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ACERVO - Arquivo Nacional

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<strong>ACERVO</strong><br />

R E V I S T A DO A R Q U I V O N A C I O N A L<br />

VOLUME 8 • NÚMERO • 01/02 • JAN/DEZ • 1995<br />

LEITURAS E LEITOREl<br />

MINISTÉRIO DA IUSTIÇA<br />

ARQUIVO NACIONAL


Ministério da Justiça<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />

<strong>ACERVO</strong><br />

R E V I S T A D O A R Q U I V O R A C I O N A L<br />

RIO DF. JANEIRO, V.8, NUMERO 01/02. JANEIRO/DEZEMBRO 19%


© 1995 by <strong>Arquivo</strong> nacional<br />

Rua Azeredo Coutinho, 77<br />

CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil<br />

Presidente da República<br />

Fernando Henrique Cardoso<br />

Ministro da Justiça<br />

Nelson Azevedo Jobim<br />

Diretor-Geral do <strong>Arquivo</strong> nacional<br />

Jaime Antunes da Silva<br />

Editora<br />

Maria do Carmo T. Rainho<br />

Conselho Editorial<br />

Ana Maria Cascardo, lngrid Beck, Maria do Carmo T. Rainho, Maria Isabel Falcão,<br />

Maria Isabel de Oliveira, nilda Sampaio Barbosa, Rosina lannibelli, Sílvia ninita de<br />

Mourão Estevão<br />

Conselho Consultivo<br />

Ana Maria Camargo, Ângela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Leite<br />

Costa, Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Francisco Iglesias, Helena Ferrez,<br />

Helena Corrêa Machado, Heloísa Liberalli Belotto, limar Rohloff de Mattos, Jaime<br />

Spinelli, Joaquim Marcai Ferreira de Andrade, José Carlos Avelar, José Sebastião<br />

Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza neves, Maria Inez<br />

Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley, Solange Zúniga<br />

Edição de Texto<br />

José Cláudio da Silveira Mattar<br />

Projeto Gráfico<br />

André Villas Boas<br />

Editoração Eletrônica. Capa e Ilustração<br />

Jorge Passos Marinho<br />

Resumos<br />

Carlos Peixoto (versão em inglês), Lea novaes (versão em francês)<br />

Copydesk e Revisão<br />

Alba Qisele Qouget, José Cláudio da Silveira Mattar e Tânia Maria Cuba Bittencourt<br />

Reprodução Fotográfica<br />

Agnaldo neves Santos e Flavio Ferreira Lopes<br />

Secretaria<br />

Jeane D'Arc Cordeiro<br />

Revista financiada com recursos do<br />

f~ N<br />

Programa de Apoio a Publicações Cientificas<br />

MCT ÊlcNPg JJÜFINEP<br />

Acervo: revista do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. —<br />

v. 8, n. 1-2 (jan./dez. 1995). — Rio de Janeiro: <strong>Arquivo</strong> nacional, 1995.<br />

V.; 26 cm<br />

Semestral<br />

Suspensa de 1990 a 1992<br />

Cada número possui um tema distinto<br />

issn 0102-700-X<br />

1. <strong>Arquivo</strong>logia - Periódicos 2. História - Periódicos 3. <strong>Arquivo</strong>s - Tecnologia Aplicada -<br />

Periódicos I. <strong>Arquivo</strong> nacional


S U M Á R I O<br />

01<br />

APRESENTAÇÃO<br />

03<br />

ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER<br />

13<br />

ENTREVISTA COM ROBERT DARNTON<br />

19<br />

Os CLÉRIGOS E OS LIVROS NAS MINAS GERAIS DA SEGUNDA<br />

METADE DO SÉCULO XVIII<br />

Luiz Carlos Villalta<br />

53<br />

OS 'LETRADOS* DA SOCIEDADE COLONIAL: AS ACADEMIAS E A<br />

CULTURA DO ILUMINISMO NO FINAL DO SÉCULO XVIII<br />

Berenice Cavalcante<br />

67<br />

SERVIDÃO E DÚVIDA: O LEITOR DA HISTÓRIA DO FUTURO DE<br />

ANTÔNIO VIEIRA<br />

Marcus Alexandre Motta<br />

83<br />

LEITORES DO RIO DE JANEIRO: BIBLIOTECAS COMO JARDINS DAS<br />

DELICIAS<br />

Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />

105<br />

CULTURA CIENTÍFICA E SOCIABILIDADE INTELECTUAL NO BRASIL<br />

SETECENTISTA: UM ESTUDO ACERCA DA SOCIEDADE LLTERÃRIA DO<br />

Rio DE JANEIRO<br />

Lorelai Brilhante Kury e Oswaldo Munteal Filho


123<br />

LEITURA E LEITORES NO BRASIL, 1820-1822: o ESBOÇO<br />

FRUSTRADO DE UMA ESFERA PÚBLICA DE PODER<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />

139<br />

A DISTINÇÃO E SUAS NORMAS: LEITURAS E LEITORES DOS MANUAIS<br />

DE ETIQUETA E CIVILIDADE - RlO DE JANEIRO, SÉCULO X I X<br />

Maria do Carmo Teixeira Rairího<br />

153<br />

REVOLUÇÃO E HERESIA NA BIBLIOTECA DE UM ADVOGADO DE<br />

M ARI ANA<br />

Paulo Gomes Leite<br />

167<br />

EDIÇÕES PERIGOSAS: A Exerci,OPÊDIE PARA ROBERT<br />

DARNTON<br />

Cláudia Heynemann<br />

183<br />

A LIVRARIA DO TEIXEIRA E A CIRCULAÇÃO DE LIVROS NA CIDADE<br />

DO Rio DE JANEIRO, EM 1794<br />

Nireu Oliveira Cavalcanti<br />

195<br />

PERFIL INSTITUCIONAL<br />

REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA<br />

Antônio Gomes da Costa<br />

199<br />

BIBLIOGRAFIA


A P R E S E N T A Ç Ã O<br />

Tentar saber que livros possuíam os<br />

homens de uma determinada época e<br />

sociedade e como e por que os liam têm<br />

sido uma preocupação constante dos<br />

sociólogos e historiadores da leitura.<br />

Um dos trabalhos precursores desta<br />

temática foi escrito no século XIX, pelo<br />

historiador francês Daniel Mornet. Em<br />

seu artigo "Os ensinamentos das<br />

bibliotecas particulares no século XVIII",<br />

o autor procurava avaliar a difusão das<br />

obras iluministas a partir do acervo<br />

daquelas bibliotecas. Com isso, o<br />

historiador buscava responder à<br />

pergunta: o que liam os franceses no<br />

século XV1I1?<br />

O artigo de Mornet gerou uma série de<br />

trabalhos que buscavam reconstituir não<br />

apenas o conteúdo das bibliotecas de<br />

diferentes grupos sociais mas também,<br />

e principalmente, o consumo, a<br />

circulação e a recepção dos livros.<br />

Assim, os trabalhos mais recentes sobre<br />

as práticas e a recepção das leituras já<br />

não partem mais do pressuposto de que<br />

a simples posse dos livros é sinônimo<br />

da leitura dos mesmos. Interessados em<br />

analisar as formas de se ler uma<br />

determinada obra, sua recepção e<br />

circulação, os historiadores e sociólogos<br />

têm se debruçado cada vez mais sobre<br />

este objeto, tentando articular as<br />

diferentes formas de venda, acesso e<br />

maneiras de ler o livro.<br />

Dedicado a estes temas, este número da<br />

revista Acervo, reúne artigos que<br />

discutem o conteúdo de bibliotecas, as<br />

recepções e práticas de leituras, e as<br />

sociabilidades intelectuais no Brasil dos<br />

séculos XVIII e XIX. Além disso, traz<br />

uma inovação: entrevista dois dos<br />

maiores especialistas no assunto, os<br />

historiadores Roger Chartier e Robert<br />

Darnton.<br />

Os artigos de Luiz Carlos Villalta, Paulo<br />

Gomes Leite e Tânia Bessone partem do<br />

conteúdo de bibliotecas para tentar<br />

perceber o que e como liam<br />

determinados grupos. Villalta analisa as<br />

bibliotecas de clérigos nas Minas Gerais<br />

da segunda metade do século XVIII para<br />

avaliar em que medida os livros que elas<br />

possuíam influenciaram as condutas<br />

políticas e sexuais destes clérigos.<br />

A partir dos Autos da Devassa da<br />

Inconfidência Mineira e do conteúdo da<br />

biblioteca de José Pereira Ribeiro, Paulo<br />

Gomes Leite analisa a leitura e a<br />

circulação dos chamados livros<br />

perigosos, que excitavam o ardor<br />

revolucionário dos letrados mineiros do<br />

século XV111. Tânia Bessone estuda o<br />

conteúdo das bibliotecas particulares de<br />

médicos e advogados na virada do<br />

século XIX para o XX tentando perceber<br />

nào apenas que livros estes homens<br />

possuíam mas também o que liam.<br />

As sociabilidades intelectuais viven-


ciadas no Brasil dos séculos XV11I e XIX<br />

aparecem nos artigos de Berenice<br />

Cavalcante, Lorelai Brilhante Kury &<br />

Oswaldo Munteal e Lúcia Bastos.<br />

Berenice Cavalcante investiga o elenco<br />

de questões que atraía a elite intelectual<br />

da Colônia e a nova sociabilidade<br />

vivenciada por estes acadêmicos que, a<br />

despeito das diferenças advindas da<br />

riqueza ou do conhecimento, igualavam-<br />

se na condição de livres pensadores.<br />

A Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />

e a especificidade do grupo de letrados<br />

que a compunham é o tema do artigo<br />

de Oswaldo Munteal Filho Se Lorelai<br />

Brilhante Kury. Mele, os autores<br />

analisam o lugar ocupado pela natureza<br />

no pensamento destes ilustrados e<br />

como os membros desta Sociedade<br />

lançam mão do arsenal intelectual<br />

oriundo das Luzes européias, para<br />

refletirem sobre a condição do homem<br />

que vive em contato quase direto com<br />

a natureza.<br />

Lúcia Bastos parte dos folhetos,<br />

panfletos e periódicos publicados entre<br />

1821 e 1823 para analisar as leituras da<br />

elite intelectual que participou do<br />

movimento da Independência. Enfoca<br />

também o nascimento da idéia de<br />

opinião pública que, para ela, surgiu no<br />

Brasil nesse período e se produziu<br />

graças aos homens de letras.<br />

A questão da recepção das leituras e<br />

circulação de livros é enfocada nos<br />

artigos de Maria do Carmo Rainho e<br />

Claudia Heynemann. A primeira discute<br />

o conteúdo dos manuais de etiqueta e<br />

civilidade que circulavam no Rio de<br />

Janeiro do século XIX e a importância<br />

de sua leitura para aqueles que se<br />

denominavam membros da "boa<br />

sociedade". Claudia Heynemann enfoca<br />

o universo de livros clandestinos,<br />

panfletos e literatura pornográfica que<br />

era consumida na França no período<br />

pré-revolucionário a partir da análise de<br />

Robert Darnton sobre a Encyclopédie.<br />

A revista publica ainda um curioso artigo<br />

de Marcus Motta que reflete sobre as<br />

possibilidades de leitura de um texto,<br />

discutindo a posição do leitor a partir<br />

de níveis de submissão ao texto e das<br />

dúvidas que este aponta para o leitor<br />

tendo por base a História do Futuro do<br />

padre Antônio Vieira.<br />

Este número de Acervo apresenta<br />

também um documento inédito do<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> localizado por Nireu<br />

Cavalcanti que, em seu artigo, revela a<br />

existência de uma importante livraria na<br />

Corte no final do século XVIII.<br />

O perfil institucional é dedicado ao Real<br />

Qabinete Português de Leitura,<br />

instituição que guarda e dá acesso à um<br />

valioso patrimônio estimado em<br />

350.000 volumes.<br />

Finalmente e, sem trocadilho, desejo<br />

uma boa leitura a todos os leitores.<br />

Maria do Carmo Rainho<br />

Editora


Ohistoriador<br />

f r a n c ê s<br />

R o q e r<br />

Chartier, um dos<br />

maiores especialistas<br />

na história da leitura,<br />

vem desenvolvendo<br />

em seus trabalhos<br />

E n t i r e v i s t a c o m Ri ox og ge er r C / L a r t i e r<br />

temas como práticas e recepção<br />

de leituras, sociabilidades<br />

intelectuais e edição de livros na<br />

França do Antigo Regime, em<br />

obras como íiistoire de /'edition<br />

française. Pratiques de lecture,<br />

Lectures et lecteurs dans Ia<br />

France de l'Ancien Regime e A<br />

ordem dos livros,<br />

entre outras.<br />

Mesta entrevista,<br />

Roger Chartier ana­<br />

lisa as possibilidades<br />

e dificuldades encon­<br />

tradas pelos historia­<br />

dores ao tentarem<br />

reconstruir as práticas e a<br />

recepção das leituras de uma<br />

determinada sociedade. E chama<br />

atenção para o fato de que mais<br />

importante do que tentar saber o<br />

que liam os franceses no século<br />

XV11I é tentar perceber como eles<br />

liam.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n 1-2. p. 3-12. jan/dez 1995 - pag.3


A C E<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O Senhor considera<br />

possível responder ã pergunta: "O que<br />

liam os franceses no século XVIII?"<br />

Roger Chartier. Hoje já me parece<br />

possível responder a essa pergunta. Os<br />

trabalhos clássicos dos historiadores<br />

franceses permitiram reconstruir a<br />

produção, a circulação e a posse dos<br />

títulos autorizados graças à utilização<br />

maciça e quantitativa dos registros de<br />

pedidos de permissão, dos catálogos<br />

dos livreiros e das listas de livros<br />

presentes nos inventários post-mortem.<br />

O que faltou durante muito tempo às<br />

conclusões dessas pesquisas foi um<br />

bom conhecimento da difusão dos<br />

títulos proibidos, que não podiam ser<br />

impressos no reino, nem figurar nos<br />

catálogos de livraria ou aparecer nos<br />

inventários de livros pertencentes por<br />

particulares.<br />

Graças à exploração sistemática dos<br />

arquivos das sociedades tipográficas<br />

instaladas ao redor do reino, e que<br />

publicavam os 'livros filosóficos' para<br />

o mercado francês, agora é possível ter-<br />

se uma justa medida da importância e<br />

da natureza dessa produção proibida. O<br />

grande trabalho de Robert Darnton,<br />

desenvolvido a partir dos arquivos<br />

excepcionais da Sociedade Tipográfica<br />

de Meuchátel, constitui a contribuição<br />

mais fundamental. Mas não devemos<br />

esquecer outras pesquisas, também<br />

feitas por historiadores americanos,<br />

como, por exemplo, as de Raymond Birn<br />

sobre os arquivos da Sociedade<br />

pag.4. jan/dez 1995<br />

Tipográfica de Bouillon.<br />

É a partir desse conhecimento que hoje<br />

podem ser formuladas novas perguntas:<br />

não mais "o que liam os franceses?",<br />

mas "como liam os franceses?" E "qual<br />

foi o papel do impresso no afastamento<br />

dos franceses da Igreja e da<br />

monarquia?"<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. lia introdução de<br />

Edição e sediçáo Robert Darnton afirma<br />

que este livro pode ser lido como uma<br />

resposta ã questão de Daniel Mornet: "o<br />

que liam os franceses no século XVIII?"<br />

O que o senhor pensa disso?<br />

Roger Chartier. Inspirado pelo<br />

programa de sociologia da literatura de<br />

Lanson, Daniel Mornet foi sem dúvida o<br />

primeiro historiador que tentou avaliar<br />

a importância da difusão das grandes<br />

obras do lluminismo a partir de sua<br />

presença (ou ausência) nos inventários<br />

de bibliotecas. É este o tema de seu<br />

célebre artigo "Os ensinamentos das<br />

bibliotecas particulares no século XVIII",<br />

publicado na Revue d'histoire littéraire<br />

de Ia France, em 1910. A partir desse<br />

trabalho pioneiro, multiplicaram-se os<br />

estudos monográficos a fim de<br />

reconstituir as bibliotecas pertencentes<br />

aos diferentes grupos sociais, nos<br />

diferentes locais e em diferentes<br />

épocas. O ponto fraco dessas mono­<br />

grafias residia no fato de que as fontes<br />

por elas utilizadas (inventários notariais<br />

ou catálogos de vendas) subestimavam,<br />

ou até mesmo ignoravam, por sua<br />

própria natureza, os títulos proibidos,


que eram escondidos dos notários ou<br />

postos secretamente a venda pelos<br />

livreiros.<br />

Daí a importância capital das pesquisas<br />

de Darnton, que permitiram ter uma<br />

noção precisa da circulação (que não era<br />

pequena) da literatura clandestina. O<br />

que agora devemos compreender<br />

melhor é a articulação dos diferentes<br />

mercados do livro (o das novidades<br />

licitas, dos 'livros filosóficos', dos<br />

mascates, do livro de segunda mão etc),<br />

das diferentes formas de acesso ao<br />

impresso (por compra, empréstimo,<br />

assinatura em gabinetes de leitura,<br />

participação em sociedades de leitura,<br />

locação por hora ou por dia etc.) e dos<br />

diversos tipos de leitura (em função dos<br />

levantamentos de textos, das razões da<br />

leitura e das maneiras de ler).<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, rio livro Lectures et<br />

lecteurs dans la France d'Ancien Regime<br />

o senhor diz que o acesso ao livro não<br />

pode ser reduzido somente a posse do<br />

livro, pois nem sempre o leitor é<br />

proprietário do livro que lê. Por outro<br />

lado, o senhor chama a atenção para o<br />

fato de que a escrita está presente<br />

mesmo na cultura analfabeta, em rituais<br />

festivos, nos espaços públicos, nos<br />

locais de trabalho. Partindo dessa<br />

premissa, que conselhos daria àqueles<br />

que estão interessados em reconstituir<br />

as práticas de leitura e as formas de<br />

apropriação dos textos de uma<br />

determinada sociedade?<br />

Roger Chartier. O único conselho útil<br />

V o<br />

seria resistir à tentação, sempre forte,<br />

de considerar a nossa relação com o<br />

livro, e de maneira mais geral, com o<br />

texto escrito, como universal e variável.<br />

Contra o que João Hansen designa (e<br />

denuncia) como um 'etnocentrismo da<br />

leitura', é necessário lembrar que a<br />

posse não é o único meio de acesso ao<br />

livro, que nem todo material impresso<br />

é composto de livros lidos no espaço<br />

privado, que a leitura não é<br />

forçosamente solitária e silenciosa, e<br />

que não é necessário ser alfabetizado<br />

para 'ler', se 'ler' significa, como na<br />

Castela do Século de Ouro, ouvir ler.<br />

não podemos esquecer essas práticas<br />

que, ao contrário da posse, não<br />

deixaram vestígios nos arquivos.<br />

Reconstruí-las supõe a mobilização de<br />

fontes que, por definição, não são nem<br />

exaustivas, nem suscetíveis de um<br />

tratamento serial. Assim, por exemplo,<br />

para a leitura em voz alta, o estudo de<br />

suas representações nas obras literárias<br />

pictóricas ou iconográficas, a<br />

identificação dos gêneros e das formas<br />

que visam ou supõem uma determinada<br />

leitura, a localização, nos próprios<br />

textos, do que Paul Zumthor qualifica<br />

como 'índices de oralidade' e, para os<br />

etnólogos e sociólogos, a observação<br />

das fórmulas e convenções próprias a<br />

um determinado modo de leitura.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. A partir de que<br />

momento os historiadores franceses se<br />

voltaram para a história do livro e para<br />

a sociologia da leitura? Quais foram os<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 3-12. jan/dez 1995 - pag.S


A C E<br />

precursores destes trabalhos?<br />

Roger Chartier. O interesse atual pela<br />

história das práticas de leitura resulta<br />

claramente, pelo menos na frança, do<br />

cruzamento de várias'tradições. A<br />

primeira delas é a da história do livro<br />

em sua acepção clássica. Sua fundação<br />

como disciplina e campo de pesquisas<br />

autônomas foi marcada pela obra<br />

L'apparition du livre, publicada por<br />

Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, em<br />

1958. Henri-Jean Martin foi o primeiro<br />

historiador francês a ensinar uma<br />

disciplina especificamente consagrada<br />

à 'civilização do livro', na Ecole Pratique<br />

de Hautes Etudes. A partir desse livro<br />

fundador, foram muitos os trabalhos<br />

consagrados à reconstituiçáo das<br />

conjunturas em que foram produzidos<br />

os materiais impressos, à sociologia das<br />

pessoas ligadas ao livro' (editores,<br />

livreiros, encadernadores, artesãos etc.)<br />

e à importância do acervo das<br />

bibliotecas particulares. Os quatro<br />

volumes da tlistoire de 1'édition<br />

française (publicada entre 1982 e 1986<br />

e reeditada entre 1989 e 1991) fazem<br />

um balanço de todas essas pesquisas.<br />

Uma segunda corrente de estudos, que<br />

floresceu nesses mesmos anos, foi a da<br />

sociologia da leitura, entendida como<br />

avaliação das práticas do livro (compra<br />

em livraria, visita a bibliotecas, volume<br />

e circunstâncias das leituras), repartidas<br />

segundo os diferentes meios sociais e<br />

grupos profissionais. O ponto alto<br />

desses trabalhos é a série de obras<br />

publicadas pelo Serviço de Estudos e<br />

pag.6. jan dez 1995<br />

Pesquisas da Biblioteca Pública de<br />

Informação do Centro Qeorges<br />

Pompidou.<br />

Mas, para que uma história da leitura<br />

tivesse um verdadeiro desenvolvimento,<br />

foram necessárias outras referências e<br />

outros fundamentos, que vieram da<br />

antropologia das práticas comuns, tal<br />

como proposto por Richard Hoggart em<br />

The uses of literacy, e por Michel de<br />

Certeau em L'invention du quotidien;<br />

das correntes da história literária<br />

sensíveis à pluralidade e à historicidade<br />

da recepção das obras, logo, à diver­<br />

sidade de suas leituras; e, finalmente,<br />

das disciplinas que, ao descrever a<br />

forma dos objetos manuscritos e<br />

impressos (codicologie, analytical<br />

bibliography), estabelecem as eventuais<br />

modalidades de sua apropriação.<br />

Apoiando-se sobre essas referências<br />

matriciais, a história da leitura pôde ser<br />

construída e, recentemente, propor seus<br />

primeiros balanços (tlistoires de Ia<br />

lecture) e suas primeiras sínteses (Storia<br />

delia leitura nel mondo occidentale).<br />

<strong>Arquivo</strong> nacional. Para o senhor a<br />

história da leitura se inscreve como um<br />

objeto da história intelectual ou da<br />

história cultural?<br />

Roger Chartier. Para mim, hoje já não<br />

se pode estabelecer uma diferença<br />

nítida entre a história intelectual (ou<br />

literária) e a história cultural. Ma<br />

verdade, um problema comum<br />

apresenta-se aos historiadores dos<br />

textos, do livro e das práticas culturais,<br />

qual seja, o de reconstruir os usos e as


K V O<br />

significações atribuídos aos textos por<br />

seus diferentes leitores (ouvintes ou<br />

espectadores). Responder a essa<br />

pergunta supõe desenvolver várias<br />

estratégias de pesquisa, ligadas umas às<br />

outras mas que, tradicionalmente,<br />

pertencem a diferentes disciplinas<br />

acadêmicas. Devemos agrupar numa<br />

mesma história o estudo dos textos,<br />

logo, de seus gêneros, formas,<br />

temáticas, motivos; o estudo dos<br />

suportes e de suas modalidades de<br />

inscrição, transmissão e conservação;<br />

enfim, o estudo de suas apropriações<br />

por diferentes comunidades, em<br />

diferentes momentos.<br />

É possível (e sem dúvida necessário)<br />

abordar essa problemática a partir de<br />

uma das questões: o estudo de uma<br />

obra de um gênero impresso, ou de uma<br />

prática da escrita. Os trabalhos que<br />

publiquei sobre uma peça de Molière<br />

(nos Annales, em 1994), sobre a<br />

Bibliothèque bleue, ou sobre a leitura<br />

em voz alta podem ilustrar cada uma<br />

dessas perspectivas de pesquisa. Mas o<br />

importante é que cada uma, qualquer<br />

que seja seu ponto de partida, articule<br />

à análise textual, a descrição<br />

morfológica e sociológica dos hábitos.<br />

É a partir de tal articulação que se<br />

podem definir novas perspectivas de<br />

trabalho que desestruturem as divisões<br />

canônicas e coloquem a questão<br />

fundamental: a da produção do sentido.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Os historiadores da<br />

leitura têm recorrido à diversas fontes:<br />

inventários post-mortem, catálogos de<br />

bibliotecas, documentação editorial,<br />

correspondência de livreiros e da<br />

censura, almanaques como France<br />

litteraire entre outras. Quais são as<br />

principais dificuldades metodológicas<br />

ao se trabalhar com estas fontes?<br />

Roger Chartier. Cada fonte mencionada<br />

apresenta problemas específicos,<br />

quanto a sua representatividade, ou<br />

quanto a sua exaustividade. Para a<br />

história da leitura, a dificuldade<br />

fundamental relaciona-se com o fato de<br />

que o historiador pode trabalhar apenas<br />

com representações da prática:<br />

representações normativas nas artes de<br />

ler e nas sentenças judiciais;<br />

representações de uma leitura<br />

pretendida, desejada, implícita, nos<br />

prefácios, prólogos e palavras ao leitor;<br />

representações codificadas segundo as<br />

convenções estéticas com as imagens<br />

de leitores e leitoras propostas pela<br />

pintura ou pela gravura; representações<br />

dirigidas pelas táticas do self fashioning<br />

nos testemunhos de natureza autobio­<br />

gráfica (livre de raison, diário, narrativa<br />

de vida).<br />

Tal constatação não significa que essas<br />

fontes sejam inutilizáveis. Ao contrário.<br />

Mas leva, contra qualquer leitura docu­<br />

mentária ingênua e imediata, a compre­<br />

ender as práticas da representação (suas<br />

razões, gêneros, intenções) para poder<br />

decifrar corretamente as repre­<br />

sentações das práticas. Parece-me que<br />

o mesmo procedimento é válido para os<br />

documentos aparentemente mais<br />

objetivos (inventários post-mortem.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n e 1-2, p. 3-12, jan/dez 1995 - pag.7


A C E<br />

registros administrativos, catálogos de<br />

bibliotecas etc). Todos supõem esco­<br />

lhas e triagens - logo, exclusões. Todos<br />

sào organizados a partir de categorias,<br />

classificações e fórmulas que não são<br />

neutras, mas que submetem à suas<br />

lógicas as 'realidades' de que se apode­<br />

ram. Tomar consciência dessas conven­<br />

ções, variáveis segundo os documentos,<br />

as épocas e lugares, é condição neces­<br />

sária para que se possa apreciar as<br />

pertinências e os limites de cada fonte.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. De que forma a<br />

história cultural pode se relacionar com<br />

a crítica literária, com a 'estética da re­<br />

cepção ' e com as abordagens filosóficas<br />

como a de Paul Hicoeur cujos estudos<br />

partem da própria estrutura narrativa?<br />

Roger Chartier. Creio que a história só<br />

tem valor e interesse se é capaz de<br />

estabelecer um diálogo, ou um debate<br />

com as outras disciplinas. No campo da<br />

história da leitura, o encontro foi<br />

imediato e evidente tanto com a crítica<br />

literária (pelo menos aquela que enfoca<br />

a recepção das obras) como com a<br />

filosofia (pelo menos aquela que se<br />

inscreve numa perspectiva fenome-<br />

nológica e hermenêutica). O grande livro<br />

de Paul Ricoeur Temps et récit une as<br />

duas abordagens, pois a teoria da leitura<br />

que constrói para compreender o<br />

encontro entre o mundo do texto e o<br />

mundo do leitor baseia-se na dupla<br />

referência à fenomenologia da leitura,<br />

desenvolvida por Wolfgang Iser, e na<br />

estética da recepção, elaborada por<br />

Hans Robert Jauss e a Ecole de<br />

pag.8. jan/dez 1995<br />

Constance'. Era pois normal que ele<br />

adotasse a linha de reflexão dos<br />

historiadores da leitura.<br />

As diferenças que esses historiadores<br />

podem estabelecer em relação às<br />

abordagens literárias e filosóficas<br />

prendem-se a dois elementos: o<br />

primeiro remete à materialidade dos<br />

textos. Contra todas as formas de<br />

abstração dos textos estudados, lidos,<br />

comentados independentemente das<br />

modalidades de sua inscrição e de sua<br />

comunicação, é necessário lembrar,<br />

parece-me, que a significação das obras<br />

depende também das formas que as<br />

transmitem a seus leitores e a seus<br />

ouvintes. A 'mesma' comédia de Molière<br />

não é a 'mesma', se assistida quando<br />

de uma festa na corte ou no palco do<br />

teatro do Palais Royal, ou quando é<br />

apenas lida. O 'mesmo' romance de<br />

Balzac não é o 'mesmo', quando é<br />

publicado em folhetim, numa edição<br />

para um gabinete de leitura, numa<br />

edição para o mercado da livraria, ou<br />

ainda sob a forma de obras completas.<br />

"A forma afeta o sentido", é uma<br />

fórmula cara a D. F. McKenzie. É pois<br />

necessário identificar os efeitos de<br />

sentido das diferentes formas (impres­<br />

sas ou manuscritas, escritas ou orais)<br />

que se apoderam de uma 'mesma' obra.<br />

Por outro lado, contra todas as formas<br />

de abstração do leitor ou, dizendo<br />

melhor, de 'etnocentrismo' da leitura,<br />

que supõe comuns a todos os leitores<br />

práticas que são, na verdade,<br />

absolutamente específicas - por exem


pio, aquelas do crítico literário ou do<br />

filósofo hermeneuta...-, devemos lem­<br />

brar que a leitura tem uma história e<br />

uma sociologia. É pois necessário<br />

reconstruir as competências, as técni­<br />

cas, as convenções, os hábitos, as<br />

práticas próprias a cada comunidade de<br />

leitores (ou leitoras). Deles depende<br />

também a significação que, em<br />

determinado momento ou lugar, um<br />

'público' pode atribuir a um texto.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Exemplos como o do<br />

moleiro Menocchio, analisado por Cario<br />

Qinzburg em O queijo e os vermes, que<br />

teve acesso a livros que não lhe eram<br />

destinados, ou da série Bibliothèque<br />

Bleue, de textos clássicos dirigidos edi-<br />

toria/mente a um público menos ins­<br />

truído, configuram uma 'circu/aridade<br />

da cultura' ou apontam para a existência<br />

da dicotomia popular/letrado? Como o<br />

senhor entende esse tipo de<br />

apropriação?<br />

Roger Chartier. Nas sociedades do<br />

Antigo Regime, os leitores populares,<br />

devido a suas condições de vida, vêem-<br />

se confrontados com textos que não<br />

lhes são especificamente destinados.<br />

Seja porque, como Menocchio, eles<br />

adquirem ou tomam emprestados livros<br />

que são destinados às elites sociais;<br />

seja porque, como clientes dos<br />

mascates, eles compram os impressos<br />

que constituem o repertório das livrarias<br />

ambulantes, que editam, para um<br />

público mais amplo, textos que -<br />

anteriormente, ou naquele momento -,<br />

são difundidos sob outras formas,<br />

dirigidos a outros leitores, mais<br />

afortunados e mais letrados.<br />

Assim, não é possível caracterizar como<br />

radicalmente específico o corpus dos<br />

textos que constituem o que<br />

tradicionalmente se designou como a<br />

'literatura popular ambulante'. O<br />

essencial consiste, inicialmente, em<br />

localizar quais são os textos e os livros<br />

que circulam nos meios populares,<br />

assim como nos meios letrados<br />

(pensemos nas romanzas e nos<br />

romances de capa e espada da Castela<br />

do Século de Ouro); em seguida,<br />

devemos identificar as maneiras de ler<br />

características dos menos privilegiados<br />

e dos menos cultos dos leitores.<br />

A tarefa não é fácil, está sempre<br />

ameaçada pelo risco de reintroduzir um<br />

sociologismo demasiadamente abrupto,<br />

que qualifica como 'populares' práticas<br />

que, na verdade, podem ser<br />

encontradas em outros horizontes<br />

sociais. Será certo, por exemplo, que a<br />

maneira de ler de Menocchio seja<br />

representativa de uma leitura<br />

campesina, apoiada nas tradições da<br />

cultura da oralidade? É necessário ser<br />

prudente na qualificação dos diferentes<br />

modelos de leitura que, também eles,<br />

como o corpus dos textos, podem ser<br />

comuns a diferentes meios.<br />

Mas é certo que é somente deslocando-<br />

se sobre os usos e práticas, que a<br />

história das leituras populares poderá<br />

evitar as armadilhas nas quais<br />

freqüentemente caiu ao tratar sem<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 3-12. jan dez 1995 - pag.9


precaução a oposição entre popular e<br />

letrado aplicada à circulação, supos­<br />

tamente fechada, de corpus de textos<br />

considerados como próprios a tal ou tal<br />

público. São esses problemas que<br />

procurei enfocar num artigo publicado<br />

no primeiro número da nova revista<br />

brasileira Mana'.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O professor Robert Darnton<br />

vê a Revolução Francesa também como uma<br />

revolução literária, não apenas através dos<br />

grandes textos iluministas, mas também pela<br />

literatura clandestina. A circulação de livros e a<br />

leitura de obras proibidas modificou as relações<br />

de poder? A burguesia leu os iluministas?<br />

Roger Chartier. Os trabalhos de Robert<br />

Darnton, e particularmente suas últimas<br />

obras, mostraram a importância da circulação<br />

dos 'livros filosóficos' nas três últimas<br />

décadas do Antigo Regime. Também<br />

enfatizaram a composição bastante confusa<br />

dessa noção, utilizada pelos livreiros, que<br />

compreende as obras dos filósofos,<br />

encabeçados por Voltaire, os libelos e<br />

panfletos políticos e as obras pornográficas,<br />

clássicas ou recentes.<br />

A partir dessas constatações, indis­<br />

cutíveis, pode-se abrir um debate sobre<br />

os laços existentes entre a leitura desse<br />

corpus de textos que, sob diferentes<br />

formas, denunciam ou dessacralizam as<br />

autoridades tradicionais, e a transfor­<br />

mação das representações coletivas<br />

que, em 1789, torna admissível e aceita<br />

a ruptura revolucionária.<br />

Em meu livro sobre as origens culturais<br />

da revolução, apresentei alguns<br />

argumentos que me parecem impedir<br />

que se vincule, sem uma análise mais<br />

profunda, os leitores às correntes de<br />

pensamento: por exemplo, a pluralidade<br />

das significações possivelmente<br />

atribuídas a textos com vários registros;<br />

os limites da área social de circulação<br />

dos libelos e o caráter efêmero de sua<br />

atualidade; a possibilidade de o leitor<br />

encontrar um prazer na leitura sem,<br />

todavia, dar crédito a seus enunciados,<br />

ou a necessidade de não considerar o<br />

afastamento da monarquia como o<br />

resultado de um processo linear e<br />

cumulativo. Daí a hipótese segundo a<br />

qual as novas maneiras de ler surgidas<br />

no século XVIII, desenvoltas e críticas,<br />

talvez tivessem importância igual ou<br />

superior à importância da divulgação em<br />

grande escala dos textos subversivos.<br />

Pareceu-me necessário chamar a<br />

atenção sobre todos esses pontos, a fim<br />

de evitar que a tese clássica de Mornet,<br />

que considera a ruptura revolucionária<br />

como sendo conseqüência da divul­<br />

gação sempre mais ampla do Ilumi-<br />

nismo, não seja simplesmente reprodu­<br />

zida em outro corpus, o dos 'livros filo­<br />

sóficos', dotado da mesma eficácia sub­<br />

versiva que aquela atribuída, durante<br />

muito tempo, aos textos dos filósofos...<br />

Na edição americana de Edição e<br />

sedição, muito mais desenvolvida do<br />

Nota do Editor. O artigo a que se refere o autor intitula-se "Leituras, leitores e 'literaturas populares' na<br />

Soc°r| adl aurRJ SCenCa' 6 ^ P a r t C ^ r e V' S t a Ma" a' e d U a d a P e'° F r°9 r a m a d e Pós-graduaçâo em Antropologia<br />

pag. 10. jan dez 1995


K V O<br />

que o texto original francês, Robert<br />

Darnton que, diga-se de passagem, é um<br />

grande amigo - o que dá mais liberdade<br />

às polêmicas intelectuais -, responde<br />

ponto por ponto a esses argumentos.<br />

Cabe, pois, ao leitor, julgar a força e a<br />

fraqueza da posição de cada um.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, lia esteira do<br />

sociólogo alemão liorbert Elias, o<br />

senhor vem estudando as alterações<br />

ocorridas na noção de moralidade bem<br />

como os livros que entre os séculos XVI<br />

e XVIII descreviam os códigos e compor­<br />

tamentos tidos como 'civilizados'. Que<br />

dificuldades o senhomr encontrou ao<br />

trabalhar com esta documentação?<br />

Roger Chartier. Como se sabe, a obra<br />

de Morbert Elias constitui, para mim,<br />

uma referência teórica maior. Sinto-me<br />

feliz e orgulhoso por ter contribuído<br />

para torná-la mais conhecida na França,<br />

ao prefaciar as traduções de quatro de<br />

seus livros (A sociedade de corte, A<br />

sociedade dos indivíduos, Engagement et<br />

distanciation e Sport et civilization: la<br />

violence maitrisée - de Elias e Eric Dunning).<br />

Meu interesse pelo corpus dos tratados<br />

de civilidade, de Erasmo às civilidades<br />

revolucionárias, nasceu de uma questão<br />

central colocada pela grande tese de<br />

Elias quanto ao desenvolvimento dos<br />

dispositivos de autocontrole dos<br />

indivíduos - que ele chama de 'processo<br />

de civilização'. Como pôde se dar a<br />

incorporação de novas normas do<br />

comportamento, que refreiam a<br />

expressão dos afetos e aumentam as<br />

exigências do pudor? Quais são os<br />

dispositivos que traduzem em termos de<br />

modelos de conduta os cerceamentos<br />

impostos pelo incremento das<br />

interdependências entre os indivíduos?<br />

O corpus dos tratados de civilidade,<br />

ponto de partida do trabalho de Elias,<br />

poderia ser retomado de outra maneira:<br />

não mais buscando-se neles os<br />

deslocamentos da fronteira entre o licito<br />

e o proibido, mas entendendo sua<br />

pluralidade e seus usos. Daí a ênfase<br />

sobre as definições concorrentes -<br />

antropológica, cristã, social,<br />

revolucionária etc. - da civilidade. Daí<br />

também a atenção dirigida às utilizações<br />

pedagógicas dos tratados e à sua<br />

divulgação 'popular' no repertório da<br />

Bibliothèque bleue.<br />

Para minha contribuição ao quarto<br />

volume da flistoire de la France, dirigida<br />

por André Burguière e Jacques Revel,<br />

para Editions du Seuil, retomei um dos<br />

textos, designado por Elias como o<br />

primeiro manual da racionalidade da<br />

corte, ou seja, a tradução francesa,<br />

atribuída a Amelot de la Houssaie, do<br />

Oráculo manualy arte de prudência, de<br />

Qracián (1647). Tratava-se, antes de<br />

tudo, de compreender como a tradução<br />

havia 'curializado' o texto (publicado em<br />

1682 sob o título L'flomme de cour) e<br />

como seus preceitos encontravam apoio<br />

na teoria cartesiana das paixões e suas<br />

traduções em sentimentos e condutas<br />

dos personagens da tragédia clássica.<br />

Tradução de I ca Novaes.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. TI 1-2. p. 5-12. jan/dez 1995 - pag, 11


Ohistoriador<br />

americano<br />

R o b e r t<br />

Darnton é velho conhe­<br />

cido dos brasileiros.<br />

Desde O grande mas­<br />

sacre dos gatos publi­<br />

cado no Brasil em<br />

E n t r e v i s t a c o m R o t e r t a r n t o n<br />

1986, seus livros têm sido<br />

referência fundamental para<br />

aqueles interessados em<br />

entender o papel da literatura,<br />

em especial da literatura<br />

clandestina, no desmoronamento<br />

do Antigo Regime, na França.<br />

revolução literária.<br />

Darnton, que tem tido<br />

Roger Chartier como<br />

um de seus interlo­<br />

cutores mais cons­<br />

tantes, analisa nesta<br />

entrevista o fato da<br />

Revolução Francesa<br />

ser também uma<br />

E, com bom-humor, aproveita<br />

para brincar com Chartier que,<br />

segundo ele, está sempre<br />

esperando o resultado de suas<br />

pesquisas para questionar suas<br />

suposições e conclusões.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p 13-18, jan/dez I995 pagl3


<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, rio prólogo da<br />

edição francesa de L'Aventure de<br />

l'Encyclopédie, Le Roy Ladurie diz que<br />

o sn, Daniel Roche, Qerard Qayot e<br />

François Furet são os quatro mosque­<br />

teiros do revisionismo prè-revolucio-<br />

nário. O sr. concorda com este epiteto?<br />

Robert Darnton. Um dos muitos dons<br />

de Le Roy Ladurie como historiador é o<br />

senso de humor. Chamando-nos de os<br />

quatro mosqueteiros do revisionismo<br />

ele estava fazendo uma piada; porém,<br />

brincando dessa maneira, ele pretendeu<br />

dizer algo de sério - ou seja, que, como<br />

historiadores sócio-culturais, nós todos<br />

tínhamos apresentado resultados que<br />

eram incompatíveis com as interpre­<br />

tações marxistas ortodoxas das origens<br />

da Revolução Francesa. No meu caso,<br />

encontrei algumas informações<br />

extraordinariamente ricas sobre a<br />

produção e a difusão da Encyclopédie<br />

de Diderot, a mais importante obra do<br />

Iluminismo. Descobri quantos exem­<br />

plares do livro existiam na Europa antes<br />

de 1789, onde eram vendidos e quem<br />

os comprava. Em decorrência, foi<br />

possível questionar um tema clássico na<br />

historiografia marxista: a identificação<br />

do Iluminismo com a burguesia<br />

industrializante. Verifiquei que a<br />

Encyclopédie vendia melhor em cidades<br />

mais tradicionais, como Besançon, onde<br />

a Igreja e o parlement (Suprema Corte)<br />

davam o tom e que o pior índice de<br />

vendas ocorria em centros manufa-<br />

tureiros, como Lille, onde os burgueses<br />

dominantes estavam supostamente<br />

pag 14. jau/dez 1995<br />

arquitetando uma Revolução Industrial.<br />

Os dados estatísticos acerca dos<br />

compradores individuais demonstraram<br />

que o livro atraia especialmente os<br />

detentores de cargos na administração<br />

real, os oficiais do exército, os nobres<br />

em geral e os profissionais em particular<br />

- porém, não os comerciantes (exceto<br />

uns poucos em Marseille) e nem os<br />

industriais. Os comentários nas corres­<br />

pondências dos livreiros - e havia<br />

50.000 delas, nos arquivos que estudei<br />

- confirmaram esta impressão. As provas<br />

qualitativas e quantitativas, combi­<br />

naram-se para proporcionar um quadro<br />

vivido de como o Iluminismo penetrou<br />

E<br />

no tecido social do Antigo Regime.<br />

Creio que uma história do livro desta<br />

espécie - uma variante modesta, que<br />

envolveu longas horas de pesquisa em<br />

documentos originais - pode fornecer<br />

informações suficientes para se<br />

construir uma sociologia rudimentar da<br />

cultura e questionar pressuposições que<br />

moldaram a história sócio-cultural.<br />

Porém, percebo que isso levanta um<br />

número de questões maior do que as<br />

que responde. Precisamos saber muito<br />

mais acerca do modo pelo qual os livros<br />

eram lidos, de como se formavam as<br />

atitudes e como a opinião pública<br />

ganhou força na Europa pré-<br />

revolucionária. Não defendo o empiri-<br />

cismo anglo-saxão simplista, nem nego<br />

a pertinência de algumas visões<br />

marxistas mais sofisticadas da ideo­<br />

logia, notadamente as derivadas de<br />

Qramsci ou de Lukacs ou do próprio


K V O<br />

Marx. Mão me propus a refutar o<br />

marxismo. Ao invés, procurei mapear a<br />

difusão do lluminismo. Mo entanto, eu<br />

não poderia ignorar a visão clássica<br />

marxista do tema. E, embora eu mesmo<br />

nunca tenha sido marxista, não levantei<br />

objeções ao termo 'revisionista',<br />

quando Le Roy o associou a mim.<br />

Quanto a ser um mosqueteiro, quem<br />

dera que fosse verdade! Infelizmente,<br />

sou apenas um professor universitário.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O sr. afirma que a<br />

Revolução francesa foi também uma<br />

revolução literária. Qual seria o principal<br />

componente de ruptura com a produção<br />

literária do Antigo Regime?<br />

Robert Darnton. Em primeiro lugar,<br />

devo explicar que não penso que a<br />

Revolução Francesa tenha sido 'apenas'<br />

uma revolução literária. Tive a intenção<br />

de tornar a frase provocadora. Porém,<br />

agora que houve tamanho afastamento<br />

da história social e econômica, eu<br />

ressaltaria aspectos da Revolução que<br />

estão atualmente sendo negligenciados:<br />

a destruição dos liames sociais e<br />

econômicos que mantinham a integri­<br />

dade do Antigo Regime como ordem<br />

social. Dito isso, preciso admitir que<br />

fiquei assombrado, quando procurei<br />

encarar a Revolução Francesa de<br />

maneira nova, ao verificar os homens<br />

de 1789 e 1794 tão preocupados com<br />

questões que pareciam ser tão literárias.<br />

Mo ápice do debate acerca da nova<br />

constituição, Fabre DEglantine re-<br />

escreve o Misanthrope de Molière de<br />

acordo com a fórmula prescrita por<br />

Rousseau em Letter to dAlembert e<br />

Camille Desmoulins, o incendiário do<br />

clube Cordelier, interrompe sua<br />

costumeira arruaça política para<br />

escrever uma longa resenha da primeira<br />

apresentação da peça. Temos a versão<br />

de Desmoulins da versão de Fabre da<br />

versão de Rousseau da versão de<br />

Molière do conflito entre a convenção<br />

social e a austeridade moral. Para a<br />

inocente visão americana, o assunto<br />

todo parece surpreendentemente<br />

literário e intensamente francês. O que<br />

estava se passando?<br />

A resposta a essa pergunta refere-se ao<br />

caráter da literatura como ingrediente<br />

no sistema peculiar ao Antigo Regime e<br />

ao papel da literatura na destruição<br />

desse sistema durante a Revolução -<br />

questões que pertencem à antropologia<br />

tanto quanto à história ou à história dos<br />

livros, rigorosamente falando. Espero<br />

explorar essas questões mais profun­<br />

damente em uma pesquisa posterior, de<br />

modo que não posso lhe apresentar<br />

uma resposta rápida aqui. Devo dizer,<br />

contudo, que a Revolução Francesa<br />

proporciona aos historiadores um<br />

campo de pesquisas maravilhosamente<br />

rico e bem documentado, no qual<br />

podem estudar um problema geral, algo<br />

que pode ser descrito como a dimensão<br />

social do significado - isto é, o modo<br />

pelo qual as pessoas se apercebiam do<br />

sentido do mundo, confrontando,<br />

absorvendo e reelaborando os valores<br />

e as atitudes que haviam herdado de<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2, p. 13-18. jan/dez 1995 - pag. 15


A C<br />

seus pais. No caso do Antigo Regime na<br />

França, o princípio organizador do<br />

sistema cultural era o privilège ou (como<br />

indica sua raiz latina) o direito privado,<br />

um direito particular para fazer algo<br />

negado a outros, em contraste com o<br />

direito geral, sistema no qual os direitos<br />

legais incidem igualmente sobre todos.<br />

Todas as indústrias culturais da França<br />

estavam organizadas em torno de<br />

privilégios concedidos pelo rei antes de<br />

1 789. Não se podia fazer grande carreira<br />

na música, na arte dramática, nas artes<br />

plásticas ou mesmo nas ciências e no<br />

jornalismo sem gozar de alguma parcela<br />

de um privilégio real. O privilégio<br />

dominava especialmente a indústria<br />

editora, uma vez que os livreiros e<br />

impressores tinham que pertencer a<br />

uma corporação privilegiada, à qual se<br />

concedia um monopólio do comércio de<br />

livros e os próprios livros possuíam<br />

privilégios, uma versão antiga do<br />

copyright (direito autoral). A revolução<br />

reescreveu as regras do jogo em todas<br />

as indústrias da cultura, tornando-as<br />

todas acessíveis à livre disputa do<br />

talento. Ela transformou a vida<br />

intelectual; e como os intelectuais<br />

contribuíram consideravelmente para a<br />

transformação da política e da ordem<br />

social, ela disseminou repercussões<br />

para os mais remotos setores da<br />

sociedade. Portanto, eu consideraria<br />

dois aspectos da ruptura produzida pela<br />

Revolução: em primeiro lugar, uma<br />

revolução dentro da Revolução ou a<br />

transformação das indústrias culturais;<br />

pag.16. jan/dez 1995<br />

em segundo, uma 'revolução cultural'<br />

no mais amplo sentido, ou seja, aquela<br />

que envolveu a reconstrução social da<br />

realidade ou a dimensão da significãncia,<br />

na medida em que esta Ficou inserida no<br />

dia-a-dia das pessoas comuns.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Em sua introdução a<br />

Edição e sedição, o sr. afirma que este livro<br />

pode ser lido como resposta à seguinte<br />

pergunta feita por Daniel Mornet: 'O que<br />

liam os franceses no século dezoito?" Quais<br />

as principais dificuldades encontradas pelo<br />

sr. ao estudar os hábitos de leitura daquele<br />

século?<br />

Robert Darnton. Acho que alguns<br />

'quais' relativos a leitura podem ser<br />

respondidos. Do mesmo modo, muitos<br />

dos 'ondes' e 'quandos'. Os 'porquês' e<br />

'cornos', entretanto, são diferentes. A<br />

penetração nos processos internos<br />

pelos quais os leitores entendiam os<br />

sinais tipográficos é uma tarefa que<br />

parece freqüentemente situar-se fora do<br />

alcance da investigação histórica. Não<br />

obstante, um grande número de leitores<br />

deixou relatos sobre sua experiência no<br />

século XVI11: anotações nas margens,<br />

sublinhados, cartas particulares,<br />

resenhas públicas e até mesmo descri­<br />

ções normativas transmitidas em<br />

ilustrações e na literatura contem­<br />

porânea sobre a 'arte de ler'.<br />

Pesquisando-se sistematicamente atra­<br />

vés deste material, podem-se formar<br />

algumas noções aproximadas de como<br />

os leitores efetivamente liam há<br />

duzentos ou trezentos anos. Preciso,<br />

E


R V O<br />

todavia, admitir que muitos de nós se<br />

preocuparam com este problema<br />

durante anos, sem chegar a resultados<br />

claros, no livro que acabo de concluir,<br />

The forbidden best-sellers of<br />

prerevolutionary France, procurei levar<br />

o problema para além do ponto onde o<br />

deixei no livro mencionado acima.<br />

Edição e sediçáo, que escrevi há vários<br />

anos em francês. Os dois livros são, na<br />

realidade, bem diferentes, embora os<br />

assuntos sejam os mesmos, no segun­<br />

do, tentei responder a algumas das<br />

objeções levantadas sobre o primeiro,<br />

notadamente por Roger Chartier, que<br />

aceitou minhas descobertas acerca da<br />

difusão da literatura sediciosa, porém<br />

contestou minha conclusão de que a<br />

literatura fosse de fato sediciosa. Afinal,<br />

disse ele, como podemos saber de que<br />

modo eram lidos esses livros? Talvez<br />

fossem meramente uma fonte de<br />

diversão, e talvez as atitudes sediciosas<br />

tivessem outra origem completamente<br />

diferente?<br />

Uma vez que Roger está também<br />

participando desta edição de Acervo,<br />

teremos a oportunidade de ouvir suas<br />

opiniões em maior extensão. Ele e eu<br />

realizamos um debate amistoso sobre<br />

estas questões durante muitos anos e<br />

eu espero que ele continue, porque tão<br />

logo eu saio dos arquivos, com os olhos<br />

brilhantes e entusiasmado por aquilo<br />

que considero como sendo descobertas<br />

importantes, Roger faz perguntas<br />

difíceis sobre as suposições ou o<br />

raciocínio implícitos em minhas<br />

conclusões. Então, eu devo colocar<br />

ordem em meu argumento, recuando<br />

em alguns lugares, avançando em outros<br />

e planejando uma nova estratégia para<br />

um ataque a novas fontes. Agora<br />

atingimos esse estágio no que se refere<br />

ao problema da leitura. Acredito ter<br />

respondido à maioria das objeções de<br />

Roger em uma nova seção, a parte 111<br />

de The forbidden best-sellers, porém já<br />

posso prever novas objeções. não<br />

atribuo, certamente, qualquer causali­<br />

dade 'unilinear' à leitura. Ao invés,<br />

procuro compreender a literatura como<br />

parte de um sistema geral de<br />

comunicação, no qual os livros eram<br />

apenas um dos numerosos meios e as<br />

mensagens transmitidas pelos livros<br />

eram somente um dos ingredientes na<br />

mistura de elementos que constituía a<br />

opinião pública. Certamente, opinião<br />

pública é, hoje em dia, um conceito<br />

incerto, sendo especialmente difícil de<br />

entender como uma força em ação há<br />

duzentos ou trezentos anos atrás, não<br />

obstante, penso ser a documentação<br />

suficientemente rica para se identifica­<br />

rem os veículos e as mensagens que<br />

fluíam através deles na França, na déca­<br />

da de 1780. Deve, portanto, ser possível<br />

reconstruir a maneira pela qual os<br />

franceses entendiam os eventos, bem<br />

como a seqüência dos próprios eventos.<br />

Para assim se proceder, será necessário<br />

integrar a história da leitura em uma his­<br />

tória mais ampla da comunicação: é esta a<br />

principal dificuldade e a principal tarefa que<br />

me propus para os próximos anos.<br />

Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 13-18, jan/dez 1995 pai] 17


<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. 1 literatura<br />

clandestina inclui textos políticos,<br />

panfletos e crônicas indecorosas. O sr.<br />

pensa que a circulação destes livros<br />

possibilitou a transição da sedição para<br />

a revolução?<br />

Robert Darnton. A resposta breve à sua<br />

pergunta seria sim. Uma resposta mais<br />

longa nos levaria a aprofundar-nos na<br />

área que acabo de descrever como a<br />

história da comunicação. Teríamos que<br />

estudar canções, impressos, graffiti,<br />

boatos e todas as espécies de<br />

mensagens difundidas através de todos<br />

os tipos de veículos. No final,<br />

poderíamos produzir um gigantesco<br />

quadro de tudo que era lido, dito,<br />

cantado e visto acerca dos assuntos<br />

públicos durante o período pré-<br />

revolucionário. Porém, apesar de toda<br />

a sua complexidade, acho que este<br />

painel ilustraria um único tema: a<br />

decadência e o despotismo. Os<br />

franceses acreditavam que seu estado<br />

estava degenerando em despotismo,<br />

embora, como agora sabemos em<br />

pag.18. jan/dez 1995<br />

retrospecto, a Bastilha só detivesse sete<br />

prisioneiros em 14 de julho de 1789 e<br />

Luís XVI nada mais desejasse do que o<br />

bem-estar de seus súditos. Precisamente<br />

como os franceses construíram este<br />

quadro interpretativo e como o usaram<br />

para entender os eventos em 1 787-1 788<br />

é uma história que nunca foi contada.<br />

Penso que essa história irá fornecer a<br />

explicação básica de como a França<br />

mudou de um estado de sedição<br />

incipiente para um de revolução aberta.<br />

Quer possa ou não impor esse<br />

argumento, espero ter dito o bastante<br />

para demonstrar que a história do livro<br />

tem um rigor próprio, que exige trabalho<br />

árduo sobre questões tratáveis em<br />

fontes especificas. Contudo, ela<br />

também se abre sobre as questões mais<br />

amplas da história em geral. Ao invés<br />

de proporcionar um canto seguro para<br />

os especialistas, ela oferece uma<br />

posição estratégica a partir da qual pode<br />

ser investigada toda a comédia humana.<br />

Tradução de Mariana Erika tleynemann.


Luiz Carlos Villalta<br />

Professor assistente da Fundação Universidade Federal de Ouro Preto. Doutorando e<br />

Mestre em Ciências (História Social) pela Universidade de São Paulo.<br />

A'sociologia histórica ?<br />

Os clérigos e os livros nas<br />

Climas Gerais da segunda<br />

metade cio século XVIII<br />

das práticas de<br />

leitura', segundo<br />

Roger Chartier, move-se em meio<br />

à tensão operatória estabelecid<br />

entre, de um lado, o poder que o texto<br />

publicado (e/ou daqueles que estão por<br />

trás dele) procura exercer sobre o leitor<br />

e, de outro, a liberdade e a inventividade<br />

do leitor na produção de sentidos no<br />

contato com os textos 1. Neste artigo<br />

procuramos averiguar como esta tensão<br />

se manifestou em relação a um grupo es­<br />

pecial de leitores: os clérigos das Gerais<br />

do século XV11I, em sua maioria<br />

personagens notáveis; alguns pelos car­<br />

gos que ocuparam, outros por seu<br />

envolvimento na Conjuração Mineira.<br />

Numa primeira etapa,<br />

examinaremos que títulos e<br />

autores a Igreja católica<br />

procurava disseminar entre os<br />

clesiásticos e que lugar estes<br />

ocupavam como proprietários de<br />

bibliotecas na França, em Portugal e, em<br />

seguida, nas Gerais do século XVIII.<br />

Depois, analisaremos bibliotecas<br />

pertencentes a clérigos mineiros do<br />

período, submetendo os dados<br />

referentes aos livros (nomes dos<br />

autores, títulos, língua em que foram<br />

escritas as obras, assuntos e preços) a<br />

um tratamento quantitativo,<br />

identificando regularidades entre as<br />

diversas livrarias e descobrindo os<br />

traços singulares de cada uma delas.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« l -2, p. 19-52, jan/dez 1995 • pag. 19


A C E<br />

Explicaremos as recorrências e<br />

especificidades das bibliotecas<br />

correlacionando-as ao estado sacerdotal<br />

e, quando possível, à biografia dos<br />

clérigos que eram seus proprietários:<br />

suas idéias, seus comportamentos e<br />

seus escritos. Com isso, verificaremos<br />

como a composição das livrarias, em<br />

suas divisões por assunto e em suas<br />

peculiaridades, associava-se à trajetória<br />

pessoal de seus proprietários e ao<br />

estado clerical. De um lado, relacio­<br />

naremos a prática e o discurso político<br />

dos mineiros ao universo literário e, de<br />

outro, observaremos se os livros<br />

anularam ou reforçaram as normas<br />

coletivas, sociais (e não legais),<br />

hegemônicas, de comportamento<br />

sexual. Desse modo, avaliaremos em<br />

que medida os livros influenciaram as<br />

condutas políticas e sexuais - ou, ao<br />

menos, se não o fizeram - e se os<br />

clérigos inconfidentes se diferenciavam<br />

dos demais.<br />

Os clérigos e os livros na França e<br />

em Portugal no século XVIII<br />

Os clérigos ocupavam lugar de destaque<br />

entre os possuidores de bibliotecas na<br />

França e em Portugal do século XV11I.<br />

Mas cidades do Oeste francês, no século<br />

XVIII, em 33,7% dos inventários havia<br />

pelo menos referência a um livro,<br />

enquanto em Paris, no decênio de 1 750,<br />

esta cifra baixava para 22,6% 2. ria<br />

capital francesa, na segunda metade do<br />

século XVIII, 62% dos inventários de<br />

eclesiásticos faziam menção a livros.<br />

pag.20.jan/dez 1995<br />

Mas esta porcentagem estava abaixo da<br />

apresentada pelos escrivães e<br />

bibliotecários (100%) e professores<br />

(75%), e se igualava a dos advogados<br />

(também 62%) 3. Os eclesiásticos<br />

portugueses perfaziam 54% dos<br />

proprietários privados de bibliotecas<br />

que discriminaram sua ocupação ao<br />

encaminharem listagens de livros à Real<br />

Mesa Censória, criada em 1768. Depois,<br />

vinham aqueles que se ocupavam com<br />

questões de direito*.<br />

Mas cidades do Oeste da França, as<br />

bibliotecas eclesiásticas, entre o final do<br />

século XVII e os anos de 1780,<br />

passaram de entre 20 e 50 volumes cada<br />

uma para entre 100 e mais de 300 5. nas<br />

listas de livros dos padres portugueses,<br />

a divisão entre as línguas, em ordem<br />

decrescente, era: português, latim e<br />

espanhol, aparecendo mais raramente,<br />

nos casos de obras de literatura, o<br />

francês e o italiano 6, nas bibliotecas<br />

clericais da capital francesa, entre 1765<br />

e 1790, houve um recuo do latim, que<br />

passou de 47% para 27% 7.<br />

nas listagens enviadas pelos clérigos<br />

portugueses à Real Mesa Censória,<br />

predominavam, em ordem decrescente,<br />

os seguintes tipos de livros: primeiro,<br />

obras religiosas, místicas e hagiológicas<br />

e sermões; depois, títulos de teologia;<br />

em seguida, de história; e, por fim, de<br />

literatura 8, na Paris do século XVIII, a<br />

história rivalizava com a teologia. E<br />

tanto em Paris como nas províncias da<br />

França, as bibliotecas dos padres


R v o<br />

possuíam certa homogeneidade,<br />

resultante da uniformização provocada<br />

pelos regulamentos dos Seminários e<br />

pelas recomendações das autoridades<br />

eclesiásticas com o objetivo de tornar<br />

os clérigos mais instruídos e<br />

disciplinados. Assim, a livraria de um<br />

'bom cura' continha a Bíblia; os comen­<br />

tários das homílias feitos pelos padres,<br />

principalmente são Tomás e sào<br />

Bernardo; obras de teologia moral; o<br />

Catecismo do Concilio de Trento, de são<br />

Carlos Borromeu; catecismos franceses<br />

e livros de espiritualidade, tais como<br />

Imitação de Jesus Cristo, Guia dos peca­<br />

dores, de Louis de Qranade e Introdução<br />

à vida devota, de Francisco de Sales 9.<br />

A posse de livros nas Ninas da<br />

Colônia: o lugar do clero e a<br />

ortodoxia<br />

São poucos os dados sobre a situação<br />

dos clérigos de Minas Gerais, face a<br />

outros grupos sociais, quanto à posse<br />

de livros. Há mais informações sobre<br />

como essa se distribuía dentro do<br />

próprio corpo eclesiástico. Livros foram<br />

arrolados em 14 inventários, de um total<br />

de 66, no distrito dos Diamantes, do<br />

final do século XVIII e início do XIX - o<br />

que corresponde, portanto, a cerca de<br />

1/5 dos inventários. Seis padres tiveram<br />

seus bens inventariados e três deles<br />

possuíam bibliotecas, do que se conclui<br />

que metade deles tinha livrarias e que<br />

os mesmos somavam cerca de 1/5 dos<br />

proprietários de livros. Rivalizavam com<br />

os padres os funcionários graduados da<br />

Real Extração: três, de um total de sete,<br />

possuíam livros. Todos os inventariados<br />

que tinham bibliotecas eram brancos e<br />

doze deles, portugueses 10. Em Mariana,<br />

os índices de posse de livros entre os<br />

clérigos eram mais baixos que no<br />

Tejuco. Consultamos 128 inventários de<br />

padres, de um total de 174 existentes<br />

no arquivo da Casa Setecentista de<br />

Mariana, referentes ao período que se<br />

estende do século XVI11 a meados do<br />

XIX. Dos 128, 40 mencionam livros, isto<br />

é, 31,2% dos inventários investigados<br />

(ou quase 1/3). Restringindo-se o<br />

universo unicamente aos inventários do<br />

século XVIII consultados no arquivo da<br />

Casa Setecentista e também no arquivo<br />

eclesiástico da Arquidiocese de Mariana,<br />

a cifra permanece quase inalterável: de<br />

um total de 17, encontramos bibliotecas<br />

em seis, isto é, em mais de 1/3. Nos<br />

seqüestros dos bens dos eclesiásticos<br />

mineiros que participaram da<br />

Inconfidência, temos uma marca<br />

superior, mas eles talvez não sejam<br />

representativos do conjunto dos<br />

eclesiásticos: três, dentre os cinco<br />

seqüestros, mencionam bibliotecas. Os<br />

índices de posse de livros entre clérigos<br />

do Tejuco e de Mariana do século XV1U<br />

e início do XIX (1/2 e 1/3), portanto,<br />

colocam os clérigos das Gerais bem<br />

abaixo das cifras verificadas entre seus<br />

colegas de ofício parisienses (quase 2/3).<br />

Observamos diferenças, quanto ao<br />

número de volumes, entre as bibliotecas<br />

de clérigos de Minas Gerais e da França.<br />

As três bibliotecas clericais de<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n ? 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.21


A C E<br />

Diamantina compunham-se por 15, 35<br />

e 90 volumes", números estes menores<br />

do que os mais baixos encontrados na<br />

França na mesma época (100 volumes).<br />

Em Mariana, oscilava-se entre 42 e<br />

1.056 volumes - caso extremo da livraria<br />

do bispo dom frei Domingos da<br />

Encarnação Pontevel, muito distinto do<br />

'mais de 300' válido para as cidades do<br />

Oeste francês. Já entre os clérigos<br />

inconfidentes, a variaçào ia de 105 a<br />

612 volumes, algo mais próximo do<br />

encontrado na França.<br />

Em Minas Gerais, o acervo da biblioteca<br />

do Seminário de Mariana, fundado por<br />

dom frei Manuel da Cruz, primeiro bispo<br />

diocesano, em 1748, em explícita<br />

obediência às determinações<br />

tridentinas e com o beneplácito régio,<br />

guarda semelhanças com os livros<br />

prescritos pelas autoridades<br />

eclesiásticas na França. Indica,<br />

sobretudo, que a ortodoxia católica<br />

envolvia 12 livros de rituais, breviários,<br />

s Constituições primeiras do<br />

arcebispado da Bahia, de dom Sebastião<br />

Monteiro da Vide e autores como: o<br />

dicionarista e padre Rafael de Bluteau;<br />

Paul-Gabriel Antoine, escolhido como<br />

propagandista oficial pelo papa<br />

Benedito XIV 13; Daniello Concina,<br />

teólogo recomendado pelas autoridades<br />

eclesiásticas de então 1 4; Jacobi<br />

Besombes e Laurenti Berti, também<br />

teólogos; santo Afonso de Ligório,<br />

teólogo do século XVIII, caracterizado<br />

por sua benevolência em relação aos<br />

penitentes 15; Natalis Alexandre, teólogo,<br />

pag.22. jan/dez 1995<br />

0<br />

comentador das escrituras e historiador<br />

da Igreja; Luci Ferraris, teólogo; Claudi<br />

Fleury, historiador da Igreja, clássico na<br />

segunda metade do século XV111 16;<br />

Anacleto, dicionarista e canonista (?);<br />

Giuseppe Agostino Orsy, historiador<br />

eclesiástico; são Pedro Crisogno; o<br />

jesuíta Vincent Houdry 1 7; Honorati<br />

Tournely, teólogo; Tetri Ludovici Danis,<br />

teólogo; Jacobi Pignatelli, canonista; e<br />

autores clássicos como Quintiliano e<br />

Sèneca. Encontramos títulos sem<br />

menção a seus autores: Teologia moral<br />

e Conferências morais. No caso do<br />

primeiro, supomos tratar-se de Petrus<br />

Collet, cujo livro Teologia moral,<br />

utilizado como manual nos Seminários,<br />

antes e depois da Revolução Francesa 18,<br />

era um dos clássicos estudados no<br />

bispado de Mariana 19. Outros autores<br />

prováveis eram: o papa Benedito XIV; o<br />

teólogo capuchinho Jayme Corella; os<br />

teólogos Thoma Francisco Rotario, Petro<br />

Polo, Paolo Signeri, Josephi Ignati Claus<br />

e Josephi Mansi; os comentadores dos<br />

evangelhos Francisco de Jesus<br />

Sarmento e Cornélio Corneli; o ilustrado<br />

Bento Jerônimo Feijó; os dicionaristas<br />

R. P. Richard e Joannis Pontas; Pyrrchi<br />

Corradi; os padres Manuel Bernardes e<br />

Manuel Madeira de Sousa. Na biblioteca<br />

do Seminário, ainda, se encontravam os<br />

títulos Alcobaça ilustrada, de história<br />

eclesiástica; Introdução ao sacerdócio<br />

ou instruções eclesiásticas; e o Cursus<br />

theologicus et moralis, do Collegy<br />

Salmanticensis (Universidade de<br />

Salamanca), de onde o Supremo


Tribunal da Inquisição dos Reinos de<br />

Espanha mandara riscar, no tomo V,<br />

tratado XI, número 185, uma passagem<br />

nada ortodoxa da qual se poderia<br />

deduzir que deus permitiria as relações<br />

sexuais, até mesmo violentas, com as<br />

mulheres, sem restrição nem mesmo às<br />

V o<br />

que fossem virgens e pudicas, às quais<br />

o acesso seria facultado algumas vezes.<br />

Livrarias clericais nas Gerais do<br />

século XVIII: similitudes e<br />

diversidades<br />

As bibliotecas a serem analisadas<br />

Raynal, GulllaumeThomas François. Historie phllosophlque et polltique des etablissemens<br />

et du commerce des européens dans les deux Indes. Paris: Amable caster et cie, Ubraries<br />

