton dá ao seu<br />
L'aventure de /'Encyclopédie 1, e esta<br />
será a história a ser contada a partir de<br />
1772, quando Diderot está concluindo<br />
o último volume do dictionaire<br />
raisonné, tal como a obra se propõe a<br />
ser. Uma obra perigosa, esta é a<br />
cpnclusão das autoridades francesas,<br />
diante destes volumes que não se<br />
limitam a atingir todos os campos do<br />
conhecimento, mas que promovem uma<br />
transformação radical, destronando o<br />
antigo reino das ciências, rearranjando<br />
o universo cognitivo: a razão é<br />
soberana, a árvore do conhecimento<br />
tem como tronco a filosofia, de onde<br />
saem os ramos da ciência, deslocada a<br />
teologia para um lugar distante, próxima<br />
da magia negra. Apesar dos subterfúgios<br />
utilizados nos verbetes, das estratégias<br />
das entrelinhas, não podem esconder o<br />
fundamento epistemológico que atinge<br />
a antiga cosmologia. 2<br />
Se é claro para todos nós a importância<br />
que terá a Encyclopédie como síntese<br />
do pensamento iluminista, do<br />
racionalismo cientificista, obra suprema<br />
pag 168, jan/dM 1995<br />
das Luzes como assinala Darnton, cabe<br />
discutir o que é uma história da obra, o<br />
que se pode contar sobre ela quando<br />
tantos estudos foram realizados,<br />
verbetes publicados, e mesmo seus<br />
autores e colaboradores bastante<br />
analisados. Assim, porque partir do que<br />
é paradigmático? Para Darnton, esta<br />
especificidade é exatamente um dos<br />
principais atrativos da pesquisa, seguir<br />
todas as etapas de sua confecção, o que<br />
não foi possível em outros casos,<br />
dissipando assim certos pontos<br />
obscuros em relação a história da<br />
leitura. Trata-se de uma proposta<br />
metodológica, que quer aliar os<br />
aspectos mais materiais da literatura do<br />
Antigo Regime à perspectiva empírica<br />
britânica e às tendências sociológicas e<br />
estatísticas francesas.<br />
E, é na França que a história da leitura<br />
encontra seu solo mais fértil, lançando<br />
amplas questões sobre a história<br />
moderna. Uma história da leitura no<br />
setecentos aponta para reflexões em<br />
torno do caráter pré-revolucionário do<br />
século, para os conteúdos destas<br />
leituras, e o conjunto da obra de Robert<br />
Darnton se torna tanto mais<br />
interessante, quando pensamos que à<br />
aventura da Encyclopédie, soma-se a<br />
análise que fará das obras<br />
pornográficas, do submundo literário,<br />
do conjunto de livros clandestinos que<br />
classificados como 'filosóficos' incluem<br />
Holbach e as crônicas escandalosas.<br />
Para compreendermos este universo, é
Robert Darnton<br />
U aventure<br />
de F Encyclopédie<br />
1775-1800<br />
Préface d'Ernmanuel Le Roy Ladurie<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 167-182. jan/dez 1995-pagl69
A C E<br />
fundamental analisar todos os aspectos<br />
que envolvem a produção do livro no<br />
século XV11I, tendo em mente as<br />
diversas perguntas que Darnton formula<br />
e que podem se multiplicar<br />
infinitamente. Algumas delas têm um<br />
lugar central para os pressupostos deste<br />
artigo: como os grandes movimentos<br />
intelectuais, como o das Luzes,<br />
repercutem na sociedade? Até onde são<br />
entendidos? Qual a medida de suas<br />
influências? De que forma o<br />
pensamento dos filósofos se revestiu<br />
quando se materializou sobre o papel?<br />
O que revela essa empresa sobre a<br />
transmissão das idéias? Como<br />
funcionava o mercado literário e que<br />
papel tiveram os editores, livreiros e<br />
outros intermediários da comunicação<br />
cultural? 3<br />
Todas estas questões convergem para a<br />
opção do autor de tratar a literatura<br />
como um sistema de comunicação,<br />
concentrando-se em seus principais<br />
protagonistas: autores, editores,<br />
livreiros e leitores, descortinando assim<br />
uma história dos livros que se<br />
desenrola no contexto humano, rica em<br />
personagens pitorescos; os homens e<br />
mulheres que fabricaram e venderam<br />
os livros são criaturas de carne e<br />
sangue. Eles comerciaram, blefaram,<br />
espionaram, mentiram. Eles se<br />
arruinaram e fizeram fortuna dando<br />
livre curso a toda gama de emoções<br />
humanas. Procurando-os conhecer,<br />
pode-se apreciar a intensidade da<br />
pag, 170. Jan/dez 1995<br />
paixão investida nos objetos familiares<br />
que nós admiramos sobre a prateleira<br />
de nossas bibliotecas e temos dia após<br />
dia em nossas mãos. Por trás das obras<br />
do Antigo Regime se dissimula uma<br />
vasta comédia humana. 4<br />
A convivência entre as obras da 'mais<br />
adiantada filosofia' com a mais 'reles<br />
pornografia', como atestam as fontes<br />
por ele utilizadas, se dá no ambiente da<br />
sedição, na valorização das obras<br />
proibidas que circulam na Trança neste<br />
período, trazendo ainda o surgimento<br />
de um novo personagem: o intelectual,<br />
esse novo tipo social, homem de letras 3<br />
deste país tão peculiar que é a Prança<br />
literária, uma República das Letras. Esse<br />
novo tipo escapa às categorias clássicas<br />
do Antigo Regime: "pode estar na<br />
academia francesa, mas dorme também<br />
sob os forros, vive nos cafés e se nutre,<br />
como indica Voltaire, de 'rimas e<br />
esperanças". 6<br />
Procurar perceber as regras do jogo do<br />
mundo literário, uma sociologia da<br />
literatura como espaço de poder, com<br />
seus campos opostos, alinhamentos e<br />
doutrinas, certamente é uma opção que<br />
negligencia a análise do texto literário<br />
e dos indivíduos, em favor da<br />
compreensão de um sistema, de uma<br />
cultura literária na qual os intelectuais<br />
representam uma força social. Busca<br />
assim, prioritariamente, assinalar o<br />
lugar desta República das Letras na<br />
sociedade do Antigo Regime, em uma<br />
leitura que, por um lado, recusa a
R V O<br />
relação imediata entre as obras e a<br />
Revolução, mas que se reporta<br />
incessantemente ao período pré-<br />
revolucionário, no sentido de reafirmar<br />
o caráter literário da Revolução, a<br />
"revolução no interior da revolução". 7<br />
A intelligentsia, essa categoria que se<br />
apresenta ao público através de seus<br />
escritos sediciosos, merece de Darnton<br />
uma demografia e uma sociologia<br />
histórica, ainda que não se proponha a<br />
biografar os 'gênios' individuais. É<br />
preciso estabelecer quem é escritor na<br />
França pré-revolucionária, e para tal ele<br />
esclarece um pouco sobre suas fontes<br />
como o almanaque La France littéraire,<br />
cujo aparecimento em 1752 já indica<br />
mudanças na República das Letras do<br />
Antigo Regime, onde os compiladores<br />
cada vez mais incluem nomes, como o<br />
faz o incansável La Porte, verdadeiro eco<br />
dos enciclopedistas, um de seus<br />
redatores, descrito pela polícia francesa<br />
como "um homem de más companhias.<br />
Foi jesuíta por oito anos e é um grande<br />
amigo do abade Raynal". 8<br />
Uma intelligentsia que já se forma em<br />
torno de Voltaire, Diderot e outros<br />
filósofos, mas ainda carente de uma<br />
identidade social e de uma base<br />
econômica definida, fundando-se na<br />
boêmia, no elemento marginal desta<br />
república letrada. Sobretudo a questão<br />
da origem destes intelectuais e de seu<br />
público receptor, é fundamental para a<br />
discussão e o debate revisionista sobre<br />
o processo revolucionário, partindo do<br />
conteúdo das idéias iluministas, dos<br />
leitores destas obras e do sentido das<br />
reformas empreendidas e propostas<br />
naquele momento. Se é certo que para<br />
responder a pergunta inicial, 'o que liam<br />
os franceses no século XVIII', é preciso<br />
uma acurada crítica de fontes como os<br />
inventários das bibliotecas, nas quais<br />
não figura a bíblia da Revolução, O<br />
contrato social, e de onde uma série de<br />
inferências serão realizadas, não é<br />
menos correto dizer que efetivamente<br />
o Contrato estava pouco divulgado na<br />
França pré-revolucionária. O que nào<br />
exclui o espirito crítico das Luzes,<br />
presente na visão de mundo da qual a<br />
Encyclopédie será o signo.<br />
A Revolução não era de modo algum<br />
pensada pelos homens das Luzes, ainda<br />
que esta se aproximasse, o que não<br />
