21.06.2013 Views

Homenagem a Marcelo Rubens Paiva Concurso de Contos Petros

Homenagem a Marcelo Rubens Paiva Concurso de Contos Petros

Homenagem a Marcelo Rubens Paiva Concurso de Contos Petros

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

<strong>Homenagem</strong> a <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>


P497c<br />

Copyright © 2012 by Fundação Petrobras <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social – <strong>Petros</strong><br />

Todos os direitos reservados incluindo os <strong>de</strong> reprodução<br />

no todo ou em parte sob qualquer forma.<br />

Fundação Petrobras <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social – <strong>Petros</strong><br />

Rua do Ouvidor, 98 – Centro<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ – CEP 20040-030<br />

www.petros.com.br<br />

Impresso no Brasil – Tiragem: 2.000 exemplares<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> contos <strong>Petros</strong>: homenagem a <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong><br />

<strong>Paiva</strong>. – Fundação <strong>Petros</strong>: Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2012.<br />

104 p.; il.<br />

Impressão:<br />

Grafi tto Gráfi ca e Editora Ltda.<br />

Rua Costa Lobo, 352 – Triagem<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ – CEP 20911-180<br />

Tel.: (21) 3505-6666<br />

www.grafi ttografi ca.com.br<br />

1. <strong>Contos</strong> Brasileiros – Crônicas. 2. Literatura Brasileira. 3.<br />

Crônicas Brasileiras. I. Título.<br />

CDU 869.0813


<strong>Homenagem</strong> a <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong><br />

A Diretoria Executiva da <strong>Petros</strong> agra<strong>de</strong>ce a todos<br />

que têm contribuído para o sucesso <strong>de</strong>ste concurso literário.


“A gran<strong>de</strong> diferença entre construção e criação<br />

é exatamente essa: uma coisa construída só<br />

po<strong>de</strong> ser amada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pronta; mas uma<br />

coisa criada é amada antes mesmo <strong>de</strong> existir.”<br />

Charles Dickens


Sumário<br />

9


10<br />

Apresentação<br />

<strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong><br />

<strong>Contos</strong> Selecionados<br />

10º lugar | A Matriz<br />

Adnelson Borges <strong>de</strong> Campos<br />

9º lugar | Autoengano<br />

Bruno Alexandre Sieczko Guzzo<br />

8º lugar | O Guarda-Chuva<br />

Nelson Choueri Júnior<br />

7º lugar | De Chegadas e Partidas<br />

Cleo <strong>de</strong> Oliveira<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Sumário<br />

6º lugar | Casagran<strong>de</strong><br />

Eduardo Domingues<br />

10<br />

15<br />

31<br />

32<br />

40<br />

46<br />

54<br />

60


5º lugar | Alegrete, <strong>de</strong> Trem<br />

Luís Eduardo Neves<br />

4º lugar | O Canário<br />

Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

3º lugar | Regra <strong>de</strong> Três<br />

Luís Fernando Lima <strong>de</strong> Brito<br />

2º lugar | Conto <strong>de</strong> Fadas<br />

Flávio Cesar <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Júnior<br />

1º lugar | A Gaiola<br />

Eber Veríssimo Rocha<br />

68<br />

74<br />

84<br />

90<br />

96<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 11


12<br />

A presente coletânea reúne os melhores trabalhos do XII<br />

<strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>, <strong>de</strong> acordo com os critérios adotados<br />

pela Comissão Julgadora. Na primeira fase <strong>de</strong> avaliação, todos<br />

os textos foram examinados pelos vencedores das edições do<br />

concurso em 2009, 2010 e 2011 – João Mattos, Maria Beatriz Santos<br />

e João Paulo Vaz, respectivamente. Eles selecionaram, então, 30<br />

contos. Na última etapa, o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony<br />

analisou toda a produção dos fi nalistas, sendo conferida, então, a<br />

classifi cação <strong>de</strong>fi nitiva.<br />

Contista, cronista, tradutor, roteirista e jornalista, Cony é um<br />

dos autores mais premiados da literatura brasileira. São <strong>de</strong>le,<br />