Édlteurs, 1800. Tomo 10.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n' 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995-pag.23


possuíam tamanho bastante distinto<br />

(tabela I). Do lado dos clérigos<br />

inconfidentes, a maior biblioteca era a<br />

do cõnego Luiz Vieira da Silva,<br />

compreendendo 279 títulos e 612<br />

volumes. Em seguida, vinham as do<br />

padre Manuel Rodrigues da Costa, com<br />

73 obras e 212 volumes; e do padre<br />

Carlos Correia de Toledo, com 58 obras<br />

e 105 volumes 20. Dentre as bibliotecas<br />

dos outros eclesiásticos, a de dom frei<br />

2 Domingos da Encarnação Fontevel 1,<br />

bispo de Mariana à época da<br />

Inconfidência, era a maior,<br />

compreendendo 412 títulos e 1.056<br />

volumes, estando bastante à frente da<br />

livraria do cõnego Vieira da Silva 22. Em<br />

ordem decrescente de número de obras,<br />

vinham as seguintes bibliotecas: a do<br />

cõnego João Rodrigues Cordeiro, com<br />

67 obras e 76 volumes 23; a do cõnego<br />

João Botelho Borges, com 64 títulos e<br />

126 volumes 2*; a do padre Francisco<br />

Alves, com 37 obras e 48 volumes 25; a<br />

do bispo dom frei Manuel da Cruz, com<br />

36 títulos e 79 volumes 26,- a do padre<br />

João Ferreira de Souza, com 27 obras e<br />

62 volumes 27 e a do padre José Teixeira<br />

de Souza 2 8, com 24 obras e 42<br />

volumes 29.<br />

Alguns títulos repetem-se, com maior ou<br />

menor intensidade, nessas dez livrarias.<br />

Os títulos e tipos de livros mais<br />

encontrados, em ordem decrescente,<br />

são: em sete livrarias, a Bíblia e sua<br />

Concordância, em edições e línguas<br />

diversas; e diferentes breviários; em seis<br />

bibliotecas, obras denominadas<br />

pag.24. jan/dez 1995<br />

Concilio Tridentino, que podem ser<br />

tanto as atas do Concilio de mesmo<br />

nome, como livros dos diferentes<br />

autores que se dedicaram ao estudo do<br />

assunto; em quatro delas. Dicionário<br />

geográfico, provavelmente de autores<br />

distintos, as Ordenações do Reino de<br />

Portugal, Examen ecclesiasticum e as<br />

Constituições do arcebispado da Bahia,<br />

de dom Sebastião Monteiro da Vide; em<br />

três livrarias, Brasília pontifícia e<br />

Caderno de santos novos, além de<br />

missais e de livros de cerimoniais. Os<br />

autores mais freqüentes, também em<br />

ordem decrescente, são: em sete<br />

livrarias, Francisco Larraga, com seu<br />

Prontuário de teologia moraP 0; em cinco<br />

delas, o padre Silveira, com seus<br />

comentários sobre os evangelhos e<br />

sermões; em quatro bibliotecas, o padre<br />

Antônio Vieira, com suas Cartas, História<br />

do futuro e Sermões, Bossuet e os<br />

teólogos Laurenti Berti e Jacob<br />

Besombes; em três livrarias, são Tomás<br />

de Aquino, o padre Manuel Bernardes,<br />

com Piova floresta, o comentador das<br />

escrituras e teólogo Francisco de Jesus<br />

Sarmento, o canonista Ludovici<br />

nogueira, o teólogo e canonista<br />

Bartholomaei Qavant, o poeta italiano<br />

Aurélio Bertola Qiorgi, com suas noites<br />

clementinas (homenagem ao papa<br />

Clemente XIV, que suprimiu a Sociedade<br />

de Jesus 31), o teólogo Danielo Concina,<br />

Carlos Joaquim Colbert, com seu<br />

Catecismo de fiontpelier, Petrus Collet,<br />

Cambacere, com seus Sermões, e<br />

Francisco José Freire, tratadista poético


R V O<br />

português. A freqüência de tais títulos,<br />

tipos de livros e autores mostra a<br />

ressonância da ortodoxia católica, pois<br />

eles, em grande parte, coincidem com<br />

os recomendados pelas autoridades<br />

eclesiásticas e com aqueles encontrados<br />

na biblioteca do Seminário de Mariana.<br />

As similitudes entre as bibliotecas<br />

verificam-se também na distribuição dos<br />

livros pelos assuntos e línguas,<br />

lnspirando-nos no trabalho de Evelyne<br />

Picard 32, classificamos os livros em dois<br />

grandes conjuntos: ciências sacras e*<br />

ciências profanas. O primeiro conjunto<br />

foi subdividido em: escritura santa,<br />

compreendendo a Bíblia e os<br />

comentários que sobre ela se fizeram;<br />

padres da Igreja, referente aos escritos<br />

dos primeiros padres; teologia,<br />

incluindo aí os livros de teologia moral;<br />

história sagrada; cânones; liturgia,<br />

subdivisão em que se somam os livros<br />

especificamente litúrgicos, os<br />

catecismos, os textos de oratória sacra,<br />

manuais de confissão, breviários, obras<br />

devocionais e sermões; e, finalmente,<br />

dicionários. O grupo das ciências<br />

profanas foi assim dividido: geografia;<br />

retórica; história; dicionário; literatura<br />

e gramática; filosofia; política; direito;<br />

e ciências físicas e naturais. Algumas<br />

obras receberam dupla classificação,<br />

pois cabiam em mais de uma seção<br />

simultaneamente. Os resultados<br />

encontram-se reunidos nas tabelas 1, II<br />

e III, e nos gráficos I, II e III.<br />

Mas bibliotecas clericais, com exceção<br />

da pertencente ao cônego inconfidente<br />

Vieira da Silva, as ciências sacras<br />

predominavam sobre as ciências<br />

profanas, em diferentes proporções<br />

(tabela I e gráfico I): o padre Francisco<br />

Alves não possuía nenhuma obra de<br />

ciências profanas, tendo-nos sido<br />

possível classificar 33 dos 37 títulos que<br />

lhe pertenciam entre as ciências sacras,<br />

que somavam, portanto, 89,2% das<br />

obras (não conseguimos classificar as<br />

quatro restantes). Entre os outros<br />

clérigos não-inconfidentes, a<br />

participação das ciências sacras oscilava<br />

entre 85,2% (23 obras e 49 volumes),<br />

situação da livraria do padre João<br />

Ferreira de Souza, e 32,8% (22 obras e<br />

31 volumes), caso da biblioteca do<br />

cônego Cordeiro - não nos foi possível<br />

classificar 42 livros desta biblioteca, de<br />

um total de 67, devido à ausência dos<br />

nomes dos seus autores e de seus<br />

títulos no inventário, fato que explica a<br />

baixa cifra das ciências sacras. As<br />

ciências profanas, inversamente, nâo<br />

ultrapassavam a marca de 19,2% (79<br />

obras e 208 volumes) entre tais<br />

sacerdotes, cifra essa atingida na<br />

biblioteca do bispo Pontevel. O mesmo<br />

não sucedia entre os clérigos<br />

inconfidentes: o côn. Vieira da Silva<br />

tinha mais obras de ciências profanas<br />

que de ciências sacras (52,7% versus<br />

35,5% ou, em termos absolutos, 147<br />

obras e 329 volumes versus 99 obras e<br />

236 volumes), e os demais, embora<br />

privilegiassem as últimas, não o faziam<br />

na mesma proporção que os padres não-<br />

inconfidentes: nas bibliotecas dos<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 19-52. Jan/del 1995 pag 25


A C E<br />

padres Carlos Toledo e Manuel Costa,<br />

as ciências profanas atingiam,<br />

respectivamente, 29,3% (17 obras e 19<br />

volumes) e 27,4% (20 obras e 54<br />

volumes) - cifras mais'elevadas que os<br />

19,2% da biblioteca do bispo Fontevel -<br />

e as ciências sacras 63,8% (37 obras e<br />

81 volumes) e 41% (30 obras e 128<br />

volumes), respectivamente. nos<br />

seqüestros dos bens do padre Costa, 15<br />

livros não tiveram seus títulos e seus<br />

autores mencionados. A maior<br />

participação das ciências profanas nas<br />

livrarias dos padres inconfidentes é,<br />

certamente, indicio da maior amplitude<br />

alcançada pelos interesses desses<br />

clérigos, mais atentos aos problemas<br />

profanos.<br />

Mas bibliotecas, dentre as ciências<br />

sacras (tabela II e gráfico II), o primeiro<br />

lugar cabia à seção de liturgia, variando<br />

entre 12,3% (9 obras e 26 volumes), na<br />

livraria do padre Manuel Costa, e 67,6%<br />

(25 obras e 32 volumes), na do padre<br />

Francisco Alves, composta basicamente<br />

por sermões (21 obras). As exceções<br />

eram as livrarias do bispo Manuel da<br />

Cruz, em que a liturgia compartilhava<br />

do primeiro lugar com a história sagrada<br />

(13,9% e 11 obras), a do bispo Pontevel,<br />

em que esta posição era ocupada pela<br />

teologia (14%, 58 obras e 191 volumes)<br />

e a do cônego Vieira da Silva, em que a<br />

primazia pertencia aos cânones (7,9%,<br />

22 obras e 51 volumes). Mestas duas<br />

últimas bibliotecas, a liturgia estava em<br />

segundo lugar, respectivamente, com<br />

11,4% (47 obras e 107 volumes) e 6,1 %<br />

pag 26. jan/dez 1995<br />

(17 obras e 29 volumes). Isso devia ser<br />

um reflexo, no caso do bispo Pontevel,<br />

de sua atuação como professor de<br />

teologia, em Portugal 33, e, no caso do<br />

cônego, de seu envolvimento em<br />

atividades administrativas na Igreja - ele,<br />

desde 1771, foi comissário da Ordem<br />

Terceira'de São Francisco, e, a partir de<br />

1783, na condição de cônego da Sé de<br />

Mariana, tornou-se membro do cabido<br />

diocesano 34. Para a igualdade numérica<br />

das seções de liturgia e história sagrada,<br />

na livraria do bispo Manuel da Cruz,<br />

pesaram dois livros sobre a história da<br />

ordem cisterciense, à qual o prelado<br />

estava estreitamente ligado, tendo<br />

chegado à condição de mestre dos<br />

noviços no mosteiro de Alcobaça, em<br />

Portugal 33.<br />

Mas demais bibliotecas, a segunda<br />

posição, dentre as ciências sacras, era<br />

ocupada por diferentes seções. A<br />

teologia encontrava-se em segundo<br />

lugar nas livrarias do padre Manuel<br />

Costa (10,9%, 8 obras e 36 volumes),<br />

do cônego Cordeiro (7,5%, 5 obras e 5<br />

volumes), do padre Toledo (17,2%, 10<br />

obras e 22 volumes) e do padre Alves<br />

(10,8%, 4 obras e 4 volumes). Mas<br />

bibliotecas dos padres João Souza e<br />

José Souza, teologia e cânones dividiam<br />

a segunda posição, com,<br />

respectivamente, 7,4% e 8,3% (duas<br />

obras). Mas livrarias do bispo Manuel da<br />

Cruz e do cônego Borges, o segundo<br />

lugar era ocupado pela seção de<br />

cânones, respectivamente com 1 1,1% (4<br />

obras e 4 volumes) e 7,8% (5 obras e 6


R V O<br />

volumes). O destaque relativo dos<br />

cânones, nessas bibliotecas,<br />

relacionava-se aos cargos exercidos por<br />

seus proprietários: de bispo, por dom<br />

frei Manuel, e de cõnego, provisor do<br />

bispado e vigário geral da Vara, por<br />

Borges 36. Mas livrarias do bispo Pontevel<br />

e do cõnego Vieira da Silva, a história<br />

sagrada não era de todo esquecida,<br />

constituindo, respectivamente, 3,8%<br />

(16 obras e 73 volumes) e 3,9 % (11<br />

obras e 28 volumes) do total dos<br />

acervos.<br />

Mas bibliotecas dos clérigos<br />

inconfidentes havia um traço singular:<br />

a seçào de teologia vinha logo atrás da<br />

de liturgia, estivesse esta na primeira ou<br />

na segunda colocação (caso do cõnego<br />

Vieira). A diferença, em termos<br />

percentuais, não ia além de 1,4%. Isso<br />

não sucedia com os clérigos náo-<br />

inconfidentes, exceto, como já<br />

dissemos, do bispo e professor de<br />

teologia Pontevel. Entre os não-<br />

inconfidentes, a diferença oscilava entre<br />

4,6%, caso do cõnego Borges e 56,8%,<br />

caso do padre Francisco Alves. Essa<br />

diferença talvez seja uma expressão do<br />

maior refinamento intelectual dos<br />

clérigos inconfidentes, na medida em<br />

que demonstra um maior desapego em<br />

relação às questões mais imediatas da<br />

vida sacerdotal ou concernentes à<br />

administração eclesiástica, respondidas,<br />

respectivamente, pelas obras de liturgia<br />

e cânones, e um interesse por<br />

problemas mais complexos no que<br />

concerne à salvação do rebanho cristão.<br />

Mas ciências profanas (tabela III e<br />

gráfico III), a primazia era concedida à<br />

literatura, que estava à frente das<br />

demais seções nas bibliotecas ou<br />

compartilhando o primeiro lugar com<br />

algumas delas. O cõnego Borges e o<br />

padre João Souza eram as únicas<br />

exceções. Entre esses o destaque cabia,<br />

respectivamente, às seções de direito,<br />

com 7,8% (5 obras e 8 volumes), e<br />

filosofia e história, com 3,7% (uma obra)<br />

cada uma - a excepcionalidade da<br />

situação do direito na biblioteca do<br />

cõnego Borges vinculava-se,<br />

provavelmente, ao exercício de cargos<br />

judiciais pelo mesmo. Assim, a literatura<br />

oscilava entre 2,8% (uma obra e dois<br />

volumes), na biblioteca do bispo dom<br />

frei Manuel - na qual, aliás, dividia a<br />

posição com a história e o direito -, e<br />

17,6% (49 obras e 91 volumes), na<br />

livraria do cõnego Vieira da Silva, sendo,<br />

neste último caso, a maior seção dentre<br />

todas. Os inconfidentes, ademais,<br />

demonstravam um maior apreço pela<br />

literatura do que os outros clérigos: a<br />

menor cifra da literatura entre eles,<br />

8,2% (6 obras e 1 1 volumes), na livraria<br />

do padre Costa, corresponde a mais que<br />

o dobro, em números relativos, que o<br />

maior indice atingido entre os não-<br />

inconfidentes, isto é, 4,6% (19 obras e<br />

27 volumes), na biblioteca do bispo<br />

Pontevel. Seriam esses números mais<br />

uma indicação de um certo<br />

despreendimento em relação às<br />

atividades estritamente sacerdotais? Mo<br />

caso do côn. Vieira da Silva, como<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 19-52, jan/dez 1995 - pag.27


A C E<br />

demonstraremos adiante, isso é<br />

inquestionável, parecendo suceder o<br />

mesmo ao padre Costa,<br />

Entre as ciências profanas, a segunda<br />

posição cabia a seções diferentes em<br />

cada uma das bibliotecas. Mas<br />

pertencentes ao bispo Pontevel e ao<br />

padre Toledo, este lugar pertencia aos<br />

dicionários, respectivamente, com 3,9%<br />

(1 6 obras e 44 volumes) e 6,9% (4 obras<br />

e 4 volumes), ria livraria do côn. Vieira<br />

da Silva, cabia à filosofia, com 11,1%<br />

(31 obras e 92 volumes), refletindo sua<br />

dedicação ao ensino de filosofia, no<br />

Seminário de Mariana, atividade em que<br />

esteve engajado de 1759 até sua prisão.<br />

Mas bibliotecas do cônego Borges e do<br />

padre Costa, as ciências ocupavam a<br />

segunda posição, respectivamente com<br />

1,6% (uma obra) e 6,8% (5 obras e 13<br />

volumes). A presença das ciências na<br />

biblioteca do cônego Borges, frise-se, é<br />

inexpressiva em números absolutos e<br />

relativos, o mesmo nào ocorrendo com<br />

o padre inconfidente Costa: sua livraria,<br />

embora 5,5 vezes menor que a livraria<br />

do bispo Pontevel, tinha quase o mesmo<br />

número de obras de ciências, em termos<br />

absolutos (5 versus 7), e comparava-se<br />

a do cônego Vieira da Silva, a qual,<br />

sendo 3,8 vezes maior, possuía menos<br />

que o triplo do número possuído pelo<br />

padre (5 versus 14). A trajetória<br />

posterior do padre Costa, ademais,<br />

como mostraremos a seguir, explica esta<br />

preeminência das ciências.<br />

O terceiro lugar pertencia à história na<br />

biblioteca do côn. Vieira, com 9,3% (26<br />

pag. 28. Jan/dez 1995<br />

obras e 85 volumes); ao direito, na<br />

livraria de Pontevel, com 2,2% (9 obras<br />

e 38 volumes); e à filosofia, na<br />

biblioteca do padre Toledo, com 3,4%<br />

(2 obras e 2 volumes). lia biblioteca de<br />

Pontevel, do terceiro lugar<br />

aproximavam-se a história (1,7%, 7<br />

obras e 26 volumes), a geografia (1,7%,<br />

7 obras e 18 volumes) e as ciências<br />

(1,7%, 7 obras e 7 volumes).<br />

Comparando-se as bibliotecas dos<br />

clérigos mineiros entre si, enfim,<br />

observamos uma nítida divisão<br />

separando os inconfidentes dos demais.<br />

Os primeiros possuíam interesses que<br />

ultrapassavam os limites imediatos do<br />

trabalho pastoral, voltando-se mais<br />

fortemente para questões teológicas e,<br />

até mesmo, profanas. O côn. Vieira da<br />

Silva, radical neste aspecto, era o mais<br />

singular, revelando maior interesse, em<br />

ordem decrescente, pela literatura,<br />

filosofia e história profana. Os clérigos<br />

não-conjurados, inversamente, à<br />

exceção do bispo Pontevel, eram<br />

prisioneiros de suas atribuições mais<br />

imediatas, fosse no trabalho pastoral,<br />

litúrgico, fosse nas atividades<br />

administrativas, que exigiam<br />

conhecimentos canônicos-jurídicos.<br />

Assim, dentre os clérigos não-<br />

inconfidentes, sobressaía a liturgia e, no<br />

caso específico dos cônegos e dos<br />

bispos, conferia-se um lugar especial<br />

aos cânones e ao direito. As bibliotecas<br />

do côn. Vieira da Silva e do bispo<br />

Pontevel refletiam ainda o exercício de<br />

suas atividades enquanto docentes.


espectivamente, de filosofia, no<br />

Seminário de Mariana, e de teologia, em<br />

Portugal. A livraria do bispo Manuel da<br />

Cruz, por seu turno, mostrava suas<br />

ligações com a ordem de são Bernardo<br />

e sua história. Por fim, devemos<br />

ressaltar a preeminência da literatura,<br />

mais nítida entre os inconfidentes, e<br />

V o<br />

inexistente nas bibliotecas dos padres<br />

Alves e João Souza e do cõnego Borges,<br />

e, ainda, o destaque das ciências, na<br />

biblioteca do padre Costa.<br />

As livrarias dos clérigos das Minas<br />

distanciavam-se e aproximavam-se, em<br />

alguma medida, de suas congêneres<br />

européias. Havia, primeiramente, a<br />

HIST01RE<br />

f PHILOSOPHÍQUE<br />

* ET POLITJQUE<br />

PS» ÍT4JLMMHM" ÍW «•* «W*Í*C» M»W»WtaP» <<br />

tim LI» »»*«,<br />

PAR G. T. RAYNAJL<br />

HOLVit.tR ÉBITIO».,<br />

m twMMii >Vn*> iu •»«*••»» mmttnm<br />

f TOM l.IXlífl^<br />

i \ PARIÍ<br />

MLABI£ COSTIW-WXÍS LI<br />

ISM.<br />

r». PMÜStf»<br />

Raynal, Guillaume-Thomas François. Historie philosophique et politique des êtablissemens<br />

et du com mercê des européens dans les deux Indes. Paris: Amable caster et cie, Ubraríes<br />

Éditeurs, 1 800. Tomo 10.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n» 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag 29


A C E<br />

Portugal sob a alegação de<br />

licenciosidade: estava contaminado<br />

pelas idéias de Molinos, heresiarca para<br />

quem o demônio podia atuar<br />

violentamente sobre os corpos, levando<br />

almas perfeitas a cometer pecados,<br />

inclusive carnais, sem que esses<br />

pudessem ser considerados como tais,<br />

pois seriam contra a vontade das<br />

pessoas que os praticavam 58.<br />

Na posse desses livros, contudo, longe<br />

de vermos a erupção de uma suposta<br />

voluptuosidade oculta do prelado,<br />

temos apenas a manifestação de seu<br />

anacronismo, sendo sua ação pastoral<br />

a mais perfeita prova deste<br />

descompasso com o tempo e, ainda, de<br />

sua fidelidade aos ensinamentos da<br />

Igreja. Em seu governo diocesano, o<br />

bispo Cruz foi um intrépido tridentino,<br />

tomando iniciativas disciplinadoras e<br />

aculturadoras: visitas pastorais,<br />

medidas contra as ilicitudes dos<br />

eclesiásticos, habilitação de sacerdotes<br />

segundo as normas de "pureza de<br />

costumes e de sangue", fundação do<br />

Seminário de Mariana, instrução dos<br />

fiéis e dos clérigos, e introdução de<br />

novos cultos (ao Coração de Jesus, por<br />

exemplo) e da oração mental 59, nada de<br />

'licencioso' maculou sua gestão, repleta<br />

de muitos dissabores: conflitos de<br />

jurisdição com a justiça laica e com o<br />

bispo do Rio de Janeiro, atritos com os<br />

cónegos, verdadeiras pestes que o<br />

infernizaram assim como a seus<br />

sucessores imediatos, a expulsão dos<br />

jesuítas por dom José 1, a punição do<br />

pag.52, jan/dez 1995<br />

amigo inaciano Qabriel Malagrida... 40 E,<br />

por fim, a vivência cotidiana num<br />

território que sobrepujava, segundo<br />

palavras do próprio antístite, "às<br />

maiores cidades do orbe na torpeza<br />

diversificada dos vícios", somando, à<br />

ganância do ouro, a ambição, a vaidade,<br />

a soberba e os "falazes prazeres<br />

carnais"* 1. Era dom frei Manuel a<br />

amargar a nostalgia de um mundo que<br />

nunca existiu (afinal, as Minas nasceram<br />

com o ouro); a utilizar topos literários<br />

que vinham da Roma da Antigüidade<br />

Clássica 42 para expressar o que sentia<br />

em Mariana, sua Altera Roma; e a<br />

denunciar sua mácula e a de sua livraria:<br />

nostalgia, nada além da nostalgia em<br />

relação a um mundo que nunca existiu;<br />

nada além de resquícios de um mundo<br />

que ruía, mas que, para o<br />

Reverendíssimo bispo, eram a razão de<br />

sua vida, nada tendo de perdição. Seu<br />

mal talvez fosse - como afirma Luiz Mott,<br />

ao referir-se ao suplício que impôs a<br />

negra Rosa Egípciaca - agir às vezes<br />

"mais com humor viperino do que<br />

pombalino" 45. Ele era apenas prisioneiro<br />

do pré-pombalismo!<br />

Dom Pontevel, nomeado bispo de<br />

Mariana em 1777 4 4, ao contrário de dom<br />

frei Manuel, era atingido pelo espírito<br />

do século. Em sua biblioteca<br />

encontravam-se dois autores ilustrados:<br />

Qenuensis, iluminista oficial 45, proibido<br />

por Roma 4 6, e Robertson, historiador<br />

escocês que denunciava as mazelas da<br />

colonização 47. A composição da seção<br />

de história parece indicar que o bispo


R V O<br />

se interessava pelo tema da<br />

colonização: dos seus sete livros de<br />

história, três o abordavam de algum<br />

modo. Supomos, todavia, que tais<br />

livros, longe de indicar a adesão a<br />

qualquer questionamento da dominação<br />

colonial, serviram, no máximo, como<br />

um instrumento para a compreensão<br />

dos desvios e das subversões da norma,<br />

exigência do próprio papel de guardião<br />

da ordem exercido pelo bispo 4 8. Sua<br />

biografia corrobora essa hipótese: o<br />

governador da capitania, visconde de<br />

Barbacena, avisara-o sobre a Conjura,<br />

antes mesmo de iniciada a prisão dos<br />

sediciosos 49, e sua única palavra sobre<br />

o levante foi um sermão em louvor à<br />

repressão. Por isso, foi considerado um<br />

"exagerado absolutista" 50.<br />

Cm sua biblioteca, sob o império da<br />

ortodoxia, havia os malvistos<br />

atricionistas 51, o Cursus de theologia et<br />

moralis, da Universidade de Salamanca,<br />

e Anecdotes, em dois volumes, sem<br />

referência a autor, possivelmente<br />

Anecdotes sur mme. Ia comtesse Du<br />

Barry,\\\ro proibido, misto de libelo e<br />

crônica escandalosa sobre a amante do<br />

rei Luís XV, a condessa Du Barry, que<br />

enlameava o rei e a monarquia".<br />

A historiografia ressalta o espírito pio,<br />

caridoso e a 'santidade' de Pontevel".<br />

Suspeitamos, porém, que ele ou um de<br />

seus apaniguados desviou-se da moral<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n" I -2. p. 19-52. Jan/dez 1995 • pag 33


A C E<br />

presença de alguns títulos comuns,<br />

como foi apontado anteriormente. Mo<br />

resto, as semelhanças evidenciam-se de<br />

modo mais acentuado em relação aos<br />

padres não-inconfidentes. Como os<br />

portugueses, os clérigos das Gerais<br />

possuíam fundamentalmente obras<br />

litúrgicas, seguidas, na maioria dos<br />

casos, pelas de teologia. Excetuavam-<br />

se o bispo Pontevel, para o qual a ordem<br />

era a inversa; o cônego Vieira da Silva,<br />

para o qual a literatura estava em<br />

primeiro lugar, seguida depois pela<br />

filosofia e história (que ficaria em<br />

segundo se juntássemos os livros de<br />

história profana aos de história sagrada);<br />

o bispo Manuel da Cruz, que se dividia<br />

entre a liturgia e a história sagrada; e o<br />

cônego Borges, para quem a segunda<br />

posição era reservada aos cânones. Ao<br />

contrário do que sucedia entre os<br />

portugueses, entretanto, a literatura,<br />

para a maioria dos sacerdotes, vinha<br />

antes da história, mesmo somando-se a<br />

história sagrada à história profana. As<br />

exceções, realizando-se essa adição,<br />

além do bispo Manuel da Cruz, eram o<br />

bispo Pontevel e o padre João Souza,<br />

que priorizavam mais a história (o<br />

último sequer possuía obras de<br />

literatura), e o cônego Borges, que se<br />

voltava, entre as ciências profanas,<br />

apenas para o direito e, em menor grau,<br />

para as ciências. Os únicos sacerdotes<br />

a aproximarem-se dos seus colegas de<br />

ofício parisienses eram o bispo dom frei<br />

Manuel e o côn. Vieira da Silva, os quais<br />

até iam além daqueles: em suas<br />

pag. 30 jan/dez 1995<br />

bibliotecas, a história não apenas rivali­<br />

zava com a teologia, mas a superava.<br />

A distribuição dos livros pelas diferentes<br />

línguas (tabela IV) é um aspecto em que<br />

a singularidade dos inconfidentes se<br />

dissipa, tanto diante dos clérigos das<br />

Gerais como dos portugueses e, em<br />

alguma medida, dos franceses. A<br />

exceção é de novo o cônego<br />

inconfidente Vieira da Silva. Se entre os<br />

franceses, os livros escritos em latim,<br />

em 1790, chegavam a 27% das<br />

bibliotecas, nas Gerais, as livrarias, em<br />

sua maioria arroladas próximo aos anos<br />

1790, a média é de 26,7%. À<br />

semelhança do ocorrido com os<br />

portugueses, o que se via, na imensa<br />

maioria das bibliotecas, era o português<br />

ultrapassar o latim, variando entre<br />

86,5%, na livraria do padre Alves, e<br />

28,3%, na pertencente ao cônego<br />

Cordeiro, em cujo inventário omite-se<br />

grande parte dos títulos e dos autores<br />

dos livros. Todavia, nas bibliotecas do<br />

bispo Pontevel e dos cônegos Borges e<br />

Vieira da Silva, o latim era o primeiro<br />

colocado, indo de 46,6%, na livraria do<br />

côn. Vieira da Silva, até 73,5%, na<br />

biblioteca do bispo Pontevel. Em duas<br />

dessas três livrarias o segundo lugar era<br />

ocupado pelo português, que<br />

correspondia a 14%, na biblioteca do<br />

bispo, e a 39%, na possuída pelo côn.<br />

Cordeiro. Já na livraria do côn. Vieira<br />

da Silva, o francês se encontrava na<br />

segunda colocação, com 28,3%. nesta<br />

mesma biblioteca, o inglês talvez<br />

ameaçasse o português: se o último


R V O<br />

correspondia a 11,8% dos títulos, o<br />

inglês talvez compreendesse 8,6% (a<br />

incerteza deve-se ao fato dos livros<br />

ingleses não terem seus títulos ou<br />

autores arrolados nos seqüestros, não<br />

nos sendo possível afirmar que<br />

constituíam obras distintas). Portanto,<br />

se as bibliotecas eclesiásticas das Minas<br />

possuem algumas diferenças em relação<br />

às suas similares portuguesas e<br />

francesas, quanto à sua composição por<br />

assunto, o mesmo não se nota, de modo<br />

geral, com relação às línguas, em que<br />

as identidades, principalmente com as<br />

livrarias portuguesas, são maiores. A<br />

livraria do cõn. Vieira da Silva, no<br />

entanto, é a nota mais destoante,<br />

seguida, neste aspecto, pelas<br />

bibliotecas do bispo Pontevel e do<br />

cõnego Borges.<br />

Bibliotecas clericais nas Minas do<br />

século XVIII, heterodoxias e<br />

'inventividade'<br />

Malgrado as regularidades observadas<br />

nas bibliotecas clericais e a ortodoxia<br />

de grande parte dos seus títulos e<br />

autores, encontramos singularidades,<br />

em especial entre os inconfidentes, que<br />

revelam um despreendimento em<br />

relação às preocupações mais imediatas<br />

da vida sacerdotal. Em alguns casos,<br />

elas remetem a heterodoxias, que se<br />

evidenciam quando confrontamos a<br />

coloração política e moral de alguns<br />

títulos e autores de cada livraria aos<br />

comportamentos morais ou políticos<br />

dos clérigos leitores. Quanto a esses<br />

aspectos, frise-se, dispomos de<br />

informações muito limitadas, mais<br />

ainda em relação aos clérigos não-<br />

inconfidentes, salvo para os bispos<br />

Manuel da Cruz e Pontevel, e o cõnego<br />

Borges. Desse modo, primeiro<br />

focalizaremos tais clérigos e, depois, os<br />

conjurados mineiros.<br />

A biblioteca do bispo dom frei Manuel<br />

da Cruz era o retrato de um mundo que<br />

se encontrava em seus estertores. Se,<br />

por um lado, estava afinada com a<br />

ortodoxia católica, por outro, parecia<br />

um tanto anacrônica. Não havia nela o<br />

menor vestígio da Ilustração, muito pelo<br />

contrário, as obras de caráter devocional<br />

e de cunho jesuítico, então em baixa<br />

sob o reformismo de Pombal e de dona<br />

Maria I, pululavam: lá estavam, por<br />

exemplo, santa Tereza e o padre<br />

Antônio Vieira, de quem o bispo, além<br />

dos Sermões e das Cartas, possuía a<br />

sebastianista história do Futuro.<br />

A censura portuguesa na segunda<br />

metade do século XVIII, com efeito, se<br />

voltava suas baterias contra os<br />

"pervertidos filósofos", era implacável<br />

com os jesuítas, responsabilizando-os<br />

pelo "fanatismo", a "ignorância" e,<br />

ainda, a "licenciosidade" que se viam<br />

grassar em Portugal 37. O bispo possuía<br />

o já mencionado Cursus theologicus et<br />

moralis, da Universidade de Salamanca<br />

- de onde a Inquisição de Espanha<br />

riscou o trecho que permitiria tomar<br />

como lícitas, aos olhos de deus, as<br />

relações sexuais com mulheres, até<br />

mesmo as violentas - e, ainda, o livro<br />

Máximas espirituais, censurado em<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v 8, n' 1-2. p 19-52, jan/dez 1995 - pag 31


A C E<br />

ortodoxa, sendo pai de um dentre dois<br />

bebês que foram expostos - isto é,<br />

enjeitados - à porta de seu palácio, em<br />

abril de 1 780, um ano após sua sagração<br />

em Lisboa. Tal hipótese funda-se nos<br />

cuidados que o enjeitado mereceu do<br />

bispo e em alguns silêncios e regalias<br />

de que o mesmo foi objeto: primeiro,<br />

teve como padrinhos o bispo e Mossa<br />

Senhora do Rosário, recebendo nome<br />

similar ao do antistite. Domingos José<br />

da Encarnaçào Pontevel; em segundo<br />

lugar, foi, " a mando do dito senhor"<br />

bispo,"criado em casa de João José<br />

Correia" 54; terceiro, seu ingresso e sua<br />

ascensão no sacerdócio, anos mais<br />

tarde, foram marcados por silêncios.<br />

Como exposto. Domingos era, aos olhos<br />

da lei, ilegítimo; todavia, saiu-lhe a<br />

acusação de 'ilegitimidade de<br />

nascimento', em função da qual teve<br />

que obter dispensa do Múncio<br />

Apostólico em Lisboa. Minguém em seu<br />

processo de habilitação mencionou o<br />

nome de seu 'ilegítimo' pai, mas no<br />

breve de dispensa consta que Domingos<br />

tinha o "defeito" de ser "oriundo de<br />

presbítero". Domingos, porém, quis<br />

mais do que ordenar-se: pediu, depois,<br />

dispensa para ser promovido às<br />

dignidades e altos postos da hierarquia<br />

eclesiástica, no que foi atendido pelo<br />

provisor do bispado, que o dispensou<br />

na "irregularidade de defeito do<br />

nascimento proveniente de coito<br />

sacrílego" 55.Ora, por que se denunciou<br />

a ilegitimidade de Domingos sem que<br />

fosse identificado o nome de seu pai?<br />

pag. 54. jan/dez 1995<br />

0<br />

Esse silêncio não teria sido uma<br />

imposição da necessidade de preservar<br />

o presbítero que era seu genitor? Mão<br />

seria este clérigo importante demais<br />

para que sua condição de pai fosse<br />

explicitada? Isso tudo, enfim, faz-nos<br />

aventar a hipótese de que o pai de<br />

Domingos seria o bispo homônimo, ou<br />

então, algum apaniguado seu, e,<br />

ademais, de que tal paternidade não<br />

poderia ser revelada para preservar as<br />

aparências do prelado! Se tal hipótese<br />

for verdadeira, destaque-se, o bispo e<br />

os que o protegeram estavam<br />

acobertados pelas regras da civilidade<br />

barroca, comum às demais sociedades<br />

do Antigo Regime, que nào se<br />

importavam se o parecer e o ser se<br />

distanciavam, fazendo da civilidade<br />

falsa aparência 56.<br />

O bispo Pontevel ajudou a dissimular<br />

um arranjo que visava resguardar as<br />

aparências da mais alta autoridade da<br />

capitania: segundo Tomás Antônio<br />

Gonzaga, o governador Luís da Cunha<br />

Menezes solicitou e conseguiu que o<br />

bispo dispensasse sua amásia, Maria<br />

Joaquina, e Jerónimo Xavier de Souza,<br />

dos banhos (proclamas) necessários<br />

para a realização do casamento de<br />

ambos 5 7. Pontevel, assim, se por um<br />

lado, talvez usasse da posse e do<br />

conhecimento de obras politicamente<br />

heterodoxas para melhor guardar a<br />

ordem, por outro, talvez fizesse do<br />

recurso à dissimulação das ilicitudes<br />

sexuais um modo de também preservá-<br />

la. A benignidade das autoridades com


R V O<br />

Pontevel 'filho' e os silêncios sobre a<br />

identidade de seu pai, ademais, são o<br />

mais perfeito retrato de como esta<br />

tradição vicejava na ordem do Antigo<br />

Regime.<br />

O bispo, ademais, neste aspecto, além<br />

de seguir uma tradição de exercício de<br />

poder, não seria senão um homem de<br />

seu tempo, um 'homem do mundo',<br />

obedecendo à moral coletiva imperante<br />

nas Gerais. Separando o parecer do ser,<br />

como nas demais sociedades do Antigo<br />

Regime, esta moralidade, urdida no<br />

interior de uma sociedade colonial e<br />

escravocrata, era patriarcal, racista,<br />

misógina e centrava-se no princípio de<br />

igualdade, isto é, na defesa do<br />

casamento entre iguais na cor, no status<br />

social, na situação física e moral. Mas,<br />

diante das dificuldades para se acharem<br />

iguais para o matrimônio, dos seus<br />

custos e de sua burocracia, acabava por<br />

admitir algumas ilicitudes (como o<br />

concubinato, o adultério e a<br />

prostituição), especialmente entre os<br />

desiguais (os homens brancos e/ou<br />

senhores, livres ou forros, com as<br />

mulheres havidas como mulheres<br />

solteiras', isto é, não-virgens, negras,<br />

índias, mulatas; forras e escravas),<br />

desde que se preservassem as<br />

aparências 5 8. lia conduta sexual de<br />

Pontevel, assim, às vozes da moral<br />

coletiva vigente nas Gerais talvez se<br />

somassem os murmúrios heterodoxos<br />

engolfados em meio à ortodoxia católica<br />

de sua livraria: da moralidade coletiva<br />

e do Curso theologicus et moralis, o<br />

bispo pode ter extraído a idéia de que<br />

era admissível relacionar-se, até mesmo<br />

de forma violenta, com mulheres<br />

solteiras e, algumas vezes, com as<br />

mulheres puras e santas; das Anecdotes<br />

• hipótese pouco segura - o bispo talvez<br />

tenha estabelecido uma identidade<br />

entre sua experiência e as peripécias da<br />

condessa Du Barry. Afinal, se ele pode<br />

ter sido pai, Barry era filha de um<br />

monge, se Luís XV casava sua amâsia<br />

com o conde Du Barry, ele foi cúmplice<br />

de uma artimanha semelhante,<br />

patrocinada por Luís da Cunha Menezes.<br />

Pontevel, em suma, pode ter sido, por<br />

um lado, prisioneiro e protagonista de<br />

estratégias de um poder cuja<br />

preservação exigia o conhecimento das<br />

subversões e a cisão do parecer e do<br />

ser, e, por outro, expressão de uma<br />

moral heterodoxa (em relação às leis),<br />

que juntava o cotidiano a alguns livros<br />

e separava - também - o parecer e o ser,<br />

conjugando a defesa do casamento<br />

entre iguais à realidade das ilicitudes<br />

que vicejavam sob o celibato. Tais<br />

considerações, porém, são meras<br />

hipóteses.<br />

lia livraria do cônego Borges, território<br />

em que campeavam obras de cânones<br />

e direito, não vemos nada que pudesse<br />

ser considerado heterodoxo, o mesmo<br />

sucedendo em relação à sua postura<br />

política. Todavia, no uso que fazia<br />

daquelas obras, percebe-se que nem<br />

tudo estava em conformidade com as<br />

regras jurídicas e, além disso, que essas<br />

serviam para acobertar ilicitudes morais.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n» 1 -2. p I9-52. jan/dez 1995 - pag 35


não dele, mas de outrem. Apesar de ter<br />

uma passagem pelo ilícito- foi<br />

contemplado duas vezes com 'carta de<br />

seguro negativa ', espécie de habeas<br />

corpus, passada pelo Juízo Eclesiástico<br />

do bispado de Mariana -, devido às<br />

omissões da documentação, não nos foi<br />

possível saber qual era o delito de que<br />

era acusado 59. Como provisor e vigário<br />

geral do bispado, anos depois, Borges<br />

endossou a habilitação ao sacerdócio,<br />

recusada pelo bispo Pontevel, de José<br />

de Souza Barradas, apesar do candidato<br />

encontrar-se impedido para tanto, por<br />

viver publicamente concubinato com<br />

uma parda chamada Escolástica e ter<br />

uma filha. Embora Borges tenha<br />

reconhecido a existência "da culpa",<br />

julgou que a mesma não estava provada<br />

conforme determinavam as Ordenações,<br />

segundo as quais se deveria provar "que<br />

no espaço de seis meses entrara um<br />

(concubino) na casa do outro, sete ou<br />

oito vezes, circunstância que não<br />

descobrira nos autos" 60. Ao que parece,<br />

porém, a legislação fora pinçada para<br />

favorecer um rebento de uma família<br />

ilustre, constituída, no entender de<br />

Borges, por "bons pais tanto em honra<br />

como em cristandade", os quais<br />

"sempre criaram seus filhos com temor<br />

pag.56. jan/dez 1995<br />

de Deus, em sujeição e exemplar<br />

recolhimento" 61, todos eles, no caso dos<br />

homens, ocupando cargos importantes.<br />

Se nem os comportamentos nem as<br />

aparências do habilitando prestavam<br />

para dar-lhe o passaporte para o<br />

sacerdócio, o provisor apelou para as<br />

filigranas da lei e usou as aparências da<br />

família para habilitá-lo - e, com isso,<br />

também preservou-as. Borges, tão<br />

aferrado ao direito e aos cânones,<br />

mostrou-se assim enredado no ideal de<br />

civilidade que grassava nas sociedades<br />

do Antigo Regime: uma civilidade das<br />

aparências.<br />

Os inconfidentes, ao contrário dos<br />

outros clérigos - o que é óbvio - revelam-<br />

se heterodoxos do ponto de vista<br />

político. Ma biblioteca do padre Carlos<br />

Correia de Toledo, homem muito rico 62,<br />

vigário na vila de São José d'El Rei<br />

desde 1777 6 5, vemos a Lógica, de Luis<br />

Antônio Verney, iluminista português<br />

adversário dos jesuítas, pensador oficial<br />

da época pombalina 64, certamente um<br />

'libertino' aos olhos das autoridades<br />

eclesiásticas mais conservadoras. Havia<br />

também duas obras de Ovídio, autor<br />

proibido pela censura portuguesa:<br />

Compêndio de metamorfose e Triste<br />

velho. Tais títulos não representavam


grande afronta à ordem estabelecida e,<br />

no mais, prevalecia o 'bom cura' na<br />

biblioteca do padre Toledo. Mesmo<br />

assim, ele atendeu à convocação feita<br />

aos sacerdotes da América por seu<br />

colega de ofício, o abade Raynal:<br />

6 entronizou a pátria em seu altar 5,<br />

engajando-se na Inconfidência.<br />

Considerava Raynal, por sinal, um<br />

"escritor de grandes vistas", por ter<br />

previsto a sedição dos colonos ingleses,<br />

concluindo, de seu relato sobre a<br />

experiência dos colonos ingleses, que,<br />

se na América do norte os impostos<br />

levaram à rebelião, aqui, a derrama<br />

poderia produzir os mesmos efeitos 66.<br />

Portanto, a primazia numérica de livros<br />

ortodoxos de sua biblioteca e a<br />

irrelevância quantitativa da história não<br />

contiveram as repercussões do livrinho<br />

de Raynal, obra que sequer possuía,<br />

mas que leu ou, ao menos, escutou e<br />

discutiu, com os outros conjurados. Do<br />

ponto de vista moral, porém, a<br />

ortodoxia triunfou.<br />

na livraria do padre Costa, sacerdote<br />

desde o final da década de 1770 6 7, a<br />

quase igualdade numérica entre as<br />

obras de ciências e literatura e a<br />

presença de um livro de Pope, poeta<br />

satírico inglês que comprendia a razão<br />

como virtude pública, indicam certa<br />

heterodoxia: espelham uma opção de<br />

vida futura e uma determinada maneira<br />

de olhar o mundo, na qual este é<br />

compreendido mais à luz da razão e da<br />

observação do que da revelação. Duas<br />

das suas obras de ciências versavam<br />

sobre medicina. As outras eram:<br />

Aritmética, de Maia; Biologia, de Berti;<br />

e Instruções para a cultura das<br />

amoreiras. O padre Manuel preocupava-<br />

se possivelmente com aspectos<br />

relativos à saúde, mas sobretudo<br />

interessava-se pelo mundo da natureza,<br />

prestigiando a botânica, tal como era<br />

característico dos libertinos do século<br />

XVIII 68, concedendo uma atenção<br />

especial à razão e aos objetos das<br />

ciências naturais e, de resto, a elas<br />

mesmas. Tanto assim que, anos mais<br />

tarde, em 1801, em Lisboa, traduziu e<br />

publicou um Tratado da cultura dos<br />

pessegueiros 69, e, ao regressar de<br />

Portugal, livre do cárcere, tornou-se um<br />

notável e inovador fazendeiro. Passou<br />

a cultivar o linho em sua fazenda,<br />

obtendo sempre bons resultados, tendo<br />

trazido máquinas do Reino para tecê-lo,<br />

assim como a outros tecidos. Chegou<br />

mesmo a apresentar ao governo um<br />

projeto para desenvolver a tecelagem 70<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag 37


Mas a audácia de Costa, é bom lembrar,<br />

o fez entender que "esta América estava<br />

nos termos de ficar uma Europa* 71,<br />

levando-o a envolver-se na Conspiração<br />

Mineira. Ele driblou, assim, a ortodoxia<br />

dominante em sua biblioteca e deixou-<br />

se conduzir pela razão e pelo espírito<br />

de observação que emanavam de alguns<br />

de seus títulos. Atendeu, portanto, ao<br />

abade Raynal, colocando a pátria em seu<br />

altar - e nem a prisão logrou contè-lo,<br />

pois, depois, veio a engajar-se no<br />

processo de emancipação do país: o<br />

padre, elegeu-se deputado na<br />

Constituinte de 1823, reelegeu-se para<br />

a legislatura seguinte e meteu-se na<br />

revolta liberal de 1842 7 2. Contudo, este<br />

engajamento em questões profanas e<br />

políticas, não abalou sua fé ou os<br />

preceitos morais desta, pois, na<br />

Assembléia Constituinte, votou contra<br />

a liberdade religiosa e, no campo<br />

sexual, foi fiel à ortodoxia católica.<br />

O cônego Luís Vieira da Silva 7 3 possuía<br />

uma livraria, segundo Carlos Guilherme<br />

Mota, "recheada com a literatura mais<br />

crítica do ocidente" 7 4, com muitos<br />

autores iluministas. Dos autores<br />

encontrados, destacam-se alguns<br />

clássicos e ilustrados proibidos pela<br />

censura: Ovídio, Marmontel, Catulo,<br />

pag 38. Jan/dez 1995<br />

Anacreonte, Voltaire, Mably, Diderot,<br />

Condilac, Robertson e Montesquieu 75.<br />

Mela havia lugar, ainda, para livros de<br />

ilustrados moderados, como Genuensis,<br />

Verney e Bento Feijó. O olhar do cônego<br />

reservava espaço também para autores<br />

de ciências, alguns importantes para a<br />

ciência moderna: Descartes, Pinei (cuja<br />

obra era proibida), Fabri, Gravesande,<br />

Winslow, Tissot e Musschembroeck. A<br />

seção de história privilegiava os países<br />

europeus, sobre os quais havia seis<br />

obras, seguidos depois por Portugal,<br />

com cinco obras, e a América, com três.<br />

A Europa, todavia, era contemplada<br />

também com os títulos de história<br />

universal (três obras) e história moderna<br />

(duas obras), além da história antiga<br />

(duas obras). Mão havia livros<br />

específicos sobre o Brasil. O cônego se<br />

interessava pelas particularidades das<br />

gentes de sua 'pátria' e, ao mesmo<br />

tempo, pelos mais distintos povos, sem<br />

que houvesse qualquer contradição<br />

entre eles. Desta generalidade de povos<br />

particulares, ademais, destacava a<br />

América do Norte, motivo de estudo e<br />

discussão, e na qual o cônego enxergava<br />

identidades com sua capitania. A<br />

América era motivo de empréstimo de<br />

livros: o cônego não se contentava com


a obra de Robertson, que possuía, tendo<br />

emprestado de alguém, com certeza, o<br />

livrinho do abade Raynal e do<br />

intendente Bandeira, as Observations<br />

sur le gouvernement de les Etats Unis.<br />

O pensamento do cônego Vieira, de fato,<br />

encontrava-se marcado pela presença de<br />

Raynal e, de resto, pela Ilustração.<br />

Segundo Ernst Cassirer, o pensamento<br />

ilustrado caracterizava-se pela renúncia<br />

à dedução sistemática, isto é, àquela<br />

que, partindo de um ser supremo ou de<br />

uma certeza fundamental, máxima,<br />

expandia a luz desta a todos os seres e<br />

saberes derivados através do método da<br />

demonstração e da conseqüência<br />

rigorosa, enlaçando os últimos à certeza<br />

primordial de modo imediato 76. O ponto<br />

de partida, no pensamento ilustrado,<br />

deslocou-se da certeza fundamental<br />

para a experiência e a observação,<br />

invertendo-se, pois, a hierarquia<br />

metodológica. Procurava descobrir a<br />

lógica dos fatos, através da qual,<br />

primeiro, apreendia os fenômenos;<br />

depois, buscava cada uma das<br />

condições que os originaram, revelando<br />

a dependência que os ligava; e,<br />

finalmente, com base nestas<br />

descobertas, chegava às regularidades<br />

comuns a cada tipo de fenômenos,<br />

formulando princípios ou leis 7 7. O<br />

pensamento ilustrado, portanto,<br />

combinava os métodos resolutivo e<br />

compositivo; nele, a funçào mais<br />

importante da razão consistia, pois, em<br />

separar e juntar 78.<br />

O caráter ilustrado do pensamento do<br />

côn. Vieira explicita-se nas suas<br />

respostas ao interrogatório da Devassa<br />

da Inconfidência. Interrogado sobre sua<br />

posição favorável à revolta dos norte-<br />

americanos, depois de algumas<br />

tergiversações, afirmou que a rebelião<br />

tinha uma causa, a opressão e que -<br />

procurando enganar os inquiridores - ela<br />

inexistia nas Gerais. Questionado sobre<br />

a ausência de diferenças entre os povos<br />

rebelados do norte e os mineiros, disse<br />

que os povos podiam rebelar-se por<br />

diferentes causas e que, em Minas<br />

Gerais, não havia o problema dos<br />

impostos, motivo da sediçáo dos norte-<br />

americanos, pois o visconde de<br />

Barbacena noticiara que só faria a<br />

derrama depois de ouvir Sua Majestade.<br />

E o cônego, nào acreditando no<br />

"maravilhoso" - guiando-se pela razào,<br />

poderíamos dizer - sabia que para os<br />

povos rebelarem-se eram necessários<br />

"fatos de presente"; vê-se, nas<br />

entrelinhas, a importância estratégica da<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.39


A C E<br />

7 derrama para os conspiradores 9.<br />

Contraditado nas suas respostas pelo<br />

inquiridor, o cõnego, então, expôs uma<br />

teoria geral sobre as condições que<br />

tornam exeqüível uma rebelião, chegan­<br />

do até ela a partir de um exemplo<br />

concreto. Com isso, pretendia mostrar -<br />

enganando o inquiridor - que em Minas<br />

Gerais era impossível pensar em sedição<br />

e que ele não poderia cogitar em realizá-la:<br />

as respostas dele respondente só<br />

tendem a mostrar os fundamentos, por<br />

que não seguiria semelhante partido,<br />

quando fosse para isso convocado,<br />

prescindindo inteiramente de que<br />

houvesse, ou nào, quem tivesse<br />

semelhantes idéias: sabe que na feliz<br />

aclamação de F.l-Rei D. João o quarto,<br />

sendo uma causa tão justa, e tanto da<br />

vontade dos povos, perguntou,<br />

segundo sua lembrança, D. João da<br />

Costa, quais eram os generais, as<br />

armas, as alianças, os soldados, que<br />

tinham prontos para se levantarem<br />

contra as armas de Castela, e que isto<br />

foi bastante para se suspender a ação<br />

por oito dias, e talvez se não<br />

executasse, se nisso não estivesse o<br />

maior perigo; e como poderia pensar<br />

que tivesse efeito a sublevação de<br />

Minas falta de tudo o necessário, e<br />

cercada de outras capitanias: em<br />

segundo lugar, ele respondente nào vê<br />

interesse nenhum próprio na<br />

sublevação; porque não foi para isso<br />

convidado, nem aceitaria o partido,<br />

quando o fosse, e menos evitar o dano<br />

pag.40. jan/dez 1995<br />

se este é obedecer aos superiores, e<br />

evitar tributos 80.<br />

Do exemplo concreto da Restauração<br />

Portuguesa, protagonizada por dom<br />

João IV, o cõnego extraiu a conclusão<br />

de que só era possível pensar em<br />

rebelar-se se houvesse condições para<br />

tanto - isto é, generais, armas, alianças,<br />

soldados - ou se fosse mais perigoso<br />

manter-se na sujeição. E em Minas, tudo<br />

isso faltava, além do que, obedecer aos<br />

superiores e pagar tributos não<br />

poderiam ser motivos de uma rebelião<br />

- de novo, vê-se o lugar estratégico dos<br />

impostos. Mesta passagem, ademais,<br />

estabelece-se uma analogia entre a<br />

Inconfidência e a Restauração, "causa<br />

tão justa, e tanto da vontade dos<br />

povos". Um indício seguro de que, para<br />

ele, era legítimo um povo rebelar-se<br />

contra a tirania; uma analogia que, por<br />

si só, indica que a Inconfidência, no<br />

pensamento do cõnego, era tão legitima<br />

quanto a Restauração.<br />

Mo pensamento do cõnego, assim,<br />

encontramos a afirmação da razão, a<br />

negação do maravilhoso, das certezas<br />

absolutas, e uma análise do real que,<br />

tendo como referência a própria<br />

experiência (o que habilidosamente se<br />

procura negar), compara três situações<br />

distintas (a Conjuração das Gerais, a<br />

Independência das Treze Colônias<br />

Inglesas e a Restauração Portuguesa),<br />

decompondo-as; depois, chegando-se a<br />

uma conclusão geral sobre a ocorrência<br />

das rebeliões; e, por fim, atingindo a


conclusão de que seria impensável uma<br />

rebelião em Minas. Mo sub-texto, ainda,<br />

temos a consagração do principio<br />

ilustrado do direito à rebelião e a<br />

expressão do lugar estratégico ocupado<br />

pela derrama na Conjuração. O cônego<br />

Vieira da Silva, em suma, por um lado,<br />

combinava os métodos resolutivo e<br />

compositivo, procurando estabelecer as<br />

condições que provocam os fenômenos<br />

e, depois, descobrindo as regularidades<br />

que se fazem presentes em fenômenos<br />

similares, formulando leis. Por outro,<br />

baseava-se num princípio caro aos<br />

ilustrados: aquele segundo o qual era<br />

legítimo rebelar-se contra um poder<br />

despótico, presente em Rousseau 81, e<br />

também em Raynal (que estendia a<br />

legitimidade àqueles que não viviam sob<br />

o despotismo) 82.<br />

Autêntico ilustrado, por seus princípios<br />

e pela maneira de estruturar o seu<br />

pensamento, o cônego Vieira<br />

influenciou-se, portanto, pelos autores<br />

ilustrados que se encontravam em sua<br />

biblioteca e atendeu ao abade Raynal,<br />

a quem tanto apreciava, entronizando a<br />

pátria em seu altar! Sua 'libertinagem',<br />

por fim, nào se limitou à Inconfidência:<br />

embora cônego, professor de teologia<br />

e comissário da Ordem Terceira da<br />

Penitência, Vieira da Silva era um<br />

'homem do mundo', tendo legado uma<br />

filha, Joaquina Angélica da Silva, à<br />

posteridade, nascida em 1765, quando<br />

Vieira já havia recebido as ordens<br />

sacras 8 3. A moralidade coletiva<br />

imperante nas Qerais deve ter-se<br />

V<br />

conjugado ao ideal de civilidade de<br />

Corneile, autor presente em sua<br />

biblioteca, levando o cônego a<br />

desobedecer as regras jurídicas e a<br />

sujeitar-se às normas sociais que<br />

admitiam algumas ilicitudes sexuais,<br />

desde que não prejudicassem as<br />

aparências: o cônego, enfim, convivia<br />

com a cisão entre o ser e o parecer.<br />

Examinando a apropriação dos livros<br />

pelos clérigos mineiros das Qerais do<br />

século XVI11, dentro dos estreitos limites<br />

que a documentação nos impõe,<br />

constatamos o fosso que separava os<br />

inconfidentes dos demais, no que se<br />

refere às idéias e aos comportamentos<br />

políticos. Ao mesmo tempo,<br />

percebemos que as diferenças se<br />

embaralham, quando o foco desloca-se<br />

para as questões morais. Do ponto de<br />

vista político, assim, vemos que, entre<br />

os inconfidentes, os livros ilustrados e/<br />

ou que focalizavam aspectos relativos<br />

ao mundo natural - insignificantes na<br />

biblioteca do padre Toledo,<br />

consideráveis na livraria do padre Costa,<br />

e razoavelmente numerosos na<br />

biblioteca do cônego Vieira da Silva -<br />

exerceram grande influência sobre tais<br />

leitores. As possibilidades de leitura dos<br />

inconfidentes, no entanto, não se<br />

limitaram aos livros que possuíam nem<br />

àquilo que os mesmos diziam: a<br />

inventividade, de alguma forma, valeu.<br />

O livrinho do abade Raynal, não<br />

possuído por nenhum deles, tornou-se<br />

centro da atenção e, em sua leitura, as<br />

idéias foram apropriadas de tal sorte a<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1 -2. p. 19-52. jan/dez 1995 - pag AI<br />

o


A C E<br />

iluminar a própria experiência dos<br />

leitores, norteando sua ação política. A<br />

inventividade dos leitores-inconfidentes<br />

teve no cõnego Vieira da Silva o seu<br />

maior expoente, de tal sorte que a<br />

própria estruturação de seu pensamento<br />

seguia parâmetros ilustrados e<br />

associava as experiências alheias à de<br />

sua pátria. Os clérigos que não se<br />

meteram na Conjuração, sobre os quais<br />

conseguimos obter informações mais<br />

substanciais, ao contrário, mostram-se<br />

ou presos a uma ordem politica-cultural<br />

que ruía, caso do bispo Manuel da Cruz,<br />

ou possivelmente usando de livros<br />

heterodoxos para melhor preservar a<br />

ordem, caso do bispo Pontevel.<br />

A moralidade coletiva, que consagrava<br />

a cisão entre o ser e o parecer, foi mais<br />

forte que a ortodoxia, justamente entre<br />

os proprietários das bibliotecas mais<br />

exuberantes: o cõnego Vieira da Silva<br />

e, quem sabe, o bispo Pontevel. Esta<br />

moralidade, ademais, triunfou no<br />

comportamento do cõnego Borges<br />

enquanto juiz. Venceu entre eles uma<br />

moralidade que aceitava as relações<br />

sexuais ilícitas desde que se<br />

mantivessem as aparências, inclusive a<br />

de respeito às normas jurídicas. Entre<br />

a maioria dos clérigos proprietários de<br />

livros, contudo, a ortodoxia parece ter<br />

saído vitoriosa.<br />

Conclusão<br />

Nas bibliotecas dos eclesiásticos<br />

mineiros do século XVIII, visualizam-se<br />

as tensões entre aquilo que as<br />

pag. 42, jan/dez 1995<br />

autoridades e os livros procuravam<br />

impor e a inventividade de alguns dos<br />

leitores, seja no sentido de privilegiar<br />

determinadas obras, seja no sentido de<br />

lê-las segundo uma ótica particular.<br />

Alguns títulos repetiam-se de uma<br />

biblioteca para outra; entre as livrarias<br />

das Gerais e suas congêneres francesas<br />

e portuguesas, havia similitudes no que<br />

toca aos títulos e à distribuição dos<br />

livros pelos assuntos e, em algum grau,<br />

pelas línguas - mas em meio a estas<br />

uniformidades, os inconfidentes<br />

destacaram-se por destoarem, em maior<br />

ou menor grau. O cõnego Vieira da Silva,<br />

dentre eles, foi o que mais se mostrou<br />

singular.<br />

Os eclesiásticos inconfidentes possuíam<br />

bibliotecas que expressavam interesses<br />

que iam além dos limites imediatos de<br />

seu trabalho pastoral, voltando-se mais<br />

fortemente que as dos demais clérigos<br />

para questões teológicas e profanas. O<br />

inverso se dava entre os clérigos não-<br />

conjurados. À maior profanidade, os<br />

inconfidentes aliaram uma inventividade<br />

bastante aguda em relação aos livros,<br />

apropriando-se das idéias apresentadas<br />

nos mesmos tendo em vista sua própria<br />

experiência nas Gerais. Sua inventividade<br />

chegou ao limite de levá-los a organizarem<br />

uma sedição fundada numa estratégia<br />

baseada no conhecimento livresco da<br />

experiência das Treze Colônias da<br />

América inglesa. Assim, mais do que a<br />

pátria, os inconfidentes parecem ter<br />

entronizado os livros - ao menos alguns<br />

deles - em seu altar.