elimina o caráter eminentemente<br />
político dos textos sediciosos, estes<br />
críticos e virulentos papéis que circulam<br />
às vésperas de 1789:<br />
a sedição se prepara, instila-se nos<br />
espíritos, não podemos medir<br />
claramente seus efeitos na ação nem<br />
recuperar a arriscada alquimia que<br />
transmuta a sedição em revolução,<br />
mas podemos seguir seus traços e<br />
sabemos com certeza que ela se<br />
comunica por um instrumento temível:<br />
o livro.'<br />
Entre estes livros temíveis, está,<br />
sabemos, a Encyclopédie de Diderot e<br />
d'Alembert. Temível pelos seus próprios<br />
pressupostos, como anunciamos no<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1 -2. p. 167-182. jan/dez 1995 - pag. 171
A C E<br />
início deste artigo, a Encyclopédie não<br />
faz um apeio à revolução, e sequer<br />
preconiza um capitalismo avançado.<br />
Trata-se de uma obra de meados do<br />
século em que não se discute<br />
abertamente as questões sociais. Sua<br />
heresia está em afirmar o primado da<br />
razão, e da razão apenas, redesenhando<br />
o mapa do conhecimento humano, o<br />
que está explicito no Discours<br />
préliminaire que, em uma breve história<br />
da filosofia, estabelece a genealogia<br />
intelectual dos filósofos, desfere golpes<br />
contra o tomismo ortodoxo e o<br />
cartesianismo, apresentando sua obra<br />
como uma compilação de informações<br />
pag. 172. Jan/dez 1995<br />
1 e como manifesto filosófico 0,<br />
identificando assim, o conhecimento<br />
com a filosofia, um conhecimento que<br />
só é válido porque derivado das<br />
faculdades do espírito. Os verbetes do<br />
dictionnaire, ao contrário do Discurso<br />
preliminar, não são tão claros, é preciso<br />
ler nas entrelinhas., recurso lubridiador<br />
da censura.<br />
Apesar da estratégia, os contem<br />
porâneos não têm dificuldades em<br />
perceber o objetivo da obra. De 1751",<br />
data em que aparece o primeiro tomo,<br />
até a grande crise de 1759, a<br />
Encyclopédie é denunciada por um sem<br />
número de instâncias que defendem, é
claro, as velhas ortodoxias e o Antigo<br />
Regime, no entanto, o alto investimento<br />
dos editores garantem sua<br />
sobrevivência, através das influências<br />
políticas empregadas. A polêmica sobre<br />
a obra permanece no entanto, enquanto<br />
aparecem os volumes 3 a 7. Do lado dos<br />
enciclopedistas, Voltaire empresta seu<br />
prestígio a causa, enquanto Diderot e<br />
d'Alembert encontram como<br />
colaboradores, escritores ilustres,<br />
alguns já conhecidos como filósofos:<br />
Duelos, Toussaint, Rousseau, Turgot,<br />
dllolbach, Quesnay e outros. Como<br />
assinala Darnton, nada poderia ser<br />
melhor para as vendas do que a<br />
incessante controvérsia que a obra<br />
desperta: a Encyclopédie é um sucesso<br />
editorial, multiplicando as subscrições<br />
ano a ano, enquanto se desenrolam as<br />
crises em torno de sua publicação.<br />
Em Laventure de 1'Encyclopédie<br />
Darnton procura assim cumprir a<br />
proposta de simultaneamente traçar a<br />
sua história editorial, a empresa de sua<br />
confecção e, por outro lado, interpretar<br />
o sentido que ela terá na França pré-<br />
revolucionária, sua relação com as<br />
idéias de capitalismo e de Estado, as<br />
implicações enfim que ela terá do ponto<br />
de vista da revolução literária que opera<br />
no interior da Revolução.<br />
Em outra de suas obras, Qens de lettres,<br />
gens de livre, ele levará adiante este<br />
tema, certamente uma tese central, da<br />
afirmação do caráter literário da<br />
Revolução. Nela está implícita a crença<br />
V o<br />
de que a Revolução engloba muito mais<br />
do que a literatura, tende a criar um<br />
novo modo de vida, e é por sua própria<br />
natureza oposta ao sistema cultural do<br />
Antigo Regime. Ao transformar a cultura<br />
francesa, revoluciona-se a literatura, náo<br />
apenas o texto, mas a sua própria noção<br />
e, devemos sublinhar, esta é a<br />
perspectiva fundamental de Darnton: a<br />
transformação da literatura como<br />
sistema social. Os atos revolucionários<br />
interferem decisivamente na liberdade<br />
de imprensa, na liquidação das<br />
corporações de livreiros, na abolição<br />
dos monopólios da Comédie Française<br />
e da Opera, na destruição das<br />
academias, no fechamento dos salões<br />
e por fim no aniquilamento do sistema<br />
de proteção da corte. 12<br />
Ao apresentar sua análise da<br />
Encyclopédie, Darnton afirma que um<br />
livro sobre um livro, é um jogo de<br />
espelhos, multiplicando as imagens<br />
infinitamente. Podemos pensar que<br />
assim funciona seu próprio método para<br />
nós, seus leitores. Ele se perguntará em<br />
um certo momento, porque a literatura<br />
foi tão importante para os franceses,<br />
como encontraram tempo para o<br />
Philinte de Molière, enquanto nas ruas<br />
há uma luta desesperada em torno do<br />
que será o novo regime. A sua resposta<br />
é o caráter literário da Revolução. Mas,<br />
poderíamos perguntar: porque a<br />
literatura é tão importante para Robert<br />
Darnton? De que ponto de observação<br />
ele se situa?<br />
Por um lado, ao demarcar a história da<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n f 1-2, p. 167-182. jan/dez !995-pag.l73
A C E<br />
leitura como um campo específico de<br />
conhecimento, ele anuncia que é<br />
chegado o momento de aliar a teoria<br />
literária à história dos livros:<br />
A teoria pode revelar a variedade nas<br />
reações potenciais a um texto, ou seja,<br />
aos constrangimentos retóricos que<br />
dirigem a leitura sem determiná-la. A<br />
história pode mostrar que as leituras<br />
realmente ocorrem, ou seja, dentro dos<br />
limites de um corpo imperfeito de<br />
evidência (...). Por isso eu<br />
argumentaria em prol de uma<br />
estratégia dupla, que combinaria a<br />
análise textual com a pesquisa<br />
empírica. 15<br />
Assim, a despeito de anunciar a opção<br />
por uma análise do sistema de<br />
comunicação, propõe a incorporação da<br />
teoria literária como instrumento para<br />
uma história da leitura. É ainda, a nosso<br />
ver, uma leitura externa ao texto, no<br />
sentido de uma crítica que nào parte do<br />
próprio objeto, da obra de arte, das<br />
condições internas à escrita, mas que é<br />
em parte alcançada em momentos<br />
privilegiados de seu texto, como quando<br />
analisa o Philinte de Molière, com<br />
personagens que se movem sem<br />
qualquer alusão ao que neste momento<br />
acontece nas ruas.<br />
Perceber que a reconstrução social da<br />
realidade passa pela volta aos temas<br />
herdados do Antigo Regime,<br />
enquadrando suas observações nos<br />
gêneros familiares, assinalando a<br />
impossibilidade da tarefa de<br />
pag. 174. jan/dez 1995<br />
reconstrução, é na verdade a tese de<br />
Darnton. Ele dirá, então, que enquanto<br />
produtos do sistema literário particular<br />
ao Antigo Regime, os escritores da<br />
Revolução revolucionam a literatura:<br />
"eles começam a partir de 1789<br />
capturando o centro sagrado do antigo<br />
sistema literário - o espaço modelado<br />
por Molière - e terminam em 1794<br />
introduzindo-o no coraçáo de uma nova<br />
cultura política". 14<br />
Caberia aos intelectuais encontrar uma<br />
ordem nesse novo regime. Suprimidas<br />
as instituições literárias do Antigo<br />
Regime, as novas formas literárias<br />
figuram agora como elementos de uma<br />
cultura revolucionária e o fazem<br />
retornando à experiência anterior. Mo<br />
entanto, Darnton assinala que a<br />
Revolução teve uma amplitude que<br />
ultrapassou a compreensão daqueles<br />
que foram seus artistas. Diferenciando-<br />
se de um revisionismo mais<br />
disseminado, corrente, ele define que<br />
"a meu ver, é uma revolução total em<br />
seu programa, e segue na sua prática<br />
uma revolução no tempo, no espaço e<br />
nas relações pessoais como na política<br />
e na sociedade" 1 5, estando além,<br />
portanto, de um fenômeno político<br />
derivado do discurso de teóricos como<br />
Rousseau e Sieyès.<br />
Ma obra de Darnton persiste a questão<br />
básica da repercussão dos grandes<br />
movimentos intelectuais como o das<br />
Luzes, na sociedade. Mais do que uma<br />
questão, ela é em si uma premissa, e é<br />
através dela que se opera a sua análise.