entre outras obras, os romances Tijolo <strong>de</strong> Segurança, que ganhou<br />

o Prêmio Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida; Quase Memória, laureado<br />

com o Prêmio Jabuti; O Piano e a Orquestra, contemplado com o<br />

Prêmio Nestlé. Membro da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, Cony<br />

não economizou elogios ao conjunto da obra, ressaltando a<br />

qualida<strong>de</strong> dos trabalhos. Da mesma forma, <strong>de</strong>stacou o alto nível<br />

e o rigor do júri.<br />

Os premiados neste XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> po<strong>de</strong>m se sentir<br />

orgulhosos do que escreveram. E assim dar asas à imaginação, alçando<br />

voos ainda mais altos, pois agora contam com uma chancela <strong>de</strong> peso.<br />

Com a carreira <strong>de</strong> quase 40 anos no campo literário, Cony<br />

tem experiência como jurado em vários prêmios semelhantes,<br />

inclusive no exterior. Diz que por vezes encontra coisas muito<br />

boas, mas isoladamente. Segundo palavras do próprio autor, os<br />

jurados po<strong>de</strong>riam ter escolhido qualquer um dos fi nalistas, que<br />

não cometeriam qualquer injustiça.<br />

Cony consi<strong>de</strong>ra o concurso uma iniciativa digna <strong>de</strong> louvores.<br />

Recorda-se <strong>de</strong> que, quando começou a se <strong>de</strong>dicar à literatura, não<br />

existia essa tendência <strong>de</strong> promover autores jovens. Ele avalia que,<br />

<strong>de</strong>vido ao incentivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas como <strong>Petros</strong>, Petrobras<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Apresentação


e outras, está sendo possível uma gran<strong>de</strong> renovação <strong>de</strong> valores na<br />

literatura, na música, no cinema e no teatro.<br />

Processo Criativo<br />

Para ele, o conto é um dos mais difíceis gêneros literários. O<br />

escritor faz uma analogia com o boxe, em que o romance é uma<br />

luta <strong>de</strong>cidida por pontos enquanto o conto <strong>de</strong>ve ser por nocaute<br />

– do contrário é melhor não fazê-lo.<br />

Contar boas histórias não é tarefa fácil. Entre a frase <strong>de</strong> abertura<br />

e o ponto fi nal, a síndrome do papel em branco, a volatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ias inicialmente fantásticas que po<strong>de</strong>m redundar em clichês,<br />

o excesso <strong>de</strong> cenas que ameaçam <strong>de</strong>sfocar o xis da questão,<br />

são situações que atormentam os autores. Transformar um<br />

agrupamento <strong>de</strong> palavras em poesia ou prosa é consequência <strong>de</strong><br />

esforço incessante, boa dose <strong>de</strong> conhecimento, técnica apurada,<br />

criativida<strong>de</strong> e verve literária.<br />

Vários fatores norteiam o trabalho do escritor, quase sempre<br />

solitário em sua jornada. O mais instigante e arrebatador talvez<br />

seja a coragem <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar levar pela onda criativa que impulsiona<br />

a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar histórias.<br />

Exige-se <strong>de</strong>sse autor, na construção <strong>de</strong> suas composições, certa<br />

tensão e harmonia entre o dito e o não dito, entre o ser e o não ser,<br />

entre a ilusão e a verossimilhança.<br />

O mesmo conceito <strong>de</strong> onda criativa serviu <strong>de</strong> inspiração para<br />

o projeto gráfi co do livro. Foram utilizadas curvas que se tocam,<br />

se distanciam, envolvem e se manifestam no processo criativo. As<br />

ondas po<strong>de</strong>m ter extensões, formas e intensida<strong>de</strong>s diferentes. Fluem<br />

naturalmente ou jorram, trazendo consigo o manancial caótico<br />

necessário para revelar uma história digna <strong>de</strong>ssa abundância <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias.<br />

Despertar <strong>de</strong> Talentos<br />

Assim, o XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> encerra mais um<br />

capítulo <strong>de</strong>sta bela história protagonizada pela Fundação –<br />

estimular a literatura brasileira e a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos talentos<br />

entre seus participantes.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 13