Tabelas e Gráficos<br />

V o<br />

Fontes: <strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de Mariana (AEAM), <strong>Arquivo</strong> Episcopal da<br />

Arquidiocese de Mariana (ACSM) e Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (ADIM).<br />

* nas tabelas, os números absolutos referem-se a obras e volumes, estando registrados<br />

na ordem: obras/volumes.<br />

Nomes<br />

Tabela 1 - V dc Obras e Volumes das Bibliotecas Eclesiásticas por Área<br />

Totais Ciências Sacras Ciências Profanas<br />

Obra VoL<br />

Obras Volumes Obras Volumes<br />

ABS % ABS % ABS % ABS %<br />

B. Pontevel 412 1056 263 63,8 703 66,6 79 \9.2 208 19.7<br />

C6n. V. Silva 279 612 99 35,5 236 38,6 147 52,7 329 53,7<br />

Pe. M. Costa 73 212 30 41 128 60,4 20 27,4 54 25.5<br />

Côn. Cordeiro 67 76 22 32,2 31 40,8 1 1.5 1 1,3<br />

Côn. Borges 64 126 32 50 77 61,1 9 14 12 9,5<br />

Pe. C Toledo 58 105 37 63,8 81 77,1 17 293 19 18<br />

Pe. F. Alves 37 48 33 89,2 42 87,5 0 0 0 0<br />

B M. da Cruz 36 79 29 80,5 67 84,8 3 8.3 6 7,6<br />

Pe. J. F. Souza 27 62 23 85,2 49 79 2 7,4 6 9,7<br />

Pe. J. T. Souza 24 42 16 66,7 33 78,5 2 8,3 2 4,8<br />

Nomes<br />

Tabela II - Números Absolutos e Relativos de Obras e Absolutos de Volumes* de Ciências Sacras nas Bibliotecas Eclesiásticas<br />

Ljcritura Santa<br />

ABS<br />

o/v<br />

%<br />

ABS<br />

o/v<br />

Padres da<br />

Igreja<br />

%<br />

ABS<br />

o/v<br />

Teoloeia História Sagrada Canônej Liturgia Dicioairioa<br />

%<br />

B. Pontevel 7/32 1.7 2/15 0.5 58191 14 16/73 3.1 36/15 1.7 47/107 11,4 9/21 12<br />

Con V. Sirva S/19 1.» 2/14 0,7 13/27 4.7 11/21 3.9 22/51 7.9 17/2» 6,1 2/7 0,7<br />

Pe M Costa 3/33 4,1 0 0 t/36 10.9 2/16 2,7 1/1 1,4 9/26 12J VII 4,1<br />

Côn Cordeiro 0 0 0 0 5/5 7,5 1/2 1.5 1/2 1.5 12/13 17.9 0 0<br />

C6n. Borges 0 0 0 0 4/10 6.3 0 0 5/6 7,1 7/27 10,9 0 0<br />

Pe. C. Toledo 2/4 3.4 0 0 10/22 172 2/4 3,4 3/5 5.2 11/31 19 1/4 1,7<br />

Pe R Ah/es 1/3 2,7 0 • 4/4 10,1 l/l 2.7 0 0 25/32 67,6 0 0<br />

B. M da Cruz 0 0 0 • 1/4 2.1 5/7 13.9 4/4 11,1 5714 13.1 0 0<br />

Pe. J. F. Souza 3/4 U.l 0 0 2/2 7.4 0 0 2/2 7.4 U/31 40,7 0 0<br />

Pe. J. T. Souza 0 0 0 0 2/6 1.3 l/l 4.2 2/2 •.3 4/1 16,7 0 0<br />

ABS<br />

o/v<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

ABS<br />

o/v<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2, p. 19-52. jan/dez 1995 - pag.45<br />

%


A C E<br />

Tabela [II • Nesa eros Abse luto. e Murro* de Obrai < Absolutos da ases' Vol• d* SM»! Prof.na. iu Bibliotecas Ecl -siaiticai<br />

rnerana Ritònc» llmon. DiòMárfe Lite raro rs FUesafia Direito Otárias<br />

Naseea ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

o/v<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

ABS<br />

O/V<br />

%<br />

B PooKvel 7/11 1.7 2/2 0.5 7/26 1.7 16744 3,9 19/27 1/40 13 «3! 23 7/7 1,7<br />

V Sitva 2/6 17 5.7 u 26/15 93 13/27 4.7 49/91 3IV92 11,1 10/11 13 14-33 s<br />

Pe M Cofta 2/3 2.7 0 0 1/2 u 3/10 4.1 •711 •3 2/13 V 0 0 5/13 6.1<br />

C6o Cordcuo 0 0 0 0 0 0 0 0 l/l u 0 0 0 0 0 0<br />

Cõo. Borg.es 0 0 0 0 0 0 0 0 0 • 0 0 5/1 7.« l/l 1.6<br />

Pt. C. Toledo • • l/l 1.7 0 0 4M M 1/1 133 2/2 3.4 0 0 0 0<br />

Pe. F. Abres • • 0 0 • • • • 0 0 0 • 0 • 0 0<br />

B. M. deCraa 0 • t » l/l 23 • 0 1/2 23 0 t 1/3 W 0 0<br />

Pe J. F. Sovoa 0 0 0 • 1/2 3,7 0 0 • 0 1/4 3.7 0 t 0 0<br />

Pe J. T. Som 0 0 0 0 0 0 0 0 1/1 43 0 0 0 0 0 0<br />

Tabela IV - Número! Absolutos e Relativos de Obras e Absolutos de Volumes* por Línguas e Valor daa Bibliotecas Eclesiásticas<br />

laVjsBM<br />

Nossas •arara Port.tsès tr.eeès Espanhol lorlés Italiano Valor Valor era<br />

Mil-reis<br />

O/V % O/V % O/V % O/V % O/V % o/v %<br />

303-764 73.5 58,137 14 31/100 73 3/21 0.7 0 9/13 23 96ISSS0<br />

Còn V Sirva 1307212 46,6 33/63 11.« 79/72 213 3/6 1 24/24 «6 0 6615130<br />

Fe. M. Costa 9.40 123 36/121 49.3 1/1 13 0 2/11 2.7 0 -<br />

Con. Cordeiro 2/3 3 19/27 213 0 - 0 - 0 - 0 - 2755700<br />

Cón Rorges 30/59 46.9 25/57 39 0 - 0 0 • 0 - 4IS250<br />

Pe.C. Toledo 12/24 20.7 42/77 72,4 0 0 • - 0 - 1011350<br />

Pe-F Alves 1/3 2.J 32/36 *J 0 2/2 M 0 0 27J295<br />

B M. da Cruz 1GV20 273 24/57 66.7 0 l/l 2Jt 1/4 23 0 -<br />

Pe. J. F. Souza 7/1 25.9 11/49 66.7 0 0 0 - 0 - 66S070<br />

Pe. J. T. Souza M U 7JV37 •33 0 0 0 • 0 301055<br />

pag. 44, jan/dez 1995<br />

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R V O<br />

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Í.7 4J<br />

M O T A S<br />

1. CHARTIER, Roger. A história cultural:entre práticas e interpretações. Lisboa: DifeI;<br />

Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1990, p. 121. Colocações muito similares também<br />

são feitas por DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução: o submundo das<br />

letras no Antigo Regime. São Paulo : Cia. das Letras, 1989, p. 128; e DAV1S,<br />

Natalie Zemon. "O povo e a palavra impressa". In: Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz<br />

e Terra, 1990, pp. 159, 176 e 184-185.<br />

2. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans Ia France D'Ancien Regime. Paris :<br />

Éditions du Seuil, 1987, p. 167.<br />

3. Idem, ibidem, p. 168.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995 pag 45


A C E<br />

4. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional.<br />

Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, s/d, p. 85.<br />

5. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans Ia France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />

p. 171.<br />

6. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, op. cit., p. 89.<br />

7. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />

p. 173.<br />

8. MARQUES, Maria Adelaide Salvador, op. cit., p. 89.<br />

9. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit.,<br />

p. 172.<br />

10. FURTADO, Júnia Ferreira. O livro da capa verde; a vida no distrito diamantino no<br />

período da Real Extração. São Paulo : 1991, pp. 24 e 33-34. Dissertação de<br />

mestrado.<br />

1 1. FURTADO, Júnia Ferreira, op. cit., p. 33-34.<br />

12. A relação de livros foi extraída do "Inventário dos bens do Seminário de Mariana",<br />

feito em 1831 e transcrito pela Revista do <strong>Arquivo</strong> Fúblico Mineiro sob o título:<br />

"O Seminário de Mariana em 1831". In: Revista do <strong>Arquivo</strong> Fúblico Mineiro. Belo<br />

Horizonte: (1/2) : 367-377, jan./jul. de 1904. Esses livros foram inventariados<br />

apenas em 1831, portanto, já no século XIX, mais adiante do período com o<br />

qual estamos trabalhando. Todavia, como este intervalo temporal coincidiu<br />

parcialmente com a crise do Seminário (de 1793 a 1820), fechado por vários<br />

anos, podemos supor que inexistiram sensíveis mudanças no acervo de sua<br />

biblioteca, à exceção da deterioração dos livros provocada pelo abandono e pela<br />

ação do tempo. Há pequenas diferenças entre a transcrição que aparece na revista<br />

e a cópia manuscrita do documento que consultamos na Biblioteca <strong>Nacional</strong>.<br />

Dos 566 volumes da biblioteca do Seminário, 230 não tiveram seus títulos e<br />

autores mencionados. Sobre a crise do Seminário de Mariana, veja: TRINDADE,<br />

cônego Raimundo. Breve noticia dos Seminários de Mariana. Mariana :<br />

Arquidiocese de Mariana, 1951, pp. 28-40.<br />

13. DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo : Cia. das Letras, 1991, pp.<br />

1 14-1 15.<br />

14. Idem, ibidem, p. 114.<br />

15. Idem, ibidem, p. 66.<br />

16. FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. 2* ed. rev. e aum. São Paulo :<br />

EDUSP; Belo Horizonte : Itatiaia, 1981, p. 45.<br />

pag. 46. jan/dez 1995<br />

/ \


K V O<br />

17. Mo inventário dos bens do Seminário consta "Hondres", porém julgamos que<br />

houve erro do escrivão na grafia do nome, que na realidade devia ser Vincent<br />

Houdry. Corrobora esta hipótese o fato de haver tomos de um exemplar da obra<br />

Biblioteca concionatoria, do citado autor, em edição de 1764, na biblioteca do<br />

palácio dos bispos de Mariana, neles estando anotado: "Pertence ao Seminário"<br />

e "Seminário de Mariana".<br />

18. DELUMEAU, Jean, op. cit., p. 115.<br />

19. TRIMDADE, cônego Raimundo. Breve notícia dos Seminários de Mariana, op. cit., p. 34.<br />

20. AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira (doravante, ADIM). Brasília : Câmara<br />

dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Qerais, 1980, vol. 6,<br />

pp.85-92, 307-322, 347-350 e 438-440.<br />

21. ARQUIVO EPISCOPAL DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA (doravante, AEAM).<br />

Inventário de dom frei Domingos da Encarnaçáo Pontevel - 1793 (doravante, IDEP).<br />

Armário 1, 4 S gaveta, livro.<br />

22. Os autores que se voltaram para o estudo das bibliotecas dos Inconfidentes<br />

empregaram critérios distintos na contagem dos livros e escolheram um ou outro<br />

segmento dos Autos de Devassa da Inconfidência - os autos do seqüestro ou as<br />

avaliações dos bens - para a coleta dos dados, o que os levou a chegarem a<br />

diferentes resultados. Veja: FRIE1RO, Eduardo, op. cit., p. 24; ARAÚJO, Emanuel.<br />

O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial.<br />

Rio de Janeiro : José Olympio, 1993, p. 327; RICARDINI, Beatriz. "Inventários e<br />

seqüestros: fontes para a história social". In: Revista do Departamento de História.<br />

Belo Horizonte: (9) : 31-45, 1989; e VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada<br />

dos vícios': celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas<br />

Qerais (1748-1801). São Paulo : FFLCH-USP, 1993, p. 147. Dissertação de<br />

mestrado.<br />

23. ARQUIVO DA CASA SETECENTISTA DE MARIANA (doravante, ACSM). Inventário do<br />

padre João Rodrigues Cordeiro, 1792. \- oficio, códice 82, auto 1.756.<br />

24. ACSM. Inventário do cônego Chantre José Botelho Borges, 1795. \ - ofício, códice<br />

14, auto 453.<br />

25. ACSM. Inventário do padre Francisco Vieira Alves, 1781. 1 9 ofício, códice 75, auto 1.587.<br />

26. AEAM. Testamento e inventário do bispo dom frei Manuel da Cruz, 1763-1764.<br />

<strong>Arquivo</strong> 1, prateleira 13, gaveta 1.<br />

27. ACSM. Inventário do padre João Ferreira de Souza, 1777. 2- ofício, códice 46, auto<br />

1.045.<br />

28. ACSM. Inventário do padre José Teixeira de Souza, 1768. 1 9 oficio, códice 149, auto 3.134.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n 9 1-2, p. 19-52, jan/dez 1995 - pag.47


A C E<br />

29. Contamos como livros distintos até mesmo volumes para os quais os inventários<br />

não mencionam nem títulos nem autores, ou ainda, para os quais a semelhança<br />

de títulos não implica necessariamente igualdade de autor. Em nossa dissertação<br />

de mestrado (op. citj e em outro artigo (VILLALTA, Luiz Carlos. "O diabo na<br />

livraria dos inconfidentes". In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São<br />

Paulo : Companhia das Letras ; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.367-<br />

395) não usamos este critério, havendo, por isso, diferenças entre as cifras<br />

apontadas nesses trabalhos e no presente artigo.<br />

30. Ao que tudo indica, essa obra circulou muito nas Minas do século XVIII. Era das<br />

mais solicitadas aos fornecedores pelo livreiro e capitão Manuel Ribeiro, caixa e<br />

administrador dos contratos dos dízimos, nas Qerais de meados do século XVIII<br />

- apud DIN1Z, Sílvio Gabriel. "Um livreiro em Vila Rica no meado do século XVIII".<br />

In: fíriterion. Belo Horizonte: (47/48): 180-198, jan./jun. de 1959. Lucas da Costa<br />

Pereira, cirurgião residente em Paracatu, preso em 1747 pelo crime de sodomia,<br />

tinha entre seus bens seqüestrados três livros, dentre eles, a obra de Larraga<br />

(<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> da Torre do Tombo - Inquisição de Lisboa - Processo n e 205).<br />

Essa informação foi-nos gentilmente passada por Luís Roberto de Barros Mott.<br />

31. FRIEIRO, Eduardo, op. cit., p. 32.<br />

32. PICARD, Evelyne. "Une bibliothèque conventuelle aux XV1II-- siècle: les théatins<br />

de Sainte-Anne-La-Royale". In: Revue dflistoire Moderne et Contemporaine. Paris:<br />

(27) : 235-255, abr./jun. 1979.<br />

33. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />

história. 2 a ed. Belo Horizonte : Imprensa Oficial, 1953, vol. 1, pp. 153-154 e<br />

RODRIGUES, José Carlos. Idéias filosóficas e políticas em Minas Gerais na primeira<br />

metade do século XIX. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : EDUSP, 1986, p. 31.<br />

34. AEAM. Processo de habilitação para ordens de Luiz Vieira. Encadernado, armário<br />

1, 3* prateleira; e TRINDADE, cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro<br />

Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1951, pp. 196-231.<br />

35. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />

história, op. cit., pp.76-81.<br />

36. VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada dos vícios', op. cit., pp. 96-100.<br />

37. Idem, ibidem, pp. 133-134 e 137-139.<br />

38. EDITAL da Real Mesa Censória de 06 de abril de 1769. In: Coleção das leis e<br />

alvarás que compreende o Feliz Reinado D'EI Rey Fidelíssimo D. José I, s/ref, pp.<br />

236-237. Sobre o molinismo, veja: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio<br />

de Janeiro : Campus, 1989, p. 202 e MORA, Adelina Sarrión. Sexualidad y<br />

pag 48. jan/dez 1995


R V O<br />

confesión:la solicitación ante el Tribunal dei Santo Oficio (sigios XV1-X1X). Madrid:<br />

Alianza Editorial, 1994, pp. 206-209.<br />

39. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />

história, op.cit., pp. 76-81.<br />

40. Idem, ibidem, pp. 76-81 e CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas<br />

mineiras coloniais. São Paulo: Cia. Editora <strong>Nacional</strong>/ EDUSP, 1968, p. 58.<br />

41. AEAM. Relatório do episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concilio<br />

de Trento. Tradução do monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues.<br />

42. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1991, pp. 272-273.<br />

43. MOTT, Luiz.Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 1993, p. 117.<br />

44. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., p. 31 e TRINDADE, cônego Raimundo.<br />

Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua história, op.cit., pp. 153-154.<br />

45. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., pp. 51-55 e WERNET, Augustin. A Igreja paulista<br />

no século XIX: a reforma de d. Antônio Joaquim de Melo (185 1 -186 1). São Paulo:<br />

Ed. Ática, 1978, pp. 29-30.<br />

46. FRIEIRO, Eduardo, op. cit., p. 26.<br />

47. Idem, ibidem, pp. 44-45.<br />

48. Hipótese similar é defendida em relação ao conde de Assumar em: SOUZA, Laura<br />

de Mello e. "Estudo crítico". In: Discurso histórico e político sobre a sublevação<br />

que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro,<br />

Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994, pp. 13-56. Veja também: BERGER,<br />

Q. "Litterature et lecteurs a Grenoble aux XVIIe siècle: le public litteraire dans<br />

une capitale provinciale". In: Revue d'Mistorie Moderne et Contemporaine. Paris:<br />

(33): 132, jan./mar. 1986.<br />

49. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil -<br />

Portugal, 1750-1808. 3a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 174.<br />

50. TRINDADE, cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua<br />

história, op.cit., p. 154.<br />

51. Os atricionistas entendiam que os penitentes poderiam ser absolvidos pelo padre<br />

mesmo que se mostrassem arrependidos unicamente por temor do inferno<br />

(DELUMEAU, Jean, op. cit., pp. 45-57).<br />

52. DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução, op. cit., pp. 143-148 e 160-167,<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1-2. p. 19-52. jan/dez 1995-pag49


A C E<br />

e Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 179-193.<br />

53. A fidelidade de Pontevel aos ensinamentos da Igreja é apontada em BOSCHI,<br />

Caio César. 'As visitas diocesanas e a inquisição na Colônia". In: Revista Brasileira<br />

de História. São Paulo: 7(1 4): 161, mar./ago. 1987; TRINDADE, cônego Raimundo.<br />

Arquidiocese de Mariana, op.cit., vol.l, pp. 140-158 e CARRATO, José Ferreira,<br />

op.cit., p.64.<br />

54. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n- 345.<br />

55. Ibidem. Um 'defeito de costume' de Domingos sequer foi tangenciado nas<br />

investigações: em seu testamento, ele reconheceu ser pai de Libánia Rosa das<br />

Virgens, nascida antes que ele se tornasse presbítero (ACMS. Inventário e<br />

testamento de Domingos da Encarnação Pontevel, 1827-1829. 1. ofício, códice<br />

50, auto 1.139).<br />

56. Sobre a tensão entre o parecer e o ser no ideal de civilidade no Antigo Regime,<br />

veja: CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la Erance D'Ancien Regime, op.<br />

cit., p. 60, e REVEL, Jacques. "Os usos da civilidade". In: ARIES, Philippe &<br />

CHARTIER, Roger (org.). História da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1991, pp. 187-194.<br />

57. GONZAGA, Tomás Antônio. "Cartas chilenas". In: Obras Completas I - poesias/<br />

cartas chilenas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação/ Instituto <strong>Nacional</strong> do<br />

Livro, 1957, pp. 299-300.<br />

58. VILLALTA, Luiz Carlos. A 'torpeza diversificada dos vícios', op. cit.<br />

59. PIRES, Maria do Carmo. "De juiz a infrator: o dilema do sacerdócio mineiro no<br />

século XVIII". Comunicação apresentada na XII Encontro Regional de História da<br />

AríPUH - SãoPaulo, realizado em Campinas, em 1994, p. 7.<br />

60. VILLALTA, Luiz Carlos. A torpeza diversificada dos vícios', op. cit., pp. 96-97.<br />

61. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n- 1.318/08.<br />

62. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil -<br />

Portugal, 1750-1808, op.cit., p. 118.<br />

63. AEAM. Processo de colação do reverendo Carlos Correia de Toledo Melo como<br />

vigário da freguesia de Santo Antônio da vila de São José. Encadernado, armário<br />

1, 3" prateleira.<br />

64. RODRIGUES, José Carlos, op. cit., pp. 47-48 e WERNET, Augustin. A igreja paulista<br />

no século XIX: a reforma de d. Antônio Joaquim de Melo (1 851 -186 1). São Paulo:<br />

Ed. Ática, 1978, pp. 29-30.<br />

pag.SO. jan/dez 1995


R V O<br />

65. QUILLAUME, Thomas François Raynal. A revolução da América. Rio de Janeiro:<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, 1993, p. 84.<br />

66. ADIM, vol. 1, p. 158 e vol.2, p. 246.<br />

67. AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus. Encadernado, armário<br />

1, 3* gaveta.<br />

68. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 !<br />

ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, pp. 58-59.<br />

69. ADIM. op. cit.. vol. 2, p. 432.<br />

70. SA1NT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas<br />

Qerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, pp. 60-61; e<br />

CARRATO, José Ferreira, op. cit., p. 67.<br />

71. apud CARVALHO, côn. José Geraldo Vidigal. Ideologia e raízes sociais do clero<br />

da Conjuração - século XVIII, Minas Qerais. Viçosa: Imprensa Universitária da<br />

UFV, 1978, p.33.<br />

72. CARVALHO, côn. José Geraldo Vidigal de, op. cit., pp. 33-34.<br />

73. AEAM. Processo de habilitação para ordens de Luís Vieira. Encadernado, armário<br />

1, 3 8 prateleira e TRINDADE, cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro<br />

Preto, op. cit., pp. 196-231.<br />

74. MOTA, Carlos Guilherme. Idéias de revolução no Brasil (1789-1801): estudo das<br />

formas de pensamento. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 80.<br />

75. CHARTIER, Roger. Lectures et lecteurs dans la France D'Ancien Regime, op. cit., p. 59.<br />

76. CASSIRER, Ernst. Filosofia de la llustración. 2» ed. Madrid: Fondo de Cultura<br />

Econômica, 1993, p. 21.<br />

77. Idem, ibidem, pp. 22-26.<br />

78. Idem, ibidem, p. 37.<br />

79. A associação, pelos inconfidentes, do problema tributário à sublevação da América<br />

inglesa, e, daí, à organização da sediçáo mineira, foi sublinhada em: CARVALHO,<br />

côn. José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 15 e FIGUEIREDO, Luciano Raposo de<br />

Almeida & MUNTEAL FILHO, Oswaldo. "Prefácio". In: GUILLAUME, Thomas François<br />

Raynal, op. cit., p. 31.<br />

80. ADIM, vol. 5, pp. 246-248.<br />

81. "A rebelião que finalmente degola ou destrona um sultão é um ato tão jurídico<br />

quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens dos<br />

seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba". Rousseau, apud LEITE,<br />

Paulo Gomes. "A Maçonaria, o Iluminismo e a Inconfidência Mineira". In: Revista<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n- 1-2, p. 19-52, jan/dez 1995 - pag 51


Minas Gerais. Belo Horizonte: (33): 20, jan.1991.<br />

82. GUILLAUME, Thomas François Raynal, op. cit., p. 75.<br />

83. ADIM, op. cit., vol. 3, p. 348.<br />

0-<br />

A B S T R A C T<br />

This article focuses attention on the clerical libraries in Minas Qerais in the second<br />

half of the eighteenth century, analyzing their composition and the probably influences<br />

that they had upon their owners. Firstly, it identifies the headlines and authors that<br />

the Catolic Church used to difuse among the cleric men and the position they occupied<br />

as owners of the books. After that, it presents a quantitative analyzis of some<br />

information from the books (authors' names, titles, languages in which the books<br />

were written, matters and prices), identifying regularities and singularities and relating<br />

them to the personal biography of their owners and to the clerical state. Finally, it is<br />

shown how these libraries unfluenced their owner's sexual and political behaviors.<br />

R É S U M É<br />

Cet article traite des bibliothèques cléricales du Minas Qerais à la seconde moitié du<br />

XVlIIe siècle. 11 analyse la composition de ces bibliothèques et explique les influences<br />

possibles qu'elles ont exerce sur leurs propriétaires. 11 décrit, d'abord, les titres et<br />

les auteurs que l'Eglise Catholique essayait de répandre entre les clercs et quelles<br />

étaient les positions que ceux-là occupaient tant que propriétaires de livres. Ensuite,<br />

il fait une analyse quantitative des quelques données concernant les livres trouvés<br />

dans le bibliothèques (norns d'auteurs, títres, langue dans laquelle les livres ont été<br />

écrits, sujets, et prix), tout en identifiant des régularités et des singularités, en<br />

établissant les rapports entre elles et l'histoire personelle de leurs propriétaires et<br />

1'état clerical. Finalement, il examine dans quelle mesure les livres ont influencé le<br />

comportement sexuel et politique de leurs propriétaires.<br />

pag 52. jan/dez 1995


Berenice Cavalcante<br />

Professora associada do Departamento de História da PUC-RJ. Coordenadora do<br />

Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da PUC-RJ.<br />

Os 4<br />

letrados' los A (tua sociedade<br />

colonial s as academias e a<br />

cultura do Iluminismo no final<br />

"Concórdia, união e<br />

constância, amados<br />

companheiros, para que<br />

desprezando as batalhas da<br />

ignorância e da inveja, vos<br />

coroeis triunfantes na honra<br />

dos templos da fama e da<br />

sabedoria".<br />

Academia dos Renascidos -<br />

sermão do acadêmico José<br />

Antônio Sarre<br />

y ' ^ fato consagrado na literatura<br />

sobre o tema, o reconhe-<br />

mento da 'influência' dos<br />

filósofos iluministas franceses sobre a<br />

elite intelectual da Colônia no final do<br />

século XVIII.<br />

Se, por um lado, é inegável o desen­<br />

do século XVTII<br />

volvimento de um pensamento<br />

lustrado entre os 'letrados' da<br />

sociedade colonial, é igual­<br />

mente inegável o reconhe­<br />

cimento das diferenças e<br />

singularidades que caracterizam este<br />

pensamento tal como se apresenta na<br />

produção originada nas academias que<br />

por aqui se formaram. Acrescente-se<br />

que, face às diferenças entre as idéias<br />

dos filósofos do século XVIII, para<br />

alguns autores seria improcedente se<br />

falar em Iluminismo. Contudo, em meio<br />

a esta diversidade e pluralidade de<br />

pontos de vista, é possível reconhecer<br />

as questões comuns, a preocupação<br />

com um mesmo conjunto de problemas,<br />

as mesmas inquietações e a adoção das<br />

mesmas práticas. 1 É esta generalização<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n° 1-2, p. 53-66. jan/dez 1995 - pag.53


A C E<br />

de atitudes presentes tanto nos salões<br />

franceses, como nas universidades<br />

alemãs e escocesas, e nas sociedades<br />

literárias e academias coloniais, por<br />

exemplo, que tornam mais apropriado<br />

para o tratamento destas questões, o<br />

recurso à noção de clima de opinião 2,<br />

que designaria uma forma peculiar de<br />

se usar a inteligência, em outros termos,<br />

um tipo especial de lógica. É sob este<br />

prisma que a aludida 'influência' será<br />

(re)reexaminada.<br />

De forma resumida o que definiria o<br />

clima de opinião no século XVIII, e a<br />

sua identificação como século das<br />

Luzes, seria o privilégio concedido à<br />

filosofia como porta de entrada ao<br />

mundo do conhecimento; a utilização<br />

de um vocabulário cujas palavras-chaves<br />

seriam natureza, lei natural, razão,<br />

sentimento, humanidade e per-<br />

fectibilidade, e uma peculiar relação<br />

entre fé e razão na recusa a todo<br />

conhecimento revelado.<br />

Ao lado destas referências básicas para<br />

o tratamento de questões relacionadas<br />

ao problema do conhecimento tal como<br />

formulado no século XVIII, é ainda de<br />

se notar o predomínio de um certo<br />

estilo, particularmente no que diz<br />

respeito às formas de sociabilidade. A<br />

constituição das monarquias abso-<br />

lutistas nos séculos XVI e XVII,<br />

redefinindo as noções de esfera pública<br />

e privada, respectivamente, como<br />

espaço de exercício do poder - atributo<br />

exclusivo do monarca - e espaço da<br />

pag 54, jan/dez 1995<br />

liberdade de consciência 3, alimenta a<br />

vida nos salões, academias científicas,<br />

sociedades literárias e clubes, animados<br />

pela arte da conversação, pela<br />

curiosidade científica e apreciação<br />

estética, posto que o gosto ia, pouco a<br />

pouco, se impondo como critério de<br />

discernimento.*<br />

De forma abreviada, importa sublinhar<br />

que nestas instâncias privadas os<br />

súditos vivenciavam a experiência da<br />

liberdade da opinião e de igualdade no<br />

plano das idéias, bases sobre as quais<br />

se erigiria a utopia de uma nova<br />

sociedade que reinstaurasse a harmonia<br />

) U B U OS<br />

AMERICA,<br />

NA GLORIOSA O ALT AÇAU.E PROMOÇÃO<br />

GOMES FRElREl<br />

DE ANDRADA,<br />

fct»»i m »» mm *, • . f* in»i>»


entre os cidadãos. Se a política<br />

constituía-se em atributo exclusivo ao<br />

monarca, e os assuntos religiosos em<br />

fonte de sedição e conflito entre os<br />

súditos, a restauração da paz e<br />

harmonia no meio social adviria dos<br />

progressos conquistados no plano da<br />

moral, concebida então como a grande<br />

força reformadora da humanidade. Vale<br />

lembrar ser a reforma moral a forma<br />

indireta de se fazer política ou de se<br />

proceder à crítica ao estado absolutista. 5<br />

Combinam-se desta maneira os<br />

pressupostos da nova sociedade tal<br />

como concebida pelos filósofos, aos<br />

ideais de civilidade cultivado nos<br />

salões. Tal como praticada nos salões,<br />

esta noção de civilidade, cultivando a<br />

polidez como forma de sociabilidade,<br />

pretendia a criação de um espaço<br />

protegido onde a violência fosse<br />

interditada no trato cotidiano. Este seria<br />

também um espaço de prazer, de jogo,<br />

que estimulasse a vida do espírito, onde<br />

fossem igualmente interditados o<br />

aborrecimento e o tédio. 6<br />

O cultivo da vida do espírito abriu<br />

caminho para que as belles lettres<br />

adquirissem nova dignidade em<br />

substituição à destreza nas armas como<br />

critério para o reconhecimento de<br />

mérito e distinção social. Virtude e<br />

politesse, razão e perfectibilidade<br />

constituem-se como os novos dogmas<br />

pregados pelo credo das Luzes.<br />

Em que medida a elite intelectual da<br />

Colônia, os letrados reunidos nas<br />

V o<br />

academias do final do século XVIII,<br />

partilhavam estes ideais e compor­<br />

tavam-se segundo estes parâmetros de<br />

civilidade? Em que medida nestas<br />

instâncias desenvolve-se também o<br />

estilo que caracterizava as novas formas<br />

de sociabilidade? 7<br />

Uma rápida consideração a respeito do<br />

elenco de questões que atraía o<br />

interesse da elite intelectual reunida<br />

nestas academias - os 'letrados' da<br />

sociedade colonial - pode indicar<br />

algumas pistas interessantes para o<br />

desnudamento destas indagações.<br />

Para os membros da Academia dos<br />

Esquecidos, seus propósitos voltavam-<br />

se para a implantação dos estudos<br />

históricos, divididos em quatro partes:<br />

natural, militar, eclesiástica e política,<br />

recontados através de 'máximas', e a<br />

produção de biografias - chamadas à<br />

época de 'retratos' - entre os quais os<br />

de André Vidal de Negreiros, Gaspar de<br />

Ataíde e Francisco de Morais. 8 Para os<br />

sócios da Academia dos Seletos, seus<br />

trabalhos resumiam-se a celebrar Gomes<br />

Freire de Andrade, quando de sua<br />

nomeação como comissário real para a<br />

resolução das questões de fronteira na<br />

região Sul. Este material foi reunido<br />

num volume intitulado Júbilos da<br />

América publicado em 1754. 9 Escrever<br />

uma história em homenagem ao rei d.<br />

José animava as reuniões da Academia<br />

dos Renascidos' 0 e o interesse em<br />

estudos de química e agronomia a<br />

Academia Científica do Rio de Janeiro.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1-2. p. 53-66. jan/dez 1995 - pag 55


A C E<br />

Além da definição destes objetivos em<br />

torno dos quais se congregavam, os<br />

acadêmicos organizavam um<br />

planejamento das sessões e .um<br />

programa de atividades em que «e<br />

elencavam os temas, os assuntos e os<br />

'problemas' a serem tratados nas<br />

reuniões ordinárias. A transcrição de<br />

partes desta documentação tornará mais<br />

claro o ponto desenvolvido neste artigo.<br />

Tomando-se como exemplo a Academia<br />

dos Renascidos, em sua primeira<br />

reunião foram apresentados os temas<br />

para o assunto lírico - O mútuo afeto do<br />

nosso Augustissimo Monarca -, e para<br />

os versos heróicos - Qual é de maior<br />

glória ao nosso Augusto Monarca, contar<br />

os seus felicíssimos anos depois do<br />

terremoto e geral perigo de 1 de<br />

novembro de 1755, ou contá-los depois<br />

do.sucesso de 3 de setembro do ano<br />

passado? Em qual destes horrorosos<br />

acontecimentos se mostra a providência<br />

divina mais empenhada em conservar-<br />

nos a preciosa vida de nosso Fidelíssimo<br />

Rei e Pai da Pátria?<br />

Ainda nesta primeira sessão, o<br />

secretário da academia Antônio Ferrão<br />

Castelo Branco discursou sobre o<br />

assunto que lhe fora atribuído, a saber:<br />

Paralelo entre S. M. Fidelíssima e o Pai<br />

Cristianíssimo Luiz XIV, examinando<br />

qual destes monarcas fez mais bem<br />

comum às manufaturas e ao comércio<br />

e qual deles escolheu melhores meios<br />

para fazer felizes os seus vassalos?<br />

E, finalmente, a leitura da dissertação,<br />

pag 56. jan/dez 1995<br />

da qual havia sido encarregado o<br />

terceiro censor José Pires de Carvalho<br />

e Albuquerque: O grande afeto Del Rei<br />

nosso Senhor às ciências e às artes. Em<br />

razão da quantidade de peças literárias<br />

lidas neste encontro inaugural, a sessão<br />

iniciou-se às três horas da tarde e<br />

encerrou-se às quatro da madrugada."<br />

Outro exemplo expressivo do interesse<br />

despertado pelas atividades do 'mundo<br />

do espírito', como no século XV11I se<br />

designavam as atividades relacionadas<br />

às belas letras e às artes em geral, pode<br />

também ser avaliado pelo conjunto de<br />

contribuições reunidas pelo doutor<br />

Manuel Tavares de Siqueira e Sá para a<br />

publicação de Júbilos da América: cento<br />

Júbilos da América. Lisboa: na oficina do<br />

doutor Manuel Alvares Solano, 17S4.


K V O<br />

e vinte e oito sonetos, dezesseis<br />

romances, dois elogios (um em latim),<br />

duas elegias (uma em latim), quinze<br />

epigramas em latim, cinco décimas,<br />

cinco máximas cristãs (uma em latim),<br />

oito máximas políticas (uma em latim),<br />

seis máximas militares, sendo também<br />

uma em latim.<br />

A utilização do latim era recomendada<br />

aos acadêmicos porque este idioma era<br />

o primeiro da lista das "cinco línguas<br />

mais polidas da Europa", segundo a<br />

recomendação feita pelo secretário da<br />

Academia dos Renascidos aos sócios,<br />

para elaboração de suas obras.' 2<br />

Tendo em vista este elenco de temas<br />

com os quais se ocupavam os<br />

acadêmicos - história, 'retratos', versos<br />

heróicos e assuntos líricos, comparação<br />

do monarca português ao rei francês<br />

pela via da promoção das manufaturas,<br />

ciência e artes, e a forma como seriam<br />

tratados a leitura e o debate nas<br />

reuniões 'ordinárias' - mesmo que,<br />

provisoriamente, não se considere o<br />

conteúdo e a qualidade literária das<br />

respostas apresentadas, é possível<br />

reconhecer o que acima foi identificado<br />

como o estilo da cultura do Iluminismo.<br />

São referências procedentes para que se<br />

perceba a presença de valores da vida<br />

civilizada e polida dos salões, entre os<br />

quais o apreço à arte da conversação<br />

erudita, do estímulo às belles lettres e<br />

à imaginação.<br />

Uma breve menção a alguns exemplos<br />

de temas tratados nas conferências da<br />

Academia Brasílica dos Esquecidos<br />

reforça estas interpretações acerca das<br />

relações entre o apreço da imaginação,<br />

a busca do prazer e das situações<br />

lúdicas: Um delfim salvando um<br />

naufrágio; Menino gentil que colhendo<br />

flores pisou um' áspide e A dama que<br />

revolvendo na boca pérolas, quebrou<br />

um dente. 13 Mo entanto, observa-se que<br />

não eram apenas os assuntos líricos e<br />

ditos jocosos que estimulavam a<br />

imaginação destes acadêmicos. Em<br />

outras ocasiões, os temas escolhidos<br />

revelaram inclinações eruditas, com<br />

particular predileção pela antigüidade<br />

clássica, como por exemplo: Uma<br />

estátua de Apoio ferida e desfeita por<br />

um raio; Diana assistindo o nascimento<br />

de Alexandre Magno na mesma noite em<br />

que Herostráto lhe estava queimando<br />

em seu templo ou Quem mostrou amar<br />

mais fielmente Clície ao Sol ou<br />

Endimião à Lua. Tais práticas sugerem<br />

que, nesta margem do Atlântico, criara-<br />

se uma ambiéncia que, em certos<br />

aspectos, em muito se assemelhava<br />

àquela experimentada em sociedades<br />

européias no mesmo período, quando<br />

se ensinava que: "L'áme a ses besoins<br />

comme les corps; et l'un des plus grands<br />

besoins de 1'homme est celui d'avoir<br />

1'esprit occupé. L'ennui qui suit bientôt<br />

1'inaction de l'àme est um mal si<br />

doulourex..." 14<br />

Em outro plano, a explícita comparação<br />

de d. José com o rei-sol é sugestiva. Vale<br />

lembrar que Voltaire escreveu o Século<br />

de Luiz XIV para revelar seus pontos de<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n- 1-2, p. 53-66, jan/dez 1995 - pag.57


vista acerca da história como<br />

inseparável das Luzes, isto é, da<br />

promoção das artes, ciências e belas<br />

letras. Dito de outra forma, o filósofo<br />

francês desvenda a racionalidade que,<br />

em sua perspectiva, atribuiria um<br />

sentido ao que ele mesmo inicialmente<br />

considerava um confuso amontoado de<br />

fatos. A identificação do século XVII ao<br />

soberano destaca o papel que caberia<br />

ao monarca esclarecido na promoção do<br />

progresso e felicidade de seus súditos.<br />

A proposição apresentada aos membros<br />

da Academia dos Renascidos transcrita<br />

acima sugere a presença de uma postura<br />

semelhante entre os 'letrados' da<br />

Colônia. Contudo, há algumas<br />

singularidades que devem ser<br />

destacadas. Se, por um lado, pode-se<br />

especular acerca de uma hipotética<br />

leitura' de Voltaire no que tange a<br />

adesão à concepção acerca do papel do<br />

príncipe iluminado e de sua intervenção<br />

no processo histórico, deve-se ressaltar,<br />

no entanto, que entre os letrados da<br />

sociedade colonial a compreensão da<br />

história não conquistara ainda<br />

independência em relação à crença da<br />

interferência da providência divina nos<br />

assuntos humanos, como se depreende<br />

do tema proposto para os versos<br />

heróicos, neste caso é possível<br />

identificar os traços de um mesmo<br />

pag. 58. jan/dez 1995<br />

estilo, numa certa medida de um mesmo<br />

clima de opinião, pelo partilhar de<br />

preocupações comuns que conviviam<br />

com interpretações e posturas vindas da<br />

tradição.<br />

Contudo, ainda que se mantivesse a<br />

crença na intervenção da providência<br />

divina nos acontecimentos históricos,<br />

ela não foi de porte a impedir que estes<br />

estudos históricos realizados por alguns<br />

destes acadêmicos se voltassem para<br />

novos objetos e novos campos do saber<br />

típicos do século XV1I1, como por<br />

exemplo, a 'história natural'.<br />

Consoante os princípios do Iluminismo,<br />

tratava-se de conhecer a natureza e a<br />

história como formas de conquista e de<br />

apropriação do mundo, sendo esta a<br />

face utilitária e pragmática com que se<br />

passou a conceber a razão e o sentido<br />

do conhecimento, diferenciando-se<br />

assim da noção tradicional da<br />

contemplação de verdades eternas, no<br />

caso do conhecimento histórico,<br />

buscava-se o estabelecimento da<br />

verdade em relação a fatos sobre os<br />

quais pairavam dúvidas, suspeitas de<br />

falsidade ou que se constituíssem em<br />

fonte de equívocos ou lendas. 15 Com os<br />

estudos biográficos entremeados com<br />

citações de 'máximas', buscava-se a<br />

'agudeza sentenciosa' com que<br />

deveriam ser construídos os textos<br />

E


R V O<br />

históricos. Os estudos de história apre­<br />

sentavam-se então como campo privile­<br />

giado para a valorização de comporta­<br />

mentos e virtudes morais, pois nas<br />

palavras de um destes acadêmicos era<br />

"vulgar ignorância querer ajustar um<br />

historiador à seca narração dos<br />

sucessos, sem que comente, pondere<br />

nem censure". 16<br />

O tema da moral é uma das claves em<br />

que a mencionada obra da Academia<br />

dos Seletos Júbilos da América pode ser<br />

lida. Já foi dito acima que esta obra era<br />

voltada para a "gloriosa exaltação e<br />

promoção do Ilustríssimo e Excelen­<br />

tíssimo Senhor Gomes Freire de<br />

Andrade",..."para exprimir (suas)<br />

agigantadas e superiores prendas" e,<br />

para destacar que "a todos (vários<br />

personagens de 'fama célebre') vence na<br />

erudição, nervosidade e elegância". 17<br />

A carta-circular aos acadêmicos apelava<br />

ao seu "apolíneo engenho" para uma<br />

"pública demonstração do quanto vivem<br />

completamente satisfeitos com o feliz<br />

governo do Ilustríssimo...*.<br />

Os acadêmicos dedicaram-se a tarefa de<br />

produzir uma obra voltada para a<br />

'pública demonstração', dando asas à<br />

imaginação para que os versos,<br />

romances e sonetos destacassem,<br />

invariavelmente, as suas virtudes, e para<br />

que suas ações se constituíssem em<br />

feitos dignos de louvor. É texto<br />

exemplar também para que se observe<br />

a aludida convivência das virtudes<br />

cristãs com as políticas militares, para<br />

que se conferisse mérito a um<br />

1 8<br />

personagem.<br />

Conforme os versos dos acadêmicos.<br />

Gomes Freire de Andrade "sobre os<br />

fundamentos da religião faz subir um<br />

edifício de virtudes civis e militares",<br />

"temperando a doçura com a<br />

bondade, a severidade com a alegria, a<br />

gravidade com a humanidade, a justiça<br />

com a benevolência, o respeito com o<br />

amor" alcançando assim a "concórdia<br />

das virtudes".<br />

Tendo em vista que este artigo pretende<br />

discutir questões relativas aos 'letrados'<br />

da sociedade colonial, é procedente<br />

indagar-se sobre o sentido que se pode<br />

atribuir a um texto desta natureza. Nota-<br />

se que o interesse não era apenas o de<br />

destacar qualidades morais mas, sobre­<br />

tudo, proceder ao elogio de quem as<br />

personificava. Como obra de uma das<br />

academias fundadas no século XVIII,<br />

ilustra valores, atitudes e a prática<br />

destes 'letrados', permitindo que se<br />

conheça o estilo que se pretendia<br />

cultivar.<br />

A 'concórdia das virtudes' enaltecidas<br />

em Qomes Freire de Andrade permite<br />

desvendar, em níveis distintos, a<br />

Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p 53-66. Jan/dez 1995 - pag 59


A C E<br />

valorização de uma noção de civilidade<br />

como amabilidade, como polidez e<br />

afabilidade no trato cotidiano 19, e a bus­<br />

ca da perfectibilidade humana e xia<br />

harmonia nas relações sociais, num<br />

sentido bem próximo daquele defen­<br />

dido pelo membro da Academia dos<br />

Renascidos citado na epígrafe deste texto.<br />

A valorização da 'concórdia, união e<br />

constância' entre os membros de uma<br />

sociedade apresenta-se como condição<br />

para um 'coroamento', como pré-<br />

requisito para a conquista da 'fama e<br />

da sabedoria' na medida em que fossem<br />

eliminadas a ignorância e a inveja.<br />

Portanto, neste discurso em que se<br />

promovem as 'virtudes' em detrimento<br />

dos 'vícios' há um propósito reformador<br />

de natureza moral, do qual é<br />

indissociável a perspectiva de um tempo<br />

futuro construído sobre as bases da<br />

harmonia e do congraçamento dos<br />

2 0<br />

homens.<br />

Esta é uma das faces com que se<br />

apresenta a noção de progresso que os<br />

filósofos do século XV111 forjaram ao<br />

difundir a crença no papel das Luzes e<br />

do 'esclarecimento' e sua conseqüente<br />

vitória sobre as Trevas. Vale registrar<br />

que, para Koselleck 21, é esta crença em<br />

uma sociedade originada da reforma<br />

moral de seus membros que se consti­<br />

tuiria na grande utopia do século XVUI.<br />

Ou seja, nossos acadêmicos não<br />

estariam muito distantes de um clima<br />

de opinião que alimentaria a crença<br />

numa sociedade mais próspera, mais<br />

pag 60. jan/dez 1995<br />

feliz e mais harmoniosa, em função da<br />

associação que estabelecem entre<br />

poder e saber.<br />

Todavia, em Júbilo da América as<br />

virtudes de Gomes Freire de Andrade<br />

'são trazidas a público' em tom<br />

laudatório, em que o elogio avizinha-se<br />

da fronteira da bajulação. Além disso,<br />

os elogios não se restringem ao<br />

governador e capitão geral das<br />

capitanias do Rio de Janeiro, Minas<br />

Gerais e São Paulo.<br />

Siqueira de Sá, no Prólogo ao leitor,<br />

justifica a aceitação do "honroso cargo"<br />

de secretário em razão da persuasão do<br />

presidente da Academia, padre mestre<br />

Francisco de Faria, da Companhia de<br />

Jesus. Discorrendo sobre as condições<br />

de sua indicação e o "inesperado" da<br />

situação, o secretário busca justificar a<br />

aceitação descrevendo o padre como<br />

alguém cujo "magistério temem os<br />

Platões, os Aristóteles, os Descartes e<br />

todos os demais corifeus das escolas e<br />

sistemas antigos e modernos". Se o<br />

elogio da filosofia é inquestionável, não<br />

deixa de chamar atenção o exagero em<br />

que as qualidades do jesuíta são<br />

ressaltadas. Este ponto será retomado<br />

em parte subsequente deste texto.<br />

Um pouco mais adiante enaltece a figura<br />

de outro acadêmico, Mateus Saraiva,<br />

"por sua vasta erudição", reconhecida<br />

até mesmo "nos reinos estranhos, onde<br />

melhor se conhecem, amam, estimam<br />

e premeiam os amantes e professores<br />

das belas letras e por isso nelas


florescem". Referindo-se às suas obras<br />

sobre medicina, destaca suas<br />

"descobertas adquiridas a força da<br />

experiência e observação judiciosa e de<br />

particular estudo e reflexão" (grifos<br />

nossos). Nestas passagens procede a<br />

uma dupla valorização: das atividades<br />

do mundo do espírito e do método de<br />

conhecimento preconizado pelos<br />

enciclopedistas. 22 São pontos de vista<br />

que não deixam dúvidas quanto as<br />

possibilidades em se reconhecer a<br />

aurora de um movimento ilustrado na<br />

Colônia. Contudo, esta interpretação<br />

não contempla a questão dos elogios.<br />

Mais do que isto, o que chama atenção<br />

é o elogio desmesurado - tanto no caso<br />

de Qomes Freire, quanto do padre<br />

mestre e de Mateus Saraiva,<br />

neste proceder observa-se um duplo<br />

movimento: aquele através do qual são<br />

valorizados a dedicação ao<br />

conhecimento e o cultivo da 'vida do<br />

espírito', e aquele em que se afirmava<br />

a capacidade que os acadêmicos se<br />

viam portadores de julgarem e de<br />

atribuírem mérito. Esta é uma das<br />

formas com que se buscou estabelecer<br />

a mencionada relação entre saber e<br />

poder. Este deveria ser exercido pelos<br />

homens esclarecidos, por aqueles que<br />

cultivaram as virtudes úteis, para<br />

promover a felicidade, a harmonia e a<br />

concórdia, na verdade, procede-se ao<br />

auto-elogio, ou ao auto-reconhecimento,<br />

através da identificação e enumeração<br />

das qualidades dos pares. Este tipo de<br />

discurso propunha-se a identificar neles<br />

V o<br />

próprios as virtudes que idealizavam<br />

para o homem esclarecido.<br />

numa outra perspectiva de análise, tais<br />

práticas promoviam formas de<br />

sociabilidade que alimentavam o<br />

componente narcisico dos indivíduos e<br />

do grupo a que pertenciam, em primeiro<br />

lugar por diferenciá-los e distingui-los<br />

daqueles que nào participavam das<br />

academias; em segundo lugar porque<br />

reforçava a expectativa de serem<br />

julgados favoravelmente pelo grupo que<br />

integravam e, finalmente, porque,<br />

reciprocamente, se autorizavam o poder<br />

de julgar as virtudes e de atribuir o<br />

mérito. Desta forma, compreende-se<br />

melhor duas referências anteriores: a<br />

importância adquirida na época pelos<br />

retratos e a expectativa de "coroamento<br />

nos templos da fama e da sabedoria",<br />

em tempo futuro. 23<br />

Esta é a dimensão em que a experiência<br />

da igualdade pode ser vivenciada, pois<br />

o que tais práticas viabilizavam era a<br />

confirmação da imagem que faziam de<br />

si mesmos. A almejada harmonia<br />

apresentava-se como cumplicidade pois<br />

a bajulação promovia um tipo especial<br />

de troca no convívio social em que<br />

palavras elogiosas eram trocadas por<br />

favores, razão pela qual os príncipes<br />

eram os alvos preferidos deste tipo de<br />

procedimento, no caso em tela, pode-<br />

se bem substituir a relação príncipe/<br />

súdito pela do colonizador/colono. Se,<br />

por um lado, o elogio exacerbado<br />

alimentava o prazer no nível da imagem<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 55-66. jan/dez 1995 - pag.61


não impedia, no entanto, que a<br />

violência expulsa do convívio social, em<br />

nome do estabelecimento de relações<br />

civilizadas, retornasse sob a máscara da<br />

palavra polida e promovesse a quebra<br />

da harmonia, porque mascarava, na<br />

figura do bajulador, a humilhação e<br />

alimentava, no polo oposto, o desejo de<br />

vingança , 2*<br />

Para não incorrer nos riscos de uma<br />

explicação extremamente simplificada<br />

dos conflitos latentes na sociedade<br />

colonial, nos limites deste artigo pode-<br />

se apenas sugerir, como hipótese, serem<br />

as condutas 'veladas' sua forma de<br />

manifestação. De resto, o 'masca-<br />

ramento', o recurso ao 'encoberto' e ao<br />

'segredo' foram marcas da cultura iluminista<br />

no século XVIII, como se pode confirmar,<br />

tomando-se como exemplo os estatutos da<br />

Sociedade Literária, redigidos por Silva<br />

Alvarenga em 1794 25:<br />

1. A boa fé e o segredo de modo a que<br />

ninguém saiba do que se tratou na<br />

sociedade; II. Não deve haver superio­<br />

ridade alguma nesta sociedade que será<br />

dirigida igualmente por modo<br />

democrático; 111. O objeto principal será<br />

a filosofia em toda a sua extensão, no<br />

que compreende tudo quanto possa ser<br />

interessante; IV. Mão se trabalhará<br />

somente sobre matérias novas, mas<br />

também sobre as mais sabidas, porque<br />

pag 62. jan/dez 1995<br />

será útil conservar e renovar as idéias<br />

adquiridas e comunicá-las aos que<br />

tiverem falta do seu conhecimento; V.<br />

Aquele que escrever alguma memória e<br />

apresentá-la à sociedade, sem que antes<br />

nem depois comunique a pessoa<br />

alguma, exceto quando a mesma<br />

sociedade julgue que se deve por em<br />

prática, por utilidade pública; VI. Para<br />

ser admitido qualquer novo sócio deve<br />

receber boa informação de sua<br />

probidade, segredo e aplicação, de sorte<br />

que se possa esperar utilidade de sua<br />

companhia; será recebido por<br />

pluralidade de votos; Vil. Deve haver um<br />

secretário anual. Este guardará a chave<br />

do cofre, onde ficarão as memórias e<br />

tudo o mais que pertencer à sociedade,<br />

(grifos nossos).<br />

A referência explícita ao segredo, mais<br />

do que confirmar algumas das<br />

afirmações acima abre novas trilhas à<br />

investigação. O partilhar um segredo<br />

identifica os membros de uma<br />

determinada sociedade e, ipso facto,<br />

aqueles que dela estavam excluídos.<br />

Estabelecem-se assim as fronteiras entre<br />

'dois mundos' imaginários, cuja<br />

existência era fundamental para a<br />

compreensão da dualidade Luzes/<br />

Trevas, Saber/lgnorãncia. Mão se pode<br />

deixar de fazer uma menção, ainda que<br />

breve, a este paradoxo do pensamento


iluminista que náo deixa de reconhecer<br />

uma positividade no 'mal', isto é, na<br />

existência de um mundo a ser<br />

esclarecido e/ou civilizado, legitimidor<br />

do papel dos filósofos iluministas na<br />

promoção do progresso moral da<br />

2 6<br />

humanidade .<br />

O primeiro destes mundos, o das<br />

sociedades secretas, vale dizer, das<br />

academias, das sociedades literárias, ou<br />

das lojas maçônicas 27, identifica-se ao<br />

mundo 'solar', ao mundo do conheci­<br />

mento, que 'compreende tudo',<br />

representando a 'filosofia em toda sua<br />

extensão'. Este é o mundo que reúne<br />

aqueles que postulam uma outra atitude<br />

diante do conhecimento. O documento<br />

é explícito na consideração do conheci­<br />

mento como 'útil' e de 'utilidade<br />

pública' e, neste ponto em particular,<br />

deixando transparecer, com clareza, sua<br />

concepção pragmática, traço caracterís­<br />

tico do clima de opinião do Iluminismo.<br />

Postular que a verdade e o mundo náo<br />

são dados e sim 'adquiridos' e que o<br />

conhecimento deveria ter uma aplicação<br />

prática indicam um afastamento do<br />

pensamento oriundo da tradição<br />

escolástica e, por extensão, a<br />

valorização do ideais enciclopedistas.<br />

Tendo-se como referência os propósitos<br />

especificados por Silva Alvarenga, os<br />

'letrados' da sociedade colonial<br />

pautavam-se por concepções típicas da<br />

identificação do par conhecimento/<br />

poder, náo se diferenciando muito das<br />

sociedades eruditas e academias reais<br />

fundadas nas sociedades européias "em<br />

busca de meios que lhes permitissem<br />

capturar a natureza e forçá-la a revelar<br />

seus segredos". 28 Seja como elemento<br />

de 'proteção' em relação ao mundo<br />

exterior 2 9, seja como razão impul-<br />

sionadora do conhecimento do mundo<br />

natural, a noção de secreto parece cons­<br />

tituir-se em cerne destes movimentos.<br />

Foi esta irmandade criada em torno do<br />

secreto que, ao lado da liberdade de<br />

pensar vivenciada nestas agremiações,<br />

propiciou uma nova experiência para os<br />

membros destas "sociedades 'de<br />

idéias". 3 0 A denominação deriva da<br />

ênfase ao livre pensar, ao livre curso às<br />

especulações que, acreditava-se,<br />

satisfaziam às necessidades do espírito<br />

e promoveriam o 'coroamento triunfante<br />

nos templos da fama e da sabedoria'.<br />

Esta nova sociabilidade, vivenciada nas<br />

sessões e encontros dos acadêmicos -<br />

que colocavam lado a lado, o "bem<br />

nascido Qarçáo, o modesto Diniz e o<br />

cabelereiro Quita" 3 1 - propiciaram<br />

formas típicas da experiência de<br />

igualdade na sociedade colonial, em<br />

que pouco importavam as diferen­<br />

ciações oriundas de riqueza ou dos<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1-2. p. 53-66. jan/dez 1995 - pag 63


A C E<br />

'cabedais'. Os membros de uma acade- valorizador das belles lettres. Se alcan-<br />

mia igualavam-se pela identidade de<br />

propósitos e na condição de livres<br />

0<br />

pensadores.<br />

Esta teria sido a ambiência em que os<br />

'letrados' da sociedade colonial acalen­<br />

taram os sonhos de 'concórdia, uniáo e<br />

constância', e em que se expandiu um<br />

estilo tipicamente civilizado, polido e<br />

çaram os templos da glória, ou se<br />

promoveram a harmonia e felicidade é<br />

outra história, mas que (re)criaram a<br />

noção de prestígio, parece<br />

inquestionável.<br />

Pesquisa desenvolvida com apoio do<br />

CNPq.<br />

O T A S<br />

1. RE1LL, Peter Hanns. The german enlightenment and the rise of historicism. Berkeley<br />

University of Califórnia Press, 1975.<br />

2. BECKER, Carl. The heavenly city of the eighteenth century philosophers. New Maven<br />

ôt London: Yale University Press, 1932.<br />

3. KOSELLECK, Reinhart. Le règne de la critique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979.<br />

4. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A cor eloqüente. São Paulo: Siciliano, 1994.<br />

5. KOSELLECK, Reinhart, op. cit. e DARNTON, Robert. Boêmia literária e revolução.<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />

6. STAROBINSKY, Jean. L'invention de la liberte. Qenève: Albert Skira, 1987.<br />

7. Principais academias fundadas no século XVIII: Academia Brasílica dos Esquecidos<br />

(Bahia), Academia dos Felizes (Rio de Janeiro, 1736), Academia dos Seletos (Rio<br />

de Janeiro, 1752), Academia dos Renascidos (Bahia, 1758), Academia Científica<br />

do Rio de Janeiro (1881) e Sociedade Literária (Rio de Janeiro, 1794).<br />

8. PINHEIRO, cõnego J.C. Fernandes. "A Academia Brasílica dos Esquecidos. Estudo<br />

histórico e literário". In: Revista do IfíQB, 1868, vol. XXXI, pp.5-29.<br />

9. LEOPOLDO, visconde S. 'Programa histórico -. In: Revista do IfIQB. TI, 1839, pp.61-63.<br />

10. LAMEOO, Alberto. A Academia Brasílica dos Renascidos. Sua fundação e trabalhos<br />

inéditos. Paris: L'Editions d'Art, 1923.<br />

1 1. LAMEGO, Alberto, op.cit., pp.24 e 25.<br />

12. Idem, ibidem, p.26.<br />

13. CASTELO, José Aderaldo. O movimento academicista no Brasil. São Paulo:<br />

Conselho Estadual de Cultura, 1969, p. 130, passim.<br />

14. DU BOS, Abbé. Refletions critiques sur la poésie et la peinture, 1718, apud<br />

STAROBINSKY, Jean, op.cit., p. 10.<br />

pag 64. jan/dez 1995


R " V O<br />

15. Veja-se como exemplo a polêmica travada na Academia dos Renascidos em torno<br />

da dissertação do acadêmico José de Oliveira Bessa, intitulada 'Dos primeiros<br />

descobridores e povoadores da cidade da Bahia', que foi impugnada por outra,<br />

intitulada 'Apologia Cronológica em que se declara qual foi o primeiro capitão<br />

português que entrou pela barra da Bahia e qual foi o primeiro povoador que nela<br />

assentou casa e exerceu algum domínio', e que, segundo seu autor, teria gerado<br />

"uma controvérsia assás debatida", o que o levou a rever as afirmações de meia<br />

dúzia de crônicas sobre o assunto. LAMEGO, Alberto, op. cit., pp. 68-73.<br />

16. CAVALCAMTE, Berenice. "A ilustração brasileira: a leitura colonial' dos filósofos<br />

iluministas". In: Letterature D'America. Revista trimestrale. Roma: Bulzoni Editore.<br />

Anno XIII, n s 51, 1993, pp. 53-71.<br />

17. JÚBILOS DA AMÉRICA. Coleção das obras da Academia dos Seletos. Lisboa: oficina<br />

do dr. Manuel Alvares Solano, 1754.<br />

18. A titulo de exemplo pode ser citado o soneto: "Que importa, ilustre Freire, que<br />

brioso/ Reluzes, que teu nome esclarecido/ A força do buril seja esculpido/ No<br />

tempo, que edificas suntuoso! / Que importa, que pretendas cuidadoso/ Evitar o<br />

louvor, que te há devido, / Por querer que só Deus seja aplaudido/ Esse obséquio.<br />

Senhor, essa piedade/ Com que negas ao nome tanta glória,/ As raias te elevou<br />

da eternidade/ Pois ação tão ilustre e meritória/ Fará que em toda a idade/ Te<br />

eternizes nos bronzes da memória".<br />

19. STAROBINSKl, Jean. "Le mot civilization". In: Le remède dans le mal. Critique et<br />

légitimation de 1'artiflce à láge des Lumières. Paris: Gallimard, 1989.<br />

20. STAROBINSKY, Jean. "Luzes e poder em A flauta mágica". In: 1789. Os emblemas<br />

da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 132-153. Neste capitulo, o<br />

autor analisa a ópera de Mozart focalizando o embate entre Luzes e Trevas como<br />

a disputa pelo poder, encerrada, como se sabe, pela vitória do par Pamino/Tamina,<br />

que depois de vencerem todas as provas a que são submetidos, são recebidos no<br />

Templo do Sol, significando a conquista simultânea da felicidade e do saber. A ópera<br />

'lida' como maçônica, ainda sugere outra interpretação possível para as academias, como<br />

se verá em parte subsequente deste texto.<br />

21. KOSELLECK, Reinhart, op. cit., p. 147.<br />

22. DIDEROT e DALEMBERT. Enciclopédia ou dicionário racionado das ciências, das artes e<br />

dos ofícios, por uma sociedade de letrados. São Paulo: Editora UNESP, 1989.<br />

23. Ver nota 19.<br />

24. Esta hipótese toma emprestada a interpretação da fábula de La Fontaine, "A raposa<br />

e as uvas", feita por Jean Starobinsky no capítulo "Sur la flatteria", no livro Le<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 53-66. jan/dez 1993 • pag.65


emède dans le mal, pp. 61-91.<br />

25. AZEVEDO, Manuel Duarte Pereira. "Sociedades fundadas no Brasil". In: Revista do<br />

IHGB. Tomo XLV11I, p. 268. *<br />

26. MANUEL, E. Frank & MANUEL, P. Eritzie. Utopian thought in the western world.<br />

Cambridge: Belknap Press of Harvard University, 1979.<br />

27. Ver nota 19.<br />

28. ARENDT, liannah. A condição humana. Rio de Janeiro: forense Universitária, 1981,<br />

p. 291.<br />

29. COCH1N, Augustin. Sociétés et Démocratie. Paris: Librairie Plon, s/d.<br />

30. Idem, ibidem.<br />

31. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. Belo<br />

Horizonte: Itatiaia, 1981.<br />

A B S T R A C T<br />

The article discusses in what measure the 'literati' of colonial society in the academies<br />

which were founded during 18th century shared the climate of opinion which<br />

characterized the european intellectual movement of the period and developed the<br />

same style. that is, specific forms of sociability which sought civility and politeness.<br />

In the search for a happier and more harmonious society, the principies with which<br />

these men of letters intended to promote the progress of the Enlightenment will be<br />

analyzed through part of the documentation they produced.<br />

R É S U M É<br />

V article discute dans quelle mesure 'les lettrés' de la société coloniale, reunis dans<br />

les academies fondées au XVllIè siècle, partageaient la mêmepensée qui caractérisait<br />

le mouvement intellectuel européen de cette période et ont développé le méme style,<br />

c' est-à-dire, des formes spécifiques de sociabilité qui cherchaient la civilité et la<br />

politesse. Avec une partie de la documentation produite par ces hommes de lettres,<br />

sont analises les príncipes avec lesquels ils ont pretendu promouvoir le progrès des<br />

Lumières, à la recherche dune société plus heureuse et plus harmoniouse.<br />

pag.66. jan/dez 1995


Marcus Alexandre Moita<br />

Professor da UERJ. Chefe da Divisão de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> da<br />

Cidade do Rio de Janeiro. Doutorando em História - UFRJ.<br />

Servidão e dúvidas<br />

o leitor da História, do Futuro<br />

Que historiador há ou pode haver, por<br />

mais diligente investigador que seja<br />

dos sucessos presentes ou passados,<br />

que não escreva por informações? E<br />

que informações há de haver que não<br />

vão envoltas em muitos erros, ou da<br />

ignorância, ou da malícia? Que historiador<br />

houve de tão limpo coração e tão inteiro<br />

amador da verdade, que náo inclinasse o<br />

respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o<br />

amor, ou da sua, ou do seu estranho<br />

príncipe? Todas as penas nasceram em<br />

carne e sangue, e todos na tinta de escrever<br />

misturam as cores do seu afeto.'<br />

^Vara chegar a esta passagem, \<br />

o<br />

•—^leitor havia percorrido perco quase<br />

-ü. cento e cinquent íquenta páginas.<br />

Estava agora entre dois títulos: 'Verdade<br />

desta História' e 'Resposta a uma<br />

de Antônio Vieira<br />

Objeção, mostra-se que o melhor<br />

comentador das profecias é o<br />

tempo', no início do texto, havia<br />

se deparado com a gravidade da<br />

leitura de Antônio Vieira sobre a<br />

alma humana, 'quão própria é da<br />

curiosidade humana sua matéria'. 2 E<br />

diante do julgamento mordaz do jesufta,<br />

e de seu corolário inevitável - a remissão<br />

aos neo-arcaismos de nossa época -, não<br />

fora capaz de resistir ao esboço de um<br />

sorriso:<br />

... não havia coisa tão baixa e tão<br />

miúda por onde os homens não<br />

imaginassem que podiam alcançar<br />

aquele segredo que Deus não quis que<br />

eles soubessem: o ranger da porta, o<br />

estalar do vidro, o cintilar da candeia,<br />

o topar do pé, o sacudir dos sapatos.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1-2. p. 67*2. jan/dez 1995 - pag 67


A C E<br />

tudo notavam como avisos da<br />

providência e temiam como presságios<br />

do futuro. Talo da cegueira e desatino<br />

dos tempos passados, por não<br />

envergonhar a nobreza da nossa fé<br />

com a supertiçào dos presentes. 3<br />

0 anacronismo de que poderíamos ser<br />

acusados é perdoável, uma vez que se<br />

relaciona com a própria substância<br />

textual. O tempo é como o mundo,<br />

dividido em dois hemisférios, um<br />

visível-superior, o passado, e um<br />

invisível-inferior, o futuro. Vive-se indo,<br />

onde o pretérito termina e o porvir se<br />

inicia. O que resta são os horizontes do<br />

tempo, instantes presentes como nos<br />

diz Vieira. 4 É esta sensação espacial do<br />

tempo como 'superfície temporal' que<br />

subordina o leitor. Mais servo do que<br />

nunca dos malabarismos literários do<br />

jesuíta. Ma ânsia de ver o tempo<br />

realizado como matéria, afastando<br />

assim a angústia moderna, o leitor não<br />

duvida, e toma a ilusão por realidade.<br />

E o próprio Vieira é quem se encarrega<br />

de impedir o leitor de descobrir em suas<br />

linhas algo para além do que foi dito.<br />

Parece não haver escolha: se a dúvida<br />

persiste em demasia, cabe qualificar o<br />

autor como paranóico, ou outros<br />

equivalentes psicanalíticos; no caso de<br />

se manter exclusivamente servil, acaba<br />

por endossar a sua caracterização<br />

enquanto místico. Os mais refinados,<br />

dotados de um tanto mais de sutileza,<br />

preferem afirmar que a História do<br />

Futuro é uma utopia. Em qualquer dos<br />

pag 68. jan/dez 1995<br />

casos o paradigma é ainda a certeza<br />

positiva de que a linguagem está pari<br />

passu com o real.<br />

Descobrir e encobrir, estes são os<br />

verbos da graça em Antônio Vieira. Sob<br />

o domínio destes, as linhas escritas<br />

passam à vista do leitor, ansioso em<br />

interpretar, em dizer o que o escrito é.<br />

A interpretação fundada no 'é',<br />

entretanto, avaliza a resposta antes que<br />

ela compareça, permitindo a quem lê<br />

um domínio empírico sobre o texto.<br />

Poderíamos arriscar um paralelo<br />

estranho e atual: esse 'é', essa terceira<br />

pessoa do presente do indicativo,<br />

assemelha-se à terceirização da<br />

administração moderna. Dê a outros<br />

uma parte da sua responsabilidade<br />

pretérita. Se isso é elogiável no plano<br />

da gerência, não parece ser o caso no<br />

que se refere à leitura. A<br />

responsabilidade do leitor não se<br />

encontra na filiação teórica. Cabe à<br />

atividade da leitura impor a necessidade<br />

de se querer algo diferente, que não se<br />

encontra naquilo que já se sabia,<br />

mudando os propósitos e a vida<br />

anteriormente aceitos. Fora dessa tarefa<br />

o 'é' revela-se como privatização da<br />

existência, e o outro, o texto, só serve<br />

para alimentar esse projeto. O leitor se<br />

transforma em juiz a proferir sentenças,<br />

a perder de vista a imagem do sábio em<br />

permanente dúvida sobre o seu saber.<br />

É certo que em toda interpretação<br />

sobrevive uma certa defesa psíquica.<br />

Embora também nos pareça quase óbvio


o fato de estarmos tanto mais presentes<br />

na leitura quanto mais nos perdemos<br />

em analogias e anacronismos. Manter-<br />

se nesse confortável perder-se, porém,<br />

em nada acrescenta à obra lida. Se o 'é'<br />

pode identificar-se com uma leitura<br />

medíocre e passiva, a sua ruptura deve<br />

V o<br />

se processar através do verbo ser, agora<br />

tomado no pretérito imperfeito do subjuntivo:<br />

'fosse' forma idêntica ao mesmo tempo<br />

verbal do verbo ir. Dessa impressionante<br />

vinculação entre a existência e o<br />

movimento neste tempo quimérico e<br />

condicional, surge a posição de simulta-<br />

H I S T O R i Â<br />

D O<br />

FUTURO.<br />

L I V R O<br />

ANTEPRIMEYRO<br />

PROLOGOMENO A TODA A HISTOria<br />

do Faturo, cm que fe declara o fim, & fc<br />

provaó os fundamentos delia.<br />

Matéria, Verdade, & Utilidades da Hifioria<br />

dê Faturo.<br />

ESCRITO PELO PADRE<br />

ANTÔNIO VIEYR<br />

da Companhia dc JESUS, Pregador<br />

dc S. Magcftadc.<br />

LISBOA OCCIDENTAL»<br />

MtOficina


A C E<br />

neidade de subordinação e dúvida.<br />

Diante do 'é' o texto não consegue<br />

oferecer resistência, apaga-se. A<br />

interpretação subjuntiva, por mais<br />

paradoxal que pareça, alcança um grau<br />

mais elevado de realidade, no instante<br />

em que admite no texto um forte<br />

componente de resistência, a vontade<br />

de não se comunicar. Ao tentar<br />

compreendê-lo, o leitor vai descobrindo<br />

o texto e encobrindo o ser que<br />

gostaríamos que ele fosse. A leitura,<br />

agora, se encarrega de descobrir o<br />

encoberto, que ao ser descoberto<br />

necessita novamente se encobrir para<br />

garantir o seu segredo: a possibilidade<br />

ou impossibilidade da leitura, que são,<br />

enfim, a mesma coisa. Um ser e ir<br />

infindável, que obtém fim na medida em<br />

que imaginamos o 'fosse' do futuro.<br />

Os escritos de Vieira, ceifados por uma<br />

notável preocupação estética, fogem da<br />

interpretação, essa marca da moder­<br />

nidade. Anseiam por um leitor ideal,<br />

que jamais existirá por completo, pois,<br />

tal qual o 'destino', nunca se concluirá.<br />

Essa incompletude humana, que num<br />

plano mais imediato poderíamos<br />

relacionar com o próprio pensamento<br />

religioso do pecado, manifesta-se como<br />

essência de toda ação mundana.<br />

Incluindo aí a criação literária. Talvez a<br />

história do Futuro seja a sua obra mais<br />

decididamente incompleta, sensação<br />

que o leitor tem apenas ao folhear esta<br />

peça de um quase-teatro. O excesso de<br />

personagens - profetas bíblicos e<br />

mundanos, filósofos, santos, reis.<br />

pag. 70. jan/dez 1995<br />

imperadores, heróis míticos ou reais,<br />

teólogos e historiadores antigos e<br />

modernos, povos, nações, estados,<br />

cidades e mares - faz com que o enredo<br />

não se realize por falta de um palco tão<br />

amplo. Mesmo sabendo que este é 'o<br />

teatro do mundo', tal como o define<br />

Vieira, o único palco capaz de abrigar<br />

tantas histórias, tempos e mundos seria<br />

a eternidade. Disso resulta que apenas<br />

um adjetivo serve tanto para o mundo,<br />

como para o homem, para a profecia,<br />

para a História, para o tempo, para o<br />

'destino': incompleto. Como então<br />

exigir de Vieira um fim, se é algo que só<br />

existirá no dia do juízo e, então, já não será<br />

mais término e sim julgamento pretérito.<br />

Alguns leitores poderão afirmar que<br />

esse escrito se manteve incompleto,<br />

porque Vieira fora derrotado em seu<br />

desejo de Quinto Império pela<br />

Inquisição. E ainda diriam que, após tal<br />

fato, o delírio, sinônimo da derrota, se<br />

apoderou cada vez mais de sua alma,<br />

impedindo-o de dar cabo de sua história<br />

do Futuro. São explicações possíveis,<br />

mas incapazes de dar conta dessa<br />

angustiante incompletude substantiva<br />

de sua poética. Há em Vieira, e mais<br />

particularmente nesta obra analisada,<br />

uma certa retração, que aproxima e<br />

afasta o leitor, que o torna íntimo e<br />

estranho, resistindo à tentação do<br />

diálogo mudo. Só pode existir diálogo<br />

com resistência, com a confissão de sua<br />

impossibilidade. O tom confessional<br />

dos escritos de Vieira dispensa a<br />

posição intimista que caracteriza as


R V O<br />

confissões modernas. Ao contrário, nos<br />

fala do escrúpulo do erro de que sabe<br />

ter cometido, pois admite o inconfesso.<br />

O autor vem nos apresentar aquilo que<br />

ele sabe existir tão somente por direito,<br />

e não de fato, o destino: 'esta nova e<br />

nunca ouvida História'.<br />

Seria esta mais uma das belas ironias<br />

de Antônio Vieira? Talvez pudéssemos<br />

enxergar nesta 'nova e nunca ouvida<br />

História' uma exaltação alegórica da<br />

vida, o que eqüivale à sua mortificaçáo:<br />

Sós e solitariamente entramos nela (na<br />

Profecia) (mais ainda que Noé no meio<br />

do dilúvio), sem companheiro, sem<br />

guia. sem estrela nem farol, sem<br />

exemplar nem exemplo.O mar é<br />

imenso, as ondas confusas, as nuvens<br />

espessas, a noite escuríssima;<br />

esperamos no Pai dos Lumes (a cuja a<br />

glória e de seu filho servimos), tirará a<br />

salvamento a frágil barquinha: ela com<br />

maior ventura que Argos, e nós com<br />

maior que Tífis. 5<br />

A citação da mitologia exerce uma<br />

atração quase irresistível. Quem não<br />

gostaria de correr ao Dicionário<br />

mitológico greco-romano em busca de<br />

alusões simbólicas? O texto, porém,<br />

impõe uma tarefa um pouco mais árdua,<br />

e certamente mais lenta: a fruição das<br />

frases. A metáfora náutica da citação<br />

mitológica deixa de ser apenas uma<br />

referência para ganhar o estatuto de<br />

cerne da construção textual. O ritmo<br />

sequenciado é uma tônica: na insistente<br />

imagem 'sós e solitariamente' do início.<br />

no compasso ondeado de 'sem/nem', na<br />

ressonância de raiz 'exemplar/exemplo',<br />

na sonoridade recorrente de 'imenso',<br />

'ondas confusas', 'nuvens', 'noite', no<br />

uso de preposições e artigos idênticos<br />

como em 'a cuja a glória' ou 'a salva­<br />

mento a frágil barquinha', ou ainda na<br />

repetição maior/maior', da última sentença.<br />

Após esses recursos literários, a<br />

sensação predominante é a do<br />

movimento do mar. Sensação<br />

preposicional, pois manifesta-se por<br />

relação, estabelecendo proximidade<br />

entre os movimentos do mar, da vida e<br />

da profecia. Curiosa e significa­<br />

tivamente, essa sensação de movimento<br />

não foi estabelecida a partir dos verbos.<br />

Ao contrário, nesta passagem os verbos<br />

são frágeis: 'entramos', 'esperamos',<br />

'servimos', ecos graves do ritmo<br />

ondulante, apenas cortado pela certeza<br />

aguda do 'mar é' e a força futura da ação<br />

divina, tirará'. O sentido do texto é<br />

maior do que os verbos podem<br />

comportar. Só podemos alcançá-lo por<br />

aproximação, nos relacionando com os<br />

seus derivativos. O movimento aí é a<br />

própria criação da vida, cuja<br />

pressuposiçào é a fluidez e mobilidade<br />

do mar: "e o Espírito de Deus movia-se<br />

sobre as águas" (Gênesis, 1-2).<br />

Em cada frase, "(mais ainda que Noé no<br />

meio do dilúvio)" e "(a cuja glória e de<br />

seu Filho servimos)", os parênteses<br />

assumem o papel de espelhos côncavos<br />

da memória histórica da cristandade.<br />

Somos nós leitores que nos vemos<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n- 1-2. p. 67-82. jan/dez I995 pag.71