Retomando assim, a oposição Voltaire/<br />
Rousseau, ele conclui que Robespierre<br />
baniu o riso da República da virtude.<br />
Eles sabiam muito bem o que faziam.<br />
Esta era uma empresa importante,<br />
nada menos do que a reconstrução<br />
social da realidade. Também<br />
começaram uma tarefa que Rousseau<br />
lhes deixou. Uma tarefa tão<br />
extravagante que ultrapassa o nosso<br />
entendimento - a correção de Molière. 16<br />
O lugar que estes intelectuais ocupam<br />
V o<br />
na República das Letras do Antigo<br />
Regime e seu papel no processo<br />
revolucionário está no centro da<br />
discussão sobre o revisionismo. A<br />
'revisão' operada por Darnton, se dá em<br />
uma perspectiva bastante específica, e<br />
talvez seja um excesso de Le Roy<br />
Ladurie incluir o autor como um dos<br />
"quatro mosqueteiros do revisionismo<br />
pré-revolucionário", no prefácio à<br />
faventure de /'Encyclopédie, ao lado de<br />
Furet, Daniel Roche e Qayot.<br />
Diderot, Denls et alll. Encyclopédie. Dictlonnalre ralsonné des sciences, des arts et des métiers.<br />
Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 167-182, jan/dez 1995-pag.l75
Renovar a compreensão das origens<br />
intelectuais e culturais da França,<br />
significa de qualquer forma, repensar<br />
quem são estes intelectuais e qual o caráter<br />
das Luzes. É Darnton quem se interroga<br />
sobre o conceito de 'revolução burguesa'.<br />
Cia resultará burguesa talvez, pelos seus<br />
objetivos finais, mas intelectualmente as<br />
Luzes, das quais são inquestionáveis os<br />
prolongamentos revolucionários, estão<br />
ligadas a um público receptor apenas em<br />
parte ligado às formas vanguardistas do<br />
capitalismo burguês.<br />
c<br />
Para Ladurie, as Luzes estão longe de<br />
serem especificamente burguesas, a<br />
fortiorí capitalistas, aprofundando o<br />
perfil de uma Ilustração vinculada à<br />
nobreza, extremamente poderosa nas<br />
cidades setecentistas francesas,<br />
reavaliando "o monstro feudal", o<br />
Estado, "como se muita água não tivesse<br />
corrido sob as pontes do Sena desde<br />
flugues Capet". 1 7 Ladurie parte das<br />
estatísticas dos compradores da<br />
Encyclopédie, cuja concentração se dá<br />
em cidades dominadas pela nobreza,<br />
Diderot, Denis et alii. Encyclopédie. Dlctionnalre raisonné des sclences, des arts et des métlers.<br />
Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />
pag. 176, jan/dez 1995<br />
E
R V O<br />
muito mais do que em cidades<br />
caracteristicamente comerciais. Os<br />
compradores/leitores urbanos da obra<br />
concentram-se no clero, na fraçáo<br />
esclarecida da nobreza e em uma certa<br />
porção da burguesia que compõe-se de<br />
notáveis que vivem de renda fundiária,<br />
arrendatários que têm ganhos derivados<br />
do Estado, funcionários públicos,<br />
militares, médicos, advogados etc. Mo<br />
coração dessa clientela enciclopedista,<br />
há o Estado, aqui classificado como um<br />
Estado citadino, matriz da nossa<br />
modernidade, a despeito de uma<br />
aparência indiscutivelmente tradicional,<br />
da pessoa do rei e dos ritos de etiqueta<br />
da corte. O que ele enuncia neste<br />
prefácio, é que os membros ou satélites<br />
deste Estado, justamente por estarem<br />
em seu interior, estão atentos às<br />
transformações sócio-políticas das<br />
estruturas burocráticas e gover<br />
namentais, preparando uma revolução,<br />
à sua maneira, que irá muito adiante<br />
deles. 18<br />
Não devemos exagerar, adverte Ladurie.<br />
Não os façamos responsáveis pelas<br />
Luzes nem pela Revolução, que eles<br />
involuntariamente ajudaram a preparar.<br />
Afinal, por volta de 1780, os<br />
comerciantes das pequenas cidades não<br />
se interessavam nem pela aquisição,<br />
nem pela leitura da Encyclopédie. Eles<br />
estavam muito ocupados em comprar<br />
tapeçarias para decorar suas casas. Não<br />
interpretavam nem transformaram o<br />
mundo. Idéias, política e reformas<br />
estavam na cabeça de intelectuais.<br />
Neste ponto, o prefácio torna-se<br />
bastante interessante por efetuar uma<br />
genealogia das academias e sociedades<br />
científicas, e os pontos de clivagem<br />
entre os aristocratas e o Terceiro Estado,<br />
o processo constitutivo das academias,<br />
das sociabilidades científicas, sua<br />
composição e a passagem de uma<br />
cultura típica do cristianismo clássico<br />
para a cultura de origem antiga e<br />
renascentista, cartesiana e voltairiana<br />
que distinguem as academias. Um<br />
progressivo movimento que torna os<br />
membros das academias, "igualitários<br />
no interior de si mesmos, culturalmente<br />
enciclopedistas" 1 9, típicos de uma<br />
sociedade de corporações. As<br />
sociedades científicas serão o palco de<br />
uma diferenciação entre aristocracia e<br />
Terceiro Estado. A Encyclopédie se<br />
integra à desestabilização de um<br />
conjunto de sócio-culturas do Antigo<br />
Regime, como avalia Ladurie. Em<br />
conjunto com toda uma crise financeira,<br />
política e de subsistência, entre os anos<br />
de 1787 e 1789, vai abaixo o "edifício<br />
que uma geração de cupins intelectuais<br />
haviam previamente roído até as<br />
vigas". 20<br />
De que forma a Encyclopédie se integra<br />
a este processo? A produção e difusão<br />
da obra, sua singularidade, um dos<br />
atrativos que ela oferece como objeto<br />
para uma história da leitura no Antigo<br />
Regime, nos traz novamente a metáfora<br />
do jogo de espelhos, pois do seu<br />
conteúdo filosófico à sua materialidade,<br />
há um desdobramento incessante de<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p. 167-182. jan/dez 1995-pagl77
A C<br />
questões que apontam de certa forma<br />
para uma questão fundadora: o que liam<br />
os franceses no século XV11I? Ainda que<br />
um único livro não possa responder esta<br />
pergunta, a história das suas edições<br />
contém o debate sobre as origens<br />
intelectuais da Revolução, sobre o<br />
Antigo Regime, sobre o campo<br />
específico de conhecimento que pode<br />
ser a história da leitura e não menos<br />
importante, senão uma exegese, uma<br />
análise bastante aprofundada do que<br />
séria a síntese do pensamento<br />
iluminista e do enciclopedismo, uma<br />
herança que ultrapassa em muito seu<br />
espaço-tempo.<br />
Porque, seja ou nào, o maior<br />
empreendimento da história do livro,<br />
como proclamaram seus editores, a<br />
Encyclopédie foi certamente o<br />
acontecimento mais extraordinário do<br />
século XVIII. Esta afirmação de Darnton,<br />
ancorada no mercado editorial do<br />
período, tornando mensurável esta<br />
"concretização das Luzes" 21, traz em si<br />
alguns debates historiográficos, dos<br />
mais relevantes, sobre o alcance da<br />
obra. De um lado, a visão de que as<br />
Luzes são um vasto movimento que<br />
modifica a opinião pública, de outro, os<br />
que a consideram como um movimento<br />
superficial restrito a um círculo pequeno<br />
de intelectuais.<br />
A primeira tese está representada por<br />
historiadores como Tocqueville, Paul<br />
tiazard, Gustave Lanson e em certa<br />
medida, Daniel Mornet. Mo segundo<br />
pag. 178, jan/dez 1995<br />
grupo, Darnton identifica uma tendência<br />
dos Annales que aplica um princípio de<br />
Lucien Febvre, que atravessa toda a<br />
história literária, segundo o qual o livro<br />
gera um 'atraso'. A inércia sufocaria o<br />
espírito de inovação no quadro da<br />
cultura literária do Antigo Regime e<br />
quanto maior o número de livros, mais<br />
a inércia se instalaria, entravando o<br />
progresso. Assim, a despeito do<br />
crescente interesse pelas publicações<br />
científicas, os franceses em sua maioria<br />
continuaram a ler os livros clássicos e<br />
religiosos que liam seus pais. A<br />
conseqüência de todo este raciocínio é<br />
que as Luzes não penetraram nas<br />
correntes mais profundas da cultura<br />
tradicional, constituindo um fenômeno<br />
superficial sem efeito sobre a maioria<br />
dos indivíduos. 22<br />
O estudo de uma única obra não<br />
permite avaliar a influência exercida<br />
pelo livro em geral, adverte Darnton,<br />
tarefa que ele desdobrará no conjunto<br />
de sua obra, pesquisando o universo da<br />
literatura clandestina através dos<br />
diversos gêneros que a compõe.<br />
Conforme ele elabora no capítulo "Os<br />
leitores respondem a Rousseau: a<br />
fabricação da sensibilidade<br />
romântica" 23:<br />
"quando os philosophes empreenderam<br />
a conquista do mundo, com o seu<br />
mapeamento, sabiam que o sucesso<br />
dependeria de sua habilidade em<br />