A C E<br />

refletidos nesses parênteses. Somos<br />

nós que aparecemos comparados a Moé<br />

ou servindo a Cristo. Mas a nossa<br />

imagem é deformada pelos movimentos<br />

de aproximação e afastamento<br />

produzidos pelo recurso às expressões<br />

'mais ainda que' e 'a glória de'. A<br />

primeira dá ao texto o tom de solidão<br />

profética, aproximando-nos do espelho<br />

e nos suprindo da necessária arrogância<br />

da ação cristã. A segunda afasta-nos de<br />

nossa própria imagem e nos submete à<br />

servidão divina. Tudo funciona como se<br />

Vieira, por meio deste artifício, fosse<br />

capaz de oferecer ao leitor uma textura<br />

vitrea sobre a qual interagem a<br />

profundidade mnemônica da história<br />

cristã e a superfície da atualidade.<br />

As frases de Antônio Vieira sempre<br />

lembram ao leitor outras frases<br />

anteriormente lidas; qualquer de suas<br />

imagens possui algo de familiar com<br />

célebres passagens bíblicas e com<br />

máximas mundanas. Nesse estranho<br />

contágio. Vieira comunica à atualidade<br />

do leitor problemas insolúveis da<br />

própria existência. Os especialistas<br />

admitem que seus recursos advém de<br />

um patrimônio comum a outros autores<br />

de época. Apenas náo sublinham<br />

suficientemente a grande singularidade<br />

da obra de Viera, cuja percepção o<br />

próprio jesuíta manifesta através do<br />

título escolhido, capaz de provocar um<br />

sentido inesperado na História: perdurar no<br />

tempo é náo pertencer ao próprio tempo.<br />

Do diálogo da eternidade com o tempo<br />

provém a sustentação da cristandade e<br />

pag 72. jan/dez 1995<br />

da exata necessidade de História.<br />

Conflito que é corporificado pela<br />

convivência do 'dom' e do 'roubo' em<br />

sua escrita. Como cristão precisa<br />

usurpar da eternidade a permanência,<br />

dando ao tempo o complemento do qual<br />

carece: parar. Mas Vieira duvida<br />

suficientemente do mundo e, portanto,<br />

precisa roubar da verdade aceita aquilo<br />

que ela esconde. E diante da fácil rotina<br />

em se dizer cristào, faz-se mundano.<br />

Porém, aquilo que descobre é o que nào<br />

esperava e para compreendê-lo, deve<br />

reconhecer-se enquanto detentor de um<br />

dom, ao qual serve. Desta forma,<br />

encobre o furto à verdade: a fé que o<br />

guia no mundo é insustentável no<br />

próprio mundo.<br />

Antônio Vieira sempre aguardou da<br />

leitura de seus textos, que os homens<br />

se colocassem em 'ventura' e 'ousadia',<br />

forma de expectação da alma que<br />

antecipa o futuro para tê-lo face a face.<br />

Seu sentido de profecia eqüivale à<br />

imanència da providência, maneira com<br />

a qual a vontade pode contar para "ir<br />

por diante". 6 Seguir impedindo a<br />

facilidade dos símbolos das histórias,<br />

necessitando mortificá-los, para colocar<br />

uma pedra a mais nos muros protetores<br />

da antecámera da metafísica. Lugar de<br />

onde os homens podem refletir sobre a<br />

evidência: solitariamente, sós, a<br />

caminharem sobre um chão fluido, a<br />

acreditarem num lume que o mundo dá<br />

insuficiente prova de existir, mas que<br />

sem ele nào há verdadeiramente mundo.<br />

A leitura da História do Futuro


manifesta-se como esperança, de<br />

Portugal, da Colônia, ou mesmo de<br />

qualquer homem que habita os mundos<br />

periféricos: "ainda que seja muito<br />

segura, muito firme e muito fundada a<br />

esperança, é um tormento desesperado<br />

o esperar". 7<br />

O leitor demora-se nessa frase. Por tudo<br />

V o<br />

aquilo que nos diz de tão próximo, e de<br />

tão inacessível. A concessão ao futuro<br />

surge de maneira emocional no verbo<br />

ser no presente do subjuntivo ('seja').<br />

Sensação que se estende pela repetição<br />

do advérbio 'muito'. Os adjetivos<br />

'segura', 'firme' e 'fundada', parecem<br />

querer fugir do substantivo 'esperança'<br />

Vieira, Antônio (padre). Cartas seletas do padre Antônio Vieira. Paris: em casa de Va. J.P.<br />

Aillaud, Monlon e Ca., 1856.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 67-82. jan/dez 1995 • pag 73


A C E<br />

e são amarrados por meio deste<br />

advérbio. A primeira frase aguarda o<br />

retorno da oração seguinte sobre si. As<br />

experiências atormentam, mesmo que<br />

esteja escrito o que vai acontecer.<br />

Desesperados os homens aceitam<br />

apenas dois caminhos: ou descrêem da<br />

salvação e o mundo é a pura expressão<br />

trágica, ou esperam o desenlace da<br />

'comédia'. Ma segunda oração invertida,<br />

"é um tormento desesperado o esperar",<br />

os termos se arruinam mutuamente,<br />

criando um vínculo estreito entre a<br />

destruição e a geração. Onde o todo da<br />

frase termina é ali que existe início.<br />

Querer esse acontecimento é se fazer<br />

digno daquilo que acontece, ser filho do<br />

acontecido, e por aí renascer.<br />

Essa experiência, contudo, não basta<br />

para Vieira. Equilibrando o participio<br />

verbal e o adjetivo 'desesperado',<br />

impulsiona o afeto e o faz deter-se na<br />

substância verbal do 'esperar'. Esta ação<br />

apresenta-se como limite do tormento<br />

e do desespero na medida em que lhes<br />

concede novo sentido: a coragem de<br />

experimentar a tormenta da fé.<br />

Enquanto a esperança ainda pode ser<br />

vivenciada como algo razoavelmente<br />

sólido, embora um tanto fugidio, o<br />

esperar é uma ação aterradoramente<br />

abstrata. Sem referências passadas ou<br />

futuras, esperamos. Simplesmente. E<br />

para tal precisamos desenvolver uma<br />

dupla qualidade: a paciência corajosa.<br />

Essa matriz é talhada por Vieira usando<br />

os sentidos da esperança provenientes<br />

do Velho e do novo Testamento. Ma<br />

pag. 74, jan/dez 1995<br />

tradição velho-testamentária, o sentido<br />

relaciona certeza e incerteza. A<br />

segurança do esperar independe de<br />

qualquer força humana. A esperança é<br />

a busca de refúgio, de um lugar para se<br />

por a salvo dos homens e do próprio<br />

mundo. Dessa forma, a coragem é o seu<br />

contraponto, que do refúgio lança-se ao<br />

mundo para aguardar o momento de<br />

agir. A atitude justa, na medida da<br />

coragem, busca atingir o estado supra-<br />

humano do permanecer. Mas o que<br />

permanece não é uma causa, mas o<br />

efeito invisível dessa fortaleza da<br />

espera, cujos pilares são a confiança e<br />

a fidelidade em crer. Esses suportes,<br />

entretanto, estão apoiados em um<br />

terreno essencialmente débil, pois<br />

formado pela incerteza.<br />

Vieira, se pode aceitar essa associação<br />

de esperança e coragem, não pode<br />

admitir a existência desta incerteza.<br />

Pois, se assim o fizesse, estaria<br />

confessando que aquilo que o sustenta,<br />

a fé, é insustentável no mundo. Daí<br />

buscar o sentido do Novo Testamento.<br />

Neste a esperança articula-se, num<br />

primeiro momento, com prever, temer<br />

e presumir. Assume máxima<br />

significãncia em São Paulo, a partir da<br />

expressão "fé, esperança e amor"<br />

(Coríntios 13, 13). Na realidade, a<br />

esperança, colocada entre a fé e o amor,<br />

apresenta-se como passagem entre céu<br />

e terra. Diante do pecado, essência<br />

humana, a fé absoluta cede lugar a seu<br />

correlato mundano: a esperança.<br />

Antídoto à vergonha que se sente após


pecar, a esperança recoloca o homem<br />

na direção da fé, além de capacitá-lo à<br />

ação no mundo: o amor.<br />

Vieira não assiste àquelas definições<br />

passivamente. Amor, temor, glorifi-<br />

cação, como atitudes da alma cristã,<br />

tradicionalmente aparecem relacio­<br />

nados à escatologia. O século XVII não<br />

pode mais alimentar o gosto esca-<br />

tológico. Seu simbolismo passeia como<br />

forma-limite do trágico nesse período<br />

histórico. A questão da vida não se<br />

apoia mais no transitório contraposto ao<br />

eterno, pois a transitoriedade é o assim<br />

deve ser. Sem escatologia, resta ao<br />

homem a naturalidade histórica, esse<br />

trágico que recita sua face oculta, a<br />

comédia. Nos instantes mais trágicos da<br />

vida, é possível adivinhar um sorriso<br />

mórbido. Esse sorriso é motivado, em<br />

última análise, pela certeza do sorriso<br />

final da morte. No barroco, a alegoria<br />

concede cidadania à comédia, pela<br />

mortificação aproxima tragédia e<br />

comédia, lágrimas e risos.<br />

A paciência corajosa faz fronteira, de um<br />

lado, com a morte sorridente e, de<br />

outro, com a vida em lágrimas. Para<br />

Vieira a esperança não podia ser mais<br />

uma confiança transcendental, pois o<br />

acesso ao céu está interrompido pela<br />

culpa histórica dos homens. Também<br />

inadmissível é a passividade no esperar,<br />

em função do tormento que lhe<br />

encobre, e que era fundamentalmente<br />

o erro que Vieira acusava nos judeus.<br />

Então, a matriz expressa o paroxismo<br />

da esperança, ou seja, a única forma<br />

V o<br />

cristã de estar no mundo. Paciência e<br />

coragem servem para limitar a<br />

esperança, para dar-lhe uma forma<br />

simultaneamente divina e mundana. No<br />

entanto, esse mundanismo precisa<br />

reconhecer a superioridade do domínio<br />

transcendental, o que impõe aos<br />

cristãos uma vivência periférica do<br />

próprio mundo. O amor ao mundo só<br />

pode parcialmente se confessar.<br />

Assim sendo, urge aos mundos<br />

periféricos e laterais da esperança uma<br />

paciência futura para ler todas as<br />

Histórias e a coragem ancorada no<br />

passado para escrever a 'nova e nunca<br />

ouvida História'. Que não pode se nutrir<br />

servilmente da dúvida como Descartes,<br />

e nem manter a ingênua posição de<br />

excluí-la ao servir à fé. Dar conta dessa<br />

tarefa de Hércules ou Davi é o seu<br />

projeto, necessitando, para isso,<br />

desafiar o que se sabe, arremessando<br />

um saber do que ainda náo se conhece.<br />

E, verdadeiramente, que se os bens da<br />

ciência se colhem e conhecem melhor<br />

pelos males da ignorância, achará<br />

facilmente que discorrer pelos<br />

sucessos do mundo, desde seu<br />

princípio até hoje, que foram muito<br />

menos os danos em que caíram os<br />

homens por lhes faltar a noticia do<br />

passado, que aqueles que cegamente se<br />

precipitam pela ignorância do futuro.*<br />

Segundo a ordem do tempo dessa<br />

passagem, há uma combinação entre o<br />

eterno e o agora. O acontecimento da<br />

ignorância valora, por medidas distintas.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2, p. 67-82, Jan/dez 1995-pag.75


o passado e o futuro. Pode-se até ignorar<br />

algo desse 'visivel-superior', o passado,<br />

mas improvável fica o mundo sem valor<br />

de futuro, esse 'invisível-inferior'. Ma<br />

leitura de Vieira nossos olhos fixam-se<br />

no horizonte, pois aí se encontram<br />

aquilo que ainda não existe e o que já<br />

deixou de ser. Morte e nascimento<br />

conjugam-se nessa forma de olhar,<br />

passando a ser de difícil distinção. O<br />

efeito causai torna-se inexorável; se<br />

houver desvio do horizonte, ocorre a<br />

cegueira e abre-se o abismo do porvir.<br />

Vieira propõe-se a espiar a morte de<br />

frente, como o homem renascentista,<br />

alicerçando-a, contudo, na ponte<br />

nascida da culpa necessária de matriz<br />

barroca, a História.<br />

O leitor, ao terminar aquela passagem,<br />

fica enebriado pela ressonância das<br />

terminações dos advérbios de modo,<br />

'verdadeiramente', 'facilmente', 'cega­<br />

mente'. Com este artifício Vieira libera<br />

os verbos da função sintática de arcar<br />

com a ação. Os primeiros verbos,<br />

'colhem' e 'conhecem', compassam a<br />

rima no seu limite. A estridente<br />

mensagem do futuro do presente<br />

achará' é rebaixada através do advérbio<br />

'facilmente', apresentando um agora<br />

permanente no mundo, "discorrer pelos<br />

sucessos do mundo, desde seu<br />

princípio até hoje".<br />

pag. 76, jan/dez 1995<br />

ria frase seguinte, a primeira invenção<br />

de circunstância é construída pela<br />

articulação do 'que' e 'em que' com os<br />

verbos no pretérito perfeito, 'foram' e<br />

'caíram', materializados no infinitivo<br />

'faltar'. A última frase, porém, perde o<br />

caráter de circunstância para tornar-se<br />

causai. Sua forma reforça a<br />

circunstância do 'que' por uma causa<br />

'que' adverbialmente se precipita no<br />

fundo escuro da ignorância do futuro.<br />

O passado é um 'que' ou algo 'em que'<br />

se acredita, porém, o porvir é aquele<br />

que não permite o 'se' no acreditar.<br />

Tomemos agora a passagem no seu<br />

conjunto, destacando sobretudo a<br />

importância dada por Vieira aos<br />

advérbios de modo - 'verdadeiramente',<br />

'facilmente' e 'cegamente'. A insistência<br />

na terminação 'mente', ressaltada pela<br />

constante remissão à sonoridade 'em',<br />

parece restaurar o sentido inconfesso da<br />

idéia cristã do pecado como marca do<br />

comportamento humano. Prevalece a<br />

consideração de eterna atualidade sobre<br />

o modo dos homens. O que foi escrito<br />

nos serve tão bem que náo tínhamos a<br />

possibilidade de duvidar do assunto<br />

tratado. A única coisa disponível para<br />

os homens não manterem o passado<br />

sobre si, nos ensina Vieira, é o ideal<br />

onírico de projetar a crença, pois sendo<br />

de matriz fantástica assemelha-se ao


mentir, mas sem essa fantasia de futuro<br />

não há realmente crer. As histórias,<br />

mesmo quando "em grande parte foram<br />

tiradas da fonte da mentira..." 9, têm uma<br />

substância de idealidade que lhes<br />

permite deixar de ser pretérito para ser<br />

antecipação de futuro.<br />

A ignorância é indeterminável, pois a<br />

sua manifestação só pode ser notada<br />

quando acontece. Vieira precisa admitir<br />

que o estar na História exige dos<br />

homens uma certa dose de ignorância<br />

mentirosa. Para dar às histórias colhidas<br />

e conhecidas o bem que a ciência faz,<br />

basta medir o grau do desconhe­<br />

cimento. Mas os 'sucessos do mundo'<br />

precisam superar esse bem, tornando-<br />

o natural ao próprio tempo, cujo fim é<br />

em si o seu início, a morte de qualquer<br />

bem adquirido. Valendo-se das palavras<br />

'colhem e conhecem', inscreve o<br />

sentido da escolha. Como se dissesse<br />

que o porvir é uma escolha responsável<br />

por manter o sonhar, impedindo o peso<br />

do passado, que faz do presente algo<br />

muito frágil. Náo há futuro sem projeção<br />

da enteléquia pretérita, cujo correlato<br />

individual é colocar tempo entre a vida<br />

e a morte. Tempo diferente daquela<br />

temporalidade que vai daquilo que<br />

ainda não existe para aquilo que já não<br />

mais existe, que deseja a diferença da<br />

morte antes de morrer, matéria do qual<br />

é feito qualquer sonho em todos os<br />

sonos. Pois é do fantástico dos sonhos<br />

que se colhem as futuras verdades e que<br />

deixam de ser verdades quando passam.<br />

O 'ofício' e a 'obrigação' da poesia.<br />

assim nos diz Vieira, definem-se como<br />

impedimento das causas históricas: a<br />

arte poética serve para colorir o que<br />

'havia de ser' e afirmar 'como era bem<br />

que fossem', e nào para pintar o que<br />

ou como havia sido. Logo, a História do<br />

Futuro absorve o estilo poético. Para<br />

reverter os quadros desfavoráveis e<br />

fazer valer o ideal não há arma mais<br />

poderosa do que o arranjo artesanal<br />

feito de arte e saber divino. 10 O leitor já<br />

havia percebido que, nesse livro<br />

anteprimeiro, poderia usar como<br />

referência o dizer de Aristóteles sobre<br />

as obras de Heródoto: "pois que bem<br />

poderiam ser postos em verso ... , e nem<br />

por isso deixariam de ser história, se fossem<br />

em verso o que eram em prosa"."<br />

Vieira escolhe, porém, Virgílio.<br />

Dobrado de sete lâminas dizem que era<br />

aquele escudo (o escudo de Enéias de<br />

Virgílio); e também o da nossa História,<br />

para que em tudo lhe seja semelhante,<br />

é publicado em sete livros. Mele verão<br />

os capitães de Portugal sem conselho,<br />

o que hão de resolver; sem batalha, o<br />

que hão de vencer e sem resistência,<br />

o que hão de conquistar. Sobretudo se<br />

verão nele a sl mesmos e suas<br />

valorosas ações, como em espelho,<br />

para que, com estas cópias de morte-<br />

cor diante dos olhos, retratem por elas<br />

vivamente os originais, antevendo o<br />

que hâo de obrar, para que o obrem, e<br />

1 2<br />

o que hão de ser, para que o sejam.<br />

A Eneida corre da verdade ao sentido,<br />

nào havendo como se deter em nenhum<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v 8, n' 1-2. p. 67*2,jan/dez 1995-pag.77


destes pólos. A crença desaparece no<br />

imediato de sua manifestação, em função da<br />

repressão ao fantasma que habita nas páginas<br />

que escreve, a llíada de Homero. Contudo, o<br />

Virgílio escolhido por Vieira, em detrimento<br />

de Heródoto como modelo de História, é<br />

aquele relido por Dante. Esse guia privilegiado<br />

do patrimônio comum europeu, que desce e<br />

passeia no inferno, que passa mais rápido<br />

no purgatório e se detém nas margens do<br />

paraíso terreal, dizendo: "não mais a minha<br />

voz irás ouvir: dispõe de livre e íntegra<br />

vontade, e só com ela deves prosseguir,<br />

lmponho-te o laurel da liberdade!" 15<br />

O leitor se pergunta haver algum lastro de<br />

certeza para a presença de Dante Alighierie<br />

como uma das leituras de Vieira, pois este se<br />

refere a Virgílio e não àquele. Tornar<br />

pertinente um contato que não houve de fato<br />

é uma das tarefas impostas pela leitura, que<br />

num sentido que beira o esotérico, admite a<br />

auto-interferència dos textos, independente<br />

dos sujeitos que escrevem. Caso isso não seja<br />

admitido, a configuração de um patrimônio<br />

comum seria totalmente dispensável.<br />

Após o Virgílio de Dante, toda a leitura de<br />

Eneida tornou-se uma forma poética de<br />

sentido teológico. Dante havia inaugurado<br />

a ficção como momento critico, onde o<br />

perigo reina sobre o ideal de Império e<br />

restauração da Igreja,' que é a própria<br />

expressão contrária à época em que a<br />

Esposa de Cristo se fez triunfante. Isso havia<br />

acontecido no século gótico por excelência,<br />

o XIII, para nào mais sair das vistas da<br />

religiosidade européia. O triunfo da<br />

universalidade da Igreja tinha sido pensado.<br />

pag. 78. jan/dez 1995<br />

e assim se mantinha no século de Viera,<br />

como uma obsessão de vigília na fronteira<br />

do temor de sua ruína.<br />

A máxima de Dante, "não mais a minha voz<br />

irás ouvir: dispõe de livre e íntegra vontade,<br />

e só com ela deves prosseguir. Imponho-te<br />

o laurel da liberdade!", repercute como<br />

sentido anterior à promessa de Vieira 'aos<br />

capitães portugueses', pois nunca a ruína da<br />

Igreja esteve tão presente, chegando a nós<br />

como maneira comum em se referir ao<br />

mundo. Eles e o leitor terão de se resolver<br />

sem conselhos porque no livro não há voz.<br />

Reina o silêncio, onde qualquer som expressa<br />

a gagueira da compreensão. Não há batalhas.<br />

Na leitura se vence o livro quando a ele não<br />

se resiste. Esse acontecimento é um combate<br />

conquistador dos sentidos textuais no<br />

mundo, que reavivam o que antes não se<br />

sabia querer. Onde a motivação se faz de<br />

integras vontades, despossuindo-se do que<br />

antes se amava, para desejar, livremente,<br />

descobrir o quanto de dúvidas existia naquilo<br />

que se dizia conhecer. Encobrindo a vergonha<br />

de por tanto tempo servir àquilo que<br />

realmente não acreditava.<br />

O leitor ideal de Vieira, de ontem e de<br />

hoje, se depara com a qualidade trágico-<br />

cômica da leitura. No livro se vé.<br />

Uudindo-se com as valorosas ações de<br />

sua leitura. Na frente do livro, toma as<br />

qualidades por inversão. Começa a<br />

leitura duvidando do tema, e no seu<br />

desenrolar se apresenta cada vez mais<br />

servil a ela, e qualquer outro, sentido<br />

que pudesse haver já não importa. Opta<br />

em servir ao texto, e com os deveres de


servo. Insustentável sempre, torna<br />

visível a superfície vítrea da dúvida, e o<br />

texto, agora, importa em demasia,<br />

admirando a ridícula dúvida criada.<br />

Nesse jogo de inversões imagéticas, as<br />

cópias da compreensão se anulam por<br />

um colorido sem cor, a morte-cor. Cabe<br />

entào perguntar: qual é o grau de<br />

independência quando se lê, já que o<br />

livro exige do leitor a servidão e a leitura<br />

deseja duvidar? Se o livro é a forma<br />

tradicionalmente humana de pôr o<br />

passado na frente dos olhos, tornando<br />

a leitura um futuro do pretérito, se do<br />

lado do leitor todo o olhar sobre as linhas<br />

são a maneira etimológica do futuro do<br />

presente, compreender significa ter<br />

presente o incompreensível como ideal.<br />

Sentimento estranho tanto ao leitor<br />

quanto à idéia de uma leitura metódica.<br />

O leitor vive, assim espera a<br />

honestidade, a intimidade de seu<br />

arbítrio e a autonomia de suas<br />

necessidades. Demandando as mais<br />

improváveis e insignificantes<br />

circunstâncias, onde nenhuma<br />

uniformidade de relação entre a<br />

grandeza do efeito da leitura e a<br />

importância da causa por que se lê se<br />

declaram em absoluto. O dado<br />

imcompreensível da compreensão é a<br />

questão do essencialmente incompleto<br />

e essa incompletude da leitura torna-se<br />

o laurel da liberdade ao impedir a<br />

manifestação fácil dos determinismos<br />

de diferentes matizes.<br />

Isso levaria o leitor a se pôr de<br />

Vieira, Antônio. História do Futuro. Livro<br />

anteprimeiro. Lisboa: 1755.<br />

sobressalto? Depende da vastidão de<br />

sua inteligência, que aqui não é<br />

sinônimo de informações exatas e<br />

tangíveis, e da amplitude de sua<br />

generosidade. Vieira pede um leitor<br />

generoso. Nesse tipo de homem<br />

residem as preocupações e<br />

responsabilidades mundanas, ou seja,<br />

fazer permanecer todas as obras<br />

humanas e gratuitamente pensar como<br />

fazê-las acontecer fora de seu tempo e<br />

de sua época. Dar a tudo o que é belo,<br />

a beleza do que ainda não aconteceu e<br />

saber que aquilo que a fez existir nào<br />

mais acontece, a História do Futuro.<br />

Para tal projeto necessita-se de uma<br />

espacialidade elástica, que pela atenção<br />

de alma, preocupa-se com o correr do<br />

tempo e por isso dá respostas, sejam<br />

elas antigas ou modernas, pois o mundo<br />

nào permanece sendo uma eterna<br />

problematizaçào.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 67*2. Jan/dez 1995 - pag.79


Vieira solicita aos homens viverem os<br />

originais, 'antevendo o que hão de<br />

obrar'. Talvez seja este o motivo que o<br />

impede de terminar o que pretendeu<br />

escrever em sete capítulos como as<br />

setes lâminas do escudo de Enéias. Ao<br />

terminar a leitura do Livro anteprimeiro,<br />

prolegõmeno a toda a História do<br />

Futuro, 'em que se declara o fim e se<br />

provam os fundamentos dela', o leitor<br />

admite a clara existência de um<br />

descompasso, já que se encontra sobre<br />

as linhas da História do Futuro. A<br />

liberdade estilística que até o momento<br />

se manifestava, onde numerosas<br />

máximas de Vieira criavam uma relação<br />

de intimidade e de afastamento por<br />

perplexidade pelo que diziam<br />

anacronicamente de tão próximo, cede<br />

a uma escrita menos poética. Vieira<br />

passa a escrever de maneira muito<br />

agarrada aos argumentos que escolhe<br />

para fazer valer o seu projeto, como se<br />

se defendesse de algo. A quantidade de<br />

personagens é tanta que as páginas<br />

assumem aspecto deformado. Aparenta-<br />

se a um desafio, cuja temática é: como<br />

podes ser cristão e não acreditar na<br />

providência divina? Mas para que isso<br />

aconteça, ou deixe de acontecer, basta<br />

apenas a própria providência.<br />

Vieira vai perdendo fôlego, respira em<br />

demasia seus argumentos históricos e<br />

o futuro, que por direito pertence a<br />

Deus, sopra ameaçando apagar a chama<br />

profética. De servil ao projeto passa a<br />

duvidar timidamente, por excesso de<br />

histórias, da ação profética. Tudo<br />

pag 80, jan/dez 1995<br />

acontece por resfriamento, a luz que o<br />

fazia ver, alimentada através da<br />

conjugação de arte poética e saber<br />

bíblico, torna-se a iluminação fria do<br />

amanhecer quando o sol ainda nào se<br />

pós de pé. Mas o sol teima em não fazer<br />

o seu costumeiro caminho e dos sete<br />

livros que projetava apenas resultaram<br />

sete capítulos incompletos. Quando<br />

voltar a escrever sobre o fato profético,<br />

a Clavis Frophetarum, Vieira se retirará<br />

para o segredo do latim, descobrindo<br />

aquilo que entardece, a língua sacra,<br />

cujo sentido universalista já não mais<br />

tem sentido e novamente a incompletude<br />

se faz sua parceira.<br />

Enquanto esteve declarando os fins que<br />

imaginava para a sua obra e provava os<br />

fundamentos dessa empresa, cuidando<br />

de perto da essência da natureza<br />

humana - a curiosidade -, Vieira tinha o<br />

domínio sobre o leitor e a leitura vinha<br />

acompanhada do acirramento de tudo<br />

ver e saber. Mas ele acaba sendo servo<br />

de seu projeto, pois enquanto antevia,<br />

tudo aparentava um desenlace primo­<br />

roso. Chegando ambos ao momento<br />

próprio daquilo que antes fora preparado,<br />

o leitor frustra-se e Vieira se acanha.<br />

As fronteiras da esperança no mundo,<br />

mesmo forjadas na paciência corajosa,<br />

estão rompidas. O mundo se acelerou<br />

em demasia, não há tempo para o<br />

desenlace. Resta agora apenas antever<br />

e rezar para que aquilo que foi sonhado<br />

obtenha tempo. E sem desejar, Vieira<br />

nos deixa uma única lição: enquanto o<br />

homem projeta, antevendo o que


acontecerá, adquire a força de dar início<br />

ao tempo - criar; porém, quando quer<br />

consubstanciar o seu projeto, acontece<br />

a fatalidade - a inexistência de suficiente<br />

temporalidade.<br />

Como compreender algo é tê-lo em sua<br />

incompletude e incompreensão, se é do<br />

homem a trágica propriedade histórica<br />

do pecado, sendo o complemento<br />

intimo de seu estar no mundo, Vieira<br />

acaba deixando como rastro o modelo<br />

impossível e possível da leitura, que são<br />

a mesma coisa: antever. O ante,<br />

enquanto prefixo, significa antes ou<br />

diante. Como sufixo, é formador da<br />

terminação do particípio presente dos<br />

verbos latinos. Vieira, exímio<br />

conhecedor do latim, sabe que o<br />

particípio presente nào tem qualquer<br />

valor preciso de tempo, e, dessa<br />

maneira, figura o tempo por aquilo que<br />

lhe vê antes. A única potencialidade<br />

humana é o gerúndio, que tratando a<br />

ação e a duração ao mesmo tempo,<br />

transforma o tempo num modo de ser,<br />

o que doa ao futuro uma vida e uma<br />

vontade secreta.<br />

Aqui termina também o que poderíamos<br />

comentar sobre a História do Futuro do<br />

padre Antônio Vieira, da Companhia de<br />

Jesus. E se há algum relevo nessa<br />

antevisão da obra de Vieira é fazer<br />

ressoar, no momento desse ensaio, o<br />

que fora anteriormente sentenciado por<br />

Raymond Cantei, em 1959:<br />

... a ausência de uma edição critica<br />

moderna se faz sentir. Nenhum sermão<br />

foi publicado até aqui numa edição que<br />

merecesse verdadeiramente esse<br />

nome. Ora, é a totalidade dos discursos<br />

de Vieira que deve ser assim editada.<br />

A tarefa será longa e dificil, mas essa<br />

edição é o monumento que Portugal e<br />

o Brasil devem à glória daquele que foi<br />

o maior de seus predicadores. 14<br />

M O T A S<br />

1. VIEIRA, Antônio. História do Futuro. (Introdução, atualização e notas por Maria<br />

Leonor Carvalhào Buesco). Lisboa: Imprensa Macional-Casa da Moeda, 1982, p.<br />

146. A História do Futuro do padre Antônio Vieira tem como período provável de<br />

sua composição os anos compreendidos entre 1649-1661. Admite-se este contorno<br />

temporal com reservas. O professor Adma Eadul Muhana na organização e fixação<br />

do texto "Apologia das coisas profetizadas" (Lisboa: Cotovia, 1994) demonstra a<br />

continuidade das preocupações de Vieira com esta obra no período de seu<br />

processo inquisitorial; algumas partes do texto por ele organizado se adequam<br />

ao projeto da História do Futuro do jesuíta. Embora a incompletude da obra seja<br />

concreta, a investigação de Muhana acrescenta outras partes àquelas já<br />

consagradas, cujas edições anteriores estiveram sob o controle de João Lúcio de<br />

Azevedo (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1918) e Antônio Sérgio &í Hernani<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 67-82, jan/dez 1995 - pag 81


Cidade (Lisboa: Sá da Costa, 1953, vol. V1I1-IX). no <strong>Arquivo</strong> nacional se encontram<br />

o referido a J. L de Azevedo, o Livro anteprimeiro, prolegômeno a toda História<br />

do Futuro (nas edições Lisboa: Editores J. M. C Seabra Sc F. Q. Antunes, 1855 e<br />

oficina de Antônio Pedrozo Gahan, 1718) e a História do Futuro publicada em<br />

1755 pela Oficina de Domingos Rodrigues.<br />

2. VIEIRA, Antônio, op. cit., 1982, p. 41.<br />

3. Idem, ibidem, p. 44.<br />

4. Idem, ibidem, p. 45.<br />

5. Idem, ibidem, p. 47.<br />

6. Essa expressão encontra- se no "Sermão da Sexagésima", pregado por Vieira na capela Real,<br />

em 1655.<br />

7. VIEIRA, Antônio, op. cit., 1982, p. 51.<br />

8. Idem, ibidem, p. 64.<br />

9. Idem, ibidem, p. 147.<br />

10. Idem, ibidem, p. 95.<br />

11. ARISTÓTELES. "Poética". In: Tópicos; Dos argumentos sofísticos; Metafísica; Ética<br />

a liicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores IV) p. 451.<br />

12. VIEIRA, Antônio, op. cit., p. 95.<br />

13. ALEQHIERI, Dante. A divina comédia. Belo Horizonte-Brasília: Editora Itatiaia/<br />

Fundação Pró-Memória, 1984, p. 245.<br />

14. CANTEL, Ravmond. Les sermons de Vieira - étude du style. Paris: Ediciones tlispano-Americanas,<br />

1959, p. 36.<br />

A B S T R A C T<br />

The paper is about father Antônio Vieira's prophetic History of the Future, written between<br />

1640-1660 and with several editions since the 18th Century. The Jesuits prophesying allow<br />

us to think about the question of reading, as well as to discuss the readers standpoint<br />

starting from the leveis of submission to the text and of doubt in the act of reading.<br />

R É S U M É<br />

Cest un article sur VHistória do Futuro (Histoire de 1'Avenir), ouvrage prophétique du<br />

Père Antônio Vieira, écrit en 1640-1660, qui a merlté plusieurs publications après le<br />

XVlllè siècle. Le prophétisme du Jésuite nous permet de réfléchir sur le problème de<br />

la lecture, de discuter la position du lecteur à partir des niveaux de soumission au<br />

texte et du doute dans 1'acte de lecture.<br />

paB.82.jan/oez 1995


Prof 3<br />

. Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />

Professora de História Medieval da UERJ. Doutora em História Social pela USP.<br />

Leitores do Ri© de Janeiros<br />

"Viva. assim como animais<br />

domésticos dos quais se<br />

precisa cuidar, a biblioteca<br />

particular exige que se<br />

esteja atento a ela. Da<br />

mesma forma que se muda<br />

uma planta de vaso, pode<br />

se modificar o conteúdo de<br />

suas pratileiras."<br />

Alain Nadaud<br />

Os leito :itores cariocas mais<br />

bibliotecas como jardins<br />

preocuf ipados com o cultivo<br />

de uma «ma espécie de jardim<br />

das delícias, à maneira de Montaigne,<br />

grande apreciador de livros e<br />

freqüentemente ocupado com a<br />

sobrevivência de sua biblioteca,<br />

deixaram vestígios das suas preferências<br />

das delícias<br />

literárias, sobretudo em<br />

inventários. Médicos e advogados,<br />

ciosos das escolhas feitas em vida,<br />

cuidaram para que seus acervos<br />

ficassem preservados em família ou<br />

entre amigos.<br />

Uma das maiores dificuldades que se<br />

apresentam para o aprofundamento do<br />

estudo das bibliotecas examinadas é a<br />

compreensão do diálogo entre a<br />

novidade e a herança que envolve cada<br />

um dos modelos de coleção. Para Daniel<br />

Roche falar das bibliotecas é sobretudo<br />

"tentar descrever a história da facilidade<br />

de acesso aos impressos e manuscritos<br />

nos quais intervém simultaneamente a<br />

extensão, quantificável, dos meios e das<br />

práticas, e a mudança, qualificável, da<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p 83-104. jan/dez 1995 pag83


A C E<br />

cultura de um tempo em comparação às<br />

suas práticas". 1 Esta conduta permitiria<br />

uma melhor troca de conhecimentos em<br />

virtude desta pluralidade de situações<br />

que se apresenta para o estudioso.<br />

Perceber as mudanças e as<br />

permanências através das<br />

transformações do acervo das<br />

bibliotecas pressupõe um diálogo entre<br />

o historiador e as fontes.<br />

g i j, r h.M'JJV1Í 0'Jfj££Éj}''X g/R,'<br />

A estas possibilidades acrescentam-se<br />

dificuldades, na medida que o livro<br />

guardado no espaço privado contrapõe-<br />

se, em situação, ao livro instalado para<br />

uso no espaço público. O primeiro pode<br />

ser instalado na desordem, como<br />

podemos perceber estudando os<br />

inventários, e os outros se instalavam<br />

na ordem e na classificação que se<br />

buscava aperfeiçoar, como tivemos uma<br />

amostra no caso das bibliotecas para<br />

uso público.<br />

O gabinete ideal do colégio jesuíta que<br />

testemunha, por exemplo, a obra<br />

Vocationes Autumnalis, a biblioteca de<br />

Voltaire em Ferney, a biblioteca de<br />

Montaigne como a de Diderot expõem<br />

algumas maneiras de criar um espaço que<br />

organize a vontade de proteger, de exibir,<br />

de criar um lugar adaptado ao trabalho do<br />

intelectual como a sociabilidade. 2<br />

Mas tomar esta aparente desordem das<br />

bibliotecas particulares como falta de<br />

organização é projetar nossas ansiedades<br />

contemporâneas nas formas das diversas<br />

práticas de ter, utilizar e exibir livros nos<br />

Finais do século XIX e início do século XX,<br />

pag 84 jan/dez 1995<br />

segundo as práticas em voga na época. As<br />

funções da utilização dos livros nos espaços<br />

privados envolviam leituras em voz alta,<br />

livre e fácil acesso aos livros para leituras,<br />

aqui e ali, sem compromissos rígidos com<br />

a continuidade, o tempo aberto para<br />

presença dos amigos e leitores eventuais,<br />

interessados no cultivo das sociabilidades<br />

culturais, no momento do registro cartorial<br />

durante o processo dos inventários estas<br />

diferenças também mantinham-se nítidas.<br />

Cada um deles pensou em uma<br />

organização especial para as bibliotecas,<br />

de modo que todas se formaram com<br />

características bem próprias, tendo, no<br />

entanto, alguma organicidade comum,<br />

que era o privilégio para obras de cunho<br />

profissional. Como registrou Alain<br />

Madaud\ os cuidados com a disposição<br />

que os donos deram a suas bibliotecas<br />

ajudam a organizar e compreender melhor<br />

o conteúdo de suas prateleiras e suas<br />

escolhas bibliográficas ao longo da vida.<br />

Repetindo as antigas indagações de<br />

Mornet: que livros possuíam estas<br />

pessoas? Ou, ainda, perguntando de<br />

forma mais ambiciosa, o que liam estes<br />

homens? Teremos boas respostas<br />

através dos inventários. De um total de<br />

97 advogados e 192 médicos com<br />

documentação específica no <strong>Arquivo</strong><br />

<strong>Nacional</strong> 4, foram localizados inventários<br />

que pertenciam a familiares próximos e<br />

antepassados. As datas definidas nos<br />

documentos abarcavam da segunda<br />

metade do século XIX até a segunda<br />

década do século XX.


O estudo de bibliotecas, principalmente<br />

das remanescentes de inventários,<br />

apresenta certas armadilhas para o<br />

pesquisador, como o expurgo de parte<br />

do acervo por controle da família, ou<br />

simplesmente por empréstimos ou<br />

Ari. 686<br />

Livraria».<br />

V o<br />

doações não especificados, que<br />

mascaram o perfil do conjunto, no<br />

tocante às bibliotecas examinadas,<br />

procurei, na medida do possível,<br />

diversificar as fontes de informações<br />

sobre o conjunto de livros que as<br />

A. J. Castilho d C., r. S José, 107.<br />

Adolpho de Castro Silva & C., r. Rosário, 81, Telfph. Íi02 ; sócios :<br />

'Adolpho de Castro e Silva, r. Rosário, SI e r. Barão de Mesquita, 1}.<br />

* Albino José de Castro e Silva; 2, r Rosário, 81 e r. liarão de Mesquita,<br />

12, Teleph. 5031.<br />

Alexandre Ribeiro «t C, r. Quitanda, 79 B e Rosário, 64 e depósitos r. Quitanda.<br />

58 e r. S. lose. íi8 ; sócio* :<br />

* Alexandre Augusto Ribeiro, r. Quitanda, 79 B.<br />

'Augusto Gonçalves Moreira, r. Quitanda, 79 R.<br />

Alves & C, especialidades : Urros eoilegiaea e acadêmicos, r. Gonçalves<br />

Dia*, 66 e 68, C. do Correio B. (Vide Álmanak das Províncias,<br />

pag. 10!i5 : sócios :<br />

"Francisco Alves de Oliveira, r. Gonçalves Dias, 46 e 48.<br />

* Nicolau Antônio Alves, r. Gonçalves Dias, 46 e 48, e ladeira do Senado,<br />

25 A, coiiimanditario.<br />

'Manoel Maria dos Santos, r. Gonçalves Dias, 46 e 48, interessado.<br />

I Antônio Augusto da Silva Lobo, r. Sete de Setembro, 81.<br />

Antônio Roberto Costa, r. S. José, 118.<br />

Antônio Teixeira de Castro Dias, r. Andradas, 28.<br />

Augusto Fancho, r. S. José, 94.<br />

Augusto Richanl, r. Bern. de Yasccncellot, 101.<br />

B. L. Garnier, a} 6 ; •}> 3 de P., r. Ouvidor, 71.<br />

-Brandão & Moreira Maximino. r. João Alfredo, 90, antiga da Quitanda,<br />

(Vide Notab. pag. 1918). sócio :<br />

'Antônio José Gomes Brandão, 4 5 '• • 3» Quitanda, 90, e r.<br />

Santa Amaro, 35.<br />

aVitish * P. Hblie Society, r. 7 de Setembro, 71. (Vide Notab. pag. 198»),<br />

agente:<br />

'Joio M. C. ilos Santos, r. 7 de Setembro, 71 e r. S. Joaquim, 175.<br />

Carlos Gaspar da Silva, r. Quitanda, 111 e 113, Teleph. 30<br />

Carvalhaes A C, r. Ourivrs, 55; sócios:<br />

'Carlos de Carvalhaes Pinheiro, r. Ourives, 55.<br />

'Leandro B. Pereira, r. Ourivea, 53.<br />

Crus Coutinho, r. S. J jsé 76 ; dono :<br />

* Francisco Rodrigues ds Crus Coutinho Carvalho, r. S. José, 76.<br />

Fernandes, Ribeiro & C, r. Quitanda, 71, e r. Rosário, 47 ; sócios:<br />

•Joaé Fernandes Couto, r. Quitanda, 72.<br />

'Maximiano Xavier Vas Osório, r. Quitanda, 72.<br />

'Heitor Ribeiro da Cunha, r. Quitanda, 72.<br />

ti. de Araújo A C., r. Gen. Câmara, 9; sócio :<br />

'Gabriel Pinto de Araújo, r Gen. Câmara, 9.<br />

ves Mendes AC, r. Ouvidor, 25 B e 38 ; sócios :<br />

'Júlio Gonçalves Mendes, r. Ouvidor, 25 B e 38, er. Bispo, 36 C<br />

* Antônio Manoel Fernandes da Silva, r. Ouvidor, 25 B e 38, como.<br />

* Antônio Plácido Marques, r. Ouvidor, 25 Be 88, inter.<br />

'Joaquim Cardoso Pereira, r. Ouvidor, 25 B e 38, inter.<br />

h<br />

Almamaque administrativo, mercantil e industrial da Corte e da província do Rio de Janeiro. Rio<br />

de Janeiro: Livraria Universal de E. & H. Laemmert, 1876.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n s 1-2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag 85


A C E<br />

compunham. Apesar da maioria náo<br />

estar catalogada com rigor, foi sobre<br />

esses registros que elaborei estas<br />

reflexões.<br />

Status, educação, riqueza e influência<br />

política enfeixavam-se em poucas mãos,<br />

numa cidade como o Rio de Janeiro na<br />

virada do século. 5 Os inventários, verbas<br />

testamentárias, escrituras e outros<br />

documentos de cunho particular são<br />

ótimos indicadores desta relação.<br />

Ma sua forma básica, um inventário post-<br />

mortem apresentava-se dividido em três<br />

partes: a primeira, onde o inventariante<br />

- que podia ser membro da família,<br />

amigo ou um representante legal<br />

nomeado - identificava a si e ao morto,<br />

indicando deste a profissão, o endereço<br />

residencial, os possíveis herdeiros e a<br />

causa da morte, e fazendo menção, de<br />

forma resumida, aos bens pessoais do<br />

falecido. Nessa fase poderiam ser<br />

incluídos, se existissem, o testamento<br />

e a escritura antenupcial; a segunda, na<br />

qual se apresentava a relaçào completa<br />

dos bens, com a respectiva avaliação,<br />

elaborada por profissional<br />

especialmente nomeado para esse fim,<br />

que visitava os locais onde se<br />

encontravam os pertences e relatava por<br />

escrito todos os seus passos neste<br />

processo; e a terceira, que concentrava<br />

petições e quaisquer outros pedidos<br />

formais dos interessados na herança e<br />

a conclusão sobre a partilha e/ou<br />

meaçào, quando cabíveis. 6<br />

Em diversos casos, no entanto, essa<br />

pag.86, jan/dez 1995<br />

padronização nào ocorreu. Às vezes, o<br />

escrivão generalizava suas declarações<br />

sobre os bens móveis, até pela ausência<br />

de um critério padronizado para a<br />

descrição de alguns bens, como<br />

gabinetes e bibliotecas, por parte dos<br />

funcionários encarregados desse tipo de<br />

tarefa. Com isso, prejudicava-se a<br />

caracterização dos objetos que se<br />

deseja estudar. Ao contrário, alguns<br />

eram bastante minuciosos e faziam<br />

anotações precisas. Uns ficaram<br />

inconclusos; outros, por problemas de<br />

má conservação, tornaram-se<br />

inacessíveis.<br />

Advogados e médicos eram categorias<br />

sócio-profissionais com grande<br />

participação no conjunto das atividades<br />

político-administrativas brasileiras. A<br />

produção historiográfica já tratou dessa<br />

relaçào em diversos estudos<br />

importantes. Roderick Jean Barman e<br />

José Murilo de Carvalho realizaram<br />

acuradas análises sobre a atuação dos<br />

advogados na vida política do Império<br />

e os desdobramentos do bacharelismo<br />

na vida pública brasileira, através de<br />

análises prosopográficas. Na sólida obra<br />

de Licurgo Santos filho, o tratamento<br />

dado ao papel dos médicos criou uma<br />

espécie de biografia coletiva alentada,<br />

representando uma abordagem única<br />

sobre a evolução dos conhecimentos<br />

médicos no Brasil. 7<br />

Médicos e advogados faziam parte dos<br />

17% da população livre que podiam ler<br />

e escrever. Estavam entre os eleitores.


R V O<br />

que por volta de 1889 não<br />

ultrapassavam o total de 125.000<br />

pessoas. 8 Em meados do século XIX, os<br />

currículos adotados por escolas do Rio<br />

já evidenciavam uma forte influência de<br />

autores clássicos ou franceses, ou ainda<br />

clássicos comentados por estudiosos<br />

franceses, tendência que era reforçada<br />

nos cursos universitários. 9 Ma passagem<br />

do século, esta influência se atenuou,<br />

acrescentando-se às humanidades e à<br />

gramática cursos de ciências naturais,<br />

geografia, matemática e história, que<br />

enriqueciam e ampliavam a formação. 10<br />

A verdadeira ruptura em direção a novas<br />

leituras e novas práticas ocorreu<br />

sobretudo no início do século XX, a<br />

partir dos cursos de Medicina que, desta<br />

forma, lutavam pela sua modernização.<br />

Sobretudo a partir de 1900, com a<br />

introdução de métodos científicos e<br />

experimentais, o anacronismo<br />

intelectual em vigor foi-se<br />

transformando. novas técnicas<br />

cirúrgicas, a criação de assistência<br />

sistemática aos alienados, a fundação<br />

do Instituto Oswaldo Cruz, que permitiu<br />

avanços nos estudos de medicina<br />

tropical, tudo isso colaborou na criação<br />

de uma nova tendência das pesquisas<br />

científicas, que se soltaram de suas<br />

amarras acadêmicas e oratórias para<br />

inaugurar uma nova proposta, que<br />

alcançou, inclusive, grande respeito<br />

internacional. Quanto aos advogados e<br />

juristas, as mudanças tornaram-se<br />

possíveis a partir de novas leituras de<br />

obras que lentamente se libertavam do<br />

quase exclusivismo de alguns autores,<br />

como Bentham, por exemplo."<br />

Frente às novas necessidades da clientela,<br />

as obras consumidas pelos profissionais<br />

mudaram gradativamente de perfil,<br />

obrigando a uma modificação do tipo de<br />

oferta que se fazia na propaganda das<br />

livrarias e anúncios especiais sobre livros.<br />

Estas mudanças também podem ser<br />

observadas nas obras localizadas nas<br />

bibliotecas dos profissionais em atividade,<br />

nas duas primeiras décadas de nosso<br />

século, em relação aos períodos anteriores.<br />

As novas perspectivas nacionais e<br />

internacionais exigiam uma reformulação<br />

dos critérios de formação e atualização de<br />

juristas e advogados, que foram<br />

substituindo pouco a pouco obras de<br />

Benthan por outras de Spencer e, em alguns<br />

casos, Proudhon, Tucker, Carlyle. 12<br />

Estas obras ficavam, muitas vezes,<br />

incorporadas ao acervo de livros de<br />

diversos médicos e advogados, algumas<br />

delas em razão de referências explícitas,<br />

que as tornavam de uso obrigatório em<br />

face de exigência dos currículos de<br />

colégios e outros cursos preparatórios,<br />

como Racine, Chateaubriand, Sainte-<br />

Beuve, Corneille e Molière, que podiam<br />

ser encontradas em muitas bibliotecas<br />

particulares. Outras eram adquiridas por<br />

interesses pessoais do leitor. Mas qual<br />

seria o tipo de livro que realmente<br />

ocupava os espaços das prateleiras de<br />

advogados e médicos e como as<br />

escolhas foram-se modificando? 13<br />

Em bibliotecas já compulsadas por<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n s 1-2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag.87


A C E<br />

vários estudos que trataram do tema, na<br />

transição do século XVIII para o XIX, o<br />

'livro sedicioso' ou a 'perigosa literatura<br />

francesa' 1 4 guardava um lugar<br />

especialíssimo. De uma forma ou de<br />

outra, pareciam marco de bibliotecas<br />

I.lvrarlüH (w«.«W)<br />

Guimarães A Fenlinando, r. Oufid r,S5; sócios:<br />

•Joaquim ria Coda Leite Guimarães, r. Ouvidor, 35.<br />

'Alberto Feroioando Cogorno de Oliveira, r. Ouvidor, S5.<br />

H. Lonibaert» & C, r. Ourives, l.Teleph. 20íi.e r. A»»emblc i, 76.<br />

Henrj Berger, r. Brolitlo. 26 P*. i". Milão. (Vide Notab., da Itália).<br />

J. G. de Azevedo, r. Iruguayana, 33.<br />

J. Guimarães St C.,r. Gen. (amara, 22.<br />

loão M. G doi Santos, agencia da» Kscriptura* Sagradas em diversa* línguas,<br />

r. Sete de Selem ro, 71, •• r. S. Joaquim, 173 (Vide Solai,,<br />

pag. 1989).<br />

José Aniiin o Pe rira de Araújo, r. Gonçalves Dias, 64.<br />

José Gomrs de Asevedo, r. Uruguayaoa, 33.<br />

José Joaquim de Sousa Peixoto, r. S. José, 93<br />

José de Mello:+ :! :e P., r. Quitanda, 38, C. do Correio 571<br />

Filial da antiga casa editora D.i vid Cnraiti, de Lisboa. Recebe asaignaturaa<br />

para toda* a* publicações da mesma casa. Jornves de moda* para<br />

homens e senhora*, peiiodicos illustrados, romances rm fasciculo»,<br />

obras de instrucção e recreio, etc Remessa gratuita


tinha acesso aos livros de maneira<br />

quotidiana. A leitura, por parte dos<br />

grupos escolarizados, tornou-se mais<br />

freqüente; sua presença em bibliotecas<br />

públicas ou particulares, uma rotina. 15<br />

Os inventários, verbas testamentárias,<br />

testamentos e alguns acervos particulares<br />

podem dar algumas respostas sobre o gosto<br />

pelos livros entre médicos e advogados.<br />

Muitos dos documentos do acervo<br />

vinculado ao poder judiciário, no <strong>Arquivo</strong><br />

nacional, são fontes de raro valor, mas não<br />

possuem características tão homogêneas<br />

entre si, nas referências a livros.<br />

Para que fosse possível quantificá-las e<br />

analisar seu conteúdo, cada caso foi<br />

objeto de estudo isolado quando havia<br />

vinculação com livros, bibliotecas ou<br />

quaisquer indícios que registrassem a<br />

sua existência. Havia escrivãos<br />

diligentes, que registraram cada um dos<br />

volumes encontrados; outros, menos<br />

atenciosos, ao perceberem que as obras<br />

não tinham valor significativo em<br />

relação ao monte dos bens, registraram-<br />

nas genericamente. Houve, ainda,<br />

famílias que não tiveram o cuidado de<br />

incluir os volumes existentes nas casas<br />

ou nos escritórios como parte integrante<br />

do que deveria ser avaliado.<br />

Alguns testamentos, verbas<br />

testamentárias ou inventários registram<br />

casos esporádicos de livros deixados<br />

como herança, onde se declarava o<br />

conhecimento que o doador tinha do<br />

apreço manifestado pelo herdeiro e pela<br />

V o<br />

obra que lhe havia sido destinada. As<br />

verbas testamentárias eram, por sua<br />

natureza, sintéticas, e nelas não se<br />

especificavam os volumes doados. Esse<br />

fato deixa dúvidas sobre uma outra<br />

questão, que muitas vezes não ficou<br />

explicitada: quais as obras que<br />

despertavam maior interesse nesses<br />

espaços íntimos, ou ainda, as mais<br />

valiosas dentre as existentes nas<br />

bibliotecas? na medida do possível, isto<br />

é, dentro do que o diálogo com a<br />

documentação permitiu, procurei<br />

analisar o perfil destes acervos<br />

particulares e as relações de interesse<br />

e gosto específico que uniam os<br />

integrantes de um círculo privilegiado<br />

de leitores.<br />

Estudos anteriores e a movimentação do<br />

comércio livreiro, no período, levam a<br />

respostas específicas quanto ao<br />

aparecimento habitual de determinadas<br />

obras nos acervos particulares: obras<br />

em francês, tanto clássicas quanto de<br />

literatura leve, do tipo folhetim,<br />

narrativas de viagens, poesias,<br />

romances, textos de teatro e leituras<br />

técnicas ou específicas de cada ramo<br />

profissional. A censura formal, nesse<br />

período, nào pesava tanto sobre a<br />

seleção de textos quanto, por exemplo,<br />

no começo do século XIX. Porém, as<br />

tradições morais e culturais eram fatores<br />

preponderantes na escolha dos livros a<br />

serem introduzidos no espaço<br />

doméstico. A transição do século,<br />

contudo, foi marcada por novas<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag 89


A C B<br />

tendências e influências: textos em<br />

alemão e inglês se tornaram mais<br />

habituais, além da produção de livros<br />

baratos e com textos referentes a temas<br />

de fácil vulgarização.<br />

Qilberto freire tratou por muitas vezes<br />

da questão das preferências por<br />

determinadas leituras. Examinou<br />

questionários que enviou a pessoas<br />

conhecidas, nos quais indagava sobre<br />

as opções de leitura ao longo de suas<br />

vidas. Com outras abordagens,<br />

Lawrence Mallewell, Brito Broca e<br />

Antônio Cândido trataram do tema, mas<br />

a especificidade das fontes exigirá<br />

outros tipos de abordagem, adaptadas<br />

às nossas condições, a partir dos<br />

estudos de Roger Chartier, Henry Jean<br />

Martin, Parent-Landeur, Michel Marion e<br />

Robert Darnton. 18<br />

Produzidos dentro de suas próprias<br />

casas e com o registro de seus bens<br />

mais pessoais, os documentos relativos<br />

à vida e à morte desses homens nos<br />

deixaram importantes informações,<br />

mesmo que truncadas, de suas relações<br />

com o objeto livro. Muitas vezes os<br />

documentos localizados não dizem<br />

respeito diretamente ao profissional<br />

nomeado nas listagens do Almanaque<br />

Laemmert, mas a pessoas da família.<br />

São inventários de esposas, filhos,<br />

irmãos, cunhados que expõem com<br />

bastante detalhes a vida privada de<br />

todos os envolvidos.<br />

O conselheiro Antônio Pereira Rebouças<br />

teve uma descrição de sua biblioteca<br />

pag.90. jan/dez 1995<br />

quando do falecimento de sua mulher.<br />

Os títulos arrolados apontavam para<br />

obras de interesse profissional do<br />

meeiro. Em móveis de escritório a<br />

avaliação foi de Rs. 613$000 e em<br />

livros, uma 'enorme quantidade', de Rs.<br />

2:757$500, valor importante em um<br />

monte liquido de Rs. 54:971 $446. O dr.<br />

Rebouças era advogado aprovado pelo<br />

governo brasileiro perante a Comissão<br />

1 7<br />

mista entre Brasil e Inglaterra.<br />

Primeiramente registrou-se de forma<br />

genérica algumas obras:<br />

(...) Coleções de Ordenações e seus<br />

repertórios, um deles de grande<br />

formato. Sistemas de Regimentos,<br />

Coleções de leis de edição portuguesa<br />

e das do Brasil, obras jurídicas em<br />

língua portuguesa, latina e francesa,<br />

dicionários de todas as línguas cultas,<br />

obras de politica, de ciências e de<br />

literatura em geral."<br />

O registro foi um dos mais minuciosos,<br />

definindo-se inclusive os locais das<br />

estantes onde se encontravam os livros:<br />

(...) 2' estante a direita<br />

134 - Repertório geral das leis<br />

extravagantes - 2 vols. Rs.8$000<br />

135 - Repertório geral - 3 vols. Rs.9*000<br />

136 - Legislação brasileira - 4 vols.<br />

Rs.4$000 l»<br />

Com rica e sólida mostra de exemplares<br />

vinculados a questões de<br />

jurisprudência, a biblioteca tinha<br />

numerosos livros de história, obras<br />

completas de autores franceses, como<br />

Molière, Corneille, Pascal,


R V O<br />

Chateaubriand, Montesquieu, Mirabeau.<br />

Até o número 405 da relação as obras<br />

eram todas encadernadas, sendo o<br />

restante brochuras. Pelo perfil jurídico<br />

apresentado e pelo conjunto dos livros<br />

pode-se avaliar que a biblioteca<br />

pertencia ao conselheiro. Apesar de ter<br />

deixado testamento e definido vários<br />

pequenos quinhões suplementares a<br />

cada um de seus oito herdeiros,<br />

inclusive a liberdade de uma escrava,<br />

d. Carolina não se preocupou em<br />

destinar a biblioteca, possivelmente por<br />

considerá-la como bem de seu esposo.<br />

Acervo da biblioteca da família Rebouças<br />

Teologia 10 lotes<br />

Jurisprudência 223 lotes<br />

Ciências e Artes 26 lotes<br />

Belas letras 89 lotes<br />

História 82 lotes<br />

Fonte: Inventário de Carolina Pinto Rebouças - An<br />

O doutor Luiz Pientzenauer formou-se<br />

pela Faculdade de Medicina do Rio de<br />

Janeiro, em 1845. Era membro da<br />

Academia Imperial de Medicina, sendo<br />

citado em elogio biográfico proferido<br />

pelo dr. Eduardo Augusto Pereira de<br />

Abreu, em 30 de junho de 1880, na<br />

sessão de aniversário da Academia,<br />

falecido nesse mesmo ano, em 23 de<br />

setembro, aos 50 anos de idade, teve o<br />

inventário aberto pela sua mãe, dona<br />

Emilia Carolina Viana Pientzenauer, na<br />

ausência de sua mulher, no entanto, o<br />

inventariante foi o dr. Manuel de Araújo<br />

dos Santos, responsável pelos cinco<br />

herdeiros deste médico que tivera uma<br />

prática intensa durante o exercício da<br />

profissão. Ha avaliação de seus bens foi<br />

preponderante a presença de seus<br />

instrumentos de trabalho: esqueleto<br />

desarticulado, peças anatômicas,<br />

microscópio, fórceps, sanguessugas. 20<br />

Uma maciça quantidade de livros de<br />

medicina, desde dicionários até tratados<br />

muito específicos, e dez volumes<br />

daquilo que o escrivão chamou<br />

genericamente de 'biblioteca de<br />

algibeira'. Os livros estavam assim<br />

distribuídos:<br />

Acervo da biblioteca de Luiz<br />

Pientzenauer<br />

Teologia 1 lote<br />

Jurisprudência<br />

Ciências e Artes 222 lotes<br />

Belas letras 36 lotes<br />

História 25 lotes<br />

Fonte: Inventário de Luiz Pientzenauer - AM<br />

O dr. Pientzenauer morreu deixando<br />

seus filhos em má situação financeira.<br />

A penúria em que ficaram seus<br />

herdeiros apareceu ao longo do<br />

inventário: estudaram pouquíssimo e<br />

não o seguiram nos estudos de<br />

medicina. Arthur, o filho mais velho, foi<br />

tutor do irmão Oscar, a partir do<br />

momento em que o último fez 15 anos.<br />

Hão houve registro de suas atividades e<br />

sobre Arthur mencionou-se ter<br />

trabalhado como desenhista na Estrada<br />

Acervo, Rk> de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 85-104, jan/dez 1995-pag 91