imprimir sua visão de mundo nas<br />
mentes de seus leitores. Mas como
ocorreria esta operação? O que, de<br />
fato, era a leitura na França do século<br />
XVIII?'.<br />
Responder a esta questão, compreender<br />
esta experiência que nos é tão familiar<br />
e no entanto tão distante<br />
historicamente, eqüivale a "penetrar em<br />
um mistério mais profundo - saber como<br />
as pessoas se orientam no mundo de<br />
símbolos tecido em torno delas por sua<br />
cultura". 24<br />
Um dos veículos para este mundo são<br />
as fontes utilizadas por Darnton em suas<br />
pesquisas, destacando-se os arquivos da<br />
Société Typographique de Meuchãtel,<br />
uma casa editora suiça. Mais do que as<br />
fontes impressas ou que os documentos<br />
oficiais de Estado, os arquivos das casas<br />
editoras permitem um contato com o<br />
mundo dos livros tal como ele era no<br />
século XVIII. Ainda que estes<br />
documentos não permitam uma idéia<br />
exata da história do livro propriamente,<br />
desde já podemos saber que Voltaire e<br />
Rousseau são endereçados a um vasto<br />
público e que o sucesso da<br />
Encyclopédie testemunha o atrativo que<br />
as Luzes representam para as classes<br />
superiores e médias, senão para as<br />
massas que fazem a Revolução.<br />
Nào é um fenômeno restrito a França,<br />
mas mesmo que os estudos estatísticos<br />
náo possam ser efetuados para outros<br />
países (refere-se aos lugares mais<br />
'distantes' como Ásia e América), pode-<br />
se perceber a realidade do mercado de<br />
livros. Os livreiros sabem que<br />
V o<br />
participam de um vasto processo pelo<br />
qual as idéias repercutem através das<br />
artérias comerciais e se infiltram em<br />
todos os recantos do continente. Sabem<br />
que são os agentes das Luzes, porque<br />
vêem na difusão destas idéias, uma<br />
"mina de ouro" 25 a ser explorada. Ao<br />
trabalhar com o mercado da<br />
comercialização do livro, Darnton<br />
realiza aquela que é uma de suas<br />
propostas metodológicas, a de um<br />
sistema de comunicação onde figuram<br />
diversos personagens como artesãos,<br />
operários, livreiros, editores, todos eles<br />
participantes da Comédia humana. É na<br />
comercialização da obra, na relaçào<br />
entre oferta e demanda que cerca a<br />
publicação e circulação da Encyclopédie<br />
em suas diversas edições, da primeira<br />
até a Encyclopédie méthodique de<br />
Panckoucke, que ele localiza uma<br />
primeira relação entre o livro e o espírito<br />
capitalista, e é na 'ferocidade' dos<br />
editores que se confirmam os dados<br />
estatísticos: há uma avidez pelo<br />
2 6<br />
enciclopedismo.<br />
No entanto, é também na própria<br />
afirmação do grande alcance das Luzes,<br />
que o autor inicia uma espécie de<br />
caminho de volta, náo no sentido de sua<br />
relativização, mas do rompimento de<br />
uma relação direta e automática entre a<br />
Encyclopédie e a Revolução Francesa.<br />
Ou seja, que ela não nos responde sobre<br />
as origens intelectuais e ideológicas do<br />
processo desencadeado em 1789. A<br />
obra é muito vasta e nào podemos saber<br />
que tipo de influência terá tido sobre<br />
Acervo. Rio dc Janeiro, v 8. n* 1-2, p. 167-182. jan/dez 1995 pagl79
A C E<br />
seus leitores e muito menos afirmar que<br />
a leitura de suas milhares de páginas os<br />
impregnou de jacobinismo. Contudo,<br />
seu sucesso editorial nos permite<br />
perceber que<br />
para o público do século XVIII a obra<br />
representa um modelo de coerência.<br />
Ela mostra que o conhecimento é<br />
ordenado e não caótico, que o principio<br />
diretor é a razão (...) enfim que os<br />
critérios racionais aplicados às<br />
instituições contemporâneas<br />
contribuem para desmascarar a<br />
insensatez e a iniqüidade. 27<br />
Mais do que um produto de intelectuais<br />
'corajosos', as Luzes filosóficas - fossem<br />
ou não um produto do refinamento<br />
burguês ou, por outro lado, empresa da<br />
nobreza e da burguesia de Estado ou<br />
ainda um produto que circula em<br />
grandes proporções como mostra a<br />
história da Encyclopédie - compõem um<br />
mundo que se desintegrou ainda<br />
naquele século, e do qual retém<br />
pag. 180. jan/dez 1995<br />
continuidades, linhas que podem ser<br />
traçadas entre a edição de Diderot e a<br />
de Panckoucke, das academias reais ao<br />
Instituto nacional ou ainda do<br />
enciclopedismo ao jacobinismo, como<br />
assinala Darnton em sua conclusão de<br />
faventure de /'Encyclopédie. no<br />
entanto, ele apostará no caráter<br />
igualmente significativo das rupturas.<br />
Seu sentido está no deslocamento de<br />
um sistema cultural:<br />
A Revolução aboliu o privilégio, principio<br />
fundamental do Antigo Regime, depois<br />
ela reconstruiu uma nova ordem em<br />
torno dos princípios da liberdade e<br />
igualdade. Essas abstrações podem<br />
parecer vazias hoje em dia, mas elas<br />
tiveram um sentido crucial para a<br />
geração revolucionária da França. A<br />
história da Encyclopédie mostra como<br />
elas se expressaram no papel,<br />
disseminadas na ordem social,<br />
encarnadas nas instituições e integradas<br />
a uma nova visào de mundo. 2*
V o<br />
M O T A S<br />
1. DARNTON, Robert. L aventure de 1'Encyclopédie, 1775-1800: un best seller au<br />
siècle des Lumières. Paris: Librairie Académique Perrin, 1982.<br />
2. Idem, ibidem, p. 30.<br />
3. Idem, ibidem, p. 24.<br />
4. DARNTON, R. Oens de lettres, gens de livre. Paris: Éditions Odile Jacob, 1992, p. 10.<br />
5. Observamos que a Encyclopédie é realizada por Gens de lettres.<br />
6. DARNTON, R.Gens de lettres, gens de livre, op. cit., p. 121.<br />
7. Idem, ibidem, p. 8.<br />
8. Idem, ibidem, p. 125.<br />
9. DARNTON, R. Edição e sedição; o universo da literatura clandestina no século<br />
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 161.<br />
10. DARNTON, R. faventure de /'Encyclopédie, op. cit., p. 30.<br />
11. O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> possui a edição completa da Encyclopédie, 1751-1780.<br />
12. DARNTON, R. Gens de lettres, gens de livre, op.cit., p. 160.<br />
13. DARNTON, R. "História da leitura". In: BURKE, Peter (org). A escrita-da história.<br />
São Paulo: Unesp, 1992, p. 229. Este texto encontra-se também no livro O beijo<br />
de Lamourette, de R. Darnton. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />
14. DARNTON, R. Gens de lettres, gens de livres, op. cit., p. 163.<br />
15. Idem, ibidem, pp. 160-161.<br />
16. Idem, ibidem, p. 164.<br />
17. LADURIE, E. Le Roy. "Préface". In: DARNTON, R. Laventure de l'Encyclopédie,<br />
op. cit., p. 12.<br />
18. Idem, ibidem, p. 12.<br />
19. Idem, ibidem, p. 16.<br />
20. Idem, ibidem, p. 19.<br />
21. DARNTON, R. faventure de 1'Encyclopédie, op. cit., p. 559.<br />
22. Idem, ibidem, p. 567.<br />
23. DARNTON, R. "Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade<br />
romântica". In: O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Qraal, 1986.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 167-182, jan/dez 1995 - pag. 181
24. Idem, ibidem, p. 227.<br />
25. DARNTON, R. L'aventure de 1'Encyclopédie, op. cit., p. 570.<br />
26. Idem, ibidem, p. 571.<br />
27. Idem, ibidem, p. 580.<br />
28. Idem, ibidem, p. 587.<br />
A B S T R A C T<br />
This article proposes to address Robert Darntons work and his discussion about the<br />
history of reading, based on the analysis conducted by this author, of the publishing<br />
of Diderots and D'Alembert's Encyclopédie and its subsequent reprints, in the<br />
framework of the Ancien Regime and the French Revolution, having the intellectual<br />
orders of the revolution as its focai point.<br />
R É S U M É<br />
Cet article prétend discuter 1'oeuvre de Robert Darnton et ses considérations sur<br />
lhistoire de la lecture, à partir de lanalyse faite par 1'auter de la publication de<br />
l'Encyclopédie, de Diderot et D'Alembert, de ses éditions postérieures, dans le cadre<br />
de 1'Ancien Regime et de la Revolution Française et a comme point central les ordres<br />
intellectuels de Ia Revolution.<br />
pag. 182, Jan/diz 1995
Nireu Oliveira Cavalcanti<br />
Arquiteto e professor da UFF e USU. Doutorando em História no IFCS-UTRJ.<br />
A livraria do Teixeira e a<br />
circulação de livros na cidade<br />
do Rio de JaneirOo em 1794<br />
No Relatório d<br />
governo do vice-r«<br />
Luís de Vasconcel<br />
consta que na cidade do Rio de<br />
Janeiro, entre 1779 e 1789,<br />
funcionavam quatro oficinas de<br />
livreiros. 1 Já os Almanaques de 1792 e<br />
de 1794 registram apenas uma loja<br />
enquanto o de 1799 registra duas. 2 Ho<br />
entanto, nesses documentos não são<br />
discriminados quem eram os livreiros<br />
proprietários dessas lojas ou oficinas.<br />
De imediato surge a indagação: Por que<br />
essa diminuição no número de lojas<br />
entre 1779 e 1799 se nesse período a<br />
população crescera e a cidade se<br />
expandira ? Teria havido critérios<br />
diferenciados de parte de quem<br />
cadastrou essas lojas? Teriam optado,<br />
os que organizaram o Relatório,<br />
por uma visão inclusiva -<br />
englobando comerciantes de<br />
livros, bem como restauradores e<br />
encadernadores - enquanto aqueles que<br />
elaboraram os Almanaques consideraram<br />
apenas os que efetivamente<br />
comercializavam os livros? Haveria por<br />
acaso essa especialização, diferenciando<br />
o livreiro que comercializa, daquele<br />
considerado artífice? Em busca de<br />
esclarecimento recorri às obras de Rubens<br />
Borba de Morais, Wilson Martins e José<br />
Teixeira de Oliveira que foram muito úteis<br />
quanto à abordagem da questão geral da<br />
cultura dominante da cidade no período<br />
setecentista, mas pouco esclarecedoras<br />
no tocante aos livreiros do Rio de Janeiro<br />
nesse período. 3 Através da obra de<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p. 183-194. jan/dez 1993 - pag 183
A C E<br />
Morais tomei conhecimento da atividade<br />
de um livreiro de Vila Rica, chamado<br />
Manuel Ribeiro dos Santos, que atuava<br />
em meados do século XVIII. Segundo<br />
esse autor o negociante era um misto<br />
de livreiro e de dono de empório:<br />
Ma loja de Ribeiro Santos vendiam-se<br />
os produtos da terra e artigos<br />
importados tais como tecidos ( baetas,<br />
bretanhas),chapéus, botas, cobertores,<br />
cera, velas etc. Ma mesma carta em<br />
que encomendava livros ao seu<br />
correspondente em Lisboa pedia outras<br />
mercadorias como um<br />
relógio de parede de autor (fabricante,<br />
diríamos hoje) ... Ribeiro dos Santos,<br />
pelo que se depreende de suas cartas,<br />
tinha biblioteca particular,<br />
principalmente de livros de direito. As<br />
cartas revelam conhecimento<br />
bibliográfico e certo gosto pelos<br />
exemplares bem encadernados ... hão<br />
de ser das imprensas (ediçào, dizemos<br />
hoje) as mais modernas e últimas e que<br />
nenhum seja impresso senão de 1720<br />
em diante, com títulos dourados nas<br />
costas. Os mais dourados e melhores;<br />
todos novos e nenhum usado e pelo<br />
estado de terra se costumam<br />
geralmente vender, e estando alguns<br />
mais caros por falta das imprensas<br />
(esgotados) não venhal 4<br />
Ora, se esse livreiro de Vila Rica era tão<br />
sofisticado e exigente, assim como<br />
deviam ser os consumidores, no<br />
mínimo teriam o mesmo nível os<br />
livreiros do Rio de Janeiro e a sua<br />
pag. 184. jan/dez 1995<br />
população consumidora de livros. Era a<br />
cidade do Rio, nesse período, a segunda<br />
mais importante do Brasil e por onde<br />
passava todo o comércio mineiro com<br />
o Reino. Possuía um excelente mercado<br />
consumidor formado de funcionários<br />
dos diversos órgãos do poder público, de<br />
magistrados, militares graduados,<br />
botânicos, músicos e cirurgiões, boticários,<br />
físicos, de artistas como os músicos e os<br />
atores. Também de professores e seus<br />
alunos, artífices, negociantes e, porque<br />
não, dos leitores que compravam livros pelo<br />
prazer da leitura.<br />
É evidente que se não houvesse um<br />
dinâmico ambiente cultural no Rio de<br />
Janeiro organizações como as<br />
Academias não se viabilizariam. A<br />
primeira delas foi criada em 6 de maio<br />
de 1936, com o título de Academia dos<br />
Felizes. Era composta de 30 membros<br />
sob a presidência do cirurgião-mor<br />
Mateus Saraiva. Funcionou por quatro<br />
anos protegida pelo conde de Bobadela.<br />
Após o encerramento dessa entidade só<br />
se tem notícia de uma outra<br />
funcionando, no ano de 1772. Messe<br />
ano, a 18 de fevereiro, houve a<br />
inauguração da Academia Fluviense<br />
Médica, Cirúrgica, Botânica,<br />
Farmacêutica ou Sociedade de História<br />
natural do Rio de Janeiro (resumindo<br />
Academia Científica do Rio de Janeiro).<br />
Funcionou por um tempo maior do que<br />
a anterior vindo a ser extinta em 1779.<br />
É importante ressaltar que essa<br />
Academia Científica é anterior à da<br />
Corte, que teve o seu estatuto aprovado
pelo Aviso Régio de 24 de dezembro de<br />
1779 com o título de Academia das<br />
Ciências de Lisboa.<br />
A presidência da Academia fluminense<br />
coube ao físico José Henrique Ferreira,<br />
autor de vários trabalhos científicos. 5 O<br />
protetor dessa entidade foi o marquês de<br />
Lavradio, governante ilustrado que muito<br />
incentivou o desenvolvimento científico e<br />
tecnológico na capitania do Rio de Janeiro,<br />
como se depreende de seu Relatório. 6 Esse<br />
vice-rei foi quem criou o primeiro horto<br />
botânico na capitania, nomeando para<br />
dirigi-lo o acadêmico Joaquim José<br />
Henrique de Paiva.<br />
A terceira e última Academia do Rio<br />
colonial de que se tem registro foi<br />
IMITAÇÃO<br />
DE CHRÍSTO.<br />
L I V R O I.<br />
ATO» ata aovmà.wnm 1 ip», çu»<br />
CAPITULO L<br />
Da imitação d* Càriito pelo d**preto<br />
dê iodas a* v atilada s do<br />
»<br />
'% Qrgkf me ttgtte não anda em<br />
trevo*. Slo palarra* com duo<br />
ÍMU ÇÊristo nos txhorta k imitação<br />
d* «dl Viil* e dos «cai<br />
Imitação de Cristo, de Thomas A. Kempis.<br />
V o<br />
fundada no governo do vice-rei Luís de<br />
Vasconcelos. A sessão inaugural ocorreu<br />
em 6 de junho de 1786. Para presidi-la<br />
foi eleito o cirurgião Ildefonso José da<br />
Costa Abreu. Essa Sociedade funcionou<br />
na residência do professor-régio e poeta<br />
Manuel Inácio da Silva Alvarenga situada<br />
na rua do Cano (atual Sete de<br />
Setembro). Com o término do governo<br />
de Luís de Vasconcelos também se<br />
extingue a Sociedade Literária. Anos<br />
depois o novo vice-rei, o conde de<br />
Rezende, incentivou a reabertura da<br />
Sociedade o que veio a ocorrer no ano<br />
de 1794 sob a presidência de Silva<br />
Alvarenga. Coube ao próprio conde de<br />
Rezende, no mesmo ano, extingui-la em<br />
decorrência de denúncias do rábula<br />
José Bernardo da Silva Frade e do<br />
carpinteiro Manuel Pereira Landim.<br />
Segundo estes delatores, nas reuniões<br />
da Sociedade eram discutidas idéias<br />
francesas. Entre os presos da Devassa<br />
de 1794 estavam o presidente Silva<br />
Alvarenga e o jovem bacharel Mariano<br />
José Pereira da Fonseca, futuro marquês<br />
de Maricá. 7<br />
Infelizmente essa documentaçào sobre<br />
as Academias não traz qualquer<br />
referência quanto aos livreiros da cidade<br />
do Rio de Janeiro, nesse período. A<br />
escassez documental sobre eles talvez<br />
explique o porquê de os trabalhos<br />
sobre o assunto livreiros só lhes dar<br />
ênfase após o período da chegada da<br />
Corte no Rio de Janeiro, em 1808.<br />
Ao pesquisar no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> o<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1 -2, p. 183-194. jan/dez 1995 - pag. 185
fichário de inventários post-mortem em<br />
busca de dados sobre um proprietário<br />
de chácara em Laranjeiras, encontrei<br />
entre os diversos documentos a ele<br />
referentes uma parte que tratava dos<br />
bens de seu sogro José de Sousa<br />
Teixeira. 8 Para minha surpresa e emoção<br />
o referido Teixeira era proprietário de<br />
uma loja onde se vendiam livros,<br />
estando os mesmos ali relacionados!<br />
O 'acaso' tinha posto em minhas mãos<br />
uma das trilhas para o desvendamento<br />
da grande incógnita de como se dava o<br />
comércio livreiro e quem era o<br />
proprietário da loja citada no<br />
Almanaque de 1794.<br />
Os avaliadores dividiram o estoque da<br />
loja em blocos: um classificou como<br />
'livros' de cuja listagem ainda<br />
constavam mapas, estampas, óperas e<br />
óculos; o outro foi listado como<br />
'fazenda' contendo a relação dos<br />
diversos tecidos, de botões, de fios para<br />
sapateiro, de lenços, meias, bocetas<br />
(pequena caixa de papelão ou madeira)<br />
e machetes (sabre, faca de mato usada<br />
na África ou instrumento musical tipo<br />
cavaquinho como também uma<br />
pequena viola). O estoque foi avaliado<br />
em 2.534$560 réis, cabendo aos 'livros'<br />
a importância de 1.389$480 réis.<br />
Comparando o valor do estoque da loja<br />
do Teixeira com o da loja de tecidos<br />
(fazenda seca) de Manuel Rodrigues dos<br />
Santos, falecido em 1794, que alcança<br />