A C E<br />

de Ferro Pedro II. Júlia, a mais nova, ao<br />

fazer seu pedido de emancipação, para<br />

ter o direito de receber a doação de<br />

apólice da dívida pública, obtida por<br />

uma subvenção levantada entre alguns<br />

comerciantes da Corte, dirigiu uma<br />

petição muito enfática ao Juizo dos<br />

Órfãos: "É a suplicante pobre e sendo<br />

de pública notoriedade a sua<br />

capacidade, pede dispensa de prová-la<br />

por testemunhas, o que acarretaria<br />

despesas, incompatíveis com o seu<br />

estado atual de fortuna". 21<br />

O acervo do dr. Pientzenauer confirma<br />

a hipótese de que a formação do médico<br />

na época era abrangente. As obras<br />

arroladas passavam pelos mais<br />

diversificados temas de medicina: um<br />

guia de memória, manual de farmácia,<br />

biologia, anatomia, cirurgia, doenças de<br />

Biblioteca <strong>Nacional</strong>.<br />

pag. 92, jan/dez 1995<br />

olhos, obstetrícia, dissecação, higiene<br />

nas mulheres nervosas, sífilis, cólera<br />

morbo. Mas gostava de literatura,<br />

história e filosofia, pois entre os livros<br />

havia romances de Júlio Verne e Victor<br />

Hugo, Alexandre Herculano, Ponson de<br />

Terrail (24 volumes do Rocambole), e<br />

obras de Cantu e Pascal, além de atlas,<br />

dicionários, teses e jornais.<br />

A biblioteca foi leiloada, junto com<br />

objetos da casa, pelo leiloeiro João<br />

Bancalari, que apurou a importância<br />

líquida de Rs. 2:275$640, recolhida ao<br />

cofre dos órfãos juntamente com Rs.<br />

63$58, comissão do leiloeiro, que abriu<br />

mão em favor dos menores. 22 O monte<br />

declarado pelos avaliadores foi de Rs.<br />

10:347$235, do qual deduziram-se<br />

algumas despesas, restando Rs.<br />

9:020$065. A administração deste


quinhão náo foi suficiente para dar aos<br />

herdeiros conforto e recursos<br />

suficientes no seu processo de<br />

educação, nem para manter entre eles<br />

uma biblioteca muito diversificada e rica<br />

para os padrões estudados.<br />

O conselheiro dr. Antônio Correia de<br />

Souza Costa resolveu fazer testamento<br />

quando se deu conta de 'quão precária<br />

é a vida'. Era lente da Faculdade de<br />

Medicina da Corte. 2 4 Devido ao seu<br />

cuidado teve tempo para definir tudo<br />

que julgou importante: instituiu sua<br />

mulher, dona Camila Barreto de Souza<br />

Costa, sua primeira testamenteira, e seu<br />

cunhado o segundo, nomeou tutores<br />

para os sete filhos, o que foi positivo,<br />

pois acabou morrendo em 16 de<br />

fevereiro de 1884, deixando-os todos<br />

menores. Tinha um lastro considerável<br />

em bens: apólices e ações, dinheiro em<br />

conta-corrente no Banco Rural<br />

Hipotecário, imóveis, jóias, ouro, prata,<br />

objetos preciosos como tinteiros e<br />

escrivaninhas de prata, móveis, livros<br />

avulsos e uma livraria contendo obras<br />

de medicina e outros assuntos. 25<br />

Excetuando alguns dicionários - dois<br />

volumes do Moraes, dois de um<br />

dicionário de português-francês, outro<br />

de português-francês-latim e um lote de<br />

diversas brochuras sem maiores<br />

informações sobre títulos ou autores -<br />

os demais livros eram sobre medicina,<br />

inclusive história da medicina, filosofia<br />

da medicina e dicionários sobre higiene,<br />

em um total de volumes avaliado em Rs.<br />

V o<br />

196$000. Os temas das obras estavam<br />

assim organizados:<br />

Teologia<br />

Acervo da biblioteca de<br />

Antônio Correia de Souza Costa<br />

Jurisprudência<br />

Ciências e Artes 123 lotes<br />

Belas letras 6 lotes<br />

História 4 lotes<br />

não especificados 2 lotes<br />

fonte: Inventário de Antônio Correia de Souza Costa - ATI<br />

A avaliação dos bens atingiu Rs.<br />

94:503$405. Na sua casa, um sobrado<br />

na rua das Marrecas n. 17, estava<br />

instalado seu gabinete, onde os livros<br />

eram guardados em estantes de<br />

vinhático. Todos os itens estavam<br />

cuidadosamente registrados no<br />

inventário. A biblioteca guardava<br />

semelhanças com um espaço reservado<br />

mais ao seu saber médico do que a um<br />

local de lazer através da leitura. Os<br />

jardins das delícias, nestes casos<br />

estudados, parecem se associar mais ao<br />

conhecimento científico do que a<br />

leituras diletantes.<br />

Apesar das dívidas, o inventário de<br />

Cândido Mendes de Almeida deixa<br />

entrever uma fortuna considerável,<br />

talvez desperdiçada por maus negócios.<br />

Sua biblioteca não foi descrita quanto<br />

aos livros de outros autores, mas com<br />

as obras de autoria do proprietário, e<br />

parecia concentrar eventuais 'encalhes'<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n ! 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag.93


A C E<br />

de edições de seus livros. O número de<br />

volumes indicados era de cinco mil<br />

exemplares de obras diversas, avaliadas<br />

em dezessete contos de réis, sobretudo<br />

de exemplares extras de tiragens de<br />

textos, como o do Atlas do Império do<br />

Brasil, de Lições de um pai a um filho,<br />

Direito mercantil e de Memórias do<br />

Maranhão. O direito de contrato com<br />

B.L. Qarnier para publicação de todos<br />

os Arestos do Supremo Tribunal foi<br />

avaliado em quatrocentos mil réis. 26<br />

Cândido Mendes de Almeida nasceu em<br />

vila do Brejo, no Maranhão, no dia 16<br />

de outubro de 1818, filho do capitão<br />

Fernando Mendes de Almeida e dona<br />

Esmeria Alves de Almeida. Tornou-se<br />

bacharel em direito pela Faculdade de<br />

Olinda em 1839. Entre 1841 e 1842 foi<br />

promotor público em São Luís e obteve,<br />

por concurso, a nomeação para o cargo<br />

de professor de geografia e história no<br />

Liceu São Luís. Posteriormente,<br />

estabeleceu-se na Corte, onde exerceu<br />

numerosos cargos, chegando a senador<br />

no ano de 187 1. Jurisconsulto,<br />

historiador, sócio do IHQB, oficial da<br />

Ordem da Rosa, produziu numerosas<br />

obras durante sua vida, algumas já<br />

citadas em seu inventário. 27<br />

Por ocasião de sua morte, em 1881, parecia<br />

estar significativamente endividado,<br />

existindo no processo de inventário<br />

numerosas cobranças à viúva e<br />

inventariante, sobretudo de livreiros e<br />

editores. Alguns cálculos registrados no<br />

inventário chegaram a um total de Rs.<br />

57:000$000 de dívidas do casal, com<br />

pag. 94, jan/dez 1995<br />

exceção dos juros. Estas dificuldades<br />

refletiram-se na família, inclusive na<br />

educação dos herdeiros, que passaram a<br />

ter problemas financeiros, recorrendo a<br />

negócios com antigas ou novas edições dos<br />

livros do pai com a finalidade de obter<br />

recursos suficientes para suas despesas. Em<br />

1885, por exemplo, seu filho Cândido,<br />

menor e púbere, acadêmico do quinto ano<br />

da Faculdade de Direito de Recife, solicitou<br />

autorização ao juiz para vender ao livreiro<br />

editor B. L. Qarnier "a compra da 2a. edição<br />

do Código Filipino e auxiliar jurídico,<br />

anotado por aquele Finado pela quantia de<br />

dois contos de réis (Rs. 2:000$000) paga<br />

logo que for publicar a obra e incumbindo-<br />

se o mesmo livreiro editor de pagar a<br />

impressão do papel e a encadernação e<br />

brochura a sua custa". O juiz autorizou. 20<br />

Seus credores tornaram-se presentes no<br />

inventário. Cândido Qil Castelo, por<br />

exemplo, pretendia receber<br />

determinada quantia emprestada ao<br />

senador. Para tanto apresentou uma<br />

'escritura de dívida e penhor', cuja<br />

quarta cláusula dizia:<br />

que o outorgante para garantia desta<br />

divida (doze contos de réis originais, à<br />

época do processo nove contos e<br />

cinqüenta e sete mil réis) dà em penhor<br />

(...), a biblioteca tanto jurídica como<br />

literária excedente os mil volumes e<br />

uma apólice de seguro de sua vida (...)<br />

no valor de mil e quinhentas libras<br />

esterlinas da companhia inglesa The<br />

Royal Insurance Company (...)."<br />

Portanto sua biblioteca pessoal já estava


empenhada em vida. As dívidas<br />

acumulavam-se e compromissos como<br />

este expuseram a integridade de sua<br />

biblioteca.<br />

Ma ocasião da avaliação dos bens. em 3 de<br />

junho de 1881. os funcionários<br />

encarregados dos registros dirigiram-se à<br />

rua do Catete para descrever seus bens no<br />

domicílio e depois deslocaram-se para a rua<br />

Sete de Setembro n. 62 para anotar os bens<br />

existentes no escritório, náo sendo precisos<br />

quanto à especificação dos livros que não<br />

fossem os de sua autoria.<br />

Em 18 de agosto a Livraria Laemmert<br />

apresentou ao juiz dos Órfãos da 2 a Vara<br />

uma fatura, devida por Cândido Mendes<br />

de Almeida, onde se incluíam despesas<br />

realizadas desde 14 de setembro de<br />

1880 até janeiro de 1881 com cromos,<br />

livros de história, poesias, folhinhas,<br />

revistas, livros didáticos, textos diversos<br />

sobre legislação, que somou Rs.<br />

3 0<br />

186S000.<br />

Os negócios com livros eram bastante<br />

comuns e o inventário estava juncado<br />

de questões que envolviam este tipo de<br />

situação. Os direitos de publicação do<br />

inventariado com a livraria Qarnier, seus<br />

direitos autorais e cerca de mil obras<br />

diversas que se encontravam<br />

espalhadas, segundo o próprio original,<br />

nas bibliotecas nacional e Fluminense.<br />

Preservavam direitos de propriedade das<br />

seguintes publicações: Atlas do Império<br />

do Brasil (original). Código Filipino (com<br />

comentários pessoais e aumentado),<br />

Direito mercantil e leis da marinha.<br />

V o<br />

Memórias do Maranhão e Direito civil<br />

eclesiástico brasileiro, além de<br />

numerosos opúsculos que publicou em<br />

seu nome. Devia a H. Laemmert, por<br />

outras compras ali relacionadas, um<br />

total de 174$000 réis. 31<br />

A correspondência de Cândido Mendes<br />

caracterizou-se pela grande ênfase dada<br />

por ele a questões relacionadas com a<br />

doação de suas obras, consultas sobre<br />

catálogos das mais diversas instituições<br />

e sobre o fato de ter predileção especial<br />

por determinadas leituras. Sua<br />

biblioteca, considerando-se a ênfase<br />

dada em toda sua vida aos livros, devia<br />

ser de uma riqueza significativa.<br />

Mantinha correspondência com José<br />

Carlos Rodrigues quando este morava<br />

nos Estados Unidos da América:<br />

discutiam custos de publicações de<br />

livros, comentavam artigos do Jornal do<br />

Commercio e comparavam os<br />

problemas da escravidão no Brasil e na<br />

América. Em uma carta ao visconde de<br />

Ourem sobre a vendagem do Atlas do<br />

Brasil e publicações da Sociedade<br />

Geográfica de Londres, confessou-se<br />

maníaco por geografia. 32 Esta condição<br />

parecia ser comum a diversas<br />

personalidades da época e as vendas de<br />

livros de viagem como os Baedeker e<br />

os Quide Joanne atestavam um alto<br />

nível de interesse.<br />

Consultava seus amigos em viagens ao<br />

exterior para obter indicações de livros<br />

e publicações, como parecia ser um<br />

hábito freqüente no grupo. Alguns se<br />

Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag 95


A C<br />

justificavam na correspondência<br />

alegando que eram mal servidos pelos<br />

livreiros locais. Foi uma personalidade<br />

de convívio muito freqüente com<br />

políticos, editores, juristas, destacando-<br />

se nos meios político-culturais que<br />

compunham o círculo de leitores."<br />

Manuel da Costa Honorato, cuidadoso com<br />

o destino de seus livros, não aguardou a<br />

decisão da posteridade para definir seus<br />

caminhos. Preparou uma verba testamentária<br />

onde deixou clara a destinaçáo de todos os<br />

seus bens. Era bacharel em ciências jurídicas<br />

formado por Recife, sacerdote e vigário da<br />

igreja da Glória. Durante sua vida trabalhou<br />

como professor, tornou-se sócio do Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro, foi muito<br />

importante para o conforto de feridos e<br />

desvalidos da Guerra do Paraguai, prestando<br />

serviços através de hospital que criou no<br />

Convento de Santo Antônio. Morreu em 1891<br />

e seu irmão dr. João Batista da Costa<br />

Honorato foi seu testamenteiro. Deixou<br />

nomeados 17 herdeiros entre irmãos,<br />

sobrinhos, amigos e afilhados de batismo. 34<br />

pag 96, jan/dez 1995<br />

Foi extremamente minucioso quanto à<br />

distribuição de seus bens em dinheiro,<br />

jóias, mitra, peitoral, distintivos<br />

pontificados, o cálice de seu uso e um<br />

grande missal. Seus sapatos, roupa<br />

branca, crucifixo de marfim e<br />

paramentos receberam destinaçáo<br />

precisa, definindo uma série de<br />

situações que parecia não querer deixar<br />

pendentes, inclusive a forma de<br />

sustento de uma 'velhinha', sua tia, que<br />

morava em Pernambuco.<br />

E como não poderia listar todas as suas<br />

obras no espaço do livro da verba<br />

testamentária, deixou-os repartidos por<br />

temática para cada um que julgava mais<br />

compatível com sua utilização: "... os livros<br />

de assentamentos militares para o tenente<br />

Jorge Gustavo Tinoco da Silva; os de<br />

matérias eclesiásticas para o padre João<br />

Martins Alves de Loreto; a Coleção da<br />

Ordem do Dia do Exército para o coronel<br />

Joaquim Fernandes de Andrade e Silva; os<br />

de matéria de direito para o irmão João ...";<br />

os de literatura e 'outros' deveriam ser<br />

distribuídos entre o mesmo irmão João, o<br />

dr. Pilar Tinoco e o irmão José. ria avaliação<br />

os livros chegaram a Rs. 90$000, enquanto<br />

que as outras heranças líquidas chegaram<br />

a Rs. 2:500$000, Rs. 10:000$000 e Rs.<br />

5:902$733 com distribuições específicas<br />

em importâncias que variavam de Rs.<br />

5$000 a Rs. 500$000, salvo as heranças<br />

mais significativas restritas aos irmãos. 39<br />

O borráo do inventário e da partilha do<br />

advogado dr. Luiz José de Carvalho Melo<br />

Matos, ambos de 1882, foram muito<br />

importantes para detalhar uma biblioteca<br />

E


R V O<br />

particular dos fins do século XIX. A viúva e<br />

inventariante d. Mariana de Melo Souza<br />

Menezes Matos foi a declarante dos bens<br />

do casal. Os imóveis, um terreno e um<br />

prédio, estavam localizados na praia de<br />

Botafogo n. 156 e eram foreiros do marquês<br />

de Olinda a quem os proprietários pagavam<br />

foro de três mil réis, por cada braça de<br />

frente sobre a praia. Era um prédio de ótima<br />

qualidade, com quatro salas, três alcovas,<br />

três quartos, com a parte superior em telha<br />

vã, mas precisando de alguns reparos,<br />

sendo por isto avaliado em Rs.<br />

40:000$000. 36<br />

O casal possuía também sete escravos,<br />

móveis e demais alfaias que<br />

compunham o conjunto de bens.<br />

Específicos das instalações do gabinete<br />

eram: uma secretária de jacarandá,<br />

outra de mogno, uma estante de pinho<br />

e o conjunto de livros listados pelos<br />

avaliadores. O total era de 431 obras,<br />

com lotes organizados por temas, e às<br />

vezes autores:<br />

Acervo da biblioteca de<br />

Luiz José de Carvalho Melo Natos<br />

Teologia 9 lotes<br />

Jurisprudência 223 lotes<br />

Ciências e Artes 26 lotes<br />

Belas letras 96 lotes<br />

História 77 lotes<br />

Fonte: Inventário de L J. de Carvalho Melo Matos - Ali<br />

A maioria das obras compunha-se de títulos<br />

relativos a direito e jurisprudência (51,7%<br />

do total). 37 Quanto aos idiomas, havia 146<br />

títulos em português, 187 em francês, 43<br />

em inglês, 19 em italiano, dois em alemão,<br />

cinco em espanhol, um em grego e sete<br />

em latim. Ho final da listagem os avaliadores<br />

registraram que o valor correspondente aos<br />

livros era de Rs. 2:475$200, aí incluído o<br />

preço de um cofre.<br />

Outro jurista com livros registrados em<br />

inventário foi Carlos Frederico Taylor. 38<br />

Falecido em julho de 1890 e tendo por<br />

inventariante o conselheiro dr. Eduardo<br />

de Andrade Pinto, deixou testamento<br />

legando sua fortuna para numerosos<br />

parentes e amigos, além de ex-escravos<br />

e dependentes. Seu herdeiro universal<br />

era o filho único, Carlos Taylor. Seus<br />

bens estavam concentrados sobretudo<br />

em propriedades urbanas, algumas<br />

fazendas, carros (uma Victoria, um<br />

Phieton e um Tilbury), móveis, pratas,<br />

jóias e livros, esses últimos orçados no<br />

inventário em Rs. 246$700. O<br />

patrimônio inventariado chegou a ser<br />

3 9<br />

avaliado em Rs. 1.456:506$500.<br />

Foram listados no inventário quarenta itens<br />

em livros, sendo mencionadas em<br />

conjunto, sem maiores referências, obras<br />

em brochura localizadas em casa situada<br />

na rua São José n. 5. Porém, a casa onde<br />

foram localizados os livros náo era utilizada<br />

para moradia, pois a indicação de<br />

residência era na rua Marquês de São<br />

Vicente n. 20, em uma chácara que ficou<br />

entre os legados da viúva.<br />

Ha descrição das obras registravam-se<br />

sobretudo livros pertinentes ao exercício<br />

profissional: 32 lotes de obras de direito<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 85-104, jan/dez 1995-pag97


A C E<br />

comercial, civil e códigos criminais; dois<br />

de revistas judiciárias; cinco de obras de<br />

literatura e história e, nos itens 38 e 39,<br />

a informação 'oitenta e dois volumes<br />

diversos", avaliados em oitenta e dois mil<br />

réis, e 'cinqüenta e duas brochuras<br />

diversas" em quinhentos réis cada uma,<br />

totalizando vinte mil réis. Esta não devia<br />

ser a biblioteca particular completa do dr.<br />

Taylor. Tenho como provável que fosse<br />

um acervo utilizado para consultas<br />

profissionais, pela sua pequena dimensão<br />

e por não estar localizada em seu imóvel<br />

residencial. No entanto, este pequeno<br />

acervo foi destinado à viúva, conforme<br />

ficou caracterizado na partilha.<br />

(...) O inventariante, devidamente<br />

autorizado pagou a d. Paulina Luiza<br />

Croix Taylor, viúva do inventariado, o<br />

seu dote na importância de Rs.<br />

50:000$000, fazendo-se pagamento<br />

pela maneira seguinte: Rs. 6:317$700<br />

em bens a saber, carros na rua Marquês<br />

de S. Vicente n. 20, animais e arreios<br />

na mesma rua e número, móveis e<br />

livros (grifo meu) na rua S. José n. 5,<br />

móveis, animais, liteira... 40<br />

Sizenando Barreto Nabuco de Araújo era<br />

filho do conselheiro José Tomaz Nabuco<br />

de Araújo. Nasceu em Pernambuco,<br />

graduou-se em direito por São Paulo,<br />

vindo depois para o Rio de Janeiro onde<br />

exerceu suas tarefas profissionais como<br />

advogado e promotor público. Poi<br />

deputado à Assembléia da província do<br />

Rio e à Assembléia Qeral por<br />

Pernambuco. Considerado por<br />

pag 98. Jan/dez 1995<br />

Sacramento Blake um grande talento,<br />

dedicou-se também à literatura. 41 Seu<br />

inventário foi aberto pelo genro em 11<br />

de março de 1892. Na ocasião seus dois<br />

filhos e herdeiros - Heloise Nabuco<br />

Leonardos e José Tomaz Nabuco de<br />

Araújo - tinham respectivamente 25 e<br />

26 anos e passaram a tarefa de<br />

inventariante para Othon Leonardos<br />

Júnior, marido de Heloise. 42<br />

O dr. Sizenando faleceu sem testamento e<br />

residia à época em um quarto na ladeira da<br />

Glória n. 26. A relação dos móveis, livros e<br />

outros objetos neste endereço e no seu<br />

escritório na rua Sete de Setembro<br />

caracterizou bem as diferenças que<br />

começavam a definir-se no final do século,<br />

em relação aos padrões de vida urbanos<br />

no Rio de Janeiro.<br />

No quarto da ladeira da Glória os objetos e<br />

móveis não diferiam dos de seus colegas<br />

de profissão: um armário para livros, um<br />

outro com gavetas para papéis, uma<br />

escrivaninha, um lote de folhetos diversos<br />

e 37 volumes de obras não discriminadas.<br />

Na relação dos móveis, livros e outros<br />

objetos que existiam em seu escritório na<br />

rua Sete de Setembro n. 83 o ambiente era<br />

mais requintado e moderno, além de<br />

abrigar a maior parte de sua biblioteca<br />

composta de 451 volumes de obras<br />

diversas, com mapas, folhetos, litografias,<br />

gravura, além do mobiliário, que incluía<br />

biombo, armários para a guarda de livros,<br />

geladeira, mesa de escritório, cadeiras,<br />

relógio de parede. 43<br />

Os bens descritos foram levados a


R V O<br />

leilão, pois os credores deveriam ser<br />

ressarcidos e para tal os herdeiros<br />

abriram mão da herança. O leiloeiro<br />

Afonso A. Munes arrecadou o produto<br />

líquido de Rs. 2:610$050, de onde<br />

foram deduzidas as despesas do<br />

inventariante, ficando um saldo de Rs.<br />

702$610 à disposição dos credores. 44<br />

Somente nos itens que foram vendidos<br />

em leilão e registrados no inventário,<br />

pudemos obter uma indicação mais<br />

precisa dos livros que possuía, tais<br />

como mapas da província de São Paulo,<br />

do Brasil, cinco lotes de folhetos, sete<br />

volumes de códigos criminais italianos,<br />

nove volumes de direito criminal, 14<br />

volumes do Código Felício dos Santos,<br />

dez volumes de Ação Pública e Servil,<br />

108 volumes de legislação brasileira,<br />

entre outros.<br />

O dr. Sizenando era sócio do dr. Cândido<br />

Mendes de Almeida em um negócio de<br />

abastecimento de carnes verdes que havia<br />

falido. Pelo processo de inventário ficou<br />

clara a urgência na arrecadação para<br />

ressarcir os credores. A quantia arrecadada<br />

no leilão ficava muito aquém das dívidas<br />

do inventariado (Rs. 3:410$ 162), mesmo<br />

tendo seus herdeiros aberto mào da<br />

herança. Seus bens, reunidos com os<br />

recursos obtidos na venda de sua<br />

biblioteca, não foram suficientes para cobrir<br />

as dívidas que tinha feito durante a vida.<br />

Alguns profissionais passaram eles mesmos<br />

a organizar formas de facilitar a divulgação<br />

de obras entre seus confrades. Entre os<br />

médicos era cada vez mais acentuada esta<br />

tendência. Desde a criação da Escola de<br />

Medicina do Rio de Janeiro, em 1808, que<br />

se chamou inicialmente Escola Anatômica,<br />

Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro,<br />

denominando-se depois, em 1 s de abril de<br />

1813, Academia Médico-Cirúrgica do Rio de<br />

Janeiro, a presença de estudantes e<br />

médicos fez crescer a necessidade de<br />

publicações pertinentes na cidade, no seu<br />

estudo da medicina brasileira, Licurgo<br />

Santos Filho enfatizou a importância da<br />

escola francesa na formação dos médicos,<br />

seja por estudos na França, pelo consumo<br />

de material médico com essa origem ou<br />

pela tendência predominante da língua<br />

francesa na bibliografia utilizada, tanto na<br />

biblioteca dos cursos de medicina quanto<br />

na incidência de ofertas de publicações.<br />

A enumeração ora feita dos<br />

pesquisadores médicos franceses, bem<br />

mais numerosos do que os ingleses e<br />

alemães, patenteia o nível cultural<br />

atingido pela França no século XIX.<br />

Paris era então a capital mundial da<br />

cultura. Pois lá se formaram ou se<br />

aperfeiçoaram muitos médicos<br />

brasileiros. E foi decisiva a influência<br />

gaulesa no ensino médico-cirúrgico. no<br />

Brasil, que se exerceu através do<br />

material escolar, dos livros, dos<br />

métodos, dos regulamentos, dos<br />

programas, das leituras. 45<br />

Em 1884, Carlos Antônio de Paula<br />

Costa, bibliotecário da Faculdade de<br />

Medicina do Rio de Janeiro, preparou a<br />

Exposição Médica Brasileira e organizou<br />

seu catálogo, onde descriminou 8.079<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 83-104. jan/dez 1995 - pag,99


A C E<br />

títulos nacionais e estrangeiros,<br />

lançando em seguida uma nova<br />

publicação. Movimento científico<br />

médico brasileiro: anuário médico<br />

brasileiro, que foi divulgada de 1886 até<br />

1892. As indicações bibliográficas<br />

chegaram a atingir nove mil títulos,<br />

sendo a maioria das referências<br />

extraídas de obras francesas. 46<br />

O mais destacado exemplo de uma<br />

biblioteca médica é a de Luís<br />

Pientzenauer. Esta hipótese foi<br />

reforçada consultando a obra de Qiffoni.<br />

Mo arrolamento que fez sobre os<br />

médicos e a produção de teses e outros<br />

textos, percebe-se o interesse entre os<br />

estudiosos de medicina por obras de<br />

cunho literário ou histórico. Aparecem<br />

muito mais epígrafes inspiradas em<br />

poemas e romances do que outra<br />

citação cientifica da área. Gilberto<br />

Freire, em sua obra Ordem e progresso,<br />

enfatiza a formação humanista desses<br />

indivíduos, que usavam pseudônimos<br />

de franceses ou ingleses ilustres à guisa<br />

de homenagens ou por reconhecer neles<br />

"perfeita e idêntica comunhão com as<br />

nossas opiniões, casados com as nossas<br />

idéias". 47 Também na obra de Licurgo<br />

Santos está enfatizada essa tendência,<br />

que abrange "letras poéticas,<br />

romanescas e históricas". 48<br />

Os inventários que registraram a<br />

existência destes livros e revistas dentre<br />

pag, 100, Jan/dez 1995<br />

os acervos de médicos e advogados não<br />

são muito numerosos, fias unidos a<br />

outras fontes, dentro do universo<br />

pesquisado, é provável que esta<br />

tendência representasse uma corrente<br />

predominante, ou pelo menos fosse<br />

representativa das transformações que<br />

ocorreram nas relações entre homens e<br />

livros na passagem do século. Os livros<br />

que se perpetuaram através dos<br />

registros dos inventários privilegiavam<br />

a necessidade de ampliação dos<br />

conhecimentos profissionais, tanto no<br />

caso dos advogados, que tinham<br />

preferencialmente livros de direito,<br />

quanto no dos médicos, que ostentavam<br />

obras quase que exclusivamente<br />

pertencentes ao campo da medicina,<br />

completadas por literatura.<br />

Advogados e médicos tornaram-se, cada<br />

vez mais, clientes potenciais para<br />

livreiros e bibliófilos, tendência<br />

compulsada em catálogos e anúncios<br />

que privilegiavam os temas de interesse<br />

profissional. A história do livro, das<br />

bibliotecas e das relações culturais no<br />

Brasil, na transição do século XIX para<br />

o XX, ainda necessita de estudos que<br />

aprofundem melhor o conhecimento<br />

sobre os leitores e suas leituras, porque<br />

as bibliotecas particulares precisam da<br />

diligência dos historiadores, que<br />

deveriam cuidar delas como verdadeiros<br />

jardins das delícias.


R V O<br />

N O T A S<br />

1. ROCHE, Daniel. "Lumières". In: FIQU1ER, Richard (dir.). La Bibliothèque. Paris:<br />

Autrement, (1992) pp. 92-94.<br />

2. Idem, ibidem, p. 94.<br />

3. Ver NADAUD, Alain. "Le Jardin Prive". In: FIGUIER, Richard , op. cit., pp. 207-212.<br />

4. ARQUIVO NACIONAL. Rio de Janeiro. Seção de Documentos Privados e Inventários,<br />

Testamentos, Verbas Testamentárias.<br />

5. BARMAN, Roderick Jean. "A formação dos grupos dirigentes políticos do Segundo<br />

Reinado: a aplicação da prosopografia e dos métodos quantitativos à história do<br />

Brasil Imperial*. In: RltlQB. Anais do Congresso do Segundo Reinado. Rio de<br />

Janeiro, 2:61-86,1984.<br />

6. Ver, por exemplo, os seguintes inventários no <strong>Arquivo</strong> Macional: José Tomás<br />

Nabuco de Araújo, cx. 4.174, n s 2.108, 1850; Carlos Ferreira França, cx. 106, n 9<br />

845, 1868 e Francisco de Carvalho Figueira de Melo, cx. 7.057, maço 373, n fi<br />

3.364, 1875.<br />

7. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro. História geral da medicina brasileira. São Paulo:<br />

Hucitec/Ed. da Universidade de Sào Paulo, 1991, 2vols.; BARMAN, Roderick Jean.<br />

"The role of the law graduate in the political elite of Imperial Brazil". In: Journal<br />

of interamerican studies and world affairs. 18(4):423-450, nov. 1976; CARVALHO,<br />

José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Ed<br />

Universidade de Brasília, 1981.<br />

8. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries estatísticas<br />

retrospectivas. Separata do Anuário estatístico do Brasil, ano V, 1939/40. Ed. fac-<br />

similar, 1941. Rio de Janeiro: IBGE, 1986 (Repertório estatístico do Brasil. Quadros<br />

retrospectivos, 1).<br />

9. Cf. NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no<br />

Rio de Janeiro da virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

10. FREIRE, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro/Brasília: J. Olímpio/INL. 1974,<br />

2vols. Do mesmo autor, ver Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: J.<br />

Olímpio, 1960, 2vols.<br />

11. Idem, ibidem.<br />

12. ARQUIVO NACIONAL. Inventários de Luiz Pientzenauer, cx. 4.286, n s 551, 1880.<br />

Luiz José de Carvalho Melo Matos, maço 490, n 8 9.550, 1882 e também do mesmo<br />

borrão de partilha, maço 197, cx. 6.880, n 9 3.860, 1885. Seção de Documentos<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* l -2. p. 85-104. jan/dei 1995 - pag 101


A C E<br />

Privados. Antônio Ferreira Viana, cód. 02, cx. 15, CP 10, does. 07 e 08, 1891.<br />

13. NEEDELL, Jeffrey D, op. cit., pp. 127-142; BELLO, José Maria. Memórias. Rio de<br />

Janeiro: J. Olímpio, 1958, pp. 35-39.<br />

14. Ver NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das e FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone<br />

da Cruz. 'O medo dos 'abomináveis princípios franceses': a censura dos livros no<br />

início do século XIX no Brasil". In: Acervo. Revista do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Rio de<br />

Janeiro: v.4, n. 1, jan./jun. 1989, pp. 113-120. Das mesmas autoras, "Livreiros<br />

franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823". In: História hoje: balanço e perspectivas.<br />

IV Encontro Regional da ANPUIi-RJ, 16/19out. 1990. Rio de Janeiro: Taurus Timbre,<br />

pp. 190-202.<br />

1 5. CHARTIER, Roger e ROCHE, Daniel. "Le livre: un changement de perspective". In:<br />

LE QOFF, Jacques e NORA, Pierre (dir.). Faire de 1'histoire: nouveaux objects.<br />

Paris: Qallimard, 1974, pp. 115-136.<br />

16. CHARTIER, Roger (dir.). Pratique de la lecture. Paris: Rivages, 1985; ROCHE, Daniel.<br />

Le peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XVIIIe siècle. Paris: Aubin<br />

Montaigne, 1981; DARNTON, Robert. O lado oculto da Revolução. Mesmer e o<br />

final do Iluminismo na França. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; MARION,<br />

Michel. Recherches sur les bibliothèques privées à Paris au millieu du XVIIIe siècle<br />

(1750-1759). Paris: Bibliothèque Nationale, 1978; PARENT-LANDEUR, Françoise.<br />

Les cabinets de lecture: la lecture publique à Paris sous la Restauration. Paris:<br />

Pillot, 1982.<br />

17. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. D. Carolina Pinto Rebouças, esposa do<br />

conselheiro André Pereira Rebouças. Caixa 4.029, n. 693, 1865.<br />

18. Idem, ibidem, fl. 14.<br />

19. Idem, ibidem, fls. 14-15.<br />

20. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />

ns. 24-29.<br />

21. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />

anexo fl. 2.<br />

22.0 livro de Ponson de Terrail, O Rocambole, aparecia com freqüência nos anúncios<br />

do Jornal do Commercio e parece ter sido muito apreciado. O conjunto de<br />

aventuras chegou a formar vários volumes, alguns deles incluídos na biblioteca<br />

do dr. Luiz Pientzenauer. <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa<br />

4.286, n. 551, 1880, anexo fl. 2.<br />

pag. 102. jan/dez 1995


R V O<br />

23. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz Pientzenauer. Caixa 4.286, n. 551, 1880,<br />

fls. 55-57.<br />

24. ARQUIVO NACIONAL. Inventário/Testamento. Antônio Correia de Souza Costa.<br />

Caixa 4.007, n. 294, 1897, fl. 3.<br />

25. Idem, ibidem, fls. 37-44.<br />

26. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881.<br />

27. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881,<br />

fls. 125-129.<br />

28. Idem, ibidem.<br />

29. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Cândido Mendes de Almeida. Caixa 219, 1881,<br />

anexo 2.<br />

30. Idem, ibidem.<br />

31. Idem, ibidem.<br />

32. INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Col. Ourem. L. 147, doe. 17.<br />

Col. A. H. Leal. L. 466, f. 48; BN-SMss I - 3,1,8; I - 3,1,9; I - 3,1,10; I - 3,1,1 1; I -<br />

3,1,12.<br />

33. BN-SMss 1-3,1,13,1-3,1,14.<br />

34. ARQUIVO NACIONAL. Verba testamentária. Manuel da Costa Honorato. Livro 58,<br />

n 8 129, galeria B, 1891, n. 38. Divisão dos bens.<br />

35. Idem, ibidem.<br />

36. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço 490, n 9<br />

9.550, 1882, tts. 1-3; Borrào de Partilha. Maço 197, caixa 6.880, n. 3.860, 1885;<br />

Borrào de Partilha. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço 197, caixa 6.880, n.<br />

3.860, 1885.<br />

37. ARQUIVO NACIONAL. Borrào de Partilha. Luiz José de Carvalho Melo Matos. Maço<br />

197, caixa 6.880, n. 3.860, 1885, fls. 15-16. <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />

38. ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Carlos Frederico Taylor. Caixa 105, n. 840, galeria<br />

A, 1890, 2 v.<br />

39. Idem, ibidem.<br />

40.Idem, ibidem, ns. 367 e 368.<br />

41.ARQUIVO NACIONAL. Inventário. Sizenando Barreto Nabuco de Araújo. Caixa<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« I -2, p. 83-104, jan/dez 1995 - pag. 105


4.1 19, n. 1.051, galeria A , 1892.<br />

42. Idem, ibidem, fls. 10 e 11.<br />

43. Idem, ibidem.<br />

44. Idem, ibidem.<br />

45. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro, op.cit., v.2, p. 12.<br />

46. FREIRE, Gilberto, op.cit., v. 1, p. LXIV.<br />

47. Idem, ibidem.<br />

48. SANTOS FILHO, Licurgo de Castro, op. cit., v. 2, p. 12.<br />

A B S T R A C T<br />

As elsewhere, inventories are an important source for the study of private libraries of<br />

physicians and lawyers from Rio de Janeiro, at the turn of the 19 th to the 20 t h Century.<br />

Their wide-ranging contents witness their importance for the city cultural life. On the<br />

other hand, the care their owners bestowed them shows that this libraries had been<br />

converted for them into a kind of Garden of Eden.<br />

R É S U M É<br />

A Rio de Janeiro, comme d'ailleurs, les inventaires constituent une de plus importantes<br />

sources pour 1'étude des bibliotèques privées de quelques catégories socio-professionnelles,<br />

comme les médicins et les avocats, au tournant de XX e siècle. Quelques-unes étaient três<br />

riches et diversifiées, ce quétalait leur importance pour leurs propriétaires et pour Ia vie<br />

culturelle de 1'époque. Le traitement soigné et sophistiqué dont elles étaient 1'objet en<br />

faisait de quelque sorte des Jardins des Délices.<br />

pag. 104. jan/dez 1995


Vem, ó rlinfa, ao Cajueiro.<br />

Que no oiteiro desprezamos;<br />

Que em seus ramos tortuosos<br />

Amorosos frutos dá.<br />

(O cajueiro do amor. de<br />

Manuel Inácio da Silva<br />

Alvarenga)<br />

O'<br />

Lorelai Brilhante Kury<br />

Doutora em História pela Ecole des Hautes Etudes<br />

en Sciences Sociales (Paris).<br />

Oswaldo Munteal Filho<br />

Historiador do Setor de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Doutorando em<br />

História Social - IFCS/UERJ.<br />

um es<br />

s estudos que têm por objeto<br />

a cultura científica, os<br />

espaços de sociabilidade<br />

intelectual no Brasil e a recepção de<br />

leituras de caráter especulativo ainda<br />

são relativamente escassos. Em geral,<br />

se dá ênfase ao 'atraso' do<br />

desenvolvimento científico e da cultura<br />

letrada brasileira, buscando-se suas<br />

causas na atuação 'retrógrada' da Igreja<br />

- dos jesuítas em particular -, ou na<br />

Cultura científica e<br />

sociaLilidade<br />

intelectual no Brasil<br />

setecentistao<br />

o acerca cia oociecLacLe<br />

CLAVRA:<br />

POEMAS ERÓTICOS.<br />

axcnrao uiMiiifo<br />

v<br />

tlllQA<br />

Literária<br />

«do Rio (fie Janeiro<br />

dependência econômica e<br />

intelectual com relação a<br />

potências internacionais.<br />

Nossa proposta é desenvolver<br />

alguns temas que poderão ser<br />

úteis para a compreensão do<br />

lugar ocupado pela ciência na cultura<br />

letrada brasileira no final do século<br />

XVIII. Parte da historiografia referente a<br />

esse tema tende a acentuar a<br />

'defasagem' existente entre os projetos<br />

idealizados pelos reformistas ilustrados<br />

luso-brasileiros e a efetiva concretização<br />

destes projetos. Este hipotético<br />

descompasso entre pensamento e ação<br />

explicaria, de certo modo, o atraso' do<br />

Brasil e de Portugal relativamente à<br />

Europa e à América do Norte.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n° 1-2, p. 103-122. jan/dez 199S - pag. 105


A C E<br />

considerar entretanto que as discussões<br />

e as idéias científicas não são apenas<br />

um campo de preparação da aplicação<br />

prática de teorias. Os espaços de socia-<br />

bilidade intelectual, constituídos pelas<br />

academias, museus de história natural,<br />

sociedades científicas e literárias e as<br />

demais agremiações congêneres,<br />

formam por si mesmos um campo de<br />

dinamismo e transformação científica e<br />

cultural, independentemente da eficácia<br />

técnica proporcionada pela utilização da<br />

ciência.<br />

Mo Brasil, pode-se registrar a presença<br />

destes pólos de atração e difusão<br />

cultural desde os anos vinte do século<br />

XVIII. A Sociedade Literária do Rio de<br />

Janeiro constitui um exemplo de<br />

instituição letrada particularmente<br />

significativo por causa da maneira pela<br />

qual seus membros concebem a<br />

natureza brasileira. A Sociedade<br />

Literária é uma das primeiras<br />

instituições da Colônia que integra em<br />

seu programa a necessidade de<br />

descrever os produtos naturais<br />

brasileiros com base nos métodos<br />

fornecidos pela história natural e a partir<br />

de objetivos pragmáticos que visavam<br />

a utilização imediata destes produtos.<br />

Desde o final do século XVIII este tipo<br />

de apreensão científica do mundo<br />

natural começa a fazer parte das<br />

atividades desenvolvidas normalmente<br />

pela administração do Estado<br />

português. A pesquisa e a exploração<br />

das riquezas naturais brasileiras sob<br />

este novo modelo de conhecimento<br />

pag. 106. jan/dez 1995<br />

marcarão fortemente o conjunto da<br />

cultura brasileira desde esta época e<br />

durante todo o século XIX. A<br />

historiadora da Ilustração brasileira<br />

Maria Odila Leite da Silva Dias considera<br />

que o estudo deste movimento<br />

intelectual e prático de conhecimento<br />

da natureza brasileira "oferece um<br />

interesse mais específico para o estudo<br />

das origens de uma cultura brasileira,<br />

do que a análise das primeiras<br />

manifestações revolucionárias e<br />

republicanas da Colônia..." 1<br />

A partir deste tipo de consideração,<br />

importa-nos aqui fazer não um estudo<br />

de 'história da ciência' strícto sensu,<br />

mas investigar a cultura luso-brasileira,<br />

entendendo que a concepção de ciência<br />

veiculada pela Sociedade Literária do<br />

Rio de Janeiro faz parte da política<br />

pombalina de reformas efetivadas a<br />

partir da década de 1750 e defendidas<br />

por um determinado grupo de<br />

intelectuais 'ilustrados'. 2<br />

O Absolutismo Ilustrado 3 vai tentar o<br />

difícil equilíbrio entre uma monarquia<br />

que sustentava setores improdutivos,<br />

ligados à antiga estrutura agrária e de<br />

Corte, e o pensamento iluminista 4 de<br />

base anticlerical e potencialmente<br />

critico com relação às estruturas de<br />

poder do Antigo Regime. A<br />

especificidade da Ilustração portuguesa<br />

reside, entre outros fatores, na adoção<br />

de uma concepção pragmática de<br />

utilização das 'artes', aliada a um<br />

sentimento de decadência do Reino. 5 A


'decadência' portuguesa já se fazia notar<br />

na Europa, e mesmo muitos 'filósofos'<br />

reconheciam a total dependência de<br />

Portugal com relação à Inglaterra. A<br />

pequenez do território português e da<br />

sua população pareciam incapacitar o<br />

Reino para o bom aproveitamento das<br />

riquezas de suas conquistas. O abade<br />

Raynal, por exemplo, em sua famosa<br />

obra História filosófica e política dos<br />

estabelecimentos e do comércio dos<br />

europeus nas duas índias, escreve que<br />

"desde que a Grã-Bretanha o condenou<br />

(a Portugal) à inação, tombou numa<br />

barbárie quase inacreditável..."*<br />

Os próprios ilustrados lusos sentiam a<br />

necessidade de transformações<br />

imediatas da economia, vendo no<br />

desenvolvimento da 'indústria'<br />

(compreendida como atividade<br />

empreendedora em geral, e nào no<br />

sentido atual da palavra) a tábua de<br />

salvação do Reino. Daí a importância<br />

dada à agricultura. Era fundamental a<br />

pesquisa de novas técnicas para<br />

promover uma maior produtividade das<br />

culturas, bem como todo um trabalho<br />

de aclimatação de novas plantas que<br />

tivessem alguma utilidade 'para o<br />

comércio e para as artes', como se dizia<br />

na época. É necessário frisar aqui a<br />

importância que vão assumir as ciências<br />

da natureza como possibilitadoras<br />

destes 'progressos'.<br />

A concepção de 'riqueza' para os<br />

ilustrados portugueses vai se basear na<br />

noção da natureza encarada de forma<br />

V o<br />

quase divina, produtora de valores,<br />

onde cabia ao homem tirar proveito<br />

dela, por meio da agricultura e com o<br />

auxilio da história natural. Um dos<br />

principais representantes deste tipo de<br />

concepção foi Domenico Vandelli, que<br />

adota o "ecletismo reformista" 7 pelo<br />

qual se posiciona em favor de algumas<br />

idéias antimercantilistas, adotando<br />

tanto os princípios fisiocráticos italianos<br />

e franceses quanto algumas noções de<br />

Adam Smith. Somente a agricultura<br />

apresentaria caráter produtivo e,<br />

segundo os fisiocratas lusos, era<br />

fundamental a proteção às atividades<br />

econômicas. Em primeiro lugar devia-se<br />

proteger a atividade agrícola, em<br />

segundo a comercial, e em último a<br />

industrial. Nas palavras de Vandelli:<br />

"Mão se dando preferência à agricultura<br />

sobre as fábricas, terminarão por se<br />

arruinar ambas as atividades". 8 Meste<br />

sentido, a ilustração portuguesa vai<br />

incorporar diversos aspectos da<br />

fisiocracia, na busca de um governo<br />

regulado pelas leis da natureza.<br />

As concepções de riqueza e natureza<br />

dos 'ilustrados' luso-brasileiros<br />

contribuem para a valorização da<br />

história natural, ciência que permitiria<br />

descrever as "produções" dos "três<br />

reinos da natureza", nomeá-las e, mais<br />

ainda, conhecer seus usos e<br />

propriedades, assim como saber<br />

extingui-las ou multiplicá-las. 9<br />

A produção intelectual do século XVIII<br />

em Portugal é rica em autores que<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n'-' 1-2. p. 105-122. jan/dez 1995 - pag 107


A C E<br />

defendem uma vertente pragmática do<br />

Iluminismo. 1 0 Escolhemos aqui as<br />

afirmações de Domenico Vandelli"<br />

como exemplares para a compreensão<br />

das relações que estes ilustrados<br />

estabeleciam entre o progresso do Reino<br />

e o desenvolvimento da história natural.<br />

Este naturalista italiano, Domenico por<br />

nascimento, fora convidado por<br />

Pombal 12 para lecionar inicialmente no<br />

Colégio Real dos nobres de Lisboa e<br />

depois na Universidade de Coimbra,<br />

onde foi lente de química e história<br />

natural. Vandelli era ainda diretor do<br />

Real Jardim Botânico, onde realizava<br />

numerosas tentativas de aclimatação de<br />

plantas 'úteis'.<br />

Em uma memória econômica da<br />

Academia Real das Ciências de Lisboa,<br />

Vandelli escreve:<br />

não sendo outra coisa as manufaturas,<br />

ou fábricas, que um preparo,<br />

purificação, ou modificação das<br />

produções naturais para algum uso,<br />

assim os primeiros conhecimentos, que<br />

devemos ter são das mesmas<br />

produções da natureza, como base, ou<br />

primeiras materiais... 13<br />

Ou ainda, numa obra de história natural:<br />

O homem só com a força da sua<br />

imaginação não podia comer, nem<br />

vestir-se, nem executar os seus<br />

desejos; enfim nada podia fazer sem o<br />

auxilio das produções naturais, que são<br />

a base de todas as artes, de que<br />

dependem, principalmente os cômodos<br />

e prazeres da vida. Pois, que o<br />

conhecimento delas contribui à<br />

pag. 108. Jan/dez 1995<br />

felicidade humana. 14<br />

Assim é possível afirmar que o<br />

movimento ilustrado português se<br />

caracterizou pelo uso pragmático das<br />

ciências. Este uso representou um<br />

esforço decisivo das autoridades e dos<br />

grupos ilustrados luso-brasileiros no<br />

sentido da adequação do conhecimento<br />

acumulado às necessidades de uma<br />

retomada da exploração colonial, de<br />

uma redefinição, podemos dizer, do<br />

'exclusivo' metropolitano. Importava<br />

agora, investir num outro ramo que<br />

redundasse na acumulação das<br />

riquezas, fundamentalmente a<br />

agricultura.<br />

G L A V R A :<br />

POEMAS ERÓTICOS<br />

DE HUM AMERICANO.<br />

Carmmibus quíra mijerarmm oB.<br />

üvia rerum :<br />

Prtmia fi Jludio confequar ifta<br />

fst eft.<br />

Ovid.<br />

Alvarenga, Manuel Inácio da Silva. Glaura,<br />

poemas eróticos. Rio de Janeiro: Imprensa<br />

<strong>Nacional</strong>, 1943.


R V O<br />

Com a criação da Academia Real das<br />

Ciências de Lisboa, em 31 de dezembro<br />

de 1779, os quadros intelectuais das<br />

mais variadas vertentes ilustradas<br />

passaram a integrá-la. Esta instituição<br />

contava com o apoio e beneplácito da<br />

rainha d. Maria 1, que manteve muitos<br />

dos ministros da época pombalina na<br />

sua própria administração e à frente dos<br />

planos e projetos da Academia. Como<br />

já frisamos aqui, muitos ilustrados que<br />

participaram da 'governação' pombalina<br />

se uniram em torno da formação de uma<br />

academia que fosse capaz de elaborar<br />

projetos e redimensionar o papel das<br />

colônias. Essas duas funções tinham um<br />

objetivo essencialmente prático:<br />

recuperar a economia do Reino, agora<br />

funcionalizada em torno da exploração<br />

metódica das riquezas produzidas pela<br />

natureza.<br />

A produção ilustrada de base naturalista<br />

- que acabou por congregar nos espaços<br />

de sociabilidade intelectual luso-<br />

brasileiros um núcleo de pragmáticos e<br />

homens de Estado - propôs alternativas<br />

para a superação da crise econômica do<br />

Império ultramarino, as quais passavam<br />

prioritariamente por um melhor<br />

aproveitamento das 'produções<br />

naturais' das colônias. Estas propostas<br />

visavam flanquear as fragilidades do<br />

Império em duas frentes: a política<br />

fomentista, que desde a administração<br />

pombalina era implementada, deveria<br />

ser intensificada; a valorização da<br />

agricultura, fundamentada pelas<br />

práticas discursivas que viam na<br />

natureza tropical uma fonte de riqueza<br />

que deveria ser cientificamente<br />

conhecida e explorada.<br />

Estas duas frentes que destacamos,<br />

assinalavam a preocupação de uma<br />

fração do grupo reformista ilustrado da<br />

Academia, que aqui denominaremos de<br />

iiustrados-naturalistas ou naturalistas<br />

utilitários. Era uma espécie de sub­<br />

grupo, dentro da Academia, que<br />

continha membros egressos da época<br />

pombalina e outros que, formados no<br />

espírito da Universidade de Coimbra<br />

reformada, tiveram uma aproximação<br />

mais íntima com os temas da Ilustração,<br />

no plano estritamente pragmático, as<br />

Luzes em Portugal tinham assumido,<br />

após a ' Viradeira', um contorno<br />

francamente aberto às especulações<br />

científicas. O ideário da Academia Real<br />

das Ciências de Lisboa e a base das<br />

propostas reformistas partiam de uma<br />

maior abertura do grupo dirigente<br />

português e de seus quadros<br />

intelectuais aos esquemas mentais<br />

ilustrados. Relativamente ao período<br />

que vai do fim da época pombalina aos<br />

primeiros anos do reinado de d. Maria<br />

I, Fernando A. Movais nos oferece uma<br />

contribuição decisiva:<br />

...o período que se segue ao 'consulado<br />

pombalino' aparece-nos muito mais<br />

como seu desdobramento que sua<br />

negação. Da fase autoritária de criação<br />

dos pré-requisitos ou melhor das<br />

condições das reformas, passa-se, a<br />

partir de 1777, para uma etapa de<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 105-122. jan/dez !995-pag.l09


A C<br />

maiores aberturas para o pensamento<br />

ilustrado. mas isso era um<br />

desdobramento do processo de<br />

reformas.!...) Neste sentido, a chamada<br />

'viradeira' tem muito reduzida sua<br />

importância efetiva; houve sim uma<br />

viragem significativa, mas no sentido<br />

de uma maior integração nas linhas do<br />

reformismo ilustrado.' 5<br />

Ainda sobre o espirito da 'Viradeira',<br />

Francisco Falcon observa que este<br />

movimento estava distante de sinalizar<br />

para uma ruptura decisiva com o ideário<br />

e com o conjunto de práticas de cunho<br />

ilustrado em curso desde a época<br />

pombalina. Ao contrário, o período<br />

mariano se caracteriza pelo fortale­<br />

cimento da corrente cientificista e<br />

pragmática do Iluminismo, centralizada<br />

em grande parte, pela Academia Real<br />

das Ciências. Enfim,<br />

suas principais linhas de pensamento<br />

e de ação configuram uma política<br />

colonial que, embora fosse ainda<br />

mercantilista, assimilava os elementos<br />

novos do pensamento da época,<br />

sobretudo o incentivo à produção,<br />

inclusive na Colônia, sem abrir mão<br />

evidentemente do patrimônio e do<br />

'exclusivo'."<br />

Esta abordagem pode ser verificada na<br />

atuação do naturalista Domenico<br />

Vandelli, que demonstra a importância<br />

que a revitalização da exploração<br />

colonial estava assumindo. Numa<br />

memória onde descreve as causas<br />

físicas e morais da decadência da<br />

agricultura no Reino, ele afirma:<br />

pag. 110, jan/dez 1995<br />

Se em Portugal nào fossem tão<br />

dificultosos, e quase insuperáveis, os<br />

obstáculos que impedem o aumento da<br />

agricultura, e se a indústria tivesse<br />

chegado ao estado de se aproveitarem<br />

todas as úteis produções da natureza;<br />

infelizes seriam os estrangeiros, que<br />

nào possuem conquistas, como em<br />

uma carta exclama o célebre Lineu:<br />

Bone Deusl Si Lusitani noscent sua<br />

bona naturae, quam infelices essent<br />

plerique alii, qui non possident terras<br />

exóticas! (sic) "<br />

Das 'terras exóticas' portuguesas,<br />

certamente a mais valorizada de todas<br />

era o Brasil, conhecido desde o século<br />

XVI como particularmente belo e<br />

favorecido pela natureza. No século das<br />

Luzes, a própria Encyclopédie de<br />

Diderot e D'Alembert veicula, no<br />

verbete Brésil, uma imagem positiva das<br />

produções naturais da colônia<br />

portuguesa. Se o clima e a natureza da<br />

América eram considerados especial­<br />

mente perversos por alguns 'filósofos-<br />

naturalistas' como Buffon e Corneille De<br />

Pauw 18, é certo que a valorização da<br />

natureza brasileira aparece claramente<br />

nas concepções dos ilustrados luso-<br />

brasileiros. Citando novamente<br />

Vandelli, desta vez quando dissertava<br />

sobre as possibilidades agrícolas das<br />

terras daqui:<br />

Posto que seja conhecido o mesmo<br />

pais do Brasil, quase despovoado e<br />

inculto..., nào deixarei de indicar<br />

brevemente o estado da agricultura nos


arredores das poucas povoações<br />

européias. É escusado indicar a<br />

bondade do clima, a fertilidade dos<br />

terrenos; porque tudo isto é bem<br />

conhecido."<br />

Visando aproveitar lucrativamente as<br />

riquezas de suas colônias, a política<br />

metropolitana adotada com relação ao<br />

Brasil vai ser, por um lado, de inserção<br />

da Colônia na atmosfera da ilustração,<br />

fortalecendo pesquisas para aclima­<br />

V o<br />

tação de plantas, promovendo<br />

expedições de naturalistas portugueses<br />

e brasileiros 20 com o intuito de conhecer<br />

melhor os 'três reinos da natureza'<br />

(vegetal, animal e mineral) - segundo a<br />

expressão lineana utilizada na época -<br />

e favorecendo a criação de sociedades<br />

'letradas', que tivessem por objetivo o<br />

desenvolvimento 'das artes, do<br />

comércio e da agricultura'; por outro<br />

lado este mesmo movimento visava<br />

Diderot, Denis et alil. Encyclopédie. Dictlonnalre ralsonné des sciences, des arts et des métlers.<br />

Parts: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 111


A C E<br />

exatamente um acirramento da<br />

exploração colonial. 21<br />

É no interior desta política que<br />

florescerá a Sociedade Literária do Rio<br />

de Janeiro. Em 1771 foi fundada<br />

inicialmente uma 'Academia Científica',<br />

composta principalmente por médicos 22<br />

e incentivada pelo próprio vice-rei, o<br />

marquês do Lavradio. Com a morte de<br />

alguns fomentadores do espírito<br />

especulativo e o fim da administração<br />

de Lavradio, a Academia não prossegue<br />

seus trabalhos, extinguindo-se em 1 779.<br />

Em 1786, já sob a proteção do novo<br />

vice-rei d. Luís de Vasconcelos e Sousa,<br />

renasce com o nome de Sociedade<br />

Literária do Rio de Janeiro, liderada pelo<br />

poeta Manoel Inácio da Silva Alvarenga.<br />

Ela prossegue até 1790, quando<br />

esmorece devido à chegada de um novo<br />

vice-rei, o conde de Resende, pouco<br />

simpático às elocubrações ilumi-<br />

nistas." Somente em 1794 é que a<br />

Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />

retomará por quatro meses suas<br />

atividades, quando é proibida pelo<br />

conde de Resende. Após esta proibição,<br />

Silva Alvarenga e alguns outros<br />

membros são objeto de denúncias, que<br />

os acusam de professarem contra a<br />

religião, a monarquia, e a favor da<br />

República francesa. Ao que tudo indica,<br />

estas acusações ocorreram por motivos<br />

pessoais, devido à ganância de um<br />

rábula local. 24<br />

Os acusados principais eram Silva<br />

Alvarenga, o médico Jacinto José da<br />

Silva, e o bacharel Mariano José Pereira<br />

pag 112. jan/dez 1995<br />

da Fonseca, futuro marquês de Maricá. 25<br />

Eles são interrogados e ficam presos por<br />

três anos, após o que são soltos graças<br />

à intervenção da própria d. Maria I, por<br />

intermédio do ministro d. Rodrigo de<br />

Sousa Coutinho, ilustrado que compar­<br />

tilhava da política de valorização das<br />

ciências. 26 A amizade de Silva Alvarenga<br />

com Basílio da Gama (que transitava<br />

pelos círculos intelectuais metropo­<br />

litanos), sua estada em Portugal na<br />

época da reforma da Universidade de<br />

Coimbra (1772), a correspondência<br />

mantida com outros ilustres do Reino,<br />

inclusive a troca de cartas entre Mariano<br />

da Fonseca e Domenico Vandelli,<br />

permite-nos avaliar que os membros da<br />

Sociedade Literária do Rio de Janeiro<br />

faziam parte pessoalmente do grupo<br />

ilustrado ao qual pertenciam Sousa<br />

Coutinho, Vandelli, e tantos outros que<br />

compartilhavam dos ideais de<br />

desenvolvimento 'do comércio, das<br />

artes e da agricultura no Reino e em suas<br />

conquistas'.<br />

Consta nos autos da devassa, relativa­<br />

mente à defesa de Mariano, o seguinte:<br />

...argumentou que se ele respondente<br />

tivesse idéias contrárias ao governo<br />

monárquico isto havia de constar da<br />

sua correspondência com as pessoas<br />

do seu conhecimento, assistentes em<br />

Lisboa como eram o desembargador<br />

Francisco Franco Pereira, o dr.<br />

Domingos Vandelli, e o negociante José<br />

Ramos da Fonseca... não havia de<br />

constar coisa, porque pudesse ser


R V O<br />

argüido de serem seus sentimentos<br />

menos fiéis. 27<br />

Certamente os inquisidores poderiam<br />

encontrar trechos de correspondências<br />

mais suspeitos, como é o caso da carta<br />

recebida pelo médico Jacinto, de um<br />

outro médico de Lisboa, onde consta o<br />

seguinte:<br />

...há de ser naqueles tempos, em que<br />

todo o novo hemisfério se há de dividir<br />

todo, em duas repúblicas, uma<br />

compreenderá todo o norte, outra todo<br />

o meio-dia; queira Deus que isto suceda<br />

sem efusão de sangue; eu então já<br />

dormirei no Senhor. ...enquanto os reis<br />

não forem filósofos e os filósofos não<br />

2 8<br />

forem reis nào há de haver justiça.<br />

Mas, apesar destas demonstrações<br />

claras de idéias renovadoras, é muito<br />

improvável que houvesse qualquer<br />

plano de sedição 2 9 por parte destes<br />

sinceros 'filósofos', cuja sorte foi<br />

determinada em grande parte pelos<br />

germens contidos na própria Ilustração<br />

vinda do Reino, e nas idéias aprendidas<br />

nos cursos feitos em Coimbra 3 0, e vez<br />

por outra na França. A oposição que<br />

havia entre os membros da Sociedade<br />

Literária do Rio de Janeiro e o conde<br />

de Resende, por exemplo, existia<br />

também no interior da própria<br />

Metrópole, o que fica patente quando<br />

da morte de d. José I e do exílio do<br />

marquês de Pombal.<br />

Analisando os documentos da<br />

Sociedade Literária do Rio de Janeiro e<br />

os particulares deixados por seus<br />

membros, verificamos uma adequação<br />

aos ideais utilitários da Ilustração<br />

portuguesa.<br />

Os membros da Sociedade Literária do<br />

Rio de Janeiro frisavam para sua defesa<br />

durante os inquéritos promovidos pelo<br />

conde de Resende, o caráter utilitário<br />

dos seus trabalhos, e se vinculavam à<br />

Academia Científica. Em um dos<br />

depoimentos do médico Jacinto José da<br />

Silva, ele traça um pequeno histórico<br />

das atividades científicas destas<br />

agremiações que tinham sido bem<br />

Diderot, Denis et alii. Encyclopédie. Dictlonnalre<br />

ralsonné des sclences, des arts et des métiers.<br />

Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* I -2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 113


A C E<br />

sucedidas:<br />

...tivera o seu nascimento no tempo em<br />

que fora vice-rei deste Estado o<br />

marquês de Lavradio e que então se<br />

deveria à mesma a cultura do anil, e<br />

se introduzira e propagara a da<br />

cochoniiha. e que, esmorecendo a<br />

mesma sociedade pela ausência do<br />

referido vice-rei. se tornara a renovar,<br />

e florescer no tempo do seu sucessor<br />

Luís de Vasconcelos e Sousa, e que<br />

então se descobrira pelos trabalhos da<br />

mesma sociedade o álcali tirado dos<br />

engastes das bananas, a extração da<br />

aguardente da raiz do sapé. o álcali do<br />

Mangue e outros descobrimentos úteis<br />

à sociedade e ao comércio... 51<br />

Alguns anos depois de extinta a<br />

Sociedade Literária, o mesmo dr.<br />

Jacinto comenta, relembrando o<br />

passado:<br />

...Ali náo só se tratava de filosofia,<br />

matemática, astronomia, modos de<br />

facilitar os trabalhos do agricultor,<br />

fazendo-lhe conhecer a qualidade do<br />

terreno para não ser infrutuosa a sua<br />

lavoura, como se tratava da saúde<br />

pública entre os médicos e cirurgiões<br />

peritos e dignos de serem membros<br />

daquela sociedade; respondendo a<br />

consultas, decidiam questões sobre as<br />

moléstias que grassavam, analisando<br />

águas e mais substâncias necessárias<br />

5 2<br />

à vida do homem...<br />

Os próprios Estatutos da Sociedade<br />

Literária do Rio de Janeiro se norteiam<br />

por alguns princípios fundamentais<br />

pag. 114. jan/dez 1995<br />

marcados pelos estudos pragmáticos<br />

das ciências, que se unem à<br />

regulamentação democrática e<br />

igualitária estabelecida para as relações<br />

entre seus filiados, e à necessidade de<br />

difusão das Luzes. 55 O artigo 25 ilustra<br />

bem estas características:<br />

Ma proposta, que se fizer à assembléia,<br />

das matérias; será a escolhida destas<br />

dividida sempre pela sua maior<br />

utilidade: pelo mais próximo proveito,<br />

que pode resultar: pela menos<br />

complicação com obstáculos, que na<br />

infância da Sociedade destituída<br />

atualmente de meios, só poderiam<br />

servir de abater os ânimos e fazer<br />

desvanecer as esperanças, que<br />

concebe para o futuro. 54<br />

O sentimento da necessidade de<br />

ilustrar-se já se fazia presente nas<br />

propostas de Silva Alvarenga para os<br />

estatutos: "Será útil conservar, e renovar<br />

as idéias adquiridas, e comunicá-las aos<br />

que tiverem falta desses<br />

conhecimentos". 55<br />

Quanto ao espírito 'democrático' que os<br />

orientou, baseado nos exemplos<br />

legados pela Antigüidade Clássica e na<br />

organização de sociedades de letrados<br />

européias, lembramos outra passagem<br />

do punho de Alvarenga: "Não deve haver<br />

superioridade alguma nesta sociedade,<br />

e será dirigida igualmente por modo<br />

democrático". 56<br />

No entanto, nos artigos 30 e 31, são<br />

formulados nitidamente princípios de


K V O<br />

obediência à religião cristã e de<br />

fidelidade às políticas governamentais. 37<br />

A confiança na possibilidade de uma<br />

monarquia esclarecida adquire um tom<br />

bastante sincero quando se vê a come­<br />

moração dos aniversários de d. José I e<br />

de dona Maria 1, além das produções em<br />

louvor destes como a seguinte pas­<br />

sagem de um poema de Silva Alvarenga,<br />

dedicado a Basílio da Gama: "Consulta,<br />

amigo, o gênio, que mais em ti domine/<br />

Tu podes ser Molière, tu podes ser<br />

Racine/Marqueses tem Lisboa, se<br />

cardeais Paris/José pode fazer mais do<br />

que fez Luís". 38<br />

Foi por ocasião do aniversário de dona<br />

Maria 1 que o professor de retórica<br />

Manuel Inácio da Silva Alvarenga recitou<br />

o didático poema As Artes, onde<br />

desfilam alegoricamente as musas das<br />

diversas 'artes', a saber, a matemática,<br />

a física, as ciências naturais, a química,<br />

a medicina, a geografia, a história e, por<br />

fim, a poesia:<br />

Já fugiram os dias horrorosos/De<br />

escuros nevoeiros, dias tristes,/Em que<br />

as artes gemeram desprezadas/Da<br />

nobre Lísia no fecundo seio/Hoje<br />

cheias de glória ressuscitam/Até nestes<br />

confins do Movo Mundo/Graças à mào<br />

augusta que as animal (...) E tu, quem<br />

és, oh ninfa. tu que ajuntas,/Indagas e<br />

descobres os tesouros/Que fecunda<br />

produz a natureza? Recebe as tuas leis<br />

todo o vivente,/0 nobre racional, o vil<br />

inseto,/O mudo peixe, as aves<br />

emplumadas,/as indômitas feras e<br />

escamosas/mortiferas serpentes, e os<br />

anfibios/que respiram diversos<br />

elementos./Dos vegetais na imensa<br />

variedade/Tu conheces os sexos, e<br />

distingues/Quais servem ao comércio,<br />

e quais restauram/A perdida saúde; tu<br />

nos mostras/A prata, o ouro, as pedras<br />

preciosas/Com que a opulenta e ínclita<br />

Lisboa/Vaidosa sobre o Tejo se<br />

levanta. 39<br />

A especificidade deste grupo de letrados<br />

Diderot, Denls et alil. Encyclopedie. Dictlonnaire ralsonné des sclences, des arts et des métiers.<br />

Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 105-122. jan/dez 1995 - pag 1 15


A C E<br />

coloniais 4 0 se dá na medida em que<br />

imbuídos da noção de valorização da<br />

natureza como produtora de riquezas e<br />

4 1<br />

como 'mestra' da própria vida,<br />

começam a valorizar também sua<br />

posição de maior proximidade para com<br />

ela, já que as produções naturais eram<br />

particularmente pródigas nestes<br />

'confins do Movo Mundo'. Silva<br />

Alvarenga foi a alma da Sociedade<br />

Literária do Rio de Janeiro, além de ter<br />

sido mestre de muitos de seus<br />

membros. Formado em direito pela<br />

Universidade de Coimbra, ensinava<br />

retórica e latim, recebendo alunos até<br />

de outras cidades da Colônia. Sua<br />

atuação como professor e como poeta<br />

influenciou uma geração de intelectuais<br />

que mais tarde promoveria a<br />

emancipação política destas terras.<br />

Embora Manuel Inácio da Silva<br />

Alvarenga não tivesse planos de<br />

independência, forneceria elementos<br />

intelectuais que embasariam a<br />

construção da idéia de uma 'nação<br />

brasileira', algumas décadas mais<br />

tarde. 42 O poeta na sua obra demonstra<br />

que seu caráter 'brasileiro', ou antes<br />

'americano', estava mais presente em<br />

sua própria atividade artística do que em<br />

qualquer plano nativista de sediçáo.<br />

Portador de uma concepção idealizada<br />

da natureza, que exaltava sua<br />

amenidade, utilidade e beleza, 4 3 ele<br />

chega, em vários momentos de sua<br />

obra, entre um pastor grego e outro, a<br />

descrever as singularidades de sua terra<br />

natal, como beija-flores, cajueiros e<br />

pag. 116, jan/dez 1995<br />

mangueiras. 44<br />

Provavelmente Silva Alvarenga morreu<br />

sem realizar completamente o seu<br />

sonho de homem 'rústico' inspirado de<br />

uma leitura pastoril da Antigüidade<br />

Clássica. Consta numa passagem dos<br />

autos da devassa, quando discutem dois<br />

dos envolvidos no processo:<br />

Silva Alvarenga, João Marques, Mariano<br />

e Jacinto queriam fazer uma república<br />

de animais nas cabeceiras ou sertão<br />

do rio de Tageahi, dizendo o dito Silva<br />

Alvarenga que havia de levar os quatro<br />

evangelistas, quais eram Horácio,<br />

Homero, Virgílio e mais outro, e que<br />

se haviam de queimar todos os mais<br />

livros que houvesse, e daqui<br />

disputavam sobre se devia fazer-se<br />

guerra aos mesmos animais, ou deixá-<br />

los comer todo o gênero de plantas que<br />

eles quisessem, o que tudo vinha em<br />

conseqüência dos louvores que davam<br />

as mesmas repúblicas e felicidade que<br />

nelas gozavam os povos. 45<br />

Assim, os temas desenvolvidos pelos<br />

membros da Sociedade Literária do Rio<br />

de Janeiro incluem-nos no universo<br />

intelectual mais amplo dos ilustrados<br />

luso-brasileiros. Suas preocupações<br />

utilitárias fazem parte do movimento de<br />

acirramento da política colonial<br />

portuguesa, baseada na exploração<br />

metódica da natureza, da brasileira em<br />

particular. A eficácia das atividades<br />

cientificas empreendidas pela<br />

Sociedade Literária não foram<br />

relevantes no âmbito estrito do


desenvolvimento econômico do Reino<br />

e de seus domínios ultramarinos.<br />

Entretanto, o espaço de debate e de<br />

reflexão criado por esta instituição<br />

ultrapassa o pragmatismo desejado<br />

pelas autoridades portuguesas, no<br />

esforço que fizeram para a recuperação<br />

material do Estado. Meste sentido,<br />

consideramos fundamental sublinhar<br />

dois aspectos da vida desta Sociedade.<br />

Em primeiro lugar, a Sociedade Literária<br />

constitui um espaço privilegiado para a<br />

constituição de uma cultura científica ao<br />

mesmo tempo local e cosmopolita, que<br />

traz consigo elementos potencialmente<br />

críticos da ordem política da época. Em<br />

segundo lugar, as atividades da<br />

Sociedade anunciam a adoção de uma<br />

maneira singular de conceber a natureza<br />

tropical, a partir de métodos próprios<br />

às ciências naturais e de um sentimento<br />

que valoriza a especificidade da<br />

natureza brasileira. O poeta Silva<br />

Alvarenga e os demais membros da<br />

Sociedade Literária lançam mão do<br />

arsenal intelectual oriundo das Luzes<br />

européias para refletirem sobre a<br />

condição do homem que vive em<br />

contato quase direto com a natureza.<br />

A especificidade das Luzes no Rio de<br />

Janeiro poderia, então, ser caracterizada<br />

pelo fato que estes 'ilustrados'<br />

perceberam o lugar central da natureza<br />

brasileira no pensamento ilustrado<br />

português. Meste sentido, a Sociedade<br />

Literária é uma das primeiras<br />

associações de letrados que inclui a<br />

história natural como um dos funda­<br />

mentos de suas atividades. A<br />

valorizaçào dos produtos naturais<br />

brasileiros promovida pelos ilustrados<br />

luso-brasileiros permite aos intelectuais<br />

nascidos na Colônia vislumbrarem os<br />

contornos de uma identidade<br />

'americana' e 'tropical'.<br />

M O T A S<br />

1. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. "Aspectos da Ilustração no Brasil". In: Revista<br />