o montante de 13.442$576 réis,<br />
podemos supor que essa livraria<br />
deveria, nesse período, ser considerada<br />
pag. 186, Jan/dez 199S<br />
C E<br />
Imitação de Cristo, de Thomas A. Kempls.<br />
um negócio de pouca monta.<br />
A diversificação das mercadorias à<br />
venda na loja do Teixeira é bem<br />
assemelhada à do livreiro de Vila Rica,<br />
Manuel Ribeiro dos Santos, mostrando<br />
que tanto na da cidade do Rio de Janeiro<br />
quanto na de Minas Gerais não ocorria<br />
a especialização que hoje estamos<br />
acostumados a ver. Essa<br />
heterogeneidade de atividades<br />
comerciais empreendidas por um<br />
mesmo 'homem de negócios' é muito<br />
freqüente durante o período colonial na<br />
cidade do Rio de Janeiro. Para esses<br />
negociantes a percepção de que<br />
determinada transação comercial<br />
poderia gerar lucros atraentes levava-os<br />
a participarem daquele negócio. Até<br />
mesmo pessoas que dispunham de
ecursos mas que nào tinham casa<br />
comercial estabelecida poderiam se<br />
transformar em negociantes. É o caso,<br />
por exemplo, do padre José da Silva<br />
Brandão que em 1805 arrematou, por<br />
1.097$046, um lote de tecidos de seda,<br />
em leilão no Real Armazém da Fazenda,<br />
do conjunto de mercadorias apreen<br />
didas aos contrabandistas. 9<br />
Segundo Francisco da Gama Caieiro o<br />
mercado livreiro na década de noventa do<br />
século XVIII "continuava volumoso e firme,<br />
tanto em Portugual como no Brasil". O autor<br />
cita o caso do negociante de 'grosso trato'<br />
da praça do Rio de Janeiro de nome Antônio<br />
Luís Fernandes que escreveu para seu<br />
correspondente em Lisboa sugerindo: "Se<br />
V.Mercê quizer mandar-me por sua conta<br />
um sortimento de livros ... não deixará de<br />
fazer-lhe boa conta, e se o fizer cuido que<br />
não se arrependerá" (...). 10 Também anotei<br />
outros comerciantes exportadores como<br />
Manuel Pinheiro Guimarães que solicitou<br />
licença a Real Mesa Censória para importar<br />
alguns livros listados. Como o mesmo nào<br />
afirma tratar-se de livros para seu uso é<br />
possível que os tenha comprado para<br />
revendê-los ou para atender pedido de<br />
amigo ou familiar.<br />
O mercado livreiro no Rio de Janeiro era<br />
tão promissor que comportava a<br />
convivência da loja do Teixeira com<br />
outras fontes de abastecimento de<br />
livros. A maneira mais tradicional de<br />
uma pessoa adquiri-los era recorrendo<br />
a um amigo ou familiar que morasse no<br />
Reino ou que daí se deslocasse para o<br />
V o<br />
Rio de Janeiro, como fez o jovem<br />
médico Cláudio Grugel do Amaral que<br />
escreveu, em 1679, do Rio para um<br />
amigo em Lisboa solicitando-lhe que<br />
comprasse até 70$000 réis em livros<br />
segundo a lista que enviara, ou o nosso<br />
cientista e professor-régio João Manso<br />
Pereira que solicitou livros ao frei José<br />
Mariano da Conceição Veloso que se<br />
encontrava em Lisboa."<br />
Outra via muito usada era a encomenda<br />
direta a livreiros estabelecidos no Reino.<br />
Na documentação da Real Mesa<br />
Censória existente no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />
da Torre do Tombo encontram-se listas<br />
de livros enviados para o Rio de Janeiro<br />
pelos mais importantes livreiros de<br />
Lisboa como Leandro dos Reis Carril,<br />
João Batista Reycende, viúva Mallen 8r<br />
Cia, Diogo Bomgeoris, Paulo Martim,<br />
Borel St Borel, viúva Bertrand e filho,<br />
Francisco Rolland, Pedro José Reis, Luís<br />
Cipriano Rebello, os padres oratorianos<br />
e outros. Não se deve desprezar a<br />
contribuição dos fornecedores não<br />
oficiais e não legalizados que faziam<br />
parte da tripulação ou eram passageiros<br />
de algum navio que atracara no porto<br />
do Rio de Janeiro, como foi o caso do<br />
cirurgião do navio Ulisses, que trouxe<br />
consigo sete obras de medicina para<br />
vendê-las. O professor-régio e poeta<br />
Manuel Inácio da Silva Alvarenga em seu<br />
depoimento quando preso na Devassa<br />
de 1794 declarara que adquirira de um<br />
marujo o livro proibido Direitos do<br />
cidadão, do abade Mably, e de um inglês<br />
que passara pelo Rio, vindo da Bahia, o<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1 -2. p. 183-194. jan/dez 1995 - pag. 187
A C E<br />
exemplar do jornal Mercúrio. Por fim,<br />
para cá vieram os filhos de Paulo<br />
Martim, o primeiro em 1799 de nome<br />
Paulo Agostinho Martim e em 1806 o<br />
jovem Inácio Augusto Martim.<br />
Acompanhando Paulo Martim, veio<br />
Francisco Rolland. 12 Esses jovens que<br />
para cá vieram pertenciam a famílias<br />
francesas que se estabeleceram como<br />
1 3<br />
livreiros em Lisboa, a partir de 1727.<br />
A Congregação dos padres oratorianos<br />
que editava várias obras didáticas de<br />
autoria de seus religiosos e as famosas<br />
'Folhinhas' mantinha também intenso e<br />
rendoso comércio desses seus produtos<br />
com o Brasil. No caso do Rio de Janeiro,<br />
os seus comissários - isto é, quem tinha<br />
o privilégio da representação aqui - eram<br />
Biblioteca lusitana, de Diogo Barbosa Machado.<br />
pag 188. jan/dez 1995<br />
Manuel da Rocha Pereira e Manuel<br />
Thiatonio Rodrigues Carvalho. Com a<br />
morte de ambos passou a ser<br />
comissário o cirurgião Luis Borges<br />
Salgado (antigo membro da Sociedade<br />
Científica do Rio de Janeiro). Este<br />
falecera em 1789 e no seu lugar<br />
assumiu Antônio Jacinto Machado, um<br />
atacadista com loja na rua dos<br />
Pescadores (atual Visconde de<br />
Inhaúma).<br />
A correspondência mantida entre os<br />
oratorianos e Antônio J.M. nos traz<br />
informações preciosas sobre o comércio<br />
realizado. Em uma delas esse<br />
negociante descreve a dificuldade que<br />
está tendo para receber o resto de dívida<br />
que os falecidos e anteriores
R V O<br />
comissários tinham com a Congregação<br />
dos Oratorianos. Em outra traz duas<br />
importantes informações, a primeira<br />
sobre a existência de livreiros na cidade<br />
do Rio de Janeiro e da dificuldade para<br />
a venda de algumas obras. Ele diz num<br />
trecho da carta:<br />
Mo que respeita os novos métodos, que V.P.<br />
me diz aqui, há bastante pelos livreiros, e<br />
julgo que pouca saída poderào ter, só sendo<br />
com alguma diminuição no preço que os<br />
ditos os vendem, para assim agradarem os<br />
compradores. Das folhinhas que recebi da<br />
viúva, por serem fora do tempo, só tenho<br />
vendido 7$600 réis, que por ser uma<br />
bagatela não faço dela promessa que será<br />
junta com as do ano que vem (...)<br />
A segunda informação discrimina a área<br />
de atuação desse vendedor:<br />
...e de novo me ofereço a dizer-lhe que<br />
conferindo as folhinhas do ano de<br />
1791 acho que vieram certas, e tendo<br />
as remetido para Goiás, Sào Paulo, Vila<br />
Rica, Mariana e as mais partes onde<br />
se coStuma venderem-se na capitania<br />
das Gerais,- só não tem havido<br />
condutores para as levarem à de Mato<br />
Grosso, pois como é a parte mais longe<br />
deste estado, são dificultosos, e os que<br />
este ano vieram a esta cidade já tinham<br />
voltado quando chegaram as<br />
mencionadas Folhinhas; motivo este<br />
porque não foram (...)<br />
O referido Antônio J.M. alertou aos<br />
oratorianos para que enviassem as<br />
'Folhinhas' em tempo hábil, de no<br />
mínimo dois meses, antes de iniciar o<br />
ano correspondente, para que o mesmo<br />
possa enviá-las às regiões mais<br />
distantes, a tempo de evitar que elas<br />
encalhem porque "depois que passa o<br />
primeiro e segundo mês do ano" os<br />
compradores já não as querem. 14<br />
Os 'livros' de então<br />
Os 'livros' da livraria do Teixeira<br />
correspondem a 383 títulos de obras<br />
diferentes. Resumindo todos os itens<br />
desse estoque, montei o seguinte<br />
quadro:<br />
a - obras diversas (383 títulos) - 6.975<br />
unidades<br />
b- cartilhas - 198 unidades<br />
c - taboadas - 4 'mãos'<br />
d - atos de várias comédias e óperas<br />
453 unidades<br />
e - mapas : coleções de 5 unidades -<br />
16 coleções<br />
jogos avulsos - 8 unidades<br />
mapa de bandeiras - 1 unidade<br />
f - estampas e santos - 406 unidades<br />
g- livros velhos - 37 unidades<br />
h- papel mata-borrão - 45 'mãos'<br />
i - óculos - 1 caixa<br />
O conjunto desses 383 títulos<br />
apresenta-se num rico leque de<br />
conteúdos variados, o que garante à loja<br />
do Teixeira atender aos interesses e<br />
gostos diferenciados do público<br />
adquirente. Os que irão iniciar a<br />
alfabetização poderão adquirir a<br />
Acervo, Rio de Janeiro. V. B, n* 1-2. p. 183-194. jan/dez 199S-pag.l89
A C E<br />
BIBLIOTHECA<br />
L U S I T A N A ,<br />
Hiftorica , Critica , e Chronologica,<br />
NA QUAL SE COMPREHENDE A NOTICIA<br />
lios Authorcs Portuguezes, e du Obrai, que compozcraõ<br />
üeíJc o tempo da promulgação da Lcy da Graça até<br />
o tempo preicote |<br />
y POR<br />
DIOGO BARBOSA<br />
MACHADO»<br />
Vhffiponenfe, Abbade Refervatario da Paroquial<br />
^ ígreja de Santo Adriaò de Sever, e Acadêmico<br />
do Numero da Academia Reai.<br />
T O M O IV.<br />
Q_CE CONSTA DE MUITOS AUTHOR.ES KOYAMEKTE<br />
vaüosado. tu IbUtethco, c it outro» iÍluftnj, e eme niii» , unfttio»<br />
BOI cm Tomoi preiitikouí.<br />
LISBOA,<br />
Ka Oncina Patriarcal
R V O<br />
Engenheiro português, de Manuel de<br />
Azevedo fortes. Há obras militares como<br />
Arquitetura militar, de Antonhinho, a<br />
Arte militar, e Instrução de cavalaria, de<br />
Antônio Pereira Rego. Há livros de<br />
medicina, botânica, livros didáticos<br />
como a Gramática de Vernei, dicionários<br />
de francês e latim como o de Antônio<br />
de Morais e Silva. A história está<br />
representada pelas obras de Bossuet,<br />
Jacques Benigne , Millot e Plavius<br />
Josephus com sua História dos judeus.<br />
Quanto às obras biográficas há a de<br />
Alexandre Magno, de dom Joào de<br />
Castro, do infante dom Henrique e de<br />
vários santos. A literatura está muito<br />
bem contemplada com as poesias de<br />
Camões, as de f rancisco de Pina e Melo,<br />
de Luiz Rafael Soyé, Domingos<br />
nascimento Torres, Vasco Mousinho de<br />
Quevedo Castelo Branco, com seu<br />
poema heróico Afonso africano e a<br />
monumental obra de Diogo Barbosa<br />
Machado, a Biblioteca lusitana.<br />
Obviamente não poderiam faltar os<br />
livros de filosofia, moral, aconse<br />
lhamento aos jovens, boas maneiras,<br />
provérbios e adágios, e até o censurado<br />
pela Igreja Lunário perpétuo, contendo<br />
informações astrológicas.<br />
A análise do conteúdo e da importância<br />
cultural do conjunto dessas obras só<br />
poderá ser realizada após a<br />
identificação de cada uma delas. É um<br />
trabalho que demandará muito tempo<br />
e pesquisa, até porque há casos em que<br />
a escrita está incompreensível e outros<br />
cujo título sumário tipo Seleta latina<br />
têm mais de um autor. Há outras<br />
situações de dúvidas em que se faz<br />
necessário a consulta a especialista da<br />
área de que trata a obra. Por essas<br />
razões a identificaçào do material ainda<br />
não foi concluída.<br />
Sem dúvida esse documento, que<br />
revelou a existência da livraria de José<br />
de Sousa Teixeira, funcionando na<br />
cidade do Rio de Janeiro, em 1794,<br />
ajudará em muito a esclarecer como se<br />
processava o comércio livreiro na cidade<br />
e, mais ainda, como era o seu ambiente<br />
cultural. Podemos supor que o rol<br />
desses títulos poderia ser bem maior e<br />
mais variado considerando-se que o<br />
livreiro Teixeira, quando se deu esse<br />
processo, estava doente e com mais de<br />
70 anos, segundo o seu genro. A essas<br />
condições adversas e desincentivadoras<br />
para a prática de um comércio dinâmico,<br />
devemos acrescentar o efeito negativo<br />
sobre a cidade e a população<br />
consumidora de livros da Devassa de<br />
Minas e da de 1794, em que foram presos<br />
vários intelectuais do Rio de Janeiro, em<br />
alguns casos simplesmente por possuírem<br />
um livro censurado pela Metrópole.<br />
Meu interesse na questão do comércio<br />
e circulação de livros e sobre as<br />
bibliotecas, na cidade do Rio de Janeiro,<br />
no período setecentista. se deu de forma<br />
tangencial ao trabalho de pesquisa que<br />
estou desenvolvendo para elaboração<br />
de tese de doutoramento em História<br />
Urbana referente a esta cidade, no<br />
período de 1750 a 1810.<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n a 1 -2, p. 183-194, jan/dez 1995 - pag. 191
N O<br />
1. MEMÓRIAS públicas e econômicas da cidade de Sào Sebastião do Rio de Janeiro<br />
para o uso do vice-rei Luís de Vasconcelos, por observação curiosa dos anos de<br />
1779 até o de 1789. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,<br />
Tomo XLVI1, Rio de Janeiro, 1884.<br />
2. ALMANAQUES da cidade do Rio'de Janeiro para os anos de 1792 e 1794. In:<br />
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 266; ALMANAQUE<br />
histórico da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1799. In: Revista do<br />
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 2 1.<br />
3. MORAIS, Rubens Borba. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro:<br />
Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: S.C.C.T. do Estado de São Paulo, 1979;<br />
MART1MS, Wilson. História da inteligência brasileira. Vol. I (1550-1794). São Paulo:<br />
Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977-78; OLIVEIRA, José Teixeira de.<br />
A fascinante história do livro. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora Ltda., 1984-<br />
89, vol. IV.<br />
4. MORAIS, Rubens Borba, op. cit, p. 40.<br />
5. José Henrique Ferreira, natural de Castelo Branco, Portugual, formou-se em<br />
filosofia e medicina na Universidade de Coimbra, em 1762. Foi sócio<br />
correspondente das Sociedades de Medicina de Madri e de Estocolmo assim como<br />
da Academia das Ciências de Lisboa. Entre outras obras publicou Memória sobre<br />
a Guaxima-, discurso crítico, em que se mostra o dano que têm feito aos doentes<br />
os remédios de segredo e composições ocultas etc.<br />
6. RELATÓRIO do marquês do Lavradio. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico<br />
Brasileiro, vol. 4 e 76, 1842 e 1884.<br />
7. Sobre as Academias, além das obras citadas de Rubens Borba Morais, Wilson<br />
Martins e José Teixeira de Oliveira, consultar: CARVALHO, Augusto da Silva. "As<br />
academias científicas do Brasil no século XVIH". In: Memórias da Academia das<br />
Ciências de Lisboa. Lisboa, 1939; DIAS, Maria Odila da Silva. "Aspectos da<br />
Ilustração no Brasil". In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,<br />
vol. 273. Sobre a Devassa de 1794 consultar: AMAIS da Biblioteca Macional. Vol.<br />
LX1, 1939, pp. 247 a 523; AUTOS da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro,<br />
1 794. Rio de Janeiro: <strong>Arquivo</strong> Público do Estado do Rio de Janeiro, 1 994; SAMTOS,<br />
pag .192, jan/dez 1995
K V O<br />
Afonso Carlos Marques dos. íio rascunho da Nação: Inconfidência no Rio de<br />
Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura/Departamento Qeral de<br />
Documentação e Informação Cultural, 1992, Biblioteca Carioca, vol. 22; LYRA,<br />
Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império; Portugual e Brasil:<br />
bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras Ltda., 1994.<br />
8. ARQUIVO nacional. Inventário post-mortem. Maria Joaquina de Oliveira. Caixa<br />
1.827, n. 9.263.<br />
9. ARQUIVO nacional. Junta do Comércio, códice 142, vol. 1.<br />
10. CAIE1RO, Francisco da Gama. "Livros e livreiros franceses em Lisboa, nos fins de<br />
setecentos e no primeiro quartel do século XIX". In: Boi. Bibl. Universidade de<br />
Coimbra, 35, 1980, pp. 139 a 168.<br />
11. ARQUIVO nacional da Torre do Tombo. MSS - 245 - n. 141 (a carta de Cláudio<br />
Grugel do Amaral) e MSS, cx. 153 (os livros que foram adquiridos por João Manso Pereira):<br />
a - Annales de chymic - e uma coleção em brochura de várias memórias<br />
químicas de diferentes autores - 8 a<br />
b - Chymic - par Foureroy<br />
c - Recherches sur les vegetaux - par Parmentier - 1 vol. 8 g<br />
d - Analyse du fer- par Bergmam - 1 vol. 8°<br />
e - Affinites chymiques - par Bergmam - 1 vol. 8°<br />
f - Recreations physiques, economique e chymiques de M. Model,<br />
traduit de Allemand - 2 vol. 8 9<br />
g - Institutions chemic - Francisci de Wasergerg - 2 vol. 8°<br />
h - Demonstração das grandes utilidades e das fracas, e tecelagem de algodão<br />
em Portugual - brochura - 1 vol. 4 9<br />
i - Dicionário da Língua do Brasil - brochura - 25 vols. 4 9<br />
12. nEVES, Lúcia Maria Bastos das. "Comércio de livros e censura de idéias: a atividade dos<br />
livreiros franceses no Brasil e a vigilância da Mesa do Desembargo do Paço ( 1 795-1822)".<br />
In: Ler História, 23, 1992, pp. 61 a 78.<br />
13. DOMinGOS, Manuela D. "Colporteurs ou livreiros? Acerca do comércio livreiro em Lisboa".<br />
In: Revista da Biblioteca nacional. Lisboa: S. 2, 6 (1) 1991, pp. 109 a 142.<br />
14. ARQUIVO nacional da Torre do Tombo. MSS, cx. 9.<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p 183-194, jan/dez 1995-pag,193