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: jan./mar. 1968, p.<br />

105.<br />

2. DIAS, M. O. L. da S., op. cit. e FALCOM, Francisco José Calazans. A época<br />

pombalina - política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.<br />

3. Conferir FALCOM, F. J. C. Despotismo esclarecido. São Paulo: Ática, 1988.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1 -2. p. 105-122, jan/dez 1995 - pag. 117


A C E<br />

4. A esse respeito conferir HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII.<br />

Lisboa: Presença, 1980 e FALCON, F. J. C. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1988.<br />

5. Sobre a especificidade da Ilustração portuguesa, cf. MUNTEAL FILHO, Oswaldo.<br />

Domenico Vandelli no anfiteatro da natureza - a cultura científica do reformismo<br />

ilustrado português na crise do Antigo Sistema Colonial. Rio de Janeiro:<br />

dissertação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro<br />

- mimeo, capítulo 1, 1993.<br />

6. Apud QONNARD, René. "L' epopée portugaise et 1' abbé Raynal". In: Revue<br />

dtlistoire Économique et Sociale. Paris: XXVII (1), 1948, p. 24.<br />

7. Cf. FALCON, F J. O, op. cit. e NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do<br />

Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1983.<br />

8. VANDELLI, D. "Memória sobre a preferência que em Portugal se dá a agricultura<br />

sobre as fábricas", apud SERRÀO, Joel. Dicionário da história de Portugal. Porto:<br />

Figueirinhas, s.d., pp. 42-44.<br />

9. VANDELLI, D. Dicionário de história natural. Lisboa: Tipografia da Academia Real<br />

das Ciências de Lisboa, 1786, p. 1.<br />

10. Conferir a esse respeito QODINHO, Vitorino de Magalhães. A estrutura da antiga<br />

sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968.<br />

11. Para maiores detalhes acerca da vida e da obra do naturalista luso-italiano, conferir<br />

MUNTEAL FILHO, Oswaldo, op.cit.<br />

12. Conferir a esse respeito as correspondências entre o marquês de Pombal e o<br />

naturalista italiano contidas na Coleçáo Negócios de Portugal, sob a guarda do<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />

13. VANDELLI, D. 'Sobre algumas produções naturais deste Reino, das quais se poderia<br />

tirar utilidade". In: Memórias econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Qulbenkian - Banco de Portugal, 1991, p. 176.<br />

14. VANDELLI, D. Dicionário de história natural, op. cit., p. 5.<br />

15. NOVAIS, Fernando A., op.cit., p. 224.<br />

16. FALCON, Francisco J. C. Da Ilustração à revolução- percursos ao longo do espaço-<br />

tempo setecentista. In: Revista Acervo. Rio de Janeiro: v.4, n.l, jan./jun. 1989, p. 80.<br />

17. VANDELLI, D. "Sobre algumas produções naturais deste Reino, das quais se poderia<br />

tirar utilidade", op.cit., p. 177.<br />

18. Cf. QERBI, Antonello. La disputa dei Píuevo Mundo - historia de una polêmica<br />

(1750-1900). México: Fondo de Cultura Econômica, 1960.<br />

19. VANDELLI, D. "Sobre a agricultura deste Reino, e das suas conquistas". In: Memórias<br />

pag. II8, jan/dez 1995


R V O<br />

econômicas .... p. 170.<br />

20. Apesar de favorecer expedições científicas no território brasileiro, a administração<br />

metropolitana se preocupava extremamente com a defesa de seus domínios. Daí<br />

a má acolhida a expedições estrangeiras, como as de Bougainville e Humboldt.<br />

Consultar: TAILLEMITE, Étienne. Bougainville et ses compagnons autour du monde<br />

(1766-1769) • journaux de navigation. Paris: Imprimerie Mationale, 1977; e PIMTO,<br />

Olivério M. O. "Viajantes e naturalistas". In: História geral da civilização brasileira.<br />

Sâo Paulo: D1FEL, 1983, t.III, v.3.<br />

21. Cf. DIAS, M. O. L. da S., op.cit.<br />

22. Sobre a atividade dos médicos na Sociedade Literária do Rio de Janeiro, cf.<br />

FOHSECA, Maria Rachel Fróes da. Ciência e identidade nacional no Brasil no<br />

início do século XIX. Comunicação apresentada no IV Congresso Latinoamericano<br />

de Historia de la Ciência y de Ia Tecnologia. Cali: janeiro de 1995.<br />

23. Sobre a administração do conde de Resende consultar: SAMTOS, Afonso Carlos<br />

Marques dos. Ho rascunho da fiação: Inconfidência no Rio de Janeiro. Rio de<br />

Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Qeral<br />

de Documentação e Informação Cultural, 1992.<br />

24. Cf.QARCIA, Rodolfo. "Introdução aos autos da devassa ordenada pelo vice-rei<br />

conde de Resende". In: Anais da Biblioteca fiacional. Rio de Janeiro: 1939, v.<br />

LX1, p. 241.<br />

25. Cf. especialmente sobre esse personagem da sociedade letrada, seus papéis<br />

particulares, correspondências com membros da Academia Real das Ciências de<br />

Lisboa, livros seqüestrados e outros registros, o códice 749 - marquês de Maricá,<br />

sob a guarda do <strong>Arquivo</strong> nacional.<br />

26. Sobre d. Rodrigo de Sousa Coutinho consultar: DIAS, M. O. L. da S., op.cit. e<br />

nOVAIS, F. A., op.cit.<br />

27. AHA1S da Biblioteca nacional. Autos da devassa ordenada pelo vice-rei conde de<br />

Resende. 1939, LX1, p. 439.<br />

28. Idem, ibidem, pp. 368 e 370.<br />

29. Cf. a esse respeito DARnTOn, Robert. Edição e sedição - o universo da literatura<br />

clandestina no século XVIII. Sào Paulo: Companhia das Letras, 1992.<br />

Especialmente quando R. Darnton chama a atenção para o fato de que "Deve-se<br />

entender sedição nào como uma tomada de armas nem como uma violência<br />

esporádica contra as autoridades, e sim como um desvio que, mediante o texto<br />

e no texto, se instaura com relação às ortodoxias do Ancien Regime - isto é, com<br />

relação ao conjunto das crenças aceitas, das razões comuns, dos discursos de<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1 -2, p. 105-122. jan/dez 1995 - pag. 119


A C E<br />

legitimação que, no correr dos séculos, haviam sido considerados os fundamentos<br />

da ordem monárquica. Essa distinção que opero no sentido do termo sedição é<br />

importante. Na verdade, náo pretendo afirmar que a simples leitura - individual<br />

ou coletiva - de uma obra ilegal desembocaria numa tomada de consciência, na<br />

cristalização de uma opinião e, enfim, num levante. Em contrapartida, sustento<br />

que o livro ilegal - tratado de filosofia, libelo político e crônica escandalosa -<br />

corrói a ideologia monárquica e seus pilares - o rei, a Igreja e os bons costumes<br />

- pelo uso sistemático, desenfreado e desmesurado das seguintes armas:<br />

zombaria, escárnio, razão crítica e histórica, pornografia, irreligiáo e materialismo<br />

hedonista." p. 11. Cf. ainda para maiores detalhes acerca da estrutura e conteúdo<br />

das bibliotecas: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros - leitores, autores e<br />

bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XV111. Brasília: Editora UnB, 1994.<br />

30. Cf. a esse respeito, objetivando estudos mais aprofundados acerca da estrutura<br />

dos cursos e dos diplomas obtidos pelos letrados luso-brasileiros: ARQUIVO<br />

NACIONAL. Coleção Negócios de Portugal, caixa 652, Universidade de Coimbra -<br />

1790-1820.<br />

31. ANAIS da Biblioteca <strong>Nacional</strong>, op.cit., p. 449.<br />

32. O Patriota, Rio de Janeiro, out. 1813, n.4, apud DIAS, M. O. L. da S., op. cit., p. 115.<br />

33. Sobre o funcionamento das sociedades 'savantes' francesas cf. ROCHE, Daniel.<br />

Les républicains des lettres. Paris: Fayard, 1988 e Le siècle des Lumiêres en<br />

province: académies et académiciens provinciaux, 1680-1789. Paris: Mouton,<br />

1978, 2 vol.<br />

34. ANAIS da Biblioteca <strong>Nacional</strong>, op. cit., p. 520.<br />

35. Idem, ibidem, p. 395.<br />

36. Idem, ibidem, p. 395.<br />

37. No que se refere ao interesse das autoridades metropolitanas pela utilidade dos<br />

domínios ultramarinos, particularmente de membros do subgrupo naturalista-<br />

ilustrado da Academia Real das Ciências de Lisboa, devemos nos reportar às<br />

narrativas testemunhais contidas nas memórias econômicas da Academia ou em<br />

registros documentais como numa correspondência de d. Rodrigo de Souza<br />

Coutinho ao entào vice-rei conde de Resende, acerca de um antigo membro da<br />

Sociedade Literária do Rio de Janeiro e das atividades especulativas em geral:<br />

"Desejando Sua Majestade aumentar os conhecimentos sobre as riquezas, que<br />

encerram algumas das suas capitanias do Brasil, pela imediata utilidade, que<br />

deles deve necessariamente resultar para a Sua Real Coroa, e para os Seus<br />

vassalos em geral: Tem determinado, que João Manso Pereira passe a visitar a<br />

capitania de São Paulo, e depois a de Minas Qerais, e que V. Exa, além dos<br />

pag. 120. jan/dez 1995


R V O<br />

quatrocentos mil réis de pensão ordenados pelo aviso de 1 1 deste mês, e que V.<br />

Exa. lhe fará pagar pelo subsídio literário dessa capitania, lhe dê alguma ajuda<br />

de custo proporcionada às despesas que exigir a viagem, que por ordem da mesma<br />

penhora vai empreender o referido João Manso Pereira, a quem V. Exa. permitirá<br />

também, que tire das fundições quaisquer objetos, de que ele possa carecer<br />

para os seus exames mineralógicos, e para em tudo V. Exa. lhe facilitar os meios<br />

de fazer a sua viagem. Palácio de Queluz - 18 de março de 1797". <strong>Arquivo</strong> nacional,<br />

códice 67, volume 22, fl. 68.<br />

38. EPÍSTOLA a José Basílio da Gama. In: SALLES, Fritz Teixeira. Silva Alvarenga •<br />

antologia e crítica. Brasília: Ed. de Brasília, 1973.<br />

39. AS ARTES. In: SALLES, Pritz Teixeira, op. cit.<br />

40. Sobre este aspecto consultar: FALCOn, Francisco J. C. "As reformas pombalinas<br />

e a cultura colonial*. In: AMÉRICA 92. Rio de Janeiro: 1992, mimeo; JOB1M,<br />

Leopoldo J. C. O reformismo pombalino e a continuidade mariana no Brasil:<br />

Luís dos Santos Vilhena, marco do pensamento político brasileiro. Lisboa: Editorial<br />

Estampa, 1984; MAXWELL, Kenneth. "The generation of the 1790's and the idea<br />

of luso-brazilian empire". In: ALDEn, D. (org). Colonial roots of modem Brazil.<br />

London: University Press, 1973; noVAIS, Fernando A. "O reformismo ilustrado<br />

luso-brasileiro: alguns aspectos". In: Revista Brasileira de História. São Paulo: v.<br />

2, n. 7, pp. 105-1 18, mar. 1984; SAnTOS, Afonso Carlos Marques dos, op. cit. e<br />

WEHLinG, Arno. "O fomentismo português no final do século XV1I1: doutrinas,<br />

mecanismos, exemplificações". In: R.I.H.G.B., v. 316, 1978, pp. 170-278.<br />

41. Cf. a esse respeito: EHRARD, Jean. L' idée de nature en France a I' aube des<br />

lumières. Paris: Flammarion, 1970 e LEnOBLE, Robert. História da idéia de<br />

natureza. Lisboa: Edições 70, 1990.<br />

42. Sobre a valorização da natureza e a formação do sentimento de nacionalidade<br />

brasileira na primeira metade do século XIX, cf. KURY, Lorelai. "Entre nature et<br />

civilisation: les médecins brésiliens et 1'identité nationale (1830-1850)". In:<br />

Cahiers du Centre de Recherches Historiques. n. 12, avril 1994, pp. 159-172.<br />

43. Sobre as concepções estéticas de Silva Alvarenga consultar: CÂnDIDO, Antônio.<br />

Formação da literatura brasileira - momentos decisivos. São Paulo: Martins, 2<br />

vols., 1959.<br />

44. Cf., por exemplo, ALVAREnGA, Manuel Inácio da Silva. Glaura. Poemas eróticos.<br />

Lisboa: Oficina Munesiana, 1799. na página que segue a folha de rosto desta<br />

edição. Silva Alvarenga precisa o título de sua obra: Glaura: poemas eróticos de<br />

um americano.<br />

45. AnAIS da Biblioteca nacional, op. cit., p. 440.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 105-122, Jan/dez 1995 - pag. 121


A B S T R A C T<br />

This article studies the insertion of the Literary Society of Rio de Janeiro's activities<br />

in the universe of Luso-Brazilian education. It highlights the role played by the sciences<br />

of nature in developing a feeling of Brazilian specificity, which will be one of the<br />

elements of the national identity fashioned by the future generation.<br />

R É S U M É<br />

Larticle analyse les activités de la Sociedade Literária do Rio de Janeiro et les integre<br />

dans l'ensemble des Lumières luso-brésiliennes. On a mis en évidence le role joué<br />

par les sciences de la nature dans la construction du sentiment d'une spécificité<br />

brésilienne, élément qui fera partie de 1'idée d'identité nationale, telle qu' elle a été<br />

mise en place par les générations ultérieures.<br />

pag 122. jan/dez 1995


Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />

Professora de História Moderna e Contemporânea da UERJ. Doutora em História pela USP.<br />

Leié lei£( .Brasil,<br />

ura e leitores no ioras'^<br />

Na visão do<br />

o estoco frastraílo (de uma<br />

XVIII, os escritos e<br />

ornamentav ivam a<br />

esfera púMica cie poder<br />

século<br />

verdade, pois "os bons livros" jâ<br />

norteavam a Europa, esclare­<br />

cendo "o governo sobre os seus<br />

deveres, sobre sua falta, sobre o seu<br />

verdadeiro interesse, sobre a opinião<br />

pública que devem escutar e seguir".<br />

Instrumentos de transmissão de<br />

conhecimentos e de experiências para<br />

círculos restritos, os textos, no final do<br />

Antigo Regime, transformavam-se em<br />

meios de mobilização, capazes de<br />

atingir um público mais amplo. Afinal,<br />

os 'meios de comunicação universal',<br />

sobretudo os jornais e as folhas avulsas,<br />

segundo Keith Baker, foram os<br />

responsáveis pelo esboço da voz geral.<br />

que, paulatinamente, se tornava<br />

uma opinião pública, cuja<br />

objetividade provinha da razão<br />

e cuja força resultava do<br />

progresso das Luzes. 1<br />

Mo Brasil, foi ao longo dos anos<br />

de 1821-1822 que a idéia de opinião<br />

pública iniciou seu balbuciar, cabendo<br />

aos homens de letras o papel de<br />

produzi-la. O clima de intensa efer­<br />

vescência política, nesta época,<br />

propiciou o surgimento de jornais e<br />

folhetos, que possibilitaram uma tênue<br />

ampliação da esfera de poder para além<br />

dos círculos restritos da Corte. Esse<br />

novo momento, em que a política<br />

tornava-se pública, foi detonado pelo<br />

movimento constitucional, iniciado em<br />

Portugal em 1820, e que repercutiu no<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 123-138. Jan/dez 1995 pagl23


A C E<br />

Brasil no ano seguinte. A Regeneração<br />

propunha pôr fim ao Antigo Regime, ao<br />

convocar, à revelia do soberano. Cortes<br />

Extraordinárias para elaborarem uma<br />

constituição, no espírito de um<br />

liberalismo mitigado, resultado das<br />

práticas culturais ilustradas. Ma reali­<br />

dade, o projeto revolucionário, ao invés<br />

de hostilizar a religião, apoiava-se na<br />

Igreja católica, a fim de garantir o caráter<br />

moderado que o movimento pretendia,<br />

evitando-se "os perigosos tumultos,<br />

filhos da anarquia", típicos de uma<br />

revolução, como convinha a uma con­<br />

juntura dominada pela ação restaura-<br />

dora e conservadora da Santa Aliança. 2<br />

Traçando um caminho entre a história<br />

e a política, as publicações, vindas de<br />

Lisboa ou impressas no Rio de Janeiro<br />

e Salvador, permitiram a circulação de<br />

idéias e informações em quase todos os<br />

setores sociais. Os acontecimentos<br />

diários transferiram-se do domínio<br />

privado ao público e adquiriram o status<br />

de novidades. Os artigos dos periódicos<br />

passavam a ser discutidos na esfera<br />

pública dos cafés, das academias e das<br />

livrarias, no sentido que se depreende<br />

dó trabalho de J. tlabermas. 3<br />

Ingressavam nesses espaços de socia-<br />

bilidade e criavam as condições para<br />

que neles se manifestassem as<br />

principais posturas da época compro­<br />

metidas com o ideário liberal.<br />

Quais eram, contudo, as obras publi­<br />

cadas nessa época que despertavam o<br />

debate político e ideológico? Uma das<br />

vias possíveis para a análise dessa<br />

pag, 124, jan/dez 1995<br />

produção é o levantamento das<br />

publicações na Tipografia nacional, no<br />

Rio de Janeiro, ao longo dos anos de<br />

1821 e 1822. Encontraram-se, para o<br />

período, 516 títulos, nào levando em<br />

consideração as leis, cartas e alvarás,<br />

número bastante expressivo, uma vez<br />

que entre 1808, ano da criação da<br />

Imprensa Regia, e 1820, a Tipografia<br />

nacional publicou apenas 569<br />

trabalhos. Devem acrescentar-se ainda<br />

115 títulos,, publicados por tipografias<br />

particulares, também no Rio de Janeiro,<br />

a partir de 1821, totalizando 651 obras.<br />

A classificação do conjunto desses<br />

trabalhos, com base no critério adotado<br />

pelo catálogo da biblioteca do conde da<br />

Barca (1818), apresenta o seguinte<br />

resultado:<br />

Obru Impressas DO no de Janeiro. 1821 1822<br />

I Catajorta. 9uantid.de. Percntagem<br />

Jurisprudência 8 1.37<br />

Ciências e Artes 15 2.37<br />

Belas Letras 195 30.9<br />

História 161 25.51<br />

Teologia 6 0.95<br />

Periódicos 36 5.8<br />

Documentos Oficiais 210 33.29<br />

Total j «si] - " "lOOJ<br />

Fonte: A. do Vale Cabral. Anais da Imprensa<br />

<strong>Nacional</strong> do Rio de Janeiro de 1808 a 1822. Rio<br />

de Janeiro: Tip <strong>Nacional</strong>, 1881; A. do Vale Cabral.<br />

Suplemento aos Anais da Imprensa <strong>Nacional</strong>:<br />

1808-1823. Anais da Biblioteca <strong>Nacional</strong>. Rio de<br />

Janeiro, 73:109-115, 1954; Biblioteca <strong>Nacional</strong>-<br />

Divisão de Obras Raras. Catálogo das tipografias<br />

nacionais; Ana Maria de A. Camargo & Rubens<br />

Borba de Morais. Bibliografia da Impressão Regia<br />

do Rio de Janeiro. São Paulo: EDUSP/Kosmos,<br />

1993.


À primeira vista, o pequeno número de<br />

obras de cunho religioso pode<br />

surpreender, mas essa fragilidade pode<br />

ser explicada porque a parenética<br />

incluía-se na categoria de Belas Letras.<br />

Além disso, esse número exíguo era<br />

compensado por uma boa quantidade<br />

de livros de religião vindos de Portugal,<br />

por meio de livreiros, que desde 1799<br />

pediam licença à Mesa Censória para<br />

expedirem-nos para o Brasil. 4 Se os<br />

títulos publicados forem considerados<br />

cronologicamente, no entanto, verifica-<br />

se que mais da metade do total<br />

(52.58%) saiu à luz no biênio 1821-<br />

1822. Dentre esses, a categoria História<br />

perfaz 25.5%, em função do grande<br />

número de folhetos políticos que<br />

surgiram no período. Da mesma forma,<br />

o crescente número de periódicos indica<br />

que hábitos de leitura de jornal estavam<br />

sendo adquiridos.<br />

Foram, portanto, os folhetos, panfletos<br />

e periódicos, publicados entre 1821 e<br />

1823, que, sem dúvida, mais<br />

contribuíram para as leituras da elite,<br />

mais intelectual do que social, que<br />

participou do movimento da<br />

Independência. Por outro lado, a<br />

característica fundamental dessa<br />

literatura era a homogeneidade dos<br />

princípios e dos mecanismos mentais<br />

que a informavam, pois, em sua<br />

essência, difundiam uma mesma cultura<br />

política, plasmada na tradição de uma<br />

ilustração mitigada portuguesa. Cultura<br />

política que identificava o Antigo<br />

Regime à esfera privada do poder, sob<br />

V o<br />

a forma de despotismo, responsável<br />

pela situação de colônia a que Portugal<br />

se vira reduzido após 1808. Em<br />

contrapartida, buscava no liberalismo<br />

incipiente os argumentos e as<br />

instituições capazes de assegurar uma<br />

maior participação nos negócios<br />

públicos, embora sem abalar a ordem.<br />

Dai, regeneração, ao invés de revolução.<br />

Tanto pelas publicações, quanto pelos<br />

anúncios em jornais, observa-se que<br />

eram pouquíssimas as menções às<br />

obras de cunho teórico, que fizeram a<br />

fama da ilustração francesa. Seria<br />

possível concluir daí que a elite<br />

intelectual do Brasil não lia esses<br />

autores famosos, há muito proibidos em<br />

Portugal e seus domínios? Certamente<br />

que não, pois o rigor da censura nào<br />

impediu, em ambas as margens do<br />

Atlântico, o acesso sous le manteau. 5<br />

Mo Brasil, são bem conhecidos os<br />

estudos que indicam a presença de<br />

algumas dessas obras nas bibliotecas<br />

mineiras, baianas e cariocas do final do<br />

século XVIII. Também, um folheto de<br />

1822 afirmava que "os escritos<br />

filosóficos dos Mablys, dos Rainaes, dos<br />

Rousseaus, dos Voltaires, dos De<br />

Pradts", introduzidos "pelas brechas<br />

feitas nas barreiras coloniais",<br />

circulavam pelas mãos dos brasileiros. 6<br />

Muitas vezes, a simples interdição pela<br />

censura despertava a curiosidade do<br />

público leitor, que as obtinha por<br />

intermédio de conhecidos vindos do<br />

exterior ou através do contrabando. Era<br />

ainda comum o pedido, por parte dos<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 123-138. jan/dez 1995-pag. 125


A C E<br />

livreiros franceses no Rio de Janeiro, de<br />

licença ao Desembargo do Paço, desde<br />

1808, para importar obras de<br />

Montesquieu, Rousseau, Beauchamps e<br />

outros, embora sempre negada pelos<br />

censores régios, como José da Silva<br />

Lisboa e Mariano José Pereira da<br />

Ponseca, que mostravam, por sua vez,<br />

em seus pareceres, estarem<br />

perfeitamente a par do conteúdo de tais<br />

trabalhos. 7<br />

Após a proclamação da liberdade de<br />

imprensa (28 de agosto de 1821), a<br />

referência aos autores da ilustração<br />

européia tornou-se uma constante nos<br />

periódicos. De um lado, nos escritos<br />

redigidos por indivíduos mais<br />

moderados, citavam-se aqueles cujas<br />

idéias haviam iluminado o mundo<br />

civilizado, como Edmund Burke,<br />

Montesquieu, Jeremias Bentham e<br />

Benjamim Constant. 8 De outro, nas<br />

folhas mais radicais, cujos redatores se<br />

deixavam levar por seu imaginário<br />

revolucionário, assimilavam-se<br />

sobretudo as idéias dos philosophes<br />

franceses, como Voltaire, Rousseau,<br />

Mably, Condorcet, Raynal e De Pradt.<br />

Neste último grupo, pelo menos um<br />

periódico trazia uma epígrafe de<br />

Rousseau; e outro defendia uma postura<br />

democrática, baseada principalmente na<br />

idéia da soberania popular. Se esses<br />

nomes proibidos circularam<br />

anteriormente entre os segmentos da<br />

elite intelectual, a grande novidade, a<br />

partir desse momento, era levar esse<br />

ideário a um público mais amplo, que<br />

pag 126. jan/dez 1995<br />

começava a conviver em seu cotidiano com<br />

novos valores políticos, relacionados à<br />

construção de um Estado liberal. 9<br />

Em geral, a característica básica dos<br />

folhetos políticos era o caráter polêmico<br />

e didático, sob a forma de comentários<br />

de fatos recentes ou de discussões<br />

sobre as grandes questões da época.<br />

Muitas vezes, encadeavam-se uns aos<br />

outros, ou a algum outro tipo de<br />

publicação, como os jornais, consti­<br />

tuindo uma verdadeira 'rede de<br />

polêmicas'. 10 Em sua maioria, apresen­<br />

tavam as idéias de forma bastante<br />

organizada, explicando o autor seu<br />

posicionamento sobre o assunto e<br />

procurando fornecer opiniões e<br />

ensinamentos que pudessem influenciar<br />

o público leitor.<br />

Já que, em 1821, a censura ainda estava<br />

atuante, as obras apareciam<br />

inicialmente anônimas. Somente a partir


R V O<br />

de 1822, muitos desses folhetos<br />

começaram a ser identificados pelas<br />

iniciais de seus autores, o que se pode<br />

atribuir à lei que proibia a publicação<br />

de obras anônimas pela imprensa<br />

oficial. De igual modo, nessa mesma<br />

época, aumentou consideravelmente o<br />

número de folhetos publicados pelas<br />

tipografias particulares."<br />

Instrumentos fundamentais da<br />

divulgação da cultura política, essas<br />

publicações assumiram várias formas.<br />

Algumas procuravam explicar certos<br />

pontos do vocabulário político, sendo<br />

então chamados de folhetos<br />

constitucionais. Era o caso da<br />

Constituição explicada e do Catecismo<br />

político constitucional. Outras<br />

assumiam a forma de diálogos, como o<br />

Diálogo entre o corcunda abatido e o<br />

constitucional exaltado ou o Alfaiate<br />

constitucional, conversa entre um<br />

alfaiate e seus fregueses, seguindo o<br />

modelo clássico do Spectator, de<br />

Addison e Steele. 12<br />

Freqüentes foram as cartas escritas aos<br />

amigos e compadres, ao lado de<br />

algumas farsas em verso. A preocupação<br />

de levar os ensinamentos sobre a<br />

Constituição e as críticas ao despotismo<br />

a um público mais amplo também<br />

conduziu ao antigo costume de se<br />

parodiar formas religiosas, rio folheto<br />

A regeneração constitucional ou guerra<br />

e disputa entre os corcundas e<br />

constitucionais, os corcundas (os<br />

absolutistas) arrependidos deviam se<br />

apresentar ao Congresso nacional,<br />

recitando em voz alta e clara várias<br />

orações, como o Padre nosso<br />

Constitucional:<br />

Constituição portuguesa, que estás em<br />

nossos corações, santificado seja o teu<br />

nome, venha a nós o teu regime<br />

constitucional, seja feita sempre a tua<br />

vontade, um melhoramento de<br />

agricultura, navegação e comércio nos<br />

dá hoje e cada dia,- perdoa-nos os<br />

defeitos e crimes passados, assim<br />

como nós perdoamos aos nossos<br />

devedores, que nào nos podem pagar,<br />

nào nos deixes cair em tentação dos<br />

velhos abusos, mas livra-nos destes<br />

males, assim como do despotismo<br />

ministerial, ou anarquia popular.<br />

1 3 Amém.<br />

Cronologicamente, enquanto canal para<br />

a divulgação das idéias políticas do<br />

liberalismo, o biênio 1821-1822 foi a<br />

época áurea do periodismo, podendo<br />

avaliar-se em cerca de trinta e seis o<br />

número de jornais que saíram então à<br />

luz. Embora houvesse alguns com<br />

função meramente informativa, como o<br />

Diário do Rio de Janeiro e o Volantim,<br />

muitos transcreviam artigos de jornais<br />

publicados em outras regiões,<br />

adquirindo, assim, um certo caráter<br />

político. Começando como semanários,<br />

mas transformando-se algumas vezes<br />

em diários, visavam a uma informação<br />

de ação mais direta sobre os aconte­<br />

cimentos e refletiam um discurso muito<br />

mais ideológico e político do que<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1 -2. p. 123-138. jan/dez 1995 - pag 127


A C E<br />

ücí' o£às ^t^dtt s^L+t.<br />

<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, códice 327, f.90, 20 out. 1820.<br />

cultural, como por exemplo, O Correio<br />

do Rio de Janeiro, t certo que muitos<br />

deles tiveram duração efêmera, como O<br />

Be/n c/a Ordem, O Amigo da fiação e do<br />

Rei e o Despertador Brasiliense.<br />

Constituindo uma espécie de jornal<br />

oficial, havia, naturalmente, a Qazeta do<br />

Rio de Janeiro, o primeiro periódico<br />

estampado no Brasil, a partir de 1808.<br />

Limitava-se a repetir atos oficiais, a<br />

copiar trechos das folhas européias<br />

quando fosse conveniente ao governo<br />

e a fazer inumeráveis elogios à família<br />

pag 128. jan/dez 1995<br />

real. Com propostas de um periodismo<br />

de cunho mais político, O Espelho,<br />

publicado a partir de 1" de outubro de<br />

182 1, tinha como objetivo fornecer<br />

minuciosas informações a respeito das<br />

sessões das Cortes e relatar notícias das<br />

gazetas portuguesas e baianas. Em<br />

verdade, dava a versão oficial dos acon­<br />

tecimentos, sem emitir juízo próprio.<br />

Ainda na linha política, destacaram-se<br />

o Revérbero Constitucional Fluminense,<br />

A Malagueta e o Correio do Rio de<br />

Janeiro. O primeiro, de grande


epercussão na Corte, era escrito pelos<br />

brasileiros Joaquim Gonçalves Ledo e<br />

Januário da Cunha Barbosa e, no<br />

interior do liberalismo, apresentava uma<br />

tendência mais radical, ligada às lojas<br />

maçônicas. O segundo, de autoria do<br />

português Luís Augusto May, era<br />

composto por um único artigo do<br />

redator, um liberal moderado e um dos<br />

grandes polemistas da Independência.<br />

O terceiro era redigido pelo português<br />

João Soares Lisboa, que adotara<br />

posturas mais radicais e democráticas.<br />

Fiel às preocupações políticas, embora<br />

com inovações nos temas, como o seu<br />

próprio título indicava, surgiu, em<br />

inícios de 1822, O Compilador<br />

Constitucional, Político e Literário<br />

Brasiliense. Outros jornais ainda<br />

poderiam ser citados, como O Regulador<br />

Brasílico-Luso, que defendeu a união<br />

com Portugal, sendo considerado a<br />

primeira folha oficiosa, no sentido de<br />

servir ao governo às custas dos cofres<br />

públicos. De menor duração, embora<br />

com grande interesse pelas questões<br />

políticas, foram os periódicos O<br />

Papagaio, portador de um liberalismo<br />

moderado, além do Constitucional, do<br />

Brasil e do Macaco Brasileiro.<br />

Além do Rio de Janeiro, o periodismo<br />

também era relevante nas outras<br />

províncias. Os jornais de maior peso<br />

foram os da Bahia que, em sua maioria,<br />

defenderam a união com as Cortes de<br />

Lisboa, mas adotando sempre uma<br />

postura constitucionalista. Também o<br />

Maranhão, o Pará e Pernambuco<br />

V o<br />

conheceram algumas folhas de cunho<br />

informativo e político. 1*<br />

Esses periódicos, por sua vez, não<br />

deixaram de constituir o reflexo de uma<br />

inédita preocupação coletiva em relação<br />

ao político, com seus artigos sendo<br />

discutidos, como indicam as<br />

inumeráveis cartas de particulares que<br />

os redatores divulgavam semanalmente,<br />

na esfera pública dos cafés, livrarias e<br />

sociedades secretas, como a Maçonaria.<br />

Curiosamente, porém, nem uma dessas<br />

publicações defendia o absolutismo.<br />

Todas moviam-se no interior de um<br />

mesmo sistema de referências, que era<br />

o do liberalismo mitigado.<br />

Se os folhetos, panfletos e periódicos<br />

publicados entre 1821 e 1822<br />

revelavam um ideário político traduzido<br />

de algumas idéias ilustradas do século<br />

XVIII, toda essa produção cultural,<br />

elaborada pela elite intelectual luso-<br />

brasileira, não podia deixar de destinar-<br />

se a um público leitor que devia ser<br />

capaz não só de ler essas publicações,<br />

mas também de extrair delas um<br />

significado. Como argumenta R.<br />

Darnton, "a leitura não é simplesmente<br />

uma habilidade, e sim uma maneira de<br />

fazer sentido que deve variar de cultura<br />

para cultura". 1 5 Quem eram, então,<br />

esses leitores?<br />

Em primeiro lugar, o potencial de leitura<br />

está, evidentemente, relacionado ao<br />

número de habitantes. Apesar da<br />

precariedade dos dados, pode-se, no<br />

entanto, avaliar a população livre do<br />

Brasil, em 1823, em torno de 2 milhões<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n" 1 -2. p. 123-138, jan/dez 1995 - pag. 129


A C E<br />

e 810 mil homens livres, dos quais, em<br />

1821, cerca de 43 mil residiam na<br />

cidade do Rio de Janeiro. 16<br />

A simples dimensão demográfica,<br />

porém, não é suficiente para avaliar o<br />

público com que as discussões de 1821-<br />

1823 contaram. É necessário verificar<br />

também o grau de alfabetização da<br />

população e a distribuição social desta<br />

aptidão, uma vez que a leitura de uma<br />

obra exige sua disponibilidade física,<br />

por compra ou empréstimo, e implica a<br />

decifraçáo de signos, que só o convívio<br />

com os conceitos de uma tradição<br />

cultural possibilita.<br />

Mo Brasil, em princípio dos oitocentos,<br />

a educação estava longe de<br />

desempenhar o papel que iria adquirir<br />

mais tarde, ao menos na Europa, como<br />

um elemento de controle social em<br />

relação às camadas mais baixas. Ma<br />

realidade, servia de atributo às elites,<br />

como um ornamento precioso que as<br />

distinguia da massa, enquanto os<br />

mecanismos tradicionais de controle,<br />

como demonstra a própria escravidão,<br />

mostravam-se suficientes para conservar<br />

o status quo.<br />

Para o início do século XIX, não há<br />

dados oficiais sobre o número de<br />

pessoas alfabetizadas no Brasil.<br />

Entretanto, por meios indiretos, alguns<br />

resultados podem ser alcançados.<br />

Roderick J. Barman salientou que as<br />

oito mil assinaturas que subscreveram<br />

o Manifesto do Fico. em fins de 1821,<br />

revelam um percentual bastante elevado<br />

pag. 130. jan/dez 1995<br />

de alfabetização da população<br />

masculina adulta e livre do Rio de<br />

Janeiro. Partindo de um total de 43.139<br />

habitantes livres, ele deduziu um pouco<br />

mais de um terço referente aos menores<br />

de idade e, em seguida, dividiu o<br />

resultado pela metade, a fim de<br />

distinguir os sexos. Chegou, assim, a<br />

14.380 homens adultos e livres, em<br />

relação aos quais os oito mil assinantes<br />

do Manifesto constituem quase 56%.<br />

Esta taxa de alfabetização, apesar das<br />

deficiências notórias do método de<br />

contagem de assinaturas, eqüivale à<br />

verificada em cidades francesas do<br />

século XVIII, como Aix-en-Provence,<br />

Lyon e Caen, onde variou entre 46 e<br />

86%. 1 7 Evidentemente, a situação não<br />

era a mesma no restante do território,<br />

nem mesmo nas demais cidades, com<br />

a possível exceção de Salvador e, talvez,<br />

do Recife e de São Luís.<br />

Por outro lado, não se pode afastar a<br />

hipótese de que a comunicação oral<br />

substituísse a leitura propriamente dita.<br />

Um Rapport sur la situation de 1'opinion<br />

publique ao intendente-geral de Polícia<br />

da Corte, elaborado pelo emigrado<br />

francês Cailhé de Qeine, em 1820,<br />

alertava para a gravidade da situação,<br />

uma vez que muitas obras eram lidas<br />

"diante de um auditório já predisposto"<br />

a "passagens mais infestadas do espírito<br />

revolucionário das obras francesas mais<br />

perniciosas", traduzidas "para o<br />

português, para a edificação dos<br />

ignorantes". Esta propaganda não se<br />

limitava a "reuniões secretas", mas se


R V O<br />

manifestava "no salão dourado, na humilde<br />

loja e mesmo na praça pública." nesse caso,<br />

o público real atingido por essas idéias seria<br />

bem mais amplo do que se poderia supor<br />

à primeira vista. 18<br />

Outro meio indireto bastante sugestivo<br />

para tentar captar esse público leitor é<br />

o de proceder a uma avaliação das<br />

atividades relacionadas ao comércio de<br />

livros, sobre o qual as informações são<br />

menos escassas. Um exame acurado da<br />

documentação revela que, no Rio de<br />

Janeiro, em especial após a instalação<br />

da Corte na cidade, esse comércio era<br />

bem mais intenso do que se costuma<br />

imaginar. Para os anos de 1821-1822,<br />

através dos anúncios na Gazeta e no<br />

Diário do Rio de Janeiro, foi possível<br />

identificar nove livreiros especializados,<br />

além de outras três lojas ligadas às<br />

tipografias. Mais onze nomes devem ser<br />

igualmente acrescentados, pois, como<br />

negociantes, vendiam, entre artigos<br />

variados, as publicações do dia. Para<br />

fins de comparação, de acordo com os<br />

dados de Laurence flallewell, em 1826<br />

existiam em Buenos Aires apenas cinco<br />

livrarias. 19 Para o público, elas também<br />

funcionavam como um novo espaço da<br />

esfera pública, servindo como ponto de<br />

encontro e de conversas da elite<br />

intelectual. Segundo visão de época, em<br />

fins de 1822, a livraria de Manuel<br />

Joaquim da Silva Porto era "o ponto de<br />

união dos mais exaltados demagogos",<br />

pois ali ajustavam e combinavam o que<br />

iam escrever, discutindo seus planos,<br />

a "sós ou com a maior publicidade",<br />

tramando-se os golpes a favor da<br />

república e contra o futuro do Império<br />

brasileiro. 20<br />

Sob o ângulo da disponibilidade, esses<br />

escritos de circunstância não eram, de<br />

certo, inacessíveis, quanto ao preço, a<br />

um público mais vasto. Os periódicos<br />

custavam, por número, em 1821, entre<br />

80 e 120 réis. Os folhetos, segundo os<br />

catálogos do livreiro Paulo Martim,<br />

vendiam-se por um valor entre 80 e 320<br />

réis. Chegava-se a afirmar que o povo,<br />

por nào ter condição para ir ao teatro,<br />

divertia-se com os "bufões (os periodi-<br />

queiros) por pouco dinheiro". 21 na mesma<br />

época, uma empada de recheio de ave<br />

custava 100 réis; um arrátel de lingüiça,<br />

280; a aguardente de cana, 80 réis a garrafa;<br />

um sabão inglês, 120 réis a libra. 22<br />

A preocupação de informar as camadas<br />

mais baixas da população ficava restrita<br />

pela própria organização social do<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 12. p. 123-138. jan/dez 1995 - pag, 131


A C E<br />

Brasil-Reino, em que cerca de um terço<br />

da população era constituída de<br />

escravos, rio entanto, as primeiras<br />

eleições para as Cortes de Lisboa<br />

(1821), embora utilizassem um método<br />

indireto, não tinham estabelecido censo<br />

algum, podendo ser votante todo<br />

cidadão com mais de 25 anos. Talvez<br />

por isso, uma parte nada desprezível<br />

dessa literatura de circunstância tenha<br />

assumido a forma de cartilhas e de<br />

catecismos sobre os princípios constitu­<br />

cionais, visando de certa forma às<br />

camadas mais baixas, em especial aos<br />

soldados, com o intuito de didatica­<br />

mente transformá-los em cidadãos.<br />

Os indivíduos pertencentes a essas<br />

camadas, que se situavam nas fímbrias<br />

da elite, constituíam um público virtual.<br />

uma vez que, numa sociedade ainda<br />

regida pela oralidade, tomavam<br />

conhecimento das novidades ouvindo<br />

as leituras e participando das conversas<br />

e discussões sobre os acontecimentos<br />

políticos que ocorriam nos lugares<br />

públicos. Era a agitação, o falar 'de<br />

boca' do cotidiano, um certo imaginário<br />

que se fazia circular, traduzindo a<br />

apreensão de idéias e de concepções de<br />

mundo novas entre o povo, pois as<br />

mensagens já não se restringiam ao<br />

círculo estreito da obra escrita. Segundo<br />

o 'Mestre Periodiqueiro', personagem de<br />

um folheto, o botequim era lugar de<br />

grande 'falácia', em que se discutiam<br />

autores como Locke, Qrotius,<br />

Montesquieu e outros, mas também<br />

"casa de reuniões patrióticas", em que<br />

pag, 132. Jan/dez 1995<br />

a "opinião pública encontrava os seus<br />

verdadeiros intérpretes", formulando-se<br />

questões por "vozes estrondosas", que<br />

retumbavam "nas vidraças da loja". 23 Ao<br />

lado desses indivíduos na fronteira da<br />

desclassificação social, os militares<br />

mais graduados, os pequenos<br />

comerciantes e os funcionários públicos<br />

faziam o papel de um público ideal. 1*<br />

fio entanto, nào pode haver dúvida de<br />

que, para os autores dos folhetos, era<br />

o letrado,. sábio e prudente, que<br />

conhecia a 'verdadeira política'. Os<br />

demais nào passavam de<br />

'melquetrefes', que se metiam a<br />

"discorrer em política", dizendo<br />

"despropósitos e tolices, como os<br />

curandeiros e barbeiros da roça em<br />

medicina", ou demonstrando conhecer<br />

tanto dessa arte quanto o vigário<br />

conhecia de teologia. 2 5 Se, algumas<br />

vezes, havia a preocupação em também<br />

escrever "para aquela classe de<br />

cidadãos que não freqüentaram<br />

estudos", como afirmava o redator do<br />

Bem da Ordem, era necessário, no<br />

entanto, pedir desculpas 'aos literatos'<br />

por utilizar exemplos simples e<br />

vulgares, mas que, para o povo, eram<br />

fundamentais, pois "um exemplo bem<br />

aplicado, vale mais que o discurso mais<br />

concludente e enérgico". 2 6 Ma<br />

realidade, para a visão de época,<br />

somente a elite reunia condições<br />

intelectuais para ter acesso aos folhetos<br />

e, por conseguinte, à cultura política,<br />

convertendo-se ela própria no principal<br />

público de si mesma.


R V O<br />

Essa identificação do público com a<br />

elite pode ser verificada por um meio<br />

indireto, a análise das listas de<br />

subscrições. Como exemplo de<br />

subscrição, isto é, o pagamento de uma<br />

quantia inicial para garantir ao<br />

assinante a aquisição da obra, que<br />

assim se autofinanciava, pode-se citar<br />

a obra editada por Paulo Marfim, notícia<br />

histórica da vida e das obras de José<br />

tlaydn. Foram 44 subscritores, dos quais<br />

28 podem ser identificados: cinco<br />

professores de música; quatro<br />

desembargadores; quatro proprietários;<br />

quatro funcionários públicos; três<br />

sacerdotes; três militares; três cônsules;<br />

um médico e um negociante. Um deles<br />

estudara na Universidade Imperial da<br />

França e quatro, em Coimbra. A única<br />

subscritora era proprietária de um<br />

terreno no lugar denominado Caminho<br />

Movo. Fica patente a predominância de<br />

membros da elite.<br />

Entretanto, permeando toda a discussão<br />

sobre o novo ideário político, não se<br />

deixava de encontrar a preocupação de<br />

formar uma opinião pública. Assim<br />

acreditavam muitos dos autores de<br />

folhetos e jornais, um dos quais<br />

afirmava "ser um dever do cidadão, que<br />

(escrevia), dirigir a opinião pública, e<br />

levá-la, como pela mão, ao verdadeiro<br />

fim da felicidade social". O jornal O<br />

Papagaio suspendeu seus trabalhos<br />

porque julgava que os objetivos<br />

propostos tinham sido alcançados, uma<br />

vez que se achava "consolidada a<br />

opinião pública sobre os verdadeiros<br />

interesses do Brasil e de toda a família<br />

portuguesa". Enfim, em quase todos os<br />

periódicos pode ser encontrada a<br />

preocupação de dirigir ou de ser um<br />

porta-voz da opinião pública. 27<br />

Sem dúvida, seria um anacronismo<br />

atribuir, nesse momento histórico, à<br />

idéia de opinião pública a concepção de<br />

uma "pluralidade de indivíduos que se<br />

exprimem em termos de aprovação ou<br />

sustentação a uma ação, servindo de<br />

referencial a um projeto político<br />

clefinido", com o poder de alterar os<br />

rumos dos acontecimentos. Apesar<br />

disso, em 1821-1822, ela não era<br />

ignorada. Como informava o redator de<br />

O Macaco Brasileiro, o príncipe d. Pedro<br />

conhecia e buscava 'este termômetro'-,<br />

percebendo que o idolatravam pelo calor e<br />

energia com que soube merecer o título de<br />

Perpétuo Defensor do Brasil. 28<br />

Sobretudo, conceder a essa<br />

preocupação de formar uma opinião<br />

pública um papel de destaque seria<br />

ignorar a persistência de procedimentos<br />

tradicionais para conter as idéias que<br />

poderiam revolucionar a população. Em<br />

1820, um registro da polícia comprova<br />

que soldados espanhóis tinham sido<br />

presos porque, num domingo, depois<br />

das três horas da tarde, passavam pelas<br />

ruas do Rio de Janeiro "cantando coisa<br />

que parecia ser o seu hino<br />

constitucional". 29 De modo semelhante,<br />

o redator do Conciliador do Reino<br />

Unido, o censor régio José da Silva<br />

Lisboa, julgava seu "dever dirigir bem a<br />

opinião pública, a fim de atalhar os<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v a, n 12. p, 123-138, jan/dez 1995 - pag. 133


desacertos populares, e as eferves-<br />

cências frenéticas", pois "os periódicos<br />

e papéis avulsos" eram também "lidos<br />

sôfrega e inconsideradamente pelas<br />

classes ínfimas". Em novembro de<br />

1822, o imperador d. Pedro autorizou a<br />

abertura de uma devassa sobre as<br />

pessoas que conspiravam contra o<br />

governo e inflamavam a opinião pública.<br />

Por conseguinte, longe de viabilizar os<br />

escritos como meios de influência para<br />

dirigir a opinião pública, pela predicação<br />

de seus próprios valores, a principal<br />

preocupação do governo continuava sendo<br />

a de cercear as idéias que circulavam e que<br />

podiam ser perigosas aos planos<br />

arquitetados por seus agentes. 30<br />

Desta forma, de um lado, os autores<br />

dessa literatura de circunstância -<br />

fossem folhetos, fossem jornais -<br />

enquanto membros da elite intelectual<br />

e política, náo deixaram de ver na<br />

palavra escrita uma fonte de poder,<br />

capaz de produzir reformas, sem<br />

transtornos para a ordem social. Ao<br />

revelarem e divulgarem o ideário do<br />

liberalismo, por meio de uma pedagogia<br />

do constitucionalismo, criaram as<br />

bases, após 1822, para o separatismo e<br />

pag. 134. jan/dez 1995<br />

a dissolução do Império luso-brasileiro.<br />

rio processo, transformaram seus escri­<br />

tos, principais veículos da cultura<br />

política da época da Independência, em<br />

instrumentos educacionais da própria elite<br />

e asseguraram para si um lugar na estrutura<br />

de poder do futuro Império Brasil.<br />

De outro lado, porém, contido talvez<br />

pela estrutura social escravista, o poder<br />

oficial não quis, ou não pôde,<br />

vislumbrar a mesma possibilidade de<br />

também transformar a palavra escrita<br />

em arma de combate, capaz de formar<br />

uma opinião pública a seu favor. O<br />

Estado em elaboração relegou, assim,<br />

o processo de subordinação das<br />

camadas menos favorecidas (e, em<br />

casos limites, até mesmo dos setores<br />

mais radicais da elite) às persistentes<br />

práticas repressivas características de<br />

uma esfera privada de poder. Ao fazê-<br />

lo, limitou a ação daquela cultura<br />

política da Independência, ainda que de<br />

um liberalismo mitigado, às elites;<br />

condenou os intelectuais à função<br />

decorativa que a tradição bacharelística<br />

soube desenvolver; e, por último, mas<br />

nem por isso menos importante,<br />

inviabilizou a construção da nação.


i V o<br />

n O T A s<br />

1. Para a primeira citação, ver MERCIER, Louis Sebastien . Hotions claires sur les<br />

gouvernements. Amsterdan, 1787, p. VII. Apud HABERMAS, J. Mudança estrutural<br />

da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 118. Cf. BAKER,<br />

Keith M. "Politique et opinion publique sous 1'Ancien Regime". In: Annales.<br />

Êconomies. Sociétés. Civilisations. Paris, 42 (1): 41-7 1, jan./fév. 1987.<br />

2. O Pregoeiro Lusitano: história circunstanciada da Regeneração Portuguesa, (v.<br />

1). Lisboa: Tip. João Baptista Morando, 1820, p. 353.<br />

3. Para o conceito de esfera pública de poder, ver HABERMAS, J., op. cit., p. 42.<br />

4. ARQUIVO MACIONAL DA TORRE DO TOMBO. Real Mesa Censória. Exame dos livros<br />

para saírem do Reino para o Rio de Janeiro, 1799-1808. Caixas 153-154.<br />

5. A expressão é de ROCHE, Daniel. Les républicains des Lettres: gens de culture et<br />

Lumières au XVIII' siècle. Paris: Fayard, 1988, p. 28.<br />

6 . BURMS, Bradford. "The Enlightment in two colonial brazilian libraries" . In: Journal<br />

of the History of Ideas. New York, 24: 430-38, 1964; FRIEIRO, Eduardo. O diabo<br />

na livraria do cõnego. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957; MATTOSO, Ratia de Queirós..<br />

Presença francesa no movimento democrático de 1798. Bahia: ltapuã, 1969;<br />

CAMPELLO, Ignácio M. Pinto. "Relação dos livros apreendidos ao bacharel Mariano<br />

José Pereira da Fonseca - seqüestro feito em 1794". In: Revista do Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. 63: 15-18, 1901. Para o folheto,<br />

ver O Brasil indignado contra o projeto anticonstitucional sobre a privação das<br />

suas atribuições por um filopatrico. Rio de Janeiro: Tipografia nacional, 1822,<br />

p. 5.<br />

7. Para a divulgação de obras estrangeiras no Brasil, ver nEVES, Lúcia M. Bastos P.<br />

& FERREIRA, Tânia Maria T. Bessone da C. "O medo dos abomináveis princípios<br />

franceses: a censura dos livros nos inícios do século XIX no Brasil". In: Acervo.<br />

Rio de Janeiro, 4: 113-19, jan./jun. 1989 e HEVES, Lúcia M. Bastos P. "Comércio<br />

de livros e censura de idéias no Brasil (1795-1822)". In: Ler História. Lisboa, 23:<br />

61-78, 1992.<br />

8. nesse grupo destacam-se, entre outros jornais, O Conciliador do Reino Unido, O<br />

Bem da Ordem e o Espelho.<br />

9. Os jornais eram A Malagueta e o Correio do Rio de Janeiro.<br />

10. JOUHAUD, Christian. "Propagande et action au temps de la Fronde". In: VIQUEUR,<br />

Jean Claude M. 6c PIETRI, Charles (org.). In: Culture et idéologie dans la genèse<br />

de 1'État Moderne. Roma: École Française de Rome, 1985, p. 352.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n 1 I -2. p. 123-138, Jan/dez 1995 - pag. 135


A C E<br />

11. BRASIL. Portaria de 19 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tip. nacional, 1822.<br />

12. QAY, Peter. The Enlightement: the science of freedom. new York: norton, 1977,<br />

pp. 53-55.<br />

13. A REQEnERAÇÀO constitucional ou a guerra e disputa entre os corcundas e os<br />

constitucionais. Rio de Janeiro: Imprensa Regia, 1821, p. 20. Para as paródias<br />

das formas religiosas como um dos gêneros de cultura popular, ver BURKE, Peter.<br />

Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp.<br />

146-147.<br />

14. Para o estudo do periodismo, ver RIZZini, C. O livro, o jornal e a tipografia no<br />

Brasil: 1500-1822. Rio de Janeiro: Kosmos, 1945. Cf. ainda nEVES, Lúcia M.<br />

Bastos P. "Periódicos -. In: SILVA, Maria Beatriz nizza da. Dicionário da história da<br />

colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, pp. 624-628.<br />

15. DARnTOn, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1990, p. 150.<br />

16. MEMÓRIA estatística do Império do Brasil. In: Revista do Instituto histórico e<br />

Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 91 (58): 91-99, 1895; Mapa da população<br />

da Corte e província do Rio de Janeiro em 1821. In: Revista do Instituto Histórico<br />

e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 40 33 135-42, 1870.<br />

17. BARMAn, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1822). Stanford:<br />

University Press, 1988, p. 268. Para os dados da França, ver CHARTIER, R.,<br />

COMPÈRE, H. M. & JULIA, D. féducation en France du XVF au XVllF siècle. Paris:<br />

SEDES, 1976, p. 93.<br />

18. RAPPORT sur la situation de lopinion publique. In: PEREIRA, Ângelo. D. João VI,<br />

príncipe e rei. (v.3). Lisboa: Empresa nacional de Publicidade, 1956, p. 306.<br />

19. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz/<br />

EDUSP, 1985, p. 47.<br />

20. Cf. PROCESSO dos cidadãos Domingos Alves, João da Rocha Pinto, Luís Alves de<br />

Azevedo, ... pronunciados na devassa que mandou proceder José Bonifácio de<br />

Andrada e Silva para justificar os acontecimentos do famoso dia 30 de outubro<br />

de 1822. Rio de Janeiro: Tip. de Silva Porto, 1823, p. 21.<br />

21. JÁ fui carcunda, ou a zanga dos periodiqueiros. Lisboa: of. da viúva de Lino da<br />

Silva Qodinho, 1821, p. 4.<br />

22. Para o preço dos folhetos, ver Catálogo de algumas obras modernas e<br />

pag. 136. Jan/dez 1995


R V O<br />

constitucionais chegadas modernamente à loja de Paulo Martim. Rio de Janeiro:<br />

Imp. nacional, (1821), 2 fl.; Catálogo de algumas obras que se vendem na loja<br />

de Paulo Martim, rua da Quitanda n° 33. Rio de Janeiro: Imp. nacional, (1822), 1<br />

fl. Para o preço dos produtos de época, cf. SILVA, M. Beatriz Mizza da. "Livro e<br />

sociedade no Rio de Janeiro: 1808-1821". In: Revista de História. São Paulo, 94:<br />

451, 1973; Diário do Rio de Janeiro, out. 1822 e jan. 1823.<br />

23. A FORJA dos periódicos ou o exame do aprendiz periodiqueiro. Lisboa: nova<br />

Tip. da viúva neves & Filhos, 1821, p. 8.<br />

24. Para a noção de público ideal, ver ESCARP1T, R. Sociologie de la littérature. 7 1<br />

ed.. Paris : P.U.F., 1986, pp. 97-107.<br />

25. DIÁLOGO político e instrutivo, entre dois homens da roça, André Rapozo e seu<br />

compadre Bolonio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro e novidades<br />

da mesma. Rio de Janeiro: Imprensa Regia, 1821, p. 16.<br />

26. O Bem da Ordem, n° 3, 1821. Rio de Janeiro.<br />

27. As citações foram retiradas, respectivamente, de: Conciliador nacional, n° 1,<br />

Pernambuco, transcrito de O Volantim, n° 13, 16 set. 1822, Rio de Janeiro ; O<br />

Papagaio. n° 12, 8 ago. 1822, Rio de Janeiro.<br />

28. OZOUF, Mona. "L'opinion publique". In: BAKER, K. (ed.). The French Revolution<br />

and the creation of modern political culture. (v. 1). Oxford: Pergamon Press, 1987,<br />

p.427; O Macaco Brasileiro. n° 5, (1822). Rio de Janeiro.<br />

29. ARQUIVO nACIOnAL. Códice 327. Registro de ofícios da Polícia (v. 1), f. 90, 20<br />

out. 1820.<br />

30. Ver, respectivamente, O Conciliador do Reino Unido, n° 4, 31 mar. 1821 e n° 6,<br />

14 abr. 1821, Rio de Janeiro; Gazeta do Rio de Janeiro, n° 134, 7 nov. 1822, Rio de<br />

Janeiro.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 125-138. jan/dei 1995 - pag, 137


A B S T R A C T<br />

ln the Luzo-Brazilian world, the Constitutional movement of 1821 unleashed an<br />

intense debate upon the ideas proposed by liberalism. Printing - of political tracts<br />

and papers - held a fundamental role in this slight widening of the sphere of power<br />

beyond the narrow circles of the Court. Government, however, remained addicted to<br />

the practices inherited from the Ancien Regime. In fact, it was unable to transform<br />

the printed word into a tool, with which to draw public opinion on its side.<br />

R É S U M É<br />

Dans le monde luso-brésilien, un vif débat sur les idées du liberalisme fut declenché<br />

par le mouvement constitutionnel de 1821. Les publications - des pamphlets et des<br />

journaux - tinrent un role décisif dans cette timide amplification de la sphère de<br />

pouvoir, au-delà des cercles limites de la Cour. Cependant, 1'État, ne sut renoncer à<br />

son penchant pour les pratiques de 1'Ancien Regime et ne fut capable de rendre le<br />

mot écrit en instrument pour former 1'opinion publique en sa faveur.<br />

pag. 138. jan/dez 1995


Maria do Carmo Teixeira Rainho<br />

Chefe da Divisão de Pesquisa e Promoções Culturais do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Mestre em<br />

História Social da Cultura - PUC/RJ.<br />

A distinção e suias normass<br />

leituras e leitores dos manuais<br />

de eiiquieta e civilidade *=* Rio<br />

As alterações na<br />

paisagem urbana, a<br />

europeização da<br />

vida social a partir da vinda da<br />

Corte em 1808, uma sócia<br />

bilidade marcada por festas<br />

particulares e pelos salões imperiais<br />

constituem o pano de fundo para as<br />

transformações nos modos e nos<br />

comportamentos da 'boa sociedade' do<br />

Rio de Janeiro ao longo do século XIX.<br />

Para a 'boa sociedade' era imperativo<br />

aristocratizar-se, isto é, adotar costumes<br />

e valores que a possibilitassem ao<br />

mesmo tempo nivelar-se (pelo menos na<br />

aparência) aos seus pares europeus e<br />

distinguir-se do resto da população, ou<br />

seja, "do povo mais ou menos miúdo e<br />

de Janeiro, século X I X<br />

dos escravos". 1 Para tal, era<br />

necessário náo apenas buscar<br />

o refinamento das maneiras e<br />

a sofisticação do gosto mas,<br />

sobretudo, abandonar os rústicos<br />

costumes que a caracterizavam até o<br />

momento da chegada da Corte.<br />

Neste processo de 'civilização dos<br />

modos' 2 os cuidados com a higiene, a<br />

correção dos modos, as boas maneiras<br />

à mesa e a adequação e a distinção no<br />

vestir passam a contar quase tanto<br />

quanto o dinheiro e os títulos de<br />

nobreza. É neste contexto que proli­<br />

feram na cidade do Rio de Janeiro as<br />

edições da chamada literatura de<br />

civilidade.<br />

Tratados de cortesia, manuais de savoir-<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1-2. p. 139-152. jan/dez 1995 - pag, 139


A C E<br />

vivre, regras de etiqueta, elementos de<br />

moral, guias do bom-tom, tudo isso<br />

compõe a chamada literatura de<br />

civilidade.<br />

Qrosso modo, este corpus é constituído<br />

pelos livros voltados para o ensino das<br />

maneiras tidas como corretas. Estas<br />

obras que circularam na Europa a partir<br />

do século XVI ensinavam entre outras,<br />

as maneiras de comer e os hábitos à<br />

mesa, a higiene corporal (incluindo aí<br />

os modos de assoar o nariz, cuspir etc),<br />

os comportamentos em casa, na igreja,<br />

na rua e os cuidados com a vestimenta.<br />

Para Roger Chartier 3, tentar<br />

compreender o que os homens entre os<br />

séculos XVI e XVIII entendiam por<br />

civilidade é entrar no cerne de uma<br />

sociedade antiga, que muitas vezes nos<br />

é opaca, onde as formas sociais sáo<br />

geralmente representações codificadas<br />

de níveis e onde numerosos<br />

comportamentos durante muito tempo<br />

considerados lícitos passam a ser<br />

proibidos, mesmo no domínio do<br />

privado.<br />

Mas, segundo o autor, a pesquisa sobre<br />

a noção de civilidade e sobre os livros<br />

que a contém não se dá sem<br />

dificuldade. A primeira delas refere-se<br />

à impossibilidade de se delimitar o<br />

campo de estudo. Mesmo privilegiando-<br />

se os textos que apresentam os usos<br />

mais comuns (dicionários, jornais,<br />

memórias, manuais, tratados etc), o<br />

corpus constituído pelos usos da noção<br />

de civilidade jamais poderá ser<br />

pag 140, jan/dez 1995<br />

circunscrito, pois esta está presa num<br />

campo semântico móvel e variável. Uma<br />

segunda dificuldade se refere às<br />

condições da determinação do sentido.<br />

Por necessidade, o corpus de textos<br />

sobre os quais é possível trabalhar<br />

privilegia os enunciados normativos que<br />

dizem o que é ou o que deve ser<br />

civilizado, uns visando o emprego da<br />

palavra, outros enumerando as práticas<br />

que os deixam ver. Cada emprego da<br />

palavra, cada definição da noção reflete<br />

uma estratégia enunciativa que é<br />

também representação das relações<br />

sociais. A dificuldade é de poder, a cada<br />

caso, reconstruir a relação entre aquele<br />

que escreve, os leitores que ele supõe<br />

e para quem ele fala e aqueles que, no<br />

ato da leitura, produzem um significado<br />

do texto. Uma última dificuldade reside<br />

na caracterização da noção de<br />

NOVO ,MANUAU<br />

BOM TOM<br />

rWTOtt»<br />

H au ii MM imutm * É *<br />

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R V O<br />

civilidade, uma vez que ela designa um<br />

conjunto de regras que não têm a<br />

realidade dos gestos que as efetuam.<br />

Sempre enunciada como modo de dever<br />

ser, a civilidade visa transformar em<br />

esquemas incorporados, reguladores,<br />

automáticos e não ditos de condutas,<br />

as disciplinas e censuras que ela<br />

enumera e unifica numa mesma<br />

categoria.<br />

Jacques Revel em sua análise da<br />

literatura de civilidade, que considera<br />

um "corpusevidente e ambíguo", afirma<br />

que às vezes é possível confrontar com<br />

os modelos prescritos nestes tratados,<br />

práticas efetivas de uma determinada<br />

sociedade. Além disso, para ele "a<br />

representação social da norma náo é<br />

menos 'real' que a conservada pelos<br />

comportamentos observáveis".*<br />

Para o historiador francês, o trabalho<br />

com esta documentação é factível se<br />

"identificarmos nas entrelinhas de cada<br />

um destes textos seus destinatários e<br />

sobretudo um uso particular da<br />

civilidade". 5<br />

Portanto é necessário encarar a<br />

literatura de civilidade não como<br />

espelho dos modos da 'boa sociedade'<br />

do Rio de Janeiro, ou "reflexo realista<br />

de uma realidade histórica" 6, mas como<br />

um corpus que reflete a representação<br />

dos modelos de civilidade e os<br />

comportamentos esperados daqueles<br />

que compunham este grupo e que<br />

prescreve e regulamenta condutas que<br />

não são necessariamente condutas<br />

f<br />

efetivas da 'boa sociedade'.<br />

Neste sentido, e a partir das sugestões<br />

de Chartier e Revel, deve-se fazer uma<br />

leitura destes tratados e manuais que<br />

permita, de maneira geral, enfocar os<br />

modelos de civilidade impostos por<br />

estas obras, seus destinatários e a forma<br />

como reforçavam distâncias sociais,<br />

pela instrução dos comportamentos<br />

ditos civilizados.<br />

No Brasil, ao longo do século XIX,<br />

inúmeros tratados e manuais de<br />

etiqueta e civilidade foram editados e<br />

reeditados. Um exemplo disso é O novo<br />

manual do bom-tom que em 1 900 chega<br />

a sexta edição.<br />

Um fato que aponta para a difusão<br />

destas obras no decorrer do século<br />

passado, e que elas eram facilmente<br />

encontradas nas ruas da Corte, é o<br />

relato de Thomas Ewbank a propósito<br />

dos pregões dos ambulantes da cidade.<br />

Em A vida no Brasil, o autor cita o<br />

Manual de polidezpara os rústicos como<br />

exemplo de uma das milhares de obras<br />

vendidas nas ruas da capital brasileira. 7<br />

Anúncios nos jornais também sugerem<br />

que a leitura destes livros era<br />

indispensável para aqueles que<br />

desejavam ser bem sucedidos na<br />

sociedade. O Correio das Damas, jornal<br />

português que circulou no Rio de<br />

Janeiro entre 1836 e 1850, era um dos<br />

que estampava alguns anúncios do<br />

Manual de etiqueta e civilidade, "para<br />

aqueles pouco familiarizados com a vida<br />

na Corte". 8<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 139-152. jan/del 1995 pag 141