A B S T R A C T<br />
The article reviews the trade, circulation and forms of purchase of books and, as a<br />
consequence, what was read in Rio de Janeiro during the last decade of the 18th<br />
century.<br />
This study is based in unpublished documents of the National Archives containing<br />
the inventory of José de Sousa Teixeira's shop, where books were sold.<br />
R É S U M É<br />
L'article fait une analyse du commerce, de la circulation et des diverses formes<br />
d'acquisition de livres, bref, de ce que l'on lisait à la ville de Rio de Janeiro pendant<br />
la dernière décennie du XVIIIè siècle.<br />
Cette analyse est basée sur une documentation inédite appartenant au patrimoine<br />
des Archives Nationales, dans laquelle figure 1'inventaire de 1'établissement de José<br />
de Sousa Teixeira, oú l'on vendait des livres.<br />
pag 194. Jan/dez 1995
P E R F I L I N S T I T U C I O N A L<br />
O:<br />
Real Qabinete Português<br />
de Leitura foi criado em<br />
14 de maio de 1837 - 15<br />
anos depois da Independência do<br />
Brasil - por um grupo de<br />
portugueses que se propunha não<br />
só a promover o enriquecimento<br />
intelectual dos associados, mas<br />
também, como escreveu Carlos Malheiro<br />
Dias, "concorrer para restaurar a glória<br />
literária de sua Pátria". Poi seu primeiro<br />
presidente o dr. José Marcelino da<br />
Rocha Cabral, advogado e jornalista,<br />
que se exilara por causa da guerra entre<br />
liberais e miguelistas em Portugal.<br />
A instituição funcionou em vários locais<br />
do centro do Rio de Janeiro: rua São<br />
Pedro, rua da Quitanda, rua dos<br />
Beneditinos - até que em 1880 começou<br />
.Real G&fcineée<br />
Poré © F t n i g u i e s ie Leií e i c n i r a<br />
Antônio Gomes da Costa<br />
Presidente<br />
a ser construído o majestoso<br />
edifício manuelino da rua Luiz de<br />
Camões, n 9 30 - antiga rua da<br />
Lampadosa - onde, em 1887, com<br />
a presença da princesa Isabel e do<br />
conde d'Eu, foi inaugurada a sua<br />
sede atual. Mo ano seguinte, procedeu-<br />
se à 'instalação solene da biblioteca' e<br />
é nessa altura que Joaquim rfabuco,<br />
saudando o imperador d.Pedro I e<br />
realçando o significado da Obra, o<br />
patriotismo dos que a fizeram e a beleza<br />
do traço arquitetônico, pronunciou uma<br />
frase inesquecível: "As pedras deste<br />
edifício parecem estrofes d'Os<br />
Lusíadas'. O autor do projeto foi o<br />
arquiteto português Raphael da Silva e<br />
Castro e os recursos para a construção<br />
foram conseguidos através de donativos<br />
Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 195-198, Jan/dez 1995 -pag 195
pag. 196. jan/dez 1995
K V O<br />
e contribuições dos portugueses do Rio<br />
de Janeiro.<br />
Durante a campanha para a obtenção<br />
desses recursos, o visconde de São<br />
Cristóvão exortava os seus<br />
compatriotas: "O Gabinete Português de<br />
Leitura carece tanto de um edifício<br />
próprio, como as sociedades de<br />
Beneficiência Portuguesa e a Caixa de<br />
Socorros D. Pedro V carecem de renda<br />
para a sua manutenção, a primeira; e a<br />
segunda de um asilo que seja grande<br />
como grande é a sua missão caritativa".<br />
E em correspondência ao conselheiro<br />
do Reino de Portugal, José da Silva<br />
Mendes Leal, em 26 de maio de 1872,<br />
Reinaldo Carlos Montoro mobilizava a<br />
'colônia': "É chegada a hora de realizar<br />
um grande adiantamento entre os<br />
portugueses do Brasil...Os terrenos com<br />
a vastidão e proporções requeridas já<br />
foram adquiridos e em breve pode<br />
erguer-se no bairro das artes e dos<br />
estudos mais este templo de ciência."<br />
A beleza do edifício e o valioso acervo<br />
bibliográfico, que atingia milhares de<br />
obras, muitas delas raras e de<br />
inestimável valor, desde um exemplar<br />
da edição prínceps de Os Lusíadas às<br />
Ordenações de D. Manuel, editadas em<br />
1521, de autoria de Jacob Cromberger,<br />
passaram a dar ao Gabinete Português<br />
de Leitura uma nova dimensão, que em<br />
grande parte também advinha do<br />
prestígio e da influência de uma pléiade<br />
de portugueses, como Eduardo Lemos,<br />
José Duarte Ramalho Ortigáo, visconde<br />
de Sào João da Madeira, conde de<br />
Avelar, e tantos outros, todos eles<br />
'varões prestantes' que se entregaram<br />
por inteiro ao serviço e enriquecimento<br />
da instituição. A Academia Brasileira de<br />
Letras, sob a presidência de Machado<br />
de Assis, realizou em sua sede as<br />
primeiras sessões; Ramiz Galváo<br />
procedeu ao trabalho de catalogaçào da<br />
biblioteca; o rei d. Carlos concedeu-lhe<br />
o título de 'Real' e a diretoria, em 1900,<br />
abriu as portas da biblioteca a todos os<br />
que a desejassem freqüentar.<br />
Dos anos de 1920 a 1950, o Real<br />
Gabinete atravessou um período<br />
marcado pela administração de Albino<br />
Sousa Cruz que, tendo a seu lado o<br />
conhecido escritor Carlos Malheiro Dias,<br />
realizou um trabalho notável, que se<br />
distinguiu, sobretudo, pelo projeto de<br />
edição da história da colonização<br />
portuguesa no Brasil, na qual<br />
colaboraram figuras proeminentes da<br />
história, da ciência e da arte.<br />
Graças a um decreto de Oliveira Salazar.<br />
o Real Gabinete é considerado<br />
'depósito legal' desde 1936, o que lhe<br />
enseja receber um exemplar dos livros<br />
editados em Portugal. Graças a esse<br />
privilégio, a sua biblioteca é anualmente<br />
ampliada com milhares de obras,<br />
mantendo-se atualizada com o que se<br />
publica naquele país. A atual diretoria<br />
procedeu à informatização do acervo,<br />
com cerca de 350.000 volumes, e hoje<br />
o leitor faz suas consultas e tem acesso<br />
ao banco de dados através da rede e dos<br />
Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n' 1 -2. p. 195-198. jan/dez 1995 - pag 197
terminais instalados na biblioteca.<br />
O Real Gabinete edita semestralmente a<br />
revista Convergência Lusíada, distribuída por<br />
universidades e outras associações culturais<br />
e científicas, e que tem a colaboração exímia<br />
e valiosa de mestres e especialistas do Brasil<br />
e de Portugal nas áreas da literatura, da<br />
história, do pensamento, da língua e da<br />
0<br />
antropologia.<br />
Neste momento, está em curso a<br />
instalação de um espaço de multimídia<br />
com produtos culturais luso-brasileiros.<br />
No Real Gabinete funciona ainda o Centro<br />
de Estudos, onde se realizam cursos e<br />
palestras, além de concertos e exibição de<br />
filmes e vídeos, sendo que todas essas<br />
atividades são voltadas especialmente para<br />
estudantes universitários.<br />
A esta altura, qualquer cidadão dos<br />
países lusófonos pode ser sócio do Real<br />
Interior da biblioteca.<br />
Gabinete e entre os seus direitos estão o de<br />
utilizar os serviços da biblioteca, participar<br />
dos cursos e atividades do Centro de Estudos<br />
e do Centro Cultural, receber a revista<br />
Convergência Lusíada e ter acesso às mais<br />
importantes bibliotecas de Portugal como<br />
VIP-Real Gabinete'.<br />
A B S T R A C T<br />
This article depicts the history of the Real Gabinete Português de Leitura, an institution<br />
located in Rio de Janeiro and considered as "official depository", which grants it the<br />
privilege of receiving a copy of ali the books published in Portugal, lts library holds currently<br />
a valuable inventory of about 350.000 volumes and is fully computerized.<br />
R É S U M É<br />
Cet article nous donne une vision historique du Real Gabinete Português de Leitura<br />
(Cabinet Royal Portugais de Lecture), institution située à Rio de Janeiro et considérée<br />
comme "dépôt legal", ce qui lui permettait de recevoir un exemplai/e de tous les<br />
livres édités au Portugal. Actuellement sa bibliothèque, entièrement informatisée, a<br />
un patrimoine de grande vaieur, avec à peu près 350.000 volumes.<br />
pag 198. jan/dez 1995
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Bibliografia organizada pela Divisão de Pesquisa e Promoções Culturais do <strong>Arquivo</strong><br />
<strong>Nacional</strong>.<br />
pag.202. jan/dez 1995
Neste número<br />
Antônio Gomes da Costa<br />
Berenice Cavalcante<br />
Cláudia Heynemann<br />
Lorelai Brilhante Kury e Oswaldo Munteal Filho<br />
Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />
Luiz Carlos Villalta *<br />
Marcos Alexandre Motta<br />
Maria do Carmo Teixeira Rainho<br />
Nireu Oliveira Cavalcanti<br />
Paulo Gomes Leite<br />
Roger Chartier<br />
Robert Darnton<br />
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />
700-X ARQUIVO NACIONAL