A C E<br />

Outra referência à circulação dos<br />

manuais encontra-se no prólogo do<br />

primeiro tratado de civilidade brasileiro<br />

dedicado às crianças. Ma apresentação<br />

à obra Entretenimentos sobre os<br />

deveres da civilidade, José Manuel<br />

Garcia enumera o que considera alguns<br />

dos mais importantes tratados em língua<br />

portuguesa: "a Escola de política, o<br />

Manual de civilidade e etiqueta, o<br />

Código do bom-tom, o Manual de<br />

civilidade brasileira, o novo código do<br />

bom-tom, os Elementos de civilidade"'. 9<br />

É importante ressaltar que os manuais<br />

de civilidade que circulavam na corte no<br />

século XIX chegaram aqui num<br />

momento em que estas obras estavam<br />

amplamente difundidas na Europa,<br />

onde eram editadas desde o século XVI<br />

sob a forma de tratados de cortesia,<br />

regras de moral e nas "artes de agradar<br />

ou artes de amar". 1 0 Da codificação e<br />

simplificação dessas obras é que<br />

surgem os manuais de civilidade, dos<br />

quais o primeiro, Civi/itate morum<br />

pueriiium, de Erasmo, data de 1530.<br />

Dedicado à educação das crianças, esta<br />

obra tratava das posturas, dos<br />

comportamentos sociáveis (na escola,<br />

à mesa, nas brincadeiras) e por fim do<br />

deitar-se. Embora considerado uma obra<br />

menor, o manual escrito por Erasmo<br />

inova em três pontos essenciais, como<br />

demonstra Jacques Revel." Em<br />

primeiro lugar, o livro dirige-se às<br />

crianças, enquanto os textos anteriores<br />

tratavam indiferentemente - com poucas<br />

pag. 142. jan/dez 1995<br />

exceções - adultos e crianças. Em<br />

segundo lugar, dirige-se de forma geral<br />

à todas as crianças, diferenciando-se<br />

dos antigos livros de cortesia que<br />

destinavam-se exclusivamente às jovens<br />

elites. Por fim, é preciso reconhecer na<br />

obra de Erasmo um desejo de ensinar<br />

um código válido para todos, já que o<br />

autor pretendia "fundamentar numa<br />

aprendizagem gestual comum uma<br />

transparência social (...), pré-condição<br />

necessária à concretização de uma<br />

sociabilidade generalizada". 12<br />

A partir da obra de Erasmo e até o final<br />

do século XIX, inúmeras edições e<br />

reedições dos manuais de civilidade se<br />

sucederam.<br />

Morbert Elias mostra como ao longo de<br />

quatro séculos elas foram fundamentais ao<br />

'processo civilizador' e como os antigos<br />

costumes 'bárbaros' vão sendo<br />

abandonados em nome dos preceitos da<br />

civilidade. Grosso modo, para Elias, as<br />

sensibilidades e os comportamentos são<br />

nesse período profundamente modificados<br />

por dois fatos fundamentais: o monopólio<br />

da força, originado com a instauração das<br />

monarquias absolutistas e o estreitamento<br />

das relações pessoais, o que implicava<br />

forçosamente num controle mais rígido das<br />

emoções e afetos.<br />

Através da leitura dos manuais é<br />

possível perceber como são 'civilizadas'<br />

as maneiras de comer, todas as<br />

maneiras relacionadas às funções<br />

corporais (assoar o nariz, escarrar,<br />

cuspir), os comportamentos no quarto,


R V O<br />

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No final do século XVI, a civilidade se<br />

impõe na França a um público mais<br />

amplo e mais diversificado. A partir daí,<br />

existe uma civilidade "para as pequenas<br />

escolas e para os colégios burgueses,<br />

para a corte e para a cidade, para a alta<br />

aristocracia, a pequena nobreza da<br />

província e os 'burgueses gentis-<br />

1 7<br />

homens".<br />

no decorrer do século XV111 e na<br />

primeira metade do XIX, a civilidade<br />

obtém a sua mais ampla divulgação<br />

social. É grandemente difundida,<br />

inclusive nos meios rurais, pelas<br />

edições de grande circulação dos<br />

manuais que chegam até lá. Contudo, e<br />

graças ao seu próprio sucesso, é nesse<br />

período que os fundamentos da<br />

\ SOENCIA<br />

DA CIVILISAÇÀO<br />

JBJSJOAÇAO 8ÜPKRÍ0R REJCJICSA<br />

i «ii ua tosu tom 11<br />

pag 144. jan/dez 1995<br />

civilidade vão ser abalados.<br />

Segundo Jacques Revel, essa passagem<br />

do culto da civilidade a uma civiiidaae<br />

depreciada ocorre pouco a pouco,<br />

quando ela oscilava entre duas<br />

definições: um modelo válido para<br />

todos e um "sistema de conivências que<br />

distingue o pequeno número". 18<br />

Quando os códigos se revelavam<br />

demasiado acessíveis e difundidos por<br />

toda a parte, a civilidade começava a<br />

apagar os privilégios das elites. Face ao<br />

perigo que representava um eventual<br />

nivelamento das condutas, a civilidade<br />

é depreciada e torna-se um mero<br />

sinônimo de polidez.<br />

Mo momento em que se difunde por<br />

toda a parte, ela já não passa de, um<br />

vestígio. Enrijecido, empobrecido,<br />

desacreditado, desgastado por suas<br />

próprias contradições, o projeto de um<br />

sistema de reconhecimento que deveria<br />

permitir a construção de uma<br />

sociabilidade regulamentada já não<br />

evoca senão normas autoritárias e uma<br />

comédia das aparências à qual as<br />

pessoas humildes ainda têm a fraqueza<br />

de conceder algum crédito. Antes que<br />

novos códigos de comportamentos<br />

coletivos se imponham, a civilidade faz<br />

um triste papel face ao triunfo<br />

provisório do indivíduo e de sua<br />

irredutível espontaneidade. A bem dizer<br />

da verdade, reduzida a pura<br />

exterioridade, ela provoca risos. 19<br />

Norbert Elias, que estudou a evolução<br />

da palavra civilidade, afirma que já em


R V O<br />

meados do século XVIII, o conteúdo<br />

desta palavra e de termos correlatos foi<br />

"absorvido e ampliado em um novo<br />

conceito, na expressão de uma nova<br />

forma de autoconsciência, o conceito de<br />

civilisation. Cortesia, civilidade e<br />

civilização assinalam três estágios de<br />

desenvolvimento social, indicam qual<br />

2 0<br />

sociedade fala e é interpelada".<br />

Segundo o autor, a expansão de<br />

modelos de comportamentos chamados<br />

civilizados ocorreu na fase intermediária<br />

desse processo, sendo que o conceito<br />

de civilização indicaria em seu uso no<br />

século XIX, que o "processo de<br />

civilização - ou, em termos mais<br />

rigorosos, uma fase desse processo -<br />

fora completado e esquecido". 21 Ainda<br />

segundo o filósofo, a partir daí, "as<br />

pessoas querem apenas que esse<br />

processo se realize em outras nações,<br />

e também, durante um período, nas<br />

classes mais baixas de sua própria<br />

sociedade*. 22<br />

As regras de civilidade contidas nos<br />

tratados que chegaram ao Rio de<br />

Janeiro, no século passado,<br />

expressavam o momento em que estava<br />

consolidado o 'processo civilizador' em<br />

nações como a França e quando a leitura<br />

dos manuais de civilidade - já em<br />

declínio - era feita apenas pela<br />

burguesia em ascensão. Por<br />

conseguinte, o corpus ao qual estamos<br />

nos referindo náo apresenta as<br />

variações nos modos e princípios de<br />

civilidade que são encontradas nos<br />

tratados europeus entre os séculos XVI<br />

e XIX. Ma verdade, este material fornece<br />

a reprodução de modelos de<br />

comportamentos consolidados, já<br />

aceitos e absorvidos em outras nações,<br />

especialmente a França - nosso modelo<br />

de civilização -, comportamentos que<br />

eram difundidos na prática, na chamada<br />

'europeização' dos costumes.<br />

Os manuais de civilidade que circulavam<br />

na corte no século XIX podem ser<br />

divididos, grosso modo, em duas<br />

categorias: pedagógicos e cortesãos.<br />

Embora, de maneira geral, toda<br />

literatura de civilidade tenha um cunho<br />

pedagógico, estamos considerando<br />

como tal as obras dedicadas à educação<br />

dos jovens, enquanto os tratados<br />

cortesãos seriam aqueles direcionados<br />

para a "prática do mundo" 2 3, para a vida<br />

na corte ou nos salões.<br />

Os tratados pedagógicos possuíam um<br />

duplo objetivo: reforçar as práticas de<br />

leitura e, ao mesmo tempo, ensinar as<br />

regras de civilidade. A metodologia<br />

empregada neste ensino é que variava:<br />

alguns, como A escola de política,<br />

apelavam para um misto de perguntas<br />

e respostas quanto à civilidade em geral<br />

e textos separados para assuntos<br />

específicos como era o caso do<br />

vestuário. Outros tratados, como os<br />

Entretenimentos sobre os deveres da<br />

civilidade, da professora primária<br />

Quilhermina de Azambuja neves,<br />

buscavam nos "exemplos tirados das<br />

cenas da vida de família no Brasil", a<br />

"instrução moral" dos jovens, incutindo<br />

neles "lições e advertências". 24<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 139-152. Jan/dez 1995 - pag. 145


A C E<br />

A importância da difusão da civilidade<br />

através dos manuais pedagógicos era<br />

enfatizada por seus autores que davam<br />

como exemplo as "nações civilizadas,<br />

que não confiaram somente aos pais e<br />

mestres esta instrução, mas lha tem<br />

dado em admiráveis tratados". 25<br />

Já os tratados cortesãos, embora<br />

também se voltassem para a difusão da<br />

civilidade, ressaltavam o papel da<br />

etiqueta, que consistia justamente na<br />

"observância restrita de todas as regras<br />

da civilidade, do decoro e do bom-<br />

tom". 2 8 Ainda segundo estes manuais,<br />

haveriam duas qualidades de etiqueta:<br />

"a da corte e a da sociedade ou dos<br />

salões", sendo a da corte "indispensável<br />

para manter as hierarquias sociais". 27<br />

Embora estes tratados fossem<br />

destinados a públicos diferentes, os<br />

pedagógicos "para meninos e meninas<br />

que freqüentam nossas escolas públicas<br />

primárias" 2 8 e os cortesãos voltados<br />

para a elaboração de "preceitos que<br />

mais convém a adultos do mundo<br />

elegante" 29, não há divergências entre<br />

os conceitos de civilidade destas obras.<br />

Segundo os Elementos de civilidade,<br />

pag 146. jan/dez 1995<br />

esta se definiria como "o modo de<br />

qualquer pessoa se comportar na<br />

sociedade para com os demais, segundo<br />

os princípios da moral e da religião, que<br />

5 0<br />

são a base da educação do homem".<br />

Já o novo manual do bom-tom utiliza<br />

conceitos de Voltaire, Duelos e<br />

Labruyère para definir a civilidade.<br />

Enuncia também o seguinte conceito: "a<br />

civilidade, a nosso ver, compreende: a<br />

moral, a decência, a honestidade, a<br />

cortesia, e em uma palavra, todas as<br />

agradáveis virtudes que formam os laços<br />

mais fortes da sociedade civilizada, isto<br />

é, falando com propriedade, a moral em<br />

ação". 51<br />

Mão é apenas o conceito de civilidade<br />

que conhece poucas variações entre os<br />

manuais do século XIX. O conteúdo das<br />

regras também variava pouco, assim<br />

como as situações e locais que, segundo<br />

eles, exigiam a prática da civilidade. A<br />

não ser pela linguagem utilizada, mais<br />

apropriada às crianças no caso dos<br />

manuais pedagógicos, têm-se de forma<br />

geral uma convergência nas regras de<br />

civilidade propostas por estas obras.<br />

Segundo os Elementos de civilidade<br />

aquelas deveriam ser observadas "na<br />

igreja, nas companhias, na conversação,<br />

nos encontros e passeios, no andar, na<br />

postura do corpo, no vestido e no<br />

asseio, na mesa, com os superiores,<br />

com os inferiores, com os iguais, no<br />

deitar e levantar da cama, nas cartas e<br />

no luto". 52<br />

O exemplo acima, que aponta locais e


R V O<br />

situações aonde se exigia a<br />

manifestação das regras de civilidade,<br />

mostra como estas regras serviam para<br />

reproduzir as diferenças e hierarquias<br />

da sociedade, ao definir o tratamento a<br />

ser dado 'aos superiores, aos iguais e<br />

aos inferiores'.<br />

Os tratados pedagógicos, e dentre eles,<br />

os voltados para a instrução pública,<br />

também insistiam na manutenção das<br />

distâncias sociais. O autor dos<br />

Elementos de civilidade, por exemplo,<br />

afirma que "a civilidade nos ordena que<br />

sejamos modestos conosco mesmos;<br />

humildes com os nossos superiores;<br />

afáveis com os nossos iguais; humanos<br />

com os nossos inferiores". 33<br />

O novo manual do bom-tom por sua vez,<br />

enuncia "que é preciso que cada um<br />

conheça bem o seu lugar, assim como<br />

o das outras pessoas, segundo a sua<br />

hierarquia" e ensina que "nunca se deve<br />

passar para diante do superior, e<br />

havendo-se entrado na sala, fica-se de<br />

pé até ser mandado assentar". 34<br />

O papel dos manuais de etiqueta, que a<br />

princípio pode parecer o simples ensino<br />

das boas maneiras ou a inculcação das<br />

regras de etiqueta, ia além destes<br />

propósitos, ao buscar preparar os seus<br />

jovens leitores para a vida em<br />

sociedade.<br />

Ao analisar as normas prescritas pela<br />

literatura de civilidade e levando-se em<br />

consideração que muitas destas obras<br />

eram destinadas às escolas, torna-se<br />

importante associá-las à política<br />

educacional vigente no Rio de Janeiro,<br />

no século XIX.<br />

Tratando da instrução pública no Rio de<br />

Janeiro, durante o governo Saquarema,<br />

limar Rohloff de Mattos mostra como na<br />

visão destes dirigentes<br />

a instrução cumpria - ou deveria<br />

cumprir - um papel fundamental, que<br />

permitia - ou deveria permitir - que o<br />

Império se colocasse ao lado das<br />

'nações civilizadas'. Instruir todas as<br />

classes era pois, o ato de difusão das<br />

Luzes que permitiam romper as trevas<br />

que caracterizavam o passado<br />

3 5<br />

colonial....<br />

Mas, segundo ele, instruir todas as<br />

classes ou elevar o povo a um estado<br />

de civilização, significava na prática<br />

possibilitar à 'boa sociedade' "não só<br />

conservar o lugar que ocupava na<br />

sociedade, mas também reconhecer e<br />

reproduzir as diferenças - e<br />

hierarquizações no seu próprio interior".<br />

Ma proposta educacional dos<br />

Saquaremas<br />

primordialmente buscava-se<br />

possibilitar a inclusão na sociedade<br />

daqueles que eram apresentados como<br />

futuros cidadãos do Império. Por meio<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1 -2. p. 139-152, Jan/dez 1995 - pag. 147


A C E<br />

da difusão de uma civilidade,<br />

procurava-se a uniformização mínima<br />

entre os elementos constitutivos de<br />

uma sociedade civil.... 36(grifo meu).<br />

O conhecimento da civilidade como<br />

insígnia de classe também aparecia nos<br />

conteúdos dos manuais dedicados aos<br />

adultos. Afinal, dominar as regras da<br />

civilidade representava de alguma<br />

maneira uma superioridade em relação<br />

aos outros estratos da sociedade.<br />

Segundo Gilberto Freire desde cedo<br />

muitos rapazes e moças eram levados<br />

pelos pais a ler as obras dedicadas às<br />

regras de etiqueta e bom-tom.<br />

'A sociedade tem também sua<br />

gramática', escreveu em 1845 o autor<br />

de certo Código de bom-tom que<br />

alcançou grande voga entre os barões<br />

e viscondes do Império, os quais, para<br />

tomarem ar de europeus, (adotaram)<br />

regras de bom-tom francesas e inglesas<br />

nas criações dos filhos. 37<br />

Apreender todo esse conhecimento,<br />

sem exagerar na exibição das boas<br />

maneiras, fazer com que a civilidade<br />

aparecesse como algo natural, quase<br />

inato, era o que daria a 'boa sociedade'<br />

a possibilidade de se distinguir do resto<br />

da população, igualando-se aos seus<br />

pag. 148. Jan/dez 1995<br />

pares europeus.<br />

Wanderley Pinho ao falar do movimento<br />

da rua do Ouvidor, afirma que, a<br />

despeito de um aparente nivelamento<br />

entre os diversos estratos sociais que<br />

visitavam ou passeavam simplesmente<br />

pela rua, ficava sempre clara a<br />

existência de símbolos exteriores e<br />

marcas que distinguiam a 'boa<br />

sociedade'.<br />

A seleção se fazia ali numa singular<br />

concorrência da aristocracia com a<br />

plebe, que tinha a ilusão salutar da<br />

igualdade. Ombreando com a nobreza,<br />

o povo nào se dava conta do trabalho<br />

sutil que operavam vestuários e<br />

maneiras, gostos, relações e<br />

hierarquias. 36<br />

Para finalizar, pode-se dizer que a<br />

civilidade mostrava-se como um meio de<br />

clivagem social, cujos instrumentos eram<br />

a maneira de falar, de comer, de andar,<br />

entre outras. Era ela que conferia aos<br />

gestos, ao discurso, aos comportamentos<br />

em geral, uma propriedade distintiva,<br />

transformando-se em insígnia da 'boa<br />

sociedade' no século XIX. Claro está que<br />

numa sociedade escravista e<br />

hierarquizada como a brasileira, a<br />

distinção já estava inscrita na própria<br />

estrutura social. Podemos afirmar a partir<br />

da obra de Pierre Bourdieu 3 9 que a<br />

distinção se manifestava como uma<br />

diferença reconhecida, legitimada e<br />

aprovada como tal.<br />

Entretanto, e mesmo para aqueles que<br />

apareciam no espaço social de forma


K V O<br />

naturalmente distinta, o conhecimento<br />

da civilidade era fundamental, pois<br />

viabilizava o reconhecimento e a<br />

classificação dos indivíduos ou, em<br />

N O<br />

outras palavras, fazia com que a 'boa<br />

sociedade' exteriorizasse o lugar que<br />

ocupava na sociedade.<br />

1. Cf. REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações. São Paulo:<br />

Itatiaia, 1988, p. 171. Para o autor, bacharel mineiro do início do século XIX, a<br />

sociedade aparece dividida nas seguintes classes: "a dos brancos e sobretudo<br />

daqueles que por sua posição constituíam o que se costuma chamar a boa<br />

sociedade; a do povo mais ou menos miúdo; e finalmente a dos escravos".<br />

2. Expressão cunhada por Norbert Elias. Cf. do autor O processo civilizador. Rio de<br />

Janeiro: Zahar, 1990.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, i 8 ir 12. p 139-152, jan/dez 1995 - pag. 149


A C E<br />

3. CHARTIER, Roger. "Distinction et divulgation: la civilité et ses livres." In: Lectures<br />

et lecteurs dans la France dAncien Regime. Paris: Éditions du Seuil, 1987, pp.<br />

45-48.<br />

4. REVEL, Jacques. "Os usos da civilidade." In: História da vida privada. São Paulo:<br />

Cia. das Letras, 1991, vol. 3, p. 170.<br />

5. Idem, ibidem, p. 171.<br />

6. Sobre a utilização de textos literários pelo historiador, afirma Roger Chartier que,<br />

a "relação do historiador com o real (...) constrói-se segundo modelos discursivos<br />

e delimitações intelectuais próprios de cada situação de escrita. O que leva,<br />

antes de mais nada, a não tratar as ficções como simples documentos, reflexos<br />

realistas de uma realidade histórica, mas a atender a sua especificidade enquanto<br />

texto situado relativamente a outros textos (...)". Cf. CHARTIER, Roger. "História<br />

intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação." In: História<br />

cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.<br />

7. EWBANK, Thomas. A vida no Brasil ou diário de uma visita ao país do cacau e das<br />

palmeiras. São Paulo: Itatiaia, 1976, p. 79.<br />

8. O Correio das Damas. Lisboa, 1850.<br />

9. Cf. NEVES, Quilhermina de Azambuja. Entretenimentos sobre os deveres da<br />

civilidade colecionados para uso da puerícia brasileira de ambos os sexos. Rio<br />

de Janeiro: Tip. Cinco de Março, la. ed., 1875.<br />

10. Para as origens dos manuais de etiqueta e civilidade, cf. ARIES, Philippe. História<br />

social da criança e da família. Rio de Janeiro: Quanabara, 1986, p. 68.<br />

1 1. REVEL, Jacques, op. cit., p. 172-73.<br />

12. Idem, ibidem, p. 174.<br />

13. Fórmula de edição surgida na França no século XVIII que permitia a circulação<br />

de livros de baixo preço, impressos em grande número e divulgados através da<br />

venda ambulante. Cf. CHARTIER, Roger. "Textos e edições: a literatura de cordel."<br />

In: A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, pp.<br />

165-187.<br />

14. Segundo Jacques Revel, "as civilidades que se inscrevem na tradição erasmiana<br />

repousam, pelo menos implicitamente, num duplo postulado: os bons<br />

comportamentos podem ser ensinados e aprendidos de maneira útil e são os<br />

mesmos para todos". Cf. REVEL, Jacques, op. cit., p. 192.<br />

pag. 150. jan/dez 1995


15. Loc.cit.<br />

16. ELIAS, Norbert, op. cit., p. 54.<br />

17. REVEL, Jacques, op. cit., p. 203.<br />

18. Loc. cit.<br />

19. Idem, ibidem, p. 206.<br />

20. ELIAS, Morbert, op. cit., pp. 1 12-1 13.<br />

21. Idem, ibidem, p. 113.<br />

22. Loc. cit.<br />

V o<br />

23. Cf. VERARDI, Luís. Novo manual do bom-tom. Rio de Janeiro: Laemmert, 6a. ed., 1900.<br />

24. MEVES, Quilhermina de Azambuja, op. cit., p. 9.<br />

25. SIQUEIRA, d. João de nossa Senhora da Porta. Escola de política ou tratado prático<br />

da civilidade portuguesa. Pernambuco: Tip. de Santos e Cia., 2a. ed., 1845.<br />

26. VERARDI, Luís, op. cit., p. 74.<br />

27. Loc. cit.<br />

28. nEVES, Quilhermina de Azambuja, op. cit., p. 5.<br />

29. Loc. cit.<br />

30. Cf. Elementos de civilidade, s. d., p. 1.<br />

31. VERARDI, Luís, op. cit.<br />

32. Cf. Elementos de civilidade, op. cit.<br />

33. Idem, ibidem.<br />

34. VERARDI, Luís, op. cit.<br />

35. MATTOS, limar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo:Hucitec, 1987, p. 259.<br />

36. Idem, ibidem, pp. 259-260.<br />

37. Cf. PREIRE, Qilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olímpio, 25a.<br />

ed., 1987, p. 420.<br />

38. PinHO, Wanderley. Salões e damas no Segundo Reinado. São Paulo: Martins<br />

Pontes, 1970, p. 284.<br />

39. Cf. do autor Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990 e La distinction - critique<br />

sociale du jugement. Paris: Edition du Minuit, 1979."<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n* I -2. p. 139-152. jan/dez 1995 pag. 151


A B S T R A C T<br />

This article spotlights the circulation and reading of manuais on etiquette and civility<br />

in Rio de Janeiro during the 19th century. It also looks into how the "good society"<br />

endeavored to distinguish itself by assimilating the behavior and decorum<br />

recommended by these books.<br />

R É S U M É<br />

Cet article parle sur la circulation et la lecture des manuels d'étiquette et de civilité<br />

à Rio de Janeiro pendant le XIXè siècle. On y trouve une analyse de comment les<br />

"gens bien" essaient dincorporer les manières et comportements décrits dans les<br />

livres comme les plus distingues.<br />

pag. 152. jan/dez 1995


Paulo Gomes Leite<br />

Professor de História. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.<br />

Revolução e lieresia na<br />

LiUioteca cie mm a


A C E<br />

Contou o tenente-coronel Francisco de<br />

Paula Freire de Andrada num dos seus<br />

depoimentos que, em sua casa,<br />

Tiradentes, Alvarenga Peixoto, o padre<br />

Toledo e o padre Rolim comentaram que<br />

o abade Raynal tinha sido um escritor<br />

de grandes vistas, porque prognosticou<br />

o levantamento da América<br />

setentrional, e que a capitania de Minas<br />

Qerais. com o lançamento do tributo<br />

da derrama, estaria agora nas mesmas<br />

circunstâncias. 4<br />

Era grande o interesse dos inconfidentes<br />

pelos livros que tratavam da<br />

independência dos Estados Unidos.<br />

Segundo o padre José Lopes de Oliveira,<br />

Tiradentes andava procurando nas<br />

bibliotecas obras relativas ao levante<br />

dos norte-americanos. 5<br />

Mos Autos de Devassa, há várias<br />

referências a essa intensa atividade<br />

livresca do Alferes, que pediu a<br />

Francisco Xavier Machado, porta-<br />

estandarte do Regimento de Cavalaria<br />

Regular, para lhe traduzir um capítulo<br />

da Coleção das leis constitutivas dos<br />

Estados Unidos da América<br />

e o capítulo que apontava vinha a ser<br />

a seção oitava, sobre a forma da<br />

eleição do conselho privado, por cujo<br />

conteúdo ser invulgar ao dito Alferes,<br />

ele, testemunha (F.X. Machado),<br />

traduziu; o qual (Tiradentes), depois ,<br />

folheou muito o mesmo livro e como<br />

quem queria achar outro lugar,<br />

deixando-lhe ficar o mesmo livro, que<br />

pag, 154. Jan/dez 1995<br />

é o próprio em oitavo, com capa de<br />

papel pintado, apenso desta Devassa. 6<br />

rio termo de entrega das duas devassas<br />

ao desembargador conselheiro<br />

Sebastião Xavier de Vasconcelos<br />

Coutinho, de 26 de janeiro de 1791, há<br />

uma citação do apenso 26 da Devassa<br />

de Minas, "que é um livro em francês<br />

das leis constitutivas dos Estados<br />

Unidos da América Inglesa, e tem<br />

trezentas e setenta páginas". 7 Trata-se<br />

do Recueil des loix constitutives des<br />

colonies angloises, confédérées sous la<br />

dénomination d'Etats Unis de<br />

L'Amérique Septentrionale. editado na<br />

Suíça em 1778, traduzido do inglês por<br />

Claude Ambrose Régnier. O volume foi<br />

destacado dos autos pelo historiador<br />

Melo Morais," em 1860, e oferecido à<br />

Biblioteca Pública de Florianópolis,<br />

tendo sido, posteriormente, transferido<br />

para o Museu da Inconfidência, de Ouro<br />

Preto, onde atualmente se encontra.<br />

Joaquim José da Silva Xavier procurou<br />

também Simão Pires Sardinha, "levando-<br />

Ihe uns livros ingleses para lhe traduzir<br />

certos lugares que também diziam<br />

respeito a coisas da América" 8» ainda<br />

segundo o depoimento de Francisco<br />

Xavier Machado.<br />

José Álvares Maciel também trouxe da<br />

Europa um exemplar da coleção das leis<br />

dos Estados Unidos, conforme<br />

depoimento de Francisco Antônio de<br />

Oliveira Lopes. 9 Há indicação docu­<br />

mental da entrada na capitania de Minas<br />

Qerais de apenas dois exemplares das


K V O<br />

mencionadas leis: o de Álvares Maciel e<br />

o do dr. José Pereira Ribeiro, advogado<br />

em Mariana.<br />

Embora nunca tivesse saído do Brasil,<br />

o cõnego Luís Vieira da Silva conseguiu<br />

adquirir obras proibidas e incendiadas,<br />

como as de Bielfeld, Voltaire, Robertson,<br />

Mably, Qiannone, e fEsprit de<br />

/'Encyc/opédie, uma seleção dos<br />

principais artigos da Enciclopédia, de<br />

Diderot e d'Alembert. Estava, pois, a par<br />

da revolução que se processava no<br />

mundo das idéias.<br />

Conhecia as leis dos Estados Unidos,<br />

como ele próprio confessou, e devia<br />

conhecê-las muito bem para ser aceito<br />

como um dos redatores das leis da<br />

projetada República do Brasil, ao lado<br />

de Cláudio e Qonzaga. Para isso, era<br />

fundamental que tivesse em mãos o<br />

Recueil des loix constitutives...Assim<br />

como pediu emprestado um livro de<br />

Mably ao intendente Bandeira, é<br />

possível que também tivesse pedido<br />

emprestado ao dr. José P. Ribeiro o<br />

exemplar do Recueil que ele trouxe da<br />

Europa para Mariana. Outrossim, parece-<br />

nos lícito supor que Domingos Vidal<br />

tenha se servido do exemplar da obra<br />

de Raynal, que o dr. José Ribeiro<br />

igualmente trouxe. Recorde-se que Vidal<br />

foi seu companheiro de viagem de<br />

Lisboa ao Rio de Janeiro e que sabia<br />

trechos de cor do revolucionário<br />

iluminista.<br />

A biblioteca do cõnego Luís Vieira da<br />

Silva, notável para a época e o meio em<br />

que viveu, objeto de freqüentes<br />

referências e citações, sempre<br />

impressionou os estudiosos, que não se<br />

cansam de louvar o valor cultural e<br />

histórico das obras que a compõem.<br />

Como só acontecia em tais casos, a<br />

admiração, aliás justa, acabou por fazer<br />

acréscimos ao admirável acervo,<br />

alterando a realidade dos fatos e<br />

levando a falsas implicações históricas.<br />

Apesar da relevância dos filósofos<br />

iluministas ali presentes, a biblioteca<br />

deve ser reduzida às suas devidas<br />

proporções, e para isso cumpre atentar<br />

nos dois seguintes fatos:<br />

1) Ressalte-se, em primeiro lugar, que a<br />

imaginação de alguns historiadores se<br />

encarregou de colocar nas estantes do<br />

cõnego livros que ali nunca estiveram,<br />

como a tiistoire philosophique et<br />

politique des etablissemens et du<br />

commerce des européens dans les deux<br />

Indes, do abade Raynal 10, e obras de<br />

Rousseau. Embora conste dos Autos de<br />

Devassa que a obra de Raynal era<br />

sobejamente conhecida dos incon­<br />

fidentes, não há nenhuma evidência<br />

concreta, nos Autos ou em qualquer<br />

outro documento, de que ela figurasse<br />

na biblioteca de Luís Vieira, apesar da<br />

sua avidez de informações e<br />

conhecimentos e da afinidade de<br />

princípios entre o ativo revolucionário<br />

mineiro e o incendiário autor francês. É<br />

até provável que o cõnego a tivesse lido,<br />

mas uma coisa é formular uma hipótese,<br />

e outra é materializar uma probabilidade<br />

e pô-la numa prateleira.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n 1-2. p. 153-166, jan/dez 1995-pag,155


A C E<br />

2) Ao contrário do que geralmente se<br />

pensa, a biblioteca do cônego nào é a<br />

única grande biblioteca na capitania de<br />

Minas no século XV1I1. FÍào é, nem<br />

mesmo a mais relevante no que<br />

concerne à bibliografia iluminista e<br />

revolucionária. Sob esse aspecto, a mais<br />

importante, embora menor quanto à<br />

quantidade de livros, é a do dr. José<br />

Pereira Ribeiro, advogado em Mariana,<br />

formado pela Universidade de Coimbra.<br />

O inventário dos seus bens encontra-se<br />

no <strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de<br />

Mariana." Data de 1798 e traz a relação<br />

dos livros da sua biblioteca. São 201<br />

obras em 486 volumes. O cônego Luís<br />

Vieira da Silva tinha 276 obras em 563<br />

volumes. Sabe-se, pelos Autos de Devassa<br />

da Inconfidência Mineira, que o dr. Ribeiro<br />

tinha a Mstoire philosophique et<br />

po/itique...e as leis dos norte-americanos,<br />

como atrás já ficou dito.<br />

É importante notar que nào constam do<br />

inventário a obra de Raynal e as leis dos<br />

Estados Unidos. A primeira obra teria<br />

sido emprestada a Domingos Vidal, e a<br />

segunda ao cônego. De qualquer modo,<br />

é significativa a ausência delas no<br />

arrolamento dos livros, pois eram obras<br />

altamente comprometedoras. Se não<br />

foram emprestadas, podem ter sido<br />

queimadas logo que se começaram a<br />

fazer as prisões dos conjurados, para<br />

evitar suspeitas ou represálias.<br />

Pelo fato de o dr. José P. Ribeiro ter sido<br />

depositário dos livros do cônego Luís<br />

Vieira, não se pense que os volumes<br />

pag. 156. jan/dez 1995<br />

arrolados no inventário daquele são os<br />

do cônego. Trata-se de duas bibliotecas<br />

completamente diferentes, embora haja -<br />

é claro - coincidência de algumas obras.<br />

O dr. José Pereira Ribeiro nasceu em<br />

Congonhas do Campo, comarca de Vila<br />

Rica, em 1764, e morreu em Mariana,<br />

em 28 de fevereiro de 1798, com 34<br />

anos. Bacharelou-se em Leis pela<br />

Universidade de Coimbra em 1787 e no<br />

ano seguinte veio para o Brasil, em<br />

companhia de Domingos Vidal de<br />

Barbosa Laje, trazendo a incendiaria<br />

obra de Raynal e as leis dos Estados<br />

Unidos. Era tio (porém mais moço) do<br />

dr. Diogo Pereira Ribeiro de<br />

Vasconcelos, que foi preso e depois<br />

solto. Depôs duas vezes na Devassa,<br />

mas nada revelou e não foi molestado.<br />

Advogou em Mariana e foi também<br />

poeta, como afirma seu sobrinho, o dr.<br />

Diogo: "De uma suavidade inimitável em<br />

suas composições poéticas, que todos<br />

admiram, até merece ser chamado o<br />

Anacreonte de Minas". 12<br />

Era casado com Rita Caetana Maria de<br />

Sào José, com quem teve cinco filhos e<br />

náo um, como já se escreveu. O quinto<br />

nasceu depois de sua morte. Esses<br />

dados constam do inventário.<br />

As obras iluministas (muitas delas<br />

proibidas), revolucionárias e heréticas,<br />

abundam em sua biblioteca. Aí estão<br />

D'Alembert, Robertson, Qenuense,<br />

Mably, Febrônio, Voltaire, Bielfeld,<br />

Vattel, Montesquieu, Condillac e Wolff.<br />

nenhuma referência à obra de Raynal.


Ela só vai aparecer nas páginas dos Autos<br />

de Devassa, e é importante notar que todas<br />

às vezes em que ela é citada está associada<br />

ao exemplar do dr. José Pereira Ribeiro.<br />

Pode-se até mesmo observar a seguinte<br />

seqüência nos Autos:<br />

V o<br />

1) Domingos Vidal afirma que viu o livro<br />

de Raynal com o dr. José Pereira Ribeiro<br />

durante a viagem de regresso ao Brasil.<br />

2) Domingos Vidal sabia de cor algumas<br />

passagens da obra e fala sobre ela com<br />

o seu primo, o também inconfidente<br />

RAYNAL, Guilhaume Thomaz. Histoire philosophique et politique des établissements et du<br />

commerce des européens dans les deux Indes. Paris: Anable, Cost.es et Cie, 1820.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n* 1-2. p. 153-166, jan/dez 1995-pag. 157


A C E<br />

coronel Francisco Antônio de Oliveira<br />

Lopes.<br />

3) Oliveira Lopes fala do livro ao padre<br />

Toledo e diz que ele "estava na mão de<br />

um doutor na cidade de Mariana". Dá<br />

pormenores da obra.<br />

4) O tenente-coronel Francisco de Paula<br />

Freire de Andrada revela que, em sua<br />

casa, Tiradentes, Alvarenga Peixoto, o<br />

padre Toledo e o padre Rolim<br />

comentaram a obra. Enfim, a obra é<br />

minuciosamente debatida a partir do<br />

exemplar do dr. Ribeiro, o único citado<br />

nos Autos e só lá citado. Mão há notícia,<br />

documentalmente comprovada, de<br />

nenhum outro exemplar em Minas<br />

naquela época (até 1789).<br />

Como se vê, um inconfidente passava<br />

para outro os dados essenciais da obra<br />

de Raynal, de modo que os que não<br />

tiveram a oportunidade de manusear o<br />

livro assimilaram auditivamente sua<br />

mensagem revolucionária. Ma casa de<br />

Andrada, ela se transmitiu através de<br />

uma 'leitura' coletiva, já que a obra foi<br />

comentada. Tal leitura', embora<br />

superficial, tinha a vantagem de ser<br />

esclarecedora, por se processar por<br />

meio de debates e troca de idéias.<br />

Assim, os inconfidentes menos cultos<br />

tiveram a oportunidade de alcançar um<br />

razoável grau de conscientização.<br />

A notável biblioteca iluminista do dr.<br />

José Pereira Ribeiro foi o mais<br />

importante suporte ideológico da<br />

Inconfidência Mineira, tendo<br />

contribuído para conscientizar os<br />

pag. 158. Jan/dez 1995<br />

mineiros e excitar-lhes o ânimo<br />

revolucionário.<br />

Muitos são os livros de Jurisprudência<br />

que ali se encontram, havendo também<br />

as obras-primas da literatura universal,<br />

gramáticas, dicionários, livros de<br />

história, geografia, teologia,<br />

matemática, medicina, química, história<br />

natural, filosofia etc, formando um<br />

acervo diversificado, que evidencia<br />

amplo interesse cultural.<br />

Entre as obras literárias, destacam-se as<br />

de Anacreonte, Safo, Horácio, Virgílio,<br />

Terêncio, Cícero, Milton, Le Sage (Qil<br />

Blas de Santillane, uma das novelas<br />

mais lidas no século XVIII), Oesner,<br />

Correia Qarçáo, frei José de Santa Rita<br />

Durão (Caramuru).<br />

Também merecem destaque Fernáo<br />

Mendes Pinto, frei Luís de Sousa (Vida<br />

de dom frei Bartolomeu dos Mártires),<br />

Matias Aires (Reflexões sobre a vaidade<br />

dos homens), Sebastião da Rocha Pitta<br />

(História da América Portuguesa), Tissot<br />

(em dois vols.), Lineu (Filosofia<br />

botânica). Pufendorf (Direito natural),<br />

Platão (Diálogo moral).<br />

Mencionamos a seguir obras de<br />

escritores iluministas (muitas delas<br />

proibidas) e obras que, ou por serem<br />

consideradas heréticas, ou por motivos<br />

morais, foram condenadas pela Igreja:<br />

1) D'Alembert: Mélanges de littérature,<br />

d'histoire et de philosophie. 5 vols.<br />

D'Alembert foi, juntamente com Diderot,<br />

um dos organizadores da famosa<br />

Enciclopédia, obra condenada nào só


pelo poder espiritual, como também<br />

pelo temporal.<br />

Em Mélanges..., D'Alembert diz que os<br />

filósofos e cientistas foram<br />

injustamente perseguidos por causa das<br />

suas idéias e das suas descobertas,<br />

responsabilizando a Inquisição pelo<br />

atraso cultural em que alguns países se<br />

encontravam. 13<br />

2) Millot: Histoire générale. 9 vols.<br />

Com o intuito de combater a<br />

superstição, o abade Millot dirige<br />

sarcasmos contra os padres e os papas.<br />

3) Robertson: Histoire de 1'Amérique. 4 vols.<br />

Robertson, um dos luminares do<br />

Iluminismo escocês, afirma que o<br />

Tribunal da Inquisição, em todos os<br />

lugares onde era estabelecido, tolhia o<br />

espírito de pesquisa e o progresso das<br />

Letras. 1*<br />

4) Qenuense: Lógica e Metafísica. 2 vols.<br />

O padre Antônio Qenuense,<br />

representante do Iluminismo italiano, é<br />

considerado um autor perigoso. Seus<br />

Elementos de teologia, publicados em<br />

1751, foram condenados pelo arcebispo<br />

de Mápoles, Spinelli, e Qenuense foi<br />

afastado da cátedra de Teologia, que<br />

ocupava desde 1741.<br />

5) Histoire du Parlement. O escrivão não<br />

cita o autor. Pode ser a Histoire du<br />

Parlement d'Angleterre, de Raynal , ou<br />

Histoire du Parlement de Paris, de<br />

Voltaire. Mesta segunda obra, Voltaire<br />

critica o Parlamento, apresentando-o<br />

como um órgão composto por<br />

jansenistas reacionários.<br />

V o<br />

6) Obras de Mably. 11 vols. Mais adiante,<br />

o escrivão menciona o Droit public de<br />

1'Europe, de Mably, em três vols., livro<br />

proibido na Trança por suas idéias<br />

audazes em matéria de política e<br />

economia social. O autor ataca a<br />

Inquisição, dizendo que ela é contrária<br />

aos princípios do Cristianismo e às luzes<br />

da razão , bem como um possante<br />

obstáculo às revoluções domésticas,<br />

pois acostuma os espíritos a pensar<br />

1 5<br />

sempre do mesmo modo.<br />

7) Justino Febrônio. 2 vols.<br />

É autor de De Statu Ecclesiae, obra<br />

proibida pela Igreja por defender os<br />

princípios do galicanismo, isto é, a<br />

autonomia dos bispos franceses diante<br />

da autoridade do Papa.<br />

8) Voltaire: Siècle de Louis XIV, Carlos<br />

XII. Henriade.<br />

O Siècle de Louis XIV publicou-se em<br />

Berlim, em 1751, e foi proibido'na<br />

França. Mo fim do livro, Voltaire diz que<br />

esse século teria sido, em todos os<br />

aspectos, notável, se não tivesse dado<br />

lugar à superstição, e que Luís XIV teria<br />

sido o rei ideal, se não tivesse tido um<br />

jesuíta por confessor.<br />

9) Samuel Richardson: Pamela. 4 vols.<br />

Editado em 1740, o romance do escritor<br />

inglês foi incluído no Index Librorum<br />

1 6<br />

Prohibitorum em 17 44.<br />

10) Obras de Linguet. 5 vols.<br />

Linguet, um dos que mais combateram<br />

o despotismo monárquico, escreveu<br />

inúmeros livros , sobre os mais variados<br />

assuntos. Seus escritos mordazes e sua<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 155-166. Jan/dez 1995-pag.l59


extrema audácia levaram-no ao exílio e<br />

à prisão, tendo sido condenado à morte<br />

em 1794, sob o regime do terror. Esteve<br />

encarcerado na Bastilha durante dois<br />

anos, de onde saiu em maio de 1782.<br />

Mo ano seguinte, foram publicadas em<br />

Londres suas Memórias da Bastilha, obra<br />

que alcançou grande repercussão e foi<br />

uma das mais vendidas na França no<br />

século XVIII. 17<br />

Sua História imparcial dos jesuítas,<br />

editada em 1768, foi queimada por<br />

decreto do Parlamento de Paris, ao pé<br />

da escadaria do palácio, apesar do<br />

'imparcial' do titulo.<br />

11) História da América Inglesa, sem<br />

indicação do autor.<br />

As obras que abordavam a<br />

independência dos Estados Unidos<br />

despertavam grande interesse nos<br />

intelectuais brasileiros da época.<br />

12) Bielfeld: Institutions politiques.<br />

Esta obra, de um dos maiores expoentes<br />

do Iluminismo alemão, contém o mais<br />

violento ataque que já se fez à<br />

Inquisição. Diz o autor que era preciso,<br />

secretamente, pôr fogo no palácio e nas<br />

prisões da Inquisição, que ele chama de<br />

'horrível Tribunal' e de 'monstro<br />

hediondo'. Tacha Portugal de nação<br />

'carola e supersticiosa'. 18<br />

13) Vattel: Direito das gentes. 3 vols.<br />

Obra proibida e queimada pela<br />

Inquisição espanhola em 1779.<br />

14) Obras de Montesquieu. 6 vols.<br />

Montesquieu foi um importante marco<br />

pag. 160, jan/dez 1995<br />

do Iluminismo francês. Segundo o<br />

abade Raynal, O espírito das leis virou<br />

a cabeça de todo o povo da França.<br />

15) Obra elementar de Condillac,<br />

iluminista francês.<br />

16) Wolff: Princípios de direito natural.<br />

3 vols.<br />

Wolff foi um dos grandes nomes do<br />

Iluminismo alemão.<br />

A análise de bibliotecas esbarra em<br />

várias dificuldades. Uma delas, de difícil<br />

solução, diz respeito a um livro da<br />

biblioteca do cônego, objeto de dúvidas<br />

e especulações e matéria controversa<br />

entre os historiadores. Trata-se de<br />

Elementos da arte militar. Uma obra de<br />

estratégia militar na estante de um<br />

sacerdote revolucionário suscita<br />

indagações , suspeitas e interpretações<br />

polêmicas. O livro estaria ali servindo o<br />

padre-filósofo ou o padre-conspirador?<br />

Sua função era formar o intelecto ou<br />

dilacerar a carne?<br />

Eduardo Frieiro náo vê mais do que<br />

febre de instrução. 19<br />

Márcio Jardim discorda do ponto de<br />

vista de Frieiro, alegando que no acervo<br />

do cônego não se nota nenhuma<br />

inutilidade, "nada estava ali por acaso<br />

numa simples composição de<br />

estante". 20<br />

Frieiro cita o depoimento de Domingos<br />

Vidal na Devassa de Minas, mas náo o<br />

considera suficiente para provar que o<br />

cônego tenha desempenhado o papel de<br />

estrategista militar, não cita, contudo,


R V O<br />

o depoimento de Vidal na Devassa do<br />

Rio. Cotejando-se os dois depoimentos,<br />

pode-se verificar que o da Devassa do<br />

Rio acrescenta um dado importante,<br />

através de uma única palavra. Senão,<br />

vejamos:<br />

"...tinha feito um plano..."(Devassa de<br />

Minas). 21<br />

"...tinha feito um papel..."(Devassa do<br />

Rio). 22<br />

Pela Devassa do Rio, sabe-se que o<br />

plano do cõnego era por escrito, no<br />

papel, possivelmente com um gráfico,<br />

e não, um simples plano verbal, um<br />

palpite que entra por um ouvido e sai<br />

pelo outro. A Conjuração não foi uma<br />

è<br />

%<br />

quimera ideada em tertúlias literárias<br />

nem um simples devaneio romântico em<br />

amenos entretenimentos pós-prandiais.<br />

Ela teve uma fundamentação ideológica<br />

e estratégica, e o plano militar<br />

realmente coube ao cõnego Luís Vieira<br />

da Silva.<br />

Vê-se que a participação do cõnego no<br />

movimento foi intensa e da maior<br />

relevância. Graças à sua erudição e aos<br />

livros que conseguiu, foi um dos<br />

redatores das leis sem ser advogado e<br />

o responsável pela estratégia militar<br />

sem ser militar. Do mesmo modo que<br />

não leu as leis dos norte-americanos por<br />

'febre de instrução', parece que não leu<br />

também os Elementos da arte militar<br />

A revolucionária obra do abade Raynal, tachada pela Sorbonne de "delírio de uma alma ímpia e<br />

queimada por ordem do Parlamento francês. Exemplar da Biblioteca Municipal de São João dei Rei.<br />

Acervo. Rk> de Janeiro, v. 8. n' 1-2. p. 155-166. jan/dei 1995-pag.l6l


A C E<br />

pelo mesmo motivo. O fato de ter esse<br />

livro em sua biblioteca náo prova que o<br />

tenha lido, mas é provável que sim.<br />

A biblioteca do dr. José Pereira Ribeiro<br />

ajuda a esclarecer a questão, pois ele<br />

tinha também os Elementos da arte<br />

militare. igualmente náo era militar, mas<br />

é provável que tenha dado apoio<br />

intelectual ao movimento. Por que um<br />

advogado e poeta se interessaria por tal<br />

assunto? não se fale outra vez em 'febre<br />

de instrução'. Isso não explica tudo. Mão<br />

se sabe de nenhuma outra pessoa em<br />

Minas, naquela época, que tivesse o<br />

livro. Procuramos nos arquivos de Ouro<br />

Preto e Mariana os inventários de todos<br />

os oficiais do Regimento de Cavalaria<br />

Regular de Minas Qerais. Encontramos<br />

alguns, não conseguimos localizar<br />

outros. Em nenhum dos inventários<br />

consultados figura a obra.<br />

Para compreender a sua presença na<br />

biblioteca do dr. Ribeiro, temos que<br />

examiná-la no contexto bibliográfico em<br />

que ela está inserida. Compõem o<br />

acervo obras jurídicas, científicas,<br />

literárias, e nota-se um conjunto de<br />

obras iluministas e de obras que dizem<br />

respeito aos Estados Unidos. Destacam-<br />

se, sobretudo, a obra de Raynal, as leis<br />

dos norte-americanos e uma História da<br />

América Inglesa. O dr. Ribeiro estava na<br />

Europa', vivendo em meio à<br />

efervescência intelectual da época, era<br />

jovem e deve ter participado da<br />

expectativa da separação do Brasil,<br />

seguindo o exemplo dos Estados<br />

pag. 162. Jan/dez 1995<br />

Unidos. Havia pressão psicológica dos<br />

outros países sobre os brasileiros para<br />

fazerem também a sua independência.<br />

Mais cedo ou mais tarde ela se daria, com<br />

luta, naturalmente, e para ela seriam de<br />

utilidade os Elementos da arte militar.<br />

A biblioteca do cônego tinha a mesma<br />

característica, com a diferença de que<br />

em vez de obras jurídicas havia obras<br />

filosóficas e teológicas. Mas o interesse<br />

por obras iluministas e relativas aos<br />

Estados Unidos é o mesmo. Os<br />

Elementos da arte militar nào se<br />

encontravam aleatoriamente nas duas<br />

bibliotecas, mas estavam dentro de um<br />

mesmo contexto bibliográfico, corres­<br />

pondendo aos mesmos interesses e<br />

expectativas e não a uma epidemia de<br />

febre cultural. Meias havia o exemplo a<br />

ser seguido e a teoria e prática<br />

revolucionárias. As duas bibliotecas<br />

formavam um arsenal ideológico de<br />

primeira ordem, principalmente a do dr.<br />

José Pereira Ribeiro, que parece ter sido<br />

o grande suporte ideológico da<br />

Inconfidência Mineira. Só alguns oficiais<br />

tinham livros, porém poucos e sem nada<br />

de extraordinário a notar quanto à<br />

revolução das idéias ou à estratégia<br />

militar, com exceção do tenente Antônio<br />

da Silva Brandão, em cuja pequena<br />

biblioteca havia uma obra da maior<br />

importância.<br />

Um irmão desse oficial, capitão Manuel<br />

da Silva Brandão, esteve implicado na<br />

Inconfidência."<br />

O inventário dos bens do tenente


Antônio da Silva Brandão (que morreu<br />

no posto de sargento-mor) foi feito em<br />

Mariana em 1827. Mele, são arrolados<br />

19 livros, em sua maioria de assunto<br />

militar. Citamos apenas os seguintes:<br />

Tratado das evoluções militares;<br />

Instrução do Regimento de Cavalaria<br />

Miliciana; Máximas da guerra;<br />

Instruções militares de...(ilegível);<br />

Instruções secretas de Frederico<br />

Segundo; Das instruções para a<br />

infantaria.<br />

O manuscrito é de leitura difícil, porque<br />

em muitos pontos está com a tinta<br />

bastante apagada. Encontra-se no<br />

<strong>Arquivo</strong> da Casa Setecentista de<br />

Mariana. 24<br />

As Instruções secretas são instruções<br />

militares de Frederico II, rei da Prússia,<br />

um dos maiores estrategistas do século<br />

XVIII, amigo e protetor dos filósofos<br />

iluministas, entre os quais Voltaire. Mão<br />

se sabe quando esse precioso livro foi<br />

adquirido, se no fim do século XVIII ou<br />

no início do século XIX, já que o<br />

inventário é de 1827. O mais provável<br />

é que esse e alguns outros volumes de<br />

estratégia militar tenham penetrado em<br />

Minas Gerais na segunda metade do<br />

século XVIII, pois o visconde de<br />

Barbacena considerava o tenente<br />

Antônio da Silva Brandão 'hábil', e essa<br />

habilidade naturalmente decorria da<br />

leitura e estudo de tais livros. Em 11 de<br />

fevereiro de 1790, o visconde enviou<br />

um ofício a Martinho de Melo e Castro,<br />

secretário da Marinha e Ultramar,<br />

V o<br />

juntamente com uma relação dos<br />

oficiais do Regimento de Cavalaria<br />

Regular, em cujas margens fez obser­<br />

vações acerca de alguns oficiais. Ao lado<br />

do nome do capitão Manuel da Silva<br />

Brandão escreveu: "Com seu efetivo,<br />

muito suspeito". E sobre o tenente<br />

Antônio da Silva Brandão anotou:<br />

"Irmão do capitão Brandão; é hábil. 25<br />

Seria interessante saber também o que<br />

liam os alunos de Mariana e como os<br />

livros chegavam até eles. Encontramos<br />

numa das prateleiras do <strong>Arquivo</strong> do<br />

Museu da Inconfidência, de Ouro Preto,<br />

numa pilha de fragmentos de<br />

inventários, um traslado do seqüestro<br />

dos bens do inconfidente Vicente Vieira<br />

da Mota, guarda-livros do contratador<br />

João Rodrigues de Macedo. O<br />

documento estava erroneamente<br />

classificado como inventário de 1721,<br />

apesar do zelo com que o material é ali<br />

guardado. Esse equívoco repete outro,<br />

cometido no Fórum de Ouro Preto, de<br />

onde procede o manuscrito: escreveram<br />

na folha inicial, aliás parcialmente<br />

dilacerada e de difícil leitura, '1721<br />

lnventr". Como dissemos, trata-se de<br />

um traslado. O documento original<br />

encontra-se no Instituto Histórico e<br />

Qeográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.<br />

Um trecho do manuscrito nos informa<br />

que o tenente Antônio Gonçalves da<br />

Mota, testamenteiro do padre Francisco<br />

de Paula Meireles, professor régio de<br />

Filosofia em Mariana, comunicou que o<br />

referido padre pedira em seu<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n* 1-2. p. 133-166. Jan/dez 1995 - pag. 163


A C E<br />

testamento 26 que fossem entregues ao<br />

Juizo do Fisco vários livros pertencentes<br />

ao confiscado Vicente Vieira da Mota,<br />

que os tinha encomendado de Portugal<br />

para serem vendidos aos seus alunos<br />

(não indicamos o número da folha<br />

porque elas não estão numeradas).<br />

Os livros que o padre Meireles ia vender<br />

aos seus alunos são, entre outros,, os<br />

seguintes: 11 vols. da Lógica e 10 da<br />

Metafísica, de Qenuense.<br />

É curioso notar que os alunos<br />

estudavam nas obras do padre Antônio<br />

Qenuense ou Qenovesi, nome<br />

representativo do Iluminismo italiano,<br />

sacerdote tido como avançado e<br />

perigoso. Apesar disso, suas obras<br />

estavam em muitas bibliotecas de<br />

padres e leigos da capitania de Minas<br />

Qerais. liada podia deter o fluxo das<br />

inovações. Era difícil manter a ortodoxia<br />

num mundo marcado pela inquietação<br />

mental e pelo alvoroço das novas<br />

aspirações. Quem escapava de uma<br />

pag 164. Jan/dez 1995<br />

heresia caía em outra.<br />

Aí está uma pequena amostra do que<br />

padres e alunos liam em Mariana. O<br />

cõnego Luís Vieira da Silva também teria<br />

adquirido livros por meio de Vicente<br />

Vieira da Mota? Este é que<br />

habitualmente mandava vir livros de<br />

Portugal para os letrados de Mariana e<br />

Vila Rica? Eis um indício que merece<br />

reflexão e pesquisa. O capitão Vicente<br />

V. da Mota era guarda-livros do rico<br />

contratador João Rodrigues de Macedo,<br />

cuja casa foi um dos locais de encontro<br />

dos inconfidentes . Afirmou a Basílio de<br />

Brito que era amigo do cõnego, como<br />

revela Basílio em sua carta-denúncia. 27<br />

Mo traslado do auto de seqüestro dos<br />

bens de Mota, Luís Vieira figura como<br />

um dos seus devedores. A amizade<br />

entre os dois e as relações de compra e<br />

venda ou de empréstimo levam-nos a<br />

considerar a possibilidade da<br />

intermediação de Mota na aquisição de<br />

livros do cõnego.


R V O<br />

H O T A S<br />

1. AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira (A.D.I.M.). Edição da Câmara dos<br />

Deputados e do Governo do Estado de Minas Gerais, 1976, vol.11, p.67.<br />

4<br />

2. Idem, ibidem, II, pp. 100-101.<br />

3. Idem, ibidem, V, pp. 149-150.<br />

4. Idem, ibidem, V, p.173.<br />

5. Idem, ibidem, I, p. 206.<br />

6. Idem, ibidem, I, pp. 189-190.<br />

7. Idem, ibidem, VII, p. 125.<br />

8. Idem, ibidem, I, p. 190.<br />

9. Idem, ibidem, II, p. 46.<br />

10. Recentemente, foi traduzida para o português a Révolution de /'Amérique, do<br />

abade Raynal. Esse trabalho pioneiro se deve a Regina Clara Simões Lopes, em<br />

edição do <strong>Arquivo</strong> nacional. Rio, 1993. Para maiores informações acerca da obra<br />

do grande iluminista francês, veja-se o substancioso estudo introdutório dos<br />

professores Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Oswaldo Munteal Filho.<br />

11.2° Ofício, códice 51, auto 1.162.<br />

12. REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO M1MEIRO, ano I, fascículo 3 o, 1896, pp. 447-448.<br />

13. Cf. a edição dos irmãos Murray, Leiden, 1783, 4 o vol., p. 321.<br />

14. Cf. a edição de Pissot, Paris, 1780, I o vol., pp. 350-351.<br />

15. Cf. a edição de Bailly, Genebra, 1776, 2 o vol., pp. 418-419.<br />

16. Cf. Index Librorum Frohibitorum, SS.MI D.M. PP. Xll iussu editus anno MCMXLV1II.<br />

Typis Polyglottis Vaticanis, pp. 354 e 407.<br />

17. Ver DARTOri, Robert. Boêmia literária e Revolução. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1987, pp. 144-145.<br />

18. Cf. a edição de Samuel e Jean Luchtmans, Leiden, 1772, vol. 3 o., pp. 15 e 22.<br />

19. Cf. O diabo na livraria do cõnego. Itatiaia e USP, 2 a edição, 1981, p. 37.<br />

20. Cf. A Inconfidência Mineira - uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do<br />

Exército, 1989, pp. 282 e 355.<br />

21. A.D.I.M., I, p. 214.<br />

22. A.D.I.M., IV, p. 146.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. %* 1-2, p. 153-166, jan/dez 1995 - pag 165


23. José Cruz Rodrigues Vieira considera-o "um sério simpatizante do movimento".<br />

Cf. Tiradentes : a Inconfidência diante da história. Belo Horizonte: 1993, 2 o vol.,<br />

2° tomo, p.703. Oíliam José considera que houve uma "proteção estranha, em<br />

meio a tanto excesso de poder", aos capitães Maximiano de Oliveira Leite e Manuel<br />

da Silva Brandão, excluídos da devassa, "embora sabidamente comprometidos<br />

pelo menos por omissão". Cf. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974,<br />

p. 235.<br />

24. I o Ofício, códice 101, auto 2.096.<br />

25. A.D.I.M., VIII, pp. 255-257.<br />

26. O testamento, de 29/3/1793 (o óbito deu-se em 1794), encontra-se no <strong>Arquivo</strong><br />

da Casa Setecentista de Mariana (Livro de Registro de Testamentos n° 42, I o<br />

Ofício).<br />

27. A.D.I.M., I, p. 100.<br />

A B S T R A C T<br />

Dr. José Pereira Ribeiro, attorney in Mariana, a University of Coimbra graduate, owned<br />

the most important illuminist library of Minas Qerais in the 18th century, more<br />

noteworthy in this regard (although a bit smaller) than the famous library belonging<br />

to canon Luís Vieira da Silva. Dr. Ribeiro's inventory comprises numerous books<br />

regarded as subversive and pernicious, many of them banned by public authorities<br />

and the Church.<br />

R É S U M É<br />

Me. Pereira Ribeiro José, avocat à Mariana, a fait ses études àTUniversité de Coimbre;<br />

il possédait la plus importante bibliothèque de 1'état des Minas Qerais sur le Siècle<br />

des Lumières. De ce point de vue, quoique moins vaste, elle était plus remarquable<br />

que la fameuse bibliothèque du Chanoine Luís Vieira da Silva. Dans 1'inventaire de<br />

Me. Vieira figure une grande quantité de livres consideres comme subversifs et<br />

pernicieux, plusieurs interdits par le pouvoir civil et par 1'Eglise.<br />

pag. 166, jan/dez 1995


Cláudia Heynemann<br />

Mestre em História Social da Cultura - PUC/RJ.<br />

Chefe do Setor de Pesquisa do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.<br />

Edições perigosas?<br />

a Encyclopédie para Rofeeré<br />

Ao escolher o<br />

tema da<br />

Encyclopédie<br />

para abordar a obra de<br />

Robert Darnton, nossa<br />

intenção é a de ter a<br />

oportunidade de articular este<br />

objeto a outros temas relacionados com<br />

a história da leitura presentes no<br />

conjunto de sua produção. Assim, falar<br />

de um livro como a Encyclopédie,<br />

certamente sugere pensarmos no<br />

universo de livros clandestinos, nos<br />

panfletos, na pornografia e em toda uma<br />

literatura que será consumida no<br />

período pré-revolucionário. Significa<br />

também e sobretudo, refletir sobre as<br />

origens ideológicas da Revolução e<br />

sobre o surgimento dos intelectuais.<br />

Darnton<br />

philosophes.<br />

Certamente que a<br />

discussão sobre o<br />

caráter das Luzes,<br />

ultrapassa em muito os<br />

limites deste artigo e<br />

*"»•""*" sabemos ser inesgotável o tema'<br />

do Iluminismo e da Ilustração, bem<br />

como a sua própria conceituaçào e<br />

delimitação espaço-temporal. Ainda<br />

assim, a Encyclopédie, marcada pelo<br />

seu conteúdo filosófico e pela sua<br />

proposta de sistematização do<br />

conhecimento e mesmo pela plasti­<br />

cidade de suas imagens, pelos autores<br />

com que contou e pelo processo de<br />

edição e comercializaçáo, é sem dúvida<br />

nenhuma o centro irradiador para uma<br />

reflexão que é também sobre a natureza<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 167-182. Jan/dez 1995-pag, 167


A C E<br />

de uma história da leitura e daquilo que<br />

ela pode comunicar como história<br />

cultural. Às infinitas imagens<br />

espelhadas pelo 'livro sobre um livro',<br />

acrescentamos então um comentário<br />

centrado em faventure de<br />

l'Encyclopédie.<br />

Edições perigosas: a Encyclopédie<br />

para Robert Darnton<br />

Um best seller na época das Luzes, é o<br />

sub-titulo que Robert Darnton dá ao seu<br />

L'aventure de /'Encyclopédie 1, e esta<br />

será a história a ser contada a partir de<br />

1772, quando Diderot está concluindo<br />

o último volume do dictionaire<br />

raisonné, tal como a obra se propõe a<br />

ser. Uma obra perigosa, esta é a<br />

cpnclusão das autoridades francesas,<br />

diante destes volumes que não se<br />

limitam a atingir todos os campos do<br />

conhecimento, mas que promovem uma<br />

transformação radical, destronando o<br />

antigo reino das ciências, rearranjando<br />

o universo cognitivo: a razão é<br />

soberana, a árvore do conhecimento<br />

tem como tronco a filosofia, de onde<br />

saem os ramos da ciência, deslocada a<br />

teologia para um lugar distante, próxima<br />

da magia negra. Apesar dos subterfúgios<br />

utilizados nos verbetes, das estratégias<br />

das entrelinhas, não podem esconder o<br />

fundamento epistemológico que atinge<br />

a antiga cosmologia. 2<br />

Se é claro para todos nós a importância<br />

que terá a Encyclopédie como síntese<br />

do pensamento iluminista, do<br />

racionalismo cientificista, obra suprema<br />

pag 168, jan/dM 1995<br />

das Luzes como assinala Darnton, cabe<br />

discutir o que é uma história da obra, o<br />

que se pode contar sobre ela quando<br />

tantos estudos foram realizados,<br />

verbetes publicados, e mesmo seus<br />

autores e colaboradores bastante<br />

analisados. Assim, porque partir do que<br />

é paradigmático? Para Darnton, esta<br />

especificidade é exatamente um dos<br />

principais atrativos da pesquisa, seguir<br />

todas as etapas de sua confecção, o que<br />

não foi possível em outros casos,<br />

dissipando assim certos pontos<br />

obscuros em relação a história da<br />

leitura. Trata-se de uma proposta<br />

metodológica, que quer aliar os<br />

aspectos mais materiais da literatura do<br />

Antigo Regime à perspectiva empírica<br />

britânica e às tendências sociológicas e<br />

estatísticas francesas.<br />

E, é na França que a história da leitura<br />

encontra seu solo mais fértil, lançando<br />

amplas questões sobre a história<br />

moderna. Uma história da leitura no<br />

setecentos aponta para reflexões em<br />

torno do caráter pré-revolucionário do<br />

século, para os conteúdos destas<br />

leituras, e o conjunto da obra de Robert<br />

Darnton se torna tanto mais<br />

interessante, quando pensamos que à<br />

aventura da Encyclopédie, soma-se a<br />

análise que fará das obras<br />

pornográficas, do submundo literário,<br />

do conjunto de livros clandestinos que<br />

classificados como 'filosóficos' incluem<br />

Holbach e as crônicas escandalosas.<br />

Para compreendermos este universo, é


Robert Darnton<br />

U aventure<br />

de F Encyclopédie<br />

1775-1800<br />

Préface d'Ernmanuel Le Roy Ladurie<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2. p. 167-182. jan/dez 1995-pagl69


A C E<br />

fundamental analisar todos os aspectos<br />

que envolvem a produção do livro no<br />

século XV11I, tendo em mente as<br />

diversas perguntas que Darnton formula<br />

e que podem se multiplicar<br />

infinitamente. Algumas delas têm um<br />

lugar central para os pressupostos deste<br />

artigo: como os grandes movimentos<br />

intelectuais, como o das Luzes,<br />

repercutem na sociedade? Até onde são<br />

entendidos? Qual a medida de suas<br />

influências? De que forma o<br />

pensamento dos filósofos se revestiu<br />

quando se materializou sobre o papel?<br />

O que revela essa empresa sobre a<br />

transmissão das idéias? Como<br />

funcionava o mercado literário e que<br />

papel tiveram os editores, livreiros e<br />

outros intermediários da comunicação<br />

cultural? 3<br />

Todas estas questões convergem para a<br />

opção do autor de tratar a literatura<br />

como um sistema de comunicação,<br />

concentrando-se em seus principais<br />

protagonistas: autores, editores,<br />

livreiros e leitores, descortinando assim<br />

uma história dos livros que se<br />

desenrola no contexto humano, rica em<br />

personagens pitorescos; os homens e<br />

mulheres que fabricaram e venderam<br />

os livros são criaturas de carne e<br />

sangue. Eles comerciaram, blefaram,<br />

espionaram, mentiram. Eles se<br />

arruinaram e fizeram fortuna dando<br />

livre curso a toda gama de emoções<br />

humanas. Procurando-os conhecer,<br />

pode-se apreciar a intensidade da<br />

pag, 170. Jan/dez 1995<br />

paixão investida nos objetos familiares<br />

que nós admiramos sobre a prateleira<br />

de nossas bibliotecas e temos dia após<br />

dia em nossas mãos. Por trás das obras<br />

do Antigo Regime se dissimula uma<br />

vasta comédia humana. 4<br />

A convivência entre as obras da 'mais<br />

adiantada filosofia' com a mais 'reles<br />

pornografia', como atestam as fontes<br />

por ele utilizadas, se dá no ambiente da<br />

sedição, na valorização das obras<br />

proibidas que circulam na Trança neste<br />

período, trazendo ainda o surgimento<br />

de um novo personagem: o intelectual,<br />

esse novo tipo social, homem de letras 3<br />

deste país tão peculiar que é a Prança<br />

literária, uma República das Letras. Esse<br />

novo tipo escapa às categorias clássicas<br />

do Antigo Regime: "pode estar na<br />

academia francesa, mas dorme também<br />

sob os forros, vive nos cafés e se nutre,<br />

como indica Voltaire, de 'rimas e<br />

esperanças". 6<br />

Procurar perceber as regras do jogo do<br />

mundo literário, uma sociologia da<br />

literatura como espaço de poder, com<br />

seus campos opostos, alinhamentos e<br />

doutrinas, certamente é uma opção que<br />

negligencia a análise do texto literário<br />

e dos indivíduos, em favor da<br />

compreensão de um sistema, de uma<br />

cultura literária na qual os intelectuais<br />

representam uma força social. Busca<br />

assim, prioritariamente, assinalar o<br />

lugar desta República das Letras na<br />

sociedade do Antigo Regime, em uma<br />

leitura que, por um lado, recusa a


R V O<br />

relação imediata entre as obras e a<br />

Revolução, mas que se reporta<br />

incessantemente ao período pré-<br />

revolucionário, no sentido de reafirmar<br />

o caráter literário da Revolução, a<br />

"revolução no interior da revolução". 7<br />

A intelligentsia, essa categoria que se<br />

apresenta ao público através de seus<br />

escritos sediciosos, merece de Darnton<br />

uma demografia e uma sociologia<br />

histórica, ainda que não se proponha a<br />

biografar os 'gênios' individuais. É<br />

preciso estabelecer quem é escritor na<br />

França pré-revolucionária, e para tal ele<br />

esclarece um pouco sobre suas fontes<br />

como o almanaque La France littéraire,<br />

cujo aparecimento em 1752 já indica<br />

mudanças na República das Letras do<br />

Antigo Regime, onde os compiladores<br />

cada vez mais incluem nomes, como o<br />

faz o incansável La Porte, verdadeiro eco<br />

dos enciclopedistas, um de seus<br />

redatores, descrito pela polícia francesa<br />

como "um homem de más companhias.<br />

Foi jesuíta por oito anos e é um grande<br />

amigo do abade Raynal". 8<br />

Uma intelligentsia que já se forma em<br />

torno de Voltaire, Diderot e outros<br />

filósofos, mas ainda carente de uma<br />

identidade social e de uma base<br />

econômica definida, fundando-se na<br />

boêmia, no elemento marginal desta<br />

república letrada. Sobretudo a questão<br />

da origem destes intelectuais e de seu<br />

público receptor, é fundamental para a<br />

discussão e o debate revisionista sobre<br />

o processo revolucionário, partindo do<br />

conteúdo das idéias iluministas, dos<br />

leitores destas obras e do sentido das<br />

reformas empreendidas e propostas<br />

naquele momento. Se é certo que para<br />

responder a pergunta inicial, 'o que liam<br />

os franceses no século XVIII', é preciso<br />

uma acurada crítica de fontes como os<br />

inventários das bibliotecas, nas quais<br />

não figura a bíblia da Revolução, O<br />

contrato social, e de onde uma série de<br />

inferências serão realizadas, não é<br />

menos correto dizer que efetivamente<br />

o Contrato estava pouco divulgado na<br />

França pré-revolucionária. O que nào<br />

exclui o espirito crítico das Luzes,<br />

presente na visão de mundo da qual a<br />

Encyclopédie será o signo.<br />

A Revolução não era de modo algum<br />

pensada pelos homens das Luzes, ainda<br />

que esta se aproximasse, o que não<br />

elimina o caráter eminentemente<br />

político dos textos sediciosos, estes<br />

críticos e virulentos papéis que circulam<br />

às vésperas de 1789:<br />

a sedição se prepara, instila-se nos<br />

espíritos, não podemos medir<br />

claramente seus efeitos na ação nem<br />

recuperar a arriscada alquimia que<br />

transmuta a sedição em revolução,<br />

mas podemos seguir seus traços e<br />

sabemos com certeza que ela se<br />

comunica por um instrumento temível:<br />

o livro.'<br />

Entre estes livros temíveis, está,<br />

sabemos, a Encyclopédie de Diderot e<br />

d'Alembert. Temível pelos seus próprios<br />

pressupostos, como anunciamos no<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n ! 1 -2. p. 167-182. jan/dez 1995 - pag. 171


A C E<br />

início deste artigo, a Encyclopédie não<br />

faz um apeio à revolução, e sequer<br />

preconiza um capitalismo avançado.<br />

Trata-se de uma obra de meados do<br />

século em que não se discute<br />

abertamente as questões sociais. Sua<br />

heresia está em afirmar o primado da<br />

razão, e da razão apenas, redesenhando<br />

o mapa do conhecimento humano, o<br />

que está explicito no Discours<br />

préliminaire que, em uma breve história<br />

da filosofia, estabelece a genealogia<br />

intelectual dos filósofos, desfere golpes<br />

contra o tomismo ortodoxo e o<br />

cartesianismo, apresentando sua obra<br />

como uma compilação de informações<br />

pag. 172. Jan/dez 1995<br />

1 e como manifesto filosófico 0,<br />

identificando assim, o conhecimento<br />

com a filosofia, um conhecimento que<br />

só é válido porque derivado das<br />

faculdades do espírito. Os verbetes do<br />

dictionnaire, ao contrário do Discurso<br />

preliminar, não são tão claros, é preciso<br />

ler nas entrelinhas., recurso lubridiador<br />

da censura.<br />

Apesar da estratégia, os contem­<br />

porâneos não têm dificuldades em<br />

perceber o objetivo da obra. De 1751",<br />

data em que aparece o primeiro tomo,<br />

até a grande crise de 1759, a<br />

Encyclopédie é denunciada por um sem<br />

número de instâncias que defendem, é


claro, as velhas ortodoxias e o Antigo<br />

Regime, no entanto, o alto investimento<br />

dos editores garantem sua<br />

sobrevivência, através das influências<br />

políticas empregadas. A polêmica sobre<br />

a obra permanece no entanto, enquanto<br />

aparecem os volumes 3 a 7. Do lado dos<br />

enciclopedistas, Voltaire empresta seu<br />

prestígio a causa, enquanto Diderot e<br />

d'Alembert encontram como<br />

colaboradores, escritores ilustres,<br />

alguns já conhecidos como filósofos:<br />

Duelos, Toussaint, Rousseau, Turgot,<br />

dllolbach, Quesnay e outros. Como<br />

assinala Darnton, nada poderia ser<br />

melhor para as vendas do que a<br />

incessante controvérsia que a obra<br />

desperta: a Encyclopédie é um sucesso<br />

editorial, multiplicando as subscrições<br />

ano a ano, enquanto se desenrolam as<br />

crises em torno de sua publicação.<br />

Em Laventure de 1'Encyclopédie<br />

Darnton procura assim cumprir a<br />

proposta de simultaneamente traçar a<br />

sua história editorial, a empresa de sua<br />

confecção e, por outro lado, interpretar<br />

o sentido que ela terá na França pré-<br />

revolucionária, sua relação com as<br />

idéias de capitalismo e de Estado, as<br />

implicações enfim que ela terá do ponto<br />

de vista da revolução literária que opera<br />

no interior da Revolução.<br />

Em outra de suas obras, Qens de lettres,<br />

gens de livre, ele levará adiante este<br />

tema, certamente uma tese central, da<br />

afirmação do caráter literário da<br />

Revolução. Nela está implícita a crença<br />

V o<br />

de que a Revolução engloba muito mais<br />

do que a literatura, tende a criar um<br />

novo modo de vida, e é por sua própria<br />

natureza oposta ao sistema cultural do<br />

Antigo Regime. Ao transformar a cultura<br />

francesa, revoluciona-se a literatura, náo<br />

apenas o texto, mas a sua própria noção<br />

e, devemos sublinhar, esta é a<br />

perspectiva fundamental de Darnton: a<br />

transformação da literatura como<br />

sistema social. Os atos revolucionários<br />

interferem decisivamente na liberdade<br />

de imprensa, na liquidação das<br />

corporações de livreiros, na abolição<br />

dos monopólios da Comédie Française<br />

e da Opera, na destruição das<br />

academias, no fechamento dos salões<br />

e por fim no aniquilamento do sistema<br />

de proteção da corte. 12<br />

Ao apresentar sua análise da<br />

Encyclopédie, Darnton afirma que um<br />

livro sobre um livro, é um jogo de<br />

espelhos, multiplicando as imagens<br />

infinitamente. Podemos pensar que<br />

assim funciona seu próprio método para<br />

nós, seus leitores. Ele se perguntará em<br />

um certo momento, porque a literatura<br />

foi tão importante para os franceses,<br />

como encontraram tempo para o<br />

Philinte de Molière, enquanto nas ruas<br />

há uma luta desesperada em torno do<br />

que será o novo regime. A sua resposta<br />

é o caráter literário da Revolução. Mas,<br />

poderíamos perguntar: porque a<br />

literatura é tão importante para Robert<br />

Darnton? De que ponto de observação<br />

ele se situa?<br />

Por um lado, ao demarcar a história da<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n f 1-2, p. 167-182. jan/dez !995-pag.l73


A C E<br />

leitura como um campo específico de<br />

conhecimento, ele anuncia que é<br />

chegado o momento de aliar a teoria<br />

literária à história dos livros:<br />

A teoria pode revelar a variedade nas<br />

reações potenciais a um texto, ou seja,<br />

aos constrangimentos retóricos que<br />

dirigem a leitura sem determiná-la. A<br />

história pode mostrar que as leituras<br />

realmente ocorrem, ou seja, dentro dos<br />

limites de um corpo imperfeito de<br />

evidência (...). Por isso eu<br />

argumentaria em prol de uma<br />

estratégia dupla, que combinaria a<br />

análise textual com a pesquisa<br />

empírica. 15<br />

Assim, a despeito de anunciar a opção<br />

por uma análise do sistema de<br />

comunicação, propõe a incorporação da<br />

teoria literária como instrumento para<br />

uma história da leitura. É ainda, a nosso<br />

ver, uma leitura externa ao texto, no<br />

sentido de uma crítica que nào parte do<br />

próprio objeto, da obra de arte, das<br />

condições internas à escrita, mas que é<br />

em parte alcançada em momentos<br />

privilegiados de seu texto, como quando<br />

analisa o Philinte de Molière, com<br />

personagens que se movem sem<br />

qualquer alusão ao que neste momento<br />

acontece nas ruas.<br />

Perceber que a reconstrução social da<br />

realidade passa pela volta aos temas<br />

herdados do Antigo Regime,<br />

enquadrando suas observações nos<br />

gêneros familiares, assinalando a<br />

impossibilidade da tarefa de<br />

pag. 174. jan/dez 1995<br />

reconstrução, é na verdade a tese de<br />

Darnton. Ele dirá, então, que enquanto<br />

produtos do sistema literário particular<br />

ao Antigo Regime, os escritores da<br />

Revolução revolucionam a literatura:<br />

"eles começam a partir de 1789<br />

capturando o centro sagrado do antigo<br />

sistema literário - o espaço modelado<br />

por Molière - e terminam em 1794<br />

introduzindo-o no coraçáo de uma nova<br />

cultura política". 14<br />

Caberia aos intelectuais encontrar uma<br />

ordem nesse novo regime. Suprimidas<br />

as instituições literárias do Antigo<br />

Regime, as novas formas literárias<br />

figuram agora como elementos de uma<br />

cultura revolucionária e o fazem<br />

retornando à experiência anterior. Mo<br />

entanto, Darnton assinala que a<br />

Revolução teve uma amplitude que<br />

ultrapassou a compreensão daqueles<br />

que foram seus artistas. Diferenciando-<br />

se de um revisionismo mais<br />

disseminado, corrente, ele define que<br />

"a meu ver, é uma revolução total em<br />

seu programa, e segue na sua prática<br />

uma revolução no tempo, no espaço e<br />

nas relações pessoais como na política<br />

e na sociedade" 1 5, estando além,<br />

portanto, de um fenômeno político<br />

derivado do discurso de teóricos como<br />

Rousseau e Sieyès.<br />

Ma obra de Darnton persiste a questão<br />

básica da repercussão dos grandes<br />

movimentos intelectuais como o das<br />

Luzes, na sociedade. Mais do que uma<br />

questão, ela é em si uma premissa, e é<br />

através dela que se opera a sua análise.


Retomando assim, a oposição Voltaire/<br />

Rousseau, ele conclui que Robespierre<br />

baniu o riso da República da virtude.<br />

Eles sabiam muito bem o que faziam.<br />

Esta era uma empresa importante,<br />

nada menos do que a reconstrução<br />

social da realidade. Também<br />

começaram uma tarefa que Rousseau<br />

lhes deixou. Uma tarefa tão<br />

extravagante que ultrapassa o nosso<br />

entendimento - a correção de Molière. 16<br />

O lugar que estes intelectuais ocupam<br />

V o<br />

na República das Letras do Antigo<br />

Regime e seu papel no processo<br />

revolucionário está no centro da<br />

discussão sobre o revisionismo. A<br />

'revisão' operada por Darnton, se dá em<br />

uma perspectiva bastante específica, e<br />

talvez seja um excesso de Le Roy<br />

Ladurie incluir o autor como um dos<br />

"quatro mosqueteiros do revisionismo<br />

pré-revolucionário", no prefácio à<br />

faventure de /'Encyclopédie, ao lado de<br />

Furet, Daniel Roche e Qayot.<br />

Diderot, Denls et alll. Encyclopédie. Dictlonnalre ralsonné des sciences, des arts et des métiers.<br />

Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 167-182, jan/dez 1995-pag.l75


Renovar a compreensão das origens<br />

intelectuais e culturais da França,<br />

significa de qualquer forma, repensar<br />

quem são estes intelectuais e qual o caráter<br />

das Luzes. É Darnton quem se interroga<br />

sobre o conceito de 'revolução burguesa'.<br />

Cia resultará burguesa talvez, pelos seus<br />

objetivos finais, mas intelectualmente as<br />

Luzes, das quais são inquestionáveis os<br />

prolongamentos revolucionários, estão<br />

ligadas a um público receptor apenas em<br />

parte ligado às formas vanguardistas do<br />

capitalismo burguês.<br />

c<br />

Para Ladurie, as Luzes estão longe de<br />

serem especificamente burguesas, a<br />

fortiorí capitalistas, aprofundando o<br />

perfil de uma Ilustração vinculada à<br />

nobreza, extremamente poderosa nas<br />

cidades setecentistas francesas,<br />

reavaliando "o monstro feudal", o<br />

Estado, "como se muita água não tivesse<br />

corrido sob as pontes do Sena desde<br />

flugues Capet". 1 7 Ladurie parte das<br />

estatísticas dos compradores da<br />

Encyclopédie, cuja concentração se dá<br />

em cidades dominadas pela nobreza,<br />

Diderot, Denis et alii. Encyclopédie. Dlctionnalre raisonné des sclences, des arts et des métlers.<br />

Paris: Briasson, 1751 - 1780, 35 vols.<br />

pag. 176, jan/dez 1995<br />

E


R V O<br />

muito mais do que em cidades<br />

caracteristicamente comerciais. Os<br />

compradores/leitores urbanos da obra<br />

concentram-se no clero, na fraçáo<br />

esclarecida da nobreza e em uma certa<br />

porção da burguesia que compõe-se de<br />

notáveis que vivem de renda fundiária,<br />

arrendatários que têm ganhos derivados<br />

do Estado, funcionários públicos,<br />

militares, médicos, advogados etc. Mo<br />

coração dessa clientela enciclopedista,<br />

há o Estado, aqui classificado como um<br />

Estado citadino, matriz da nossa<br />

modernidade, a despeito de uma<br />

aparência indiscutivelmente tradicional,<br />

da pessoa do rei e dos ritos de etiqueta<br />

da corte. O que ele enuncia neste<br />

prefácio, é que os membros ou satélites<br />

deste Estado, justamente por estarem<br />

em seu interior, estão atentos às<br />

transformações sócio-políticas das<br />

estruturas burocráticas e gover­<br />

namentais, preparando uma revolução,<br />

à sua maneira, que irá muito adiante<br />

deles. 18<br />

Não devemos exagerar, adverte Ladurie.<br />

Não os façamos responsáveis pelas<br />

Luzes nem pela Revolução, que eles<br />

involuntariamente ajudaram a preparar.<br />

Afinal, por volta de 1780, os<br />

comerciantes das pequenas cidades não<br />

se interessavam nem pela aquisição,<br />

nem pela leitura da Encyclopédie. Eles<br />

estavam muito ocupados em comprar<br />

tapeçarias para decorar suas casas. Não<br />

interpretavam nem transformaram o<br />

mundo. Idéias, política e reformas<br />

estavam na cabeça de intelectuais.<br />

Neste ponto, o prefácio torna-se<br />

bastante interessante por efetuar uma<br />

genealogia das academias e sociedades<br />

científicas, e os pontos de clivagem<br />

entre os aristocratas e o Terceiro Estado,<br />

o processo constitutivo das academias,<br />

das sociabilidades científicas, sua<br />

composição e a passagem de uma<br />

cultura típica do cristianismo clássico<br />

para a cultura de origem antiga e<br />

renascentista, cartesiana e voltairiana<br />

que distinguem as academias. Um<br />

progressivo movimento que torna os<br />

membros das academias, "igualitários<br />

no interior de si mesmos, culturalmente<br />

enciclopedistas" 1 9, típicos de uma<br />

sociedade de corporações. As<br />

sociedades científicas serão o palco de<br />

uma diferenciação entre aristocracia e<br />

Terceiro Estado. A Encyclopédie se<br />

integra à desestabilização de um<br />

conjunto de sócio-culturas do Antigo<br />

Regime, como avalia Ladurie. Em<br />

conjunto com toda uma crise financeira,<br />

política e de subsistência, entre os anos<br />

de 1787 e 1789, vai abaixo o "edifício<br />

que uma geração de cupins intelectuais<br />

haviam previamente roído até as<br />

vigas". 20<br />

De que forma a Encyclopédie se integra<br />

a este processo? A produção e difusão<br />

da obra, sua singularidade, um dos<br />

atrativos que ela oferece como objeto<br />

para uma história da leitura no Antigo<br />

Regime, nos traz novamente a metáfora<br />

do jogo de espelhos, pois do seu<br />

conteúdo filosófico à sua materialidade,<br />

há um desdobramento incessante de<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p. 167-182. jan/dez 1995-pagl77


A C<br />

questões que apontam de certa forma<br />

para uma questão fundadora: o que liam<br />

os franceses no século XV11I? Ainda que<br />

um único livro não possa responder esta<br />

pergunta, a história das suas edições<br />

contém o debate sobre as origens<br />

intelectuais da Revolução, sobre o<br />

Antigo Regime, sobre o campo<br />

específico de conhecimento que pode<br />

ser a história da leitura e não menos<br />

importante, senão uma exegese, uma<br />

análise bastante aprofundada do que<br />

séria a síntese do pensamento<br />

iluminista e do enciclopedismo, uma<br />

herança que ultrapassa em muito seu<br />

espaço-tempo.<br />

Porque, seja ou nào, o maior<br />

empreendimento da história do livro,<br />

como proclamaram seus editores, a<br />

Encyclopédie foi certamente o<br />

acontecimento mais extraordinário do<br />

século XVIII. Esta afirmação de Darnton,<br />

ancorada no mercado editorial do<br />

período, tornando mensurável esta<br />

"concretização das Luzes" 21, traz em si<br />

alguns debates historiográficos, dos<br />

mais relevantes, sobre o alcance da<br />

obra. De um lado, a visão de que as<br />

Luzes são um vasto movimento que<br />

modifica a opinião pública, de outro, os<br />

que a consideram como um movimento<br />

superficial restrito a um círculo pequeno<br />

de intelectuais.<br />

A primeira tese está representada por<br />

historiadores como Tocqueville, Paul<br />

tiazard, Gustave Lanson e em certa<br />

medida, Daniel Mornet. Mo segundo<br />

pag. 178, jan/dez 1995<br />

grupo, Darnton identifica uma tendência<br />

dos Annales que aplica um princípio de<br />

Lucien Febvre, que atravessa toda a<br />

história literária, segundo o qual o livro<br />

gera um 'atraso'. A inércia sufocaria o<br />

espírito de inovação no quadro da<br />

cultura literária do Antigo Regime e<br />

quanto maior o número de livros, mais<br />

a inércia se instalaria, entravando o<br />

progresso. Assim, a despeito do<br />

crescente interesse pelas publicações<br />

científicas, os franceses em sua maioria<br />

continuaram a ler os livros clássicos e<br />

religiosos que liam seus pais. A<br />

conseqüência de todo este raciocínio é<br />

que as Luzes não penetraram nas<br />

correntes mais profundas da cultura<br />

tradicional, constituindo um fenômeno<br />

superficial sem efeito sobre a maioria<br />

dos indivíduos. 22<br />

O estudo de uma única obra não<br />

permite avaliar a influência exercida<br />

pelo livro em geral, adverte Darnton,<br />

tarefa que ele desdobrará no conjunto<br />

de sua obra, pesquisando o universo da<br />

literatura clandestina através dos<br />

diversos gêneros que a compõe.<br />

Conforme ele elabora no capítulo "Os<br />

leitores respondem a Rousseau: a<br />

fabricação da sensibilidade<br />

romântica" 23:<br />

"quando os philosophes empreenderam<br />

a conquista do mundo, com o seu<br />

mapeamento, sabiam que o sucesso<br />

dependeria de sua habilidade em<br />

imprimir sua visão de mundo nas<br />

mentes de seus leitores. Mas como


ocorreria esta operação? O que, de<br />

fato, era a leitura na França do século<br />

XVIII?'.<br />

Responder a esta questão, compreender<br />

esta experiência que nos é tão familiar<br />

e no entanto tão distante<br />

historicamente, eqüivale a "penetrar em<br />

um mistério mais profundo - saber como<br />

as pessoas se orientam no mundo de<br />

símbolos tecido em torno delas por sua<br />

cultura". 24<br />

Um dos veículos para este mundo são<br />

as fontes utilizadas por Darnton em suas<br />

pesquisas, destacando-se os arquivos da<br />

Société Typographique de Meuchãtel,<br />

uma casa editora suiça. Mais do que as<br />

fontes impressas ou que os documentos<br />

oficiais de Estado, os arquivos das casas<br />

editoras permitem um contato com o<br />

mundo dos livros tal como ele era no<br />

século XVIII. Ainda que estes<br />

documentos não permitam uma idéia<br />

exata da história do livro propriamente,<br />

desde já podemos saber que Voltaire e<br />

Rousseau são endereçados a um vasto<br />

público e que o sucesso da<br />

Encyclopédie testemunha o atrativo que<br />

as Luzes representam para as classes<br />

superiores e médias, senão para as<br />

massas que fazem a Revolução.<br />

Nào é um fenômeno restrito a França,<br />

mas mesmo que os estudos estatísticos<br />

náo possam ser efetuados para outros<br />

países (refere-se aos lugares mais<br />

'distantes' como Ásia e América), pode-<br />

se perceber a realidade do mercado de<br />

livros. Os livreiros sabem que<br />

V o<br />

participam de um vasto processo pelo<br />

qual as idéias repercutem através das<br />

artérias comerciais e se infiltram em<br />

todos os recantos do continente. Sabem<br />

que são os agentes das Luzes, porque<br />

vêem na difusão destas idéias, uma<br />

"mina de ouro" 25 a ser explorada. Ao<br />

trabalhar com o mercado da<br />

comercialização do livro, Darnton<br />

realiza aquela que é uma de suas<br />

propostas metodológicas, a de um<br />

sistema de comunicação onde figuram<br />

diversos personagens como artesãos,<br />

operários, livreiros, editores, todos eles<br />

participantes da Comédia humana. É na<br />

comercialização da obra, na relaçào<br />

entre oferta e demanda que cerca a<br />

publicação e circulação da Encyclopédie<br />

em suas diversas edições, da primeira<br />

até a Encyclopédie méthodique de<br />

Panckoucke, que ele localiza uma<br />

primeira relação entre o livro e o espírito<br />

capitalista, e é na 'ferocidade' dos<br />

editores que se confirmam os dados<br />

estatísticos: há uma avidez pelo<br />

2 6<br />

enciclopedismo.<br />

No entanto, é também na própria<br />

afirmação do grande alcance das Luzes,<br />

que o autor inicia uma espécie de<br />

caminho de volta, náo no sentido de sua<br />

relativização, mas do rompimento de<br />

uma relação direta e automática entre a<br />

Encyclopédie e a Revolução Francesa.<br />

Ou seja, que ela não nos responde sobre<br />

as origens intelectuais e ideológicas do<br />

processo desencadeado em 1789. A<br />

obra é muito vasta e nào podemos saber<br />

que tipo de influência terá tido sobre<br />

Acervo. Rio dc Janeiro, v 8. n* 1-2, p. 167-182. jan/dez 1995 pagl79


A C E<br />

seus leitores e muito menos afirmar que<br />

a leitura de suas milhares de páginas os<br />

impregnou de jacobinismo. Contudo,<br />

seu sucesso editorial nos permite<br />

perceber que<br />

para o público do século XVIII a obra<br />

representa um modelo de coerência.<br />

Ela mostra que o conhecimento é<br />

ordenado e não caótico, que o principio<br />

diretor é a razão (...) enfim que os<br />

critérios racionais aplicados às<br />

instituições contemporâneas<br />

contribuem para desmascarar a<br />

insensatez e a iniqüidade. 27<br />

Mais do que um produto de intelectuais<br />

'corajosos', as Luzes filosóficas - fossem<br />

ou não um produto do refinamento<br />

burguês ou, por outro lado, empresa da<br />

nobreza e da burguesia de Estado ou<br />

ainda um produto que circula em<br />

grandes proporções como mostra a<br />

história da Encyclopédie - compõem um<br />

mundo que se desintegrou ainda<br />

naquele século, e do qual retém<br />

pag. 180. jan/dez 1995<br />

continuidades, linhas que podem ser<br />

traçadas entre a edição de Diderot e a<br />

de Panckoucke, das academias reais ao<br />

Instituto nacional ou ainda do<br />

enciclopedismo ao jacobinismo, como<br />

assinala Darnton em sua conclusão de<br />

faventure de /'Encyclopédie. no<br />

entanto, ele apostará no caráter<br />

igualmente significativo das rupturas.<br />

Seu sentido está no deslocamento de<br />

um sistema cultural:<br />

A Revolução aboliu o privilégio, principio<br />

fundamental do Antigo Regime, depois<br />

ela reconstruiu uma nova ordem em<br />

torno dos princípios da liberdade e<br />

igualdade. Essas abstrações podem<br />

parecer vazias hoje em dia, mas elas<br />

tiveram um sentido crucial para a<br />

geração revolucionária da França. A<br />

história da Encyclopédie mostra como<br />

elas se expressaram no papel,<br />

disseminadas na ordem social,<br />

encarnadas nas instituições e integradas<br />

a uma nova visào de mundo. 2*


V o<br />

M O T A S<br />

1. DARNTON, Robert. L aventure de 1'Encyclopédie, 1775-1800: un best seller au<br />

siècle des Lumières. Paris: Librairie Académique Perrin, 1982.<br />

2. Idem, ibidem, p. 30.<br />

3. Idem, ibidem, p. 24.<br />

4. DARNTON, R. Oens de lettres, gens de livre. Paris: Éditions Odile Jacob, 1992, p. 10.<br />

5. Observamos que a Encyclopédie é realizada por Gens de lettres.<br />

6. DARNTON, R.Gens de lettres, gens de livre, op. cit., p. 121.<br />

7. Idem, ibidem, p. 8.<br />

8. Idem, ibidem, p. 125.<br />

9. DARNTON, R. Edição e sedição; o universo da literatura clandestina no século<br />

XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 161.<br />

10. DARNTON, R. faventure de /'Encyclopédie, op. cit., p. 30.<br />

11. O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> possui a edição completa da Encyclopédie, 1751-1780.<br />

12. DARNTON, R. Gens de lettres, gens de livre, op.cit., p. 160.<br />

13. DARNTON, R. "História da leitura". In: BURKE, Peter (org). A escrita-da história.<br />

São Paulo: Unesp, 1992, p. 229. Este texto encontra-se também no livro O beijo<br />

de Lamourette, de R. Darnton. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />

14. DARNTON, R. Gens de lettres, gens de livres, op. cit., p. 163.<br />

15. Idem, ibidem, pp. 160-161.<br />

16. Idem, ibidem, p. 164.<br />

17. LADURIE, E. Le Roy. "Préface". In: DARNTON, R. Laventure de l'Encyclopédie,<br />

op. cit., p. 12.<br />

18. Idem, ibidem, p. 12.<br />

19. Idem, ibidem, p. 16.<br />

20. Idem, ibidem, p. 19.<br />

21. DARNTON, R. faventure de 1'Encyclopédie, op. cit., p. 559.<br />

22. Idem, ibidem, p. 567.<br />

23. DARNTON, R. "Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação da sensibilidade<br />

romântica". In: O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Qraal, 1986.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n« 1-2, p. 167-182, jan/dez 1995 - pag. 181


24. Idem, ibidem, p. 227.<br />

25. DARNTON, R. L'aventure de 1'Encyclopédie, op. cit., p. 570.<br />

26. Idem, ibidem, p. 571.<br />

27. Idem, ibidem, p. 580.<br />

28. Idem, ibidem, p. 587.<br />

A B S T R A C T<br />

This article proposes to address Robert Darntons work and his discussion about the<br />

history of reading, based on the analysis conducted by this author, of the publishing<br />

of Diderots and D'Alembert's Encyclopédie and its subsequent reprints, in the<br />

framework of the Ancien Regime and the French Revolution, having the intellectual<br />

orders of the revolution as its focai point.<br />

R É S U M É<br />

Cet article prétend discuter 1'oeuvre de Robert Darnton et ses considérations sur<br />

lhistoire de la lecture, à partir de lanalyse faite par 1'auter de la publication de<br />

l'Encyclopédie, de Diderot et D'Alembert, de ses éditions postérieures, dans le cadre<br />

de 1'Ancien Regime et de la Revolution Française et a comme point central les ordres<br />

intellectuels de Ia Revolution.<br />

pag. 182, Jan/diz 1995


Nireu Oliveira Cavalcanti<br />

Arquiteto e professor da UFF e USU. Doutorando em História no IFCS-UTRJ.<br />

A livraria do Teixeira e a<br />

circulação de livros na cidade<br />

do Rio de JaneirOo em 1794<br />

No Relatório d<br />

governo do vice-r«<br />

Luís de Vasconcel<br />

consta que na cidade do Rio de<br />

Janeiro, entre 1779 e 1789,<br />

funcionavam quatro oficinas de<br />

livreiros. 1 Já os Almanaques de 1792 e<br />

de 1794 registram apenas uma loja<br />

enquanto o de 1799 registra duas. 2 Ho<br />

entanto, nesses documentos não são<br />

discriminados quem eram os livreiros<br />

proprietários dessas lojas ou oficinas.<br />

De imediato surge a indagação: Por que<br />

essa diminuição no número de lojas<br />

entre 1779 e 1799 se nesse período a<br />

população crescera e a cidade se<br />

expandira ? Teria havido critérios<br />

diferenciados de parte de quem<br />

cadastrou essas lojas? Teriam optado,<br />

os que organizaram o Relatório,<br />

por uma visão inclusiva -<br />

englobando comerciantes de<br />

livros, bem como restauradores e<br />

encadernadores - enquanto aqueles que<br />

elaboraram os Almanaques consideraram<br />

apenas os que efetivamente<br />

comercializavam os livros? Haveria por<br />

acaso essa especialização, diferenciando<br />

o livreiro que comercializa, daquele<br />

considerado artífice? Em busca de<br />

esclarecimento recorri às obras de Rubens<br />

Borba de Morais, Wilson Martins e José<br />

Teixeira de Oliveira que foram muito úteis<br />

quanto à abordagem da questão geral da<br />

cultura dominante da cidade no período<br />

setecentista, mas pouco esclarecedoras<br />

no tocante aos livreiros do Rio de Janeiro<br />

nesse período. 3 Através da obra de<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p. 183-194. jan/dez 1993 - pag 183


A C E<br />

Morais tomei conhecimento da atividade<br />

de um livreiro de Vila Rica, chamado<br />

Manuel Ribeiro dos Santos, que atuava<br />

em meados do século XVIII. Segundo<br />

esse autor o negociante era um misto<br />

de livreiro e de dono de empório:<br />

Ma loja de Ribeiro Santos vendiam-se<br />

os produtos da terra e artigos<br />

importados tais como tecidos ( baetas,<br />

bretanhas),chapéus, botas, cobertores,<br />

cera, velas etc. Ma mesma carta em<br />

que encomendava livros ao seu<br />

correspondente em Lisboa pedia outras<br />

mercadorias como um<br />

relógio de parede de autor (fabricante,<br />

diríamos hoje) ... Ribeiro dos Santos,<br />

pelo que se depreende de suas cartas,<br />

tinha biblioteca particular,<br />

principalmente de livros de direito. As<br />

cartas revelam conhecimento<br />

bibliográfico e certo gosto pelos<br />

exemplares bem encadernados ... hão<br />

de ser das imprensas (ediçào, dizemos<br />

hoje) as mais modernas e últimas e que<br />

nenhum seja impresso senão de 1720<br />

em diante, com títulos dourados nas<br />

costas. Os mais dourados e melhores;<br />

todos novos e nenhum usado e pelo<br />

estado de terra se costumam<br />

geralmente vender, e estando alguns<br />

mais caros por falta das imprensas<br />

(esgotados) não venhal 4<br />

Ora, se esse livreiro de Vila Rica era tão<br />

sofisticado e exigente, assim como<br />

deviam ser os consumidores, no<br />

mínimo teriam o mesmo nível os<br />

livreiros do Rio de Janeiro e a sua<br />

pag. 184. jan/dez 1995<br />

população consumidora de livros. Era a<br />

cidade do Rio, nesse período, a segunda<br />

mais importante do Brasil e por onde<br />

passava todo o comércio mineiro com<br />

o Reino. Possuía um excelente mercado<br />

consumidor formado de funcionários<br />

dos diversos órgãos do poder público, de<br />

magistrados, militares graduados,<br />

botânicos, músicos e cirurgiões, boticários,<br />

físicos, de artistas como os músicos e os<br />

atores. Também de professores e seus<br />

alunos, artífices, negociantes e, porque<br />

não, dos leitores que compravam livros pelo<br />

prazer da leitura.<br />

É evidente que se não houvesse um<br />

dinâmico ambiente cultural no Rio de<br />

Janeiro organizações como as<br />

Academias não se viabilizariam. A<br />

primeira delas foi criada em 6 de maio<br />

de 1936, com o título de Academia dos<br />

Felizes. Era composta de 30 membros<br />

sob a presidência do cirurgião-mor<br />

Mateus Saraiva. Funcionou por quatro<br />

anos protegida pelo conde de Bobadela.<br />

Após o encerramento dessa entidade só<br />

se tem notícia de uma outra<br />

funcionando, no ano de 1772. Messe<br />

ano, a 18 de fevereiro, houve a<br />

inauguração da Academia Fluviense<br />

Médica, Cirúrgica, Botânica,<br />

Farmacêutica ou Sociedade de História<br />

natural do Rio de Janeiro (resumindo<br />

Academia Científica do Rio de Janeiro).<br />

Funcionou por um tempo maior do que<br />

a anterior vindo a ser extinta em 1779.<br />

É importante ressaltar que essa<br />

Academia Científica é anterior à da<br />

Corte, que teve o seu estatuto aprovado


pelo Aviso Régio de 24 de dezembro de<br />

1779 com o título de Academia das<br />

Ciências de Lisboa.<br />

A presidência da Academia fluminense<br />

coube ao físico José Henrique Ferreira,<br />

autor de vários trabalhos científicos. 5 O<br />

protetor dessa entidade foi o marquês de<br />

Lavradio, governante ilustrado que muito<br />

incentivou o desenvolvimento científico e<br />

tecnológico na capitania do Rio de Janeiro,<br />

como se depreende de seu Relatório. 6 Esse<br />

vice-rei foi quem criou o primeiro horto<br />

botânico na capitania, nomeando para<br />

dirigi-lo o acadêmico Joaquim José<br />

Henrique de Paiva.<br />

A terceira e última Academia do Rio<br />

colonial de que se tem registro foi<br />

IMITAÇÃO<br />

DE CHRÍSTO.<br />

L I V R O I.<br />

ATO» ata aovmà.wnm 1 ip», çu»<br />

CAPITULO L<br />

Da imitação d* Càriito pelo d**preto<br />

dê iodas a* v atilada s do<br />

»<br />

'% Qrgkf me ttgtte não anda em<br />

trevo*. Slo palarra* com duo<br />

ÍMU ÇÊristo nos txhorta k imitação<br />

d* «dl Viil* e dos «cai<br />

Imitação de Cristo, de Thomas A. Kempis.<br />

V o<br />

fundada no governo do vice-rei Luís de<br />

Vasconcelos. A sessão inaugural ocorreu<br />

em 6 de junho de 1786. Para presidi-la<br />

foi eleito o cirurgião Ildefonso José da<br />

Costa Abreu. Essa Sociedade funcionou<br />

na residência do professor-régio e poeta<br />

Manuel Inácio da Silva Alvarenga situada<br />

na rua do Cano (atual Sete de<br />

Setembro). Com o término do governo<br />

de Luís de Vasconcelos também se<br />

extingue a Sociedade Literária. Anos<br />

depois o novo vice-rei, o conde de<br />

Rezende, incentivou a reabertura da<br />

Sociedade o que veio a ocorrer no ano<br />

de 1794 sob a presidência de Silva<br />

Alvarenga. Coube ao próprio conde de<br />

Rezende, no mesmo ano, extingui-la em<br />

decorrência de denúncias do rábula<br />

José Bernardo da Silva Frade e do<br />

carpinteiro Manuel Pereira Landim.<br />

Segundo estes delatores, nas reuniões<br />

da Sociedade eram discutidas idéias<br />

francesas. Entre os presos da Devassa<br />

de 1794 estavam o presidente Silva<br />

Alvarenga e o jovem bacharel Mariano<br />

José Pereira da Fonseca, futuro marquês<br />

de Maricá. 7<br />

Infelizmente essa documentaçào sobre<br />

as Academias não traz qualquer<br />

referência quanto aos livreiros da cidade<br />

do Rio de Janeiro, nesse período. A<br />

escassez documental sobre eles talvez<br />

explique o porquê de os trabalhos<br />

sobre o assunto livreiros só lhes dar<br />

ênfase após o período da chegada da<br />

Corte no Rio de Janeiro, em 1808.<br />

Ao pesquisar no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> o<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8. n» 1 -2, p. 183-194. jan/dez 1995 - pag. 185


fichário de inventários post-mortem em<br />

busca de dados sobre um proprietário<br />

de chácara em Laranjeiras, encontrei<br />

entre os diversos documentos a ele<br />

referentes uma parte que tratava dos<br />

bens de seu sogro José de Sousa<br />

Teixeira. 8 Para minha surpresa e emoção<br />

o referido Teixeira era proprietário de<br />

uma loja onde se vendiam livros,<br />

estando os mesmos ali relacionados!<br />

O 'acaso' tinha posto em minhas mãos<br />

uma das trilhas para o desvendamento<br />

da grande incógnita de como se dava o<br />

comércio livreiro e quem era o<br />

proprietário da loja citada no<br />

Almanaque de 1794.<br />

Os avaliadores dividiram o estoque da<br />

loja em blocos: um classificou como<br />

'livros' de cuja listagem ainda<br />

constavam mapas, estampas, óperas e<br />

óculos; o outro foi listado como<br />

'fazenda' contendo a relação dos<br />

diversos tecidos, de botões, de fios para<br />

sapateiro, de lenços, meias, bocetas<br />

(pequena caixa de papelão ou madeira)<br />

e machetes (sabre, faca de mato usada<br />

na África ou instrumento musical tipo<br />

cavaquinho como também uma<br />

pequena viola). O estoque foi avaliado<br />

em 2.534$560 réis, cabendo aos 'livros'<br />

a importância de 1.389$480 réis.<br />

Comparando o valor do estoque da loja<br />

do Teixeira com o da loja de tecidos<br />

(fazenda seca) de Manuel Rodrigues dos<br />

Santos, falecido em 1794, que alcança<br />

o montante de 13.442$576 réis,<br />

podemos supor que essa livraria<br />

deveria, nesse período, ser considerada<br />

pag. 186, Jan/dez 199S<br />

C E<br />

Imitação de Cristo, de Thomas A. Kempls.<br />

um negócio de pouca monta.<br />

A diversificação das mercadorias à<br />

venda na loja do Teixeira é bem<br />

assemelhada à do livreiro de Vila Rica,<br />

Manuel Ribeiro dos Santos, mostrando<br />

que tanto na da cidade do Rio de Janeiro<br />

quanto na de Minas Gerais não ocorria<br />

a especialização que hoje estamos<br />

acostumados a ver. Essa<br />

heterogeneidade de atividades<br />

comerciais empreendidas por um<br />

mesmo 'homem de negócios' é muito<br />

freqüente durante o período colonial na<br />

cidade do Rio de Janeiro. Para esses<br />

negociantes a percepção de que<br />

determinada transação comercial<br />

poderia gerar lucros atraentes levava-os<br />

a participarem daquele negócio. Até<br />

mesmo pessoas que dispunham de


ecursos mas que nào tinham casa<br />

comercial estabelecida poderiam se<br />

transformar em negociantes. É o caso,<br />

por exemplo, do padre José da Silva<br />

Brandão que em 1805 arrematou, por<br />

1.097$046, um lote de tecidos de seda,<br />

em leilão no Real Armazém da Fazenda,<br />

do conjunto de mercadorias apreen­<br />

didas aos contrabandistas. 9<br />

Segundo Francisco da Gama Caieiro o<br />

mercado livreiro na década de noventa do<br />

século XVIII "continuava volumoso e firme,<br />

tanto em Portugual como no Brasil". O autor<br />

cita o caso do negociante de 'grosso trato'<br />

da praça do Rio de Janeiro de nome Antônio<br />

Luís Fernandes que escreveu para seu<br />

correspondente em Lisboa sugerindo: "Se<br />

V.Mercê quizer mandar-me por sua conta<br />

um sortimento de livros ... não deixará de<br />

fazer-lhe boa conta, e se o fizer cuido que<br />

não se arrependerá" (...). 10 Também anotei<br />

outros comerciantes exportadores como<br />

Manuel Pinheiro Guimarães que solicitou<br />

licença a Real Mesa Censória para importar<br />

alguns livros listados. Como o mesmo nào<br />

afirma tratar-se de livros para seu uso é<br />

possível que os tenha comprado para<br />

revendê-los ou para atender pedido de<br />

amigo ou familiar.<br />

O mercado livreiro no Rio de Janeiro era<br />

tão promissor que comportava a<br />

convivência da loja do Teixeira com<br />

outras fontes de abastecimento de<br />

livros. A maneira mais tradicional de<br />

uma pessoa adquiri-los era recorrendo<br />

a um amigo ou familiar que morasse no<br />

Reino ou que daí se deslocasse para o<br />

V o<br />

Rio de Janeiro, como fez o jovem<br />

médico Cláudio Grugel do Amaral que<br />

escreveu, em 1679, do Rio para um<br />

amigo em Lisboa solicitando-lhe que<br />

comprasse até 70$000 réis em livros<br />

segundo a lista que enviara, ou o nosso<br />

cientista e professor-régio João Manso<br />

Pereira que solicitou livros ao frei José<br />

Mariano da Conceição Veloso que se<br />

encontrava em Lisboa."<br />

Outra via muito usada era a encomenda<br />

direta a livreiros estabelecidos no Reino.<br />

Na documentação da Real Mesa<br />

Censória existente no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />

da Torre do Tombo encontram-se listas<br />

de livros enviados para o Rio de Janeiro<br />

pelos mais importantes livreiros de<br />

Lisboa como Leandro dos Reis Carril,<br />

João Batista Reycende, viúva Mallen 8r<br />

Cia, Diogo Bomgeoris, Paulo Martim,<br />

Borel St Borel, viúva Bertrand e filho,<br />

Francisco Rolland, Pedro José Reis, Luís<br />

Cipriano Rebello, os padres oratorianos<br />

e outros. Não se deve desprezar a<br />

contribuição dos fornecedores não<br />

oficiais e não legalizados que faziam<br />

parte da tripulação ou eram passageiros<br />

de algum navio que atracara no porto<br />

do Rio de Janeiro, como foi o caso do<br />

cirurgião do navio Ulisses, que trouxe<br />

consigo sete obras de medicina para<br />

vendê-las. O professor-régio e poeta<br />

Manuel Inácio da Silva Alvarenga em seu<br />

depoimento quando preso na Devassa<br />

de 1794 declarara que adquirira de um<br />

marujo o livro proibido Direitos do<br />

cidadão, do abade Mably, e de um inglês<br />

que passara pelo Rio, vindo da Bahia, o<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n« 1 -2. p. 183-194. jan/dez 1995 - pag. 187


A C E<br />

exemplar do jornal Mercúrio. Por fim,<br />

para cá vieram os filhos de Paulo<br />

Martim, o primeiro em 1799 de nome<br />

Paulo Agostinho Martim e em 1806 o<br />

jovem Inácio Augusto Martim.<br />

Acompanhando Paulo Martim, veio<br />

Francisco Rolland. 12 Esses jovens que<br />

para cá vieram pertenciam a famílias<br />

francesas que se estabeleceram como<br />

1 3<br />

livreiros em Lisboa, a partir de 1727.<br />

A Congregação dos padres oratorianos<br />

que editava várias obras didáticas de<br />

autoria de seus religiosos e as famosas<br />

'Folhinhas' mantinha também intenso e<br />

rendoso comércio desses seus produtos<br />

com o Brasil. No caso do Rio de Janeiro,<br />

os seus comissários - isto é, quem tinha<br />

o privilégio da representação aqui - eram<br />

Biblioteca lusitana, de Diogo Barbosa Machado.<br />

pag 188. jan/dez 1995<br />

Manuel da Rocha Pereira e Manuel<br />

Thiatonio Rodrigues Carvalho. Com a<br />

morte de ambos passou a ser<br />

comissário o cirurgião Luis Borges<br />

Salgado (antigo membro da Sociedade<br />

Científica do Rio de Janeiro). Este<br />

falecera em 1789 e no seu lugar<br />

assumiu Antônio Jacinto Machado, um<br />

atacadista com loja na rua dos<br />

Pescadores (atual Visconde de<br />

Inhaúma).<br />

A correspondência mantida entre os<br />

oratorianos e Antônio J.M. nos traz<br />

informações preciosas sobre o comércio<br />

realizado. Em uma delas esse<br />

negociante descreve a dificuldade que<br />

está tendo para receber o resto de dívida<br />

que os falecidos e anteriores


R V O<br />

comissários tinham com a Congregação<br />

dos Oratorianos. Em outra traz duas<br />

importantes informações, a primeira<br />

sobre a existência de livreiros na cidade<br />

do Rio de Janeiro e da dificuldade para<br />

a venda de algumas obras. Ele diz num<br />

trecho da carta:<br />

Mo que respeita os novos métodos, que V.P.<br />

me diz aqui, há bastante pelos livreiros, e<br />

julgo que pouca saída poderào ter, só sendo<br />

com alguma diminuição no preço que os<br />

ditos os vendem, para assim agradarem os<br />

compradores. Das folhinhas que recebi da<br />

viúva, por serem fora do tempo, só tenho<br />

vendido 7$600 réis, que por ser uma<br />

bagatela não faço dela promessa que será<br />

junta com as do ano que vem (...)<br />

A segunda informação discrimina a área<br />

de atuação desse vendedor:<br />

...e de novo me ofereço a dizer-lhe que<br />

conferindo as folhinhas do ano de<br />

1791 acho que vieram certas, e tendo<br />

as remetido para Goiás, Sào Paulo, Vila<br />

Rica, Mariana e as mais partes onde<br />

se coStuma venderem-se na capitania<br />

das Gerais,- só não tem havido<br />

condutores para as levarem à de Mato<br />

Grosso, pois como é a parte mais longe<br />

deste estado, são dificultosos, e os que<br />

este ano vieram a esta cidade já tinham<br />

voltado quando chegaram as<br />

mencionadas Folhinhas; motivo este<br />

porque não foram (...)<br />

O referido Antônio J.M. alertou aos<br />

oratorianos para que enviassem as<br />

'Folhinhas' em tempo hábil, de no<br />

mínimo dois meses, antes de iniciar o<br />

ano correspondente, para que o mesmo<br />

possa enviá-las às regiões mais<br />

distantes, a tempo de evitar que elas<br />

encalhem porque "depois que passa o<br />

primeiro e segundo mês do ano" os<br />

compradores já não as querem. 14<br />

Os 'livros' de então<br />

Os 'livros' da livraria do Teixeira<br />

correspondem a 383 títulos de obras<br />

diferentes. Resumindo todos os itens<br />

desse estoque, montei o seguinte<br />

quadro:<br />

a - obras diversas (383 títulos) - 6.975<br />

unidades<br />

b- cartilhas - 198 unidades<br />

c - taboadas - 4 'mãos'<br />

d - atos de várias comédias e óperas<br />

453 unidades<br />

e - mapas : coleções de 5 unidades -<br />

16 coleções<br />

jogos avulsos - 8 unidades<br />

mapa de bandeiras - 1 unidade<br />

f - estampas e santos - 406 unidades<br />

g- livros velhos - 37 unidades<br />

h- papel mata-borrão - 45 'mãos'<br />

i - óculos - 1 caixa<br />

O conjunto desses 383 títulos<br />

apresenta-se num rico leque de<br />

conteúdos variados, o que garante à loja<br />

do Teixeira atender aos interesses e<br />

gostos diferenciados do público<br />

adquirente. Os que irão iniciar a<br />

alfabetização poderão adquirir a<br />

Acervo, Rio de Janeiro. V. B, n* 1-2. p. 183-194. jan/dez 199S-pag.l89


A C E<br />

BIBLIOTHECA<br />

L U S I T A N A ,<br />

Hiftorica , Critica , e Chronologica,<br />

NA QUAL SE COMPREHENDE A NOTICIA<br />

lios Authorcs Portuguezes, e du Obrai, que compozcraõ<br />

üeíJc o tempo da promulgação da Lcy da Graça até<br />

o tempo preicote |<br />

y POR<br />

DIOGO BARBOSA<br />

MACHADO»<br />

Vhffiponenfe, Abbade Refervatario da Paroquial<br />

^ ígreja de Santo Adriaò de Sever, e Acadêmico<br />

do Numero da Academia Reai.<br />

T O M O IV.<br />

Q_CE CONSTA DE MUITOS AUTHOR.ES KOYAMEKTE<br />

vaüosado. tu IbUtethco, c it outro» iÍluftnj, e eme niii» , unfttio»<br />

BOI cm Tomoi preiitikouí.<br />

LISBOA,<br />

Ka Oncina Patriarcal


R V O<br />

Engenheiro português, de Manuel de<br />

Azevedo fortes. Há obras militares como<br />

Arquitetura militar, de Antonhinho, a<br />

Arte militar, e Instrução de cavalaria, de<br />

Antônio Pereira Rego. Há livros de<br />

medicina, botânica, livros didáticos<br />

como a Gramática de Vernei, dicionários<br />

de francês e latim como o de Antônio<br />

de Morais e Silva. A história está<br />

representada pelas obras de Bossuet,<br />

Jacques Benigne , Millot e Plavius<br />

Josephus com sua História dos judeus.<br />

Quanto às obras biográficas há a de<br />

Alexandre Magno, de dom Joào de<br />

Castro, do infante dom Henrique e de<br />

vários santos. A literatura está muito<br />

bem contemplada com as poesias de<br />

Camões, as de f rancisco de Pina e Melo,<br />

de Luiz Rafael Soyé, Domingos<br />

nascimento Torres, Vasco Mousinho de<br />

Quevedo Castelo Branco, com seu<br />

poema heróico Afonso africano e a<br />

monumental obra de Diogo Barbosa<br />

Machado, a Biblioteca lusitana.<br />

Obviamente não poderiam faltar os<br />

livros de filosofia, moral, aconse­<br />

lhamento aos jovens, boas maneiras,<br />

provérbios e adágios, e até o censurado<br />

pela Igreja Lunário perpétuo, contendo<br />

informações astrológicas.<br />

A análise do conteúdo e da importância<br />

cultural do conjunto dessas obras só<br />

poderá ser realizada após a<br />

identificação de cada uma delas. É um<br />

trabalho que demandará muito tempo<br />

e pesquisa, até porque há casos em que<br />

a escrita está incompreensível e outros<br />

cujo título sumário tipo Seleta latina<br />

têm mais de um autor. Há outras<br />

situações de dúvidas em que se faz<br />

necessário a consulta a especialista da<br />

área de que trata a obra. Por essas<br />

razões a identificaçào do material ainda<br />

não foi concluída.<br />

Sem dúvida esse documento, que<br />

revelou a existência da livraria de José<br />

de Sousa Teixeira, funcionando na<br />

cidade do Rio de Janeiro, em 1794,<br />

ajudará em muito a esclarecer como se<br />

processava o comércio livreiro na cidade<br />

e, mais ainda, como era o seu ambiente<br />

cultural. Podemos supor que o rol<br />

desses títulos poderia ser bem maior e<br />

mais variado considerando-se que o<br />

livreiro Teixeira, quando se deu esse<br />

processo, estava doente e com mais de<br />

70 anos, segundo o seu genro. A essas<br />

condições adversas e desincentivadoras<br />

para a prática de um comércio dinâmico,<br />

devemos acrescentar o efeito negativo<br />

sobre a cidade e a população<br />

consumidora de livros da Devassa de<br />

Minas e da de 1794, em que foram presos<br />

vários intelectuais do Rio de Janeiro, em<br />

alguns casos simplesmente por possuírem<br />

um livro censurado pela Metrópole.<br />

Meu interesse na questão do comércio<br />

e circulação de livros e sobre as<br />

bibliotecas, na cidade do Rio de Janeiro,<br />

no período setecentista. se deu de forma<br />

tangencial ao trabalho de pesquisa que<br />

estou desenvolvendo para elaboração<br />

de tese de doutoramento em História<br />

Urbana referente a esta cidade, no<br />

período de 1750 a 1810.<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n a 1 -2, p. 183-194, jan/dez 1995 - pag. 191


N O<br />

1. MEMÓRIAS públicas e econômicas da cidade de Sào Sebastião do Rio de Janeiro<br />

para o uso do vice-rei Luís de Vasconcelos, por observação curiosa dos anos de<br />

1779 até o de 1789. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,<br />

Tomo XLVI1, Rio de Janeiro, 1884.<br />

2. ALMANAQUES da cidade do Rio'de Janeiro para os anos de 1792 e 1794. In:<br />

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 266; ALMANAQUE<br />

histórico da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1799. In: Revista do<br />

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 2 1.<br />

3. MORAIS, Rubens Borba. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro:<br />

Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: S.C.C.T. do Estado de São Paulo, 1979;<br />

MART1MS, Wilson. História da inteligência brasileira. Vol. I (1550-1794). São Paulo:<br />

Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977-78; OLIVEIRA, José Teixeira de.<br />

A fascinante história do livro. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora Ltda., 1984-<br />

89, vol. IV.<br />

4. MORAIS, Rubens Borba, op. cit, p. 40.<br />

5. José Henrique Ferreira, natural de Castelo Branco, Portugual, formou-se em<br />

filosofia e medicina na Universidade de Coimbra, em 1762. Foi sócio<br />

correspondente das Sociedades de Medicina de Madri e de Estocolmo assim como<br />

da Academia das Ciências de Lisboa. Entre outras obras publicou Memória sobre<br />

a Guaxima-, discurso crítico, em que se mostra o dano que têm feito aos doentes<br />

os remédios de segredo e composições ocultas etc.<br />

6. RELATÓRIO do marquês do Lavradio. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico<br />

Brasileiro, vol. 4 e 76, 1842 e 1884.<br />

7. Sobre as Academias, além das obras citadas de Rubens Borba Morais, Wilson<br />

Martins e José Teixeira de Oliveira, consultar: CARVALHO, Augusto da Silva. "As<br />

academias científicas do Brasil no século XVIH". In: Memórias da Academia das<br />

Ciências de Lisboa. Lisboa, 1939; DIAS, Maria Odila da Silva. "Aspectos da<br />

Ilustração no Brasil". In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,<br />

vol. 273. Sobre a Devassa de 1794 consultar: AMAIS da Biblioteca Macional. Vol.<br />

LX1, 1939, pp. 247 a 523; AUTOS da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro,<br />

1 794. Rio de Janeiro: <strong>Arquivo</strong> Público do Estado do Rio de Janeiro, 1 994; SAMTOS,<br />

pag .192, jan/dez 1995


K V O<br />

Afonso Carlos Marques dos. íio rascunho da Nação: Inconfidência no Rio de<br />

Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura/Departamento Qeral de<br />

Documentação e Informação Cultural, 1992, Biblioteca Carioca, vol. 22; LYRA,<br />

Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império; Portugual e Brasil:<br />

bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras Ltda., 1994.<br />

8. ARQUIVO nacional. Inventário post-mortem. Maria Joaquina de Oliveira. Caixa<br />

1.827, n. 9.263.<br />

9. ARQUIVO nacional. Junta do Comércio, códice 142, vol. 1.<br />

10. CAIE1RO, Francisco da Gama. "Livros e livreiros franceses em Lisboa, nos fins de<br />

setecentos e no primeiro quartel do século XIX". In: Boi. Bibl. Universidade de<br />

Coimbra, 35, 1980, pp. 139 a 168.<br />

11. ARQUIVO nacional da Torre do Tombo. MSS - 245 - n. 141 (a carta de Cláudio<br />

Grugel do Amaral) e MSS, cx. 153 (os livros que foram adquiridos por João Manso Pereira):<br />

a - Annales de chymic - e uma coleção em brochura de várias memórias<br />

químicas de diferentes autores - 8 a<br />

b - Chymic - par Foureroy<br />

c - Recherches sur les vegetaux - par Parmentier - 1 vol. 8 g<br />

d - Analyse du fer- par Bergmam - 1 vol. 8°<br />

e - Affinites chymiques - par Bergmam - 1 vol. 8°<br />

f - Recreations physiques, economique e chymiques de M. Model,<br />

traduit de Allemand - 2 vol. 8 9<br />

g - Institutions chemic - Francisci de Wasergerg - 2 vol. 8°<br />

h - Demonstração das grandes utilidades e das fracas, e tecelagem de algodão<br />

em Portugual - brochura - 1 vol. 4 9<br />

i - Dicionário da Língua do Brasil - brochura - 25 vols. 4 9<br />

12. nEVES, Lúcia Maria Bastos das. "Comércio de livros e censura de idéias: a atividade dos<br />

livreiros franceses no Brasil e a vigilância da Mesa do Desembargo do Paço ( 1 795-1822)".<br />

In: Ler História, 23, 1992, pp. 61 a 78.<br />

13. DOMinGOS, Manuela D. "Colporteurs ou livreiros? Acerca do comércio livreiro em Lisboa".<br />

In: Revista da Biblioteca nacional. Lisboa: S. 2, 6 (1) 1991, pp. 109 a 142.<br />

14. ARQUIVO nacional da Torre do Tombo. MSS, cx. 9.<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8. n' 1-2, p 183-194, jan/dez 1995-pag,193


A B S T R A C T<br />

The article reviews the trade, circulation and forms of purchase of books and, as a<br />

consequence, what was read in Rio de Janeiro during the last decade of the 18th<br />

century.<br />

This study is based in unpublished documents of the National Archives containing<br />

the inventory of José de Sousa Teixeira's shop, where books were sold.<br />

R É S U M É<br />

L'article fait une analyse du commerce, de la circulation et des diverses formes<br />

d'acquisition de livres, bref, de ce que l'on lisait à la ville de Rio de Janeiro pendant<br />

la dernière décennie du XVIIIè siècle.<br />

Cette analyse est basée sur une documentation inédite appartenant au patrimoine<br />

des Archives Nationales, dans laquelle figure 1'inventaire de 1'établissement de José<br />

de Sousa Teixeira, oú l'on vendait des livres.<br />

pag 194. Jan/dez 1995


P E R F I L I N S T I T U C I O N A L<br />

O:<br />

Real Qabinete Português<br />

de Leitura foi criado em<br />

14 de maio de 1837 - 15<br />

anos depois da Independência do<br />

Brasil - por um grupo de<br />

portugueses que se propunha não<br />

só a promover o enriquecimento<br />

intelectual dos associados, mas<br />

também, como escreveu Carlos Malheiro<br />

Dias, "concorrer para restaurar a glória<br />

literária de sua Pátria". Poi seu primeiro<br />

presidente o dr. José Marcelino da<br />

Rocha Cabral, advogado e jornalista,<br />

que se exilara por causa da guerra entre<br />

liberais e miguelistas em Portugal.<br />

A instituição funcionou em vários locais<br />

do centro do Rio de Janeiro: rua São<br />

Pedro, rua da Quitanda, rua dos<br />

Beneditinos - até que em 1880 começou<br />

.Real G&fcineée<br />

Poré © F t n i g u i e s ie Leií e i c n i r a<br />

Antônio Gomes da Costa<br />

Presidente<br />

a ser construído o majestoso<br />

edifício manuelino da rua Luiz de<br />

Camões, n 9 30 - antiga rua da<br />

Lampadosa - onde, em 1887, com<br />

a presença da princesa Isabel e do<br />

conde d'Eu, foi inaugurada a sua<br />

sede atual. Mo ano seguinte, procedeu-<br />

se à 'instalação solene da biblioteca' e<br />

é nessa altura que Joaquim rfabuco,<br />

saudando o imperador d.Pedro I e<br />

realçando o significado da Obra, o<br />

patriotismo dos que a fizeram e a beleza<br />

do traço arquitetônico, pronunciou uma<br />

frase inesquecível: "As pedras deste<br />

edifício parecem estrofes d'Os<br />

Lusíadas'. O autor do projeto foi o<br />

arquiteto português Raphael da Silva e<br />

Castro e os recursos para a construção<br />

foram conseguidos através de donativos<br />

Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n« 1-2. p. 195-198, Jan/dez 1995 -pag 195


pag. 196. jan/dez 1995


K V O<br />

e contribuições dos portugueses do Rio<br />

de Janeiro.<br />

Durante a campanha para a obtenção<br />

desses recursos, o visconde de São<br />

Cristóvão exortava os seus<br />

compatriotas: "O Gabinete Português de<br />

Leitura carece tanto de um edifício<br />

próprio, como as sociedades de<br />

Beneficiência Portuguesa e a Caixa de<br />

Socorros D. Pedro V carecem de renda<br />

para a sua manutenção, a primeira; e a<br />

segunda de um asilo que seja grande<br />

como grande é a sua missão caritativa".<br />

E em correspondência ao conselheiro<br />

do Reino de Portugal, José da Silva<br />

Mendes Leal, em 26 de maio de 1872,<br />

Reinaldo Carlos Montoro mobilizava a<br />

'colônia': "É chegada a hora de realizar<br />

um grande adiantamento entre os<br />

portugueses do Brasil...Os terrenos com<br />

a vastidão e proporções requeridas já<br />

foram adquiridos e em breve pode<br />

erguer-se no bairro das artes e dos<br />

estudos mais este templo de ciência."<br />

A beleza do edifício e o valioso acervo<br />

bibliográfico, que atingia milhares de<br />

obras, muitas delas raras e de<br />

inestimável valor, desde um exemplar<br />

da edição prínceps de Os Lusíadas às<br />

Ordenações de D. Manuel, editadas em<br />

1521, de autoria de Jacob Cromberger,<br />

passaram a dar ao Gabinete Português<br />

de Leitura uma nova dimensão, que em<br />

grande parte também advinha do<br />

prestígio e da influência de uma pléiade<br />

de portugueses, como Eduardo Lemos,<br />

José Duarte Ramalho Ortigáo, visconde<br />

de Sào João da Madeira, conde de<br />

Avelar, e tantos outros, todos eles<br />

'varões prestantes' que se entregaram<br />

por inteiro ao serviço e enriquecimento<br />

da instituição. A Academia Brasileira de<br />

Letras, sob a presidência de Machado<br />

de Assis, realizou em sua sede as<br />

primeiras sessões; Ramiz Galváo<br />

procedeu ao trabalho de catalogaçào da<br />

biblioteca; o rei d. Carlos concedeu-lhe<br />

o título de 'Real' e a diretoria, em 1900,<br />

abriu as portas da biblioteca a todos os<br />

que a desejassem freqüentar.<br />

Dos anos de 1920 a 1950, o Real<br />

Gabinete atravessou um período<br />

marcado pela administração de Albino<br />

Sousa Cruz que, tendo a seu lado o<br />

conhecido escritor Carlos Malheiro Dias,<br />

realizou um trabalho notável, que se<br />

distinguiu, sobretudo, pelo projeto de<br />

edição da história da colonização<br />

portuguesa no Brasil, na qual<br />

colaboraram figuras proeminentes da<br />

história, da ciência e da arte.<br />

Graças a um decreto de Oliveira Salazar.<br />

o Real Gabinete é considerado<br />

'depósito legal' desde 1936, o que lhe<br />

enseja receber um exemplar dos livros<br />

editados em Portugal. Graças a esse<br />

privilégio, a sua biblioteca é anualmente<br />

ampliada com milhares de obras,<br />

mantendo-se atualizada com o que se<br />

publica naquele país. A atual diretoria<br />

procedeu à informatização do acervo,<br />

com cerca de 350.000 volumes, e hoje<br />

o leitor faz suas consultas e tem acesso<br />

ao banco de dados através da rede e dos<br />

Acervo. Rio de Janeiro, v. 8, n' 1 -2. p. 195-198. jan/dez 1995 - pag 197


terminais instalados na biblioteca.<br />

O Real Gabinete edita semestralmente a<br />

revista Convergência Lusíada, distribuída por<br />

universidades e outras associações culturais<br />

e científicas, e que tem a colaboração exímia<br />

e valiosa de mestres e especialistas do Brasil<br />

e de Portugal nas áreas da literatura, da<br />

história, do pensamento, da língua e da<br />

0<br />

antropologia.<br />

Neste momento, está em curso a<br />

instalação de um espaço de multimídia<br />

com produtos culturais luso-brasileiros.<br />

No Real Gabinete funciona ainda o Centro<br />

de Estudos, onde se realizam cursos e<br />

palestras, além de concertos e exibição de<br />

filmes e vídeos, sendo que todas essas<br />

atividades são voltadas especialmente para<br />

estudantes universitários.<br />

A esta altura, qualquer cidadão dos<br />

países lusófonos pode ser sócio do Real<br />

Interior da biblioteca.<br />

Gabinete e entre os seus direitos estão o de<br />

utilizar os serviços da biblioteca, participar<br />

dos cursos e atividades do Centro de Estudos<br />

e do Centro Cultural, receber a revista<br />

Convergência Lusíada e ter acesso às mais<br />

importantes bibliotecas de Portugal como<br />

VIP-Real Gabinete'.<br />

A B S T R A C T<br />

This article depicts the history of the Real Gabinete Português de Leitura, an institution<br />

located in Rio de Janeiro and considered as "official depository", which grants it the<br />

privilege of receiving a copy of ali the books published in Portugal, lts library holds currently<br />

a valuable inventory of about 350.000 volumes and is fully computerized.<br />

R É S U M É<br />

Cet article nous donne une vision historique du Real Gabinete Português de Leitura<br />

(Cabinet Royal Portugais de Lecture), institution située à Rio de Janeiro et considérée<br />

comme "dépôt legal", ce qui lui permettait de recevoir un exemplai/e de tous les<br />

livres édités au Portugal. Actuellement sa bibliothèque, entièrement informatisée, a<br />

un patrimoine de grande vaieur, avec à peu près 350.000 volumes.<br />

pag 198. jan/dez 1995


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Bibliografia organizada pela Divisão de Pesquisa e Promoções Culturais do <strong>Arquivo</strong><br />

<strong>Nacional</strong>.<br />

pag.202. jan/dez 1995


Neste número<br />

Antônio Gomes da Costa<br />

Berenice Cavalcante<br />

Cláudia Heynemann<br />

Lorelai Brilhante Kury e Oswaldo Munteal Filho<br />

Lúcia Maria Bastos P. Neves<br />

Luiz Carlos Villalta *<br />

Marcos Alexandre Motta<br />

Maria do Carmo Teixeira Rainho<br />

Nireu Oliveira Cavalcanti<br />

Paulo Gomes Leite<br />

Roger Chartier<br />

Robert Darnton<br />

Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />

700-X ARQUIVO NACIONAL

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