14<br />

Nosso projeto literário recebeu, ao longo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma<br />

década, cerca <strong>de</strong> 3 mil histórias, mostrando outro lado da<br />

expressão humana dos participantes. A experiência relatada<br />

por José Carlos Laviola Júnior na primeira edição do evento<br />

exemplifi ca, <strong>de</strong> maneira singular, como o gosto pela literatura<br />

po<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r as condições mais adversas. Em 2000, ele<br />

trabalhava na Petrobras como técnico <strong>de</strong> turbinas em plataformas<br />

marítimas, em Macaé, RJ. Disse à época que o gosto pela leitura<br />

surgiu “<strong>de</strong> tanto ler os manuais <strong>de</strong> treinamentos para espantar<br />

a solidão”. Seu texto A Água Suja conquistou o quinto lugar<br />

naquela ocasião.<br />

João Paulo Vaz, único a vencer o concurso duas vezes, já publicou<br />

quatro livros e hoje promove ofi cinas literárias. Segundo ele, o<br />

estímulo da <strong>Petros</strong> foi fundamental na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se à<br />

literatura. Engenheiro eletrônico, com mestrado em Ciência da<br />

Computação, trabalhou como analista <strong>de</strong> sistemas na Petrobras<br />

entre 1973 e 1999.<br />

Depois da aposentadoria foi buscar outros campos <strong>de</strong><br />

conhecimento e resolveu fazer pós-graduação em Filosofia<br />

Contemporânea. Em sua primeira participação no concurso não<br />

fi gurou entre os fi nalistas, mas a experiência o levou a inscreverse<br />

em uma ofi cina <strong>de</strong> contos. Des<strong>de</strong> então, como concorrente ou<br />

como jurado, participou <strong>de</strong> todos os concursos da <strong>Petros</strong>.<br />

Mas o melhor <strong>de</strong> tudo é que a qualida<strong>de</strong> do material, não sua<br />

quantida<strong>de</strong>, ganhou mais <strong>de</strong>staque. Os escritores José Castello,<br />

Antônio Torres e Alcione Araújo foram alguns intelectuais<br />

encarregados <strong>de</strong> escolher os melhores a cada ano. E, ao fi m do<br />

trabalho, eles disseram o mesmo que Cony, agora pelo segundo<br />

ano consecutivo, sobre o nível do nosso time <strong>de</strong> participantes<br />

fi ccionistas.<br />

Em 2012, o <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> <strong>de</strong>cidiu prestar<br />

homenagem a um inovador da literatura brasileira, surgido há<br />

pouco mais <strong>de</strong> 30 anos. Com uma nova linguagem, e por conta<br />

disso, já em seu livro <strong>de</strong> estreia, Feliz Ano Velho, não só ganhou<br />

prêmios como se tornou o recordista <strong>de</strong> vendas da década <strong>de</strong> 1980.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


Estamos falando <strong>de</strong> <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>, que, além <strong>de</strong> escritor,<br />

jornalista e blogueiro, é um respeitado dramaturgo, diretor teatral<br />

e roteirista <strong>de</strong> cinema.<br />

Nossos contistas, como se vê, estão em excelente companhia.<br />

Estamos certos <strong>de</strong> que os leitores também apreciarão o resultado<br />

fi nal reunido nesta coletânea do XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>.<br />

Boa leitura!<br />

Diretoria Executiva<br />

Dezembro <strong>de</strong> 2012<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 15


Homenageado<br />

17


18<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

<strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>


<strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong><br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 19


20<br />

Escritor, autor teatral, roteirista e jornalista, <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong><br />

<strong>Paiva</strong> sempre <strong>de</strong>staca, nas entrevistas que conce<strong>de</strong> a veículos<br />

impressos e eletrônicos, duas situações que o chocam muito:<br />

o baixíssimo índice <strong>de</strong> leitura entre os brasileiros e a gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spreocupação nacional ainda existente com a acessibilida<strong>de</strong> para<br />

os portadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>fi ciências.<br />

Não podia ser diferente na conversa <strong>de</strong> hora e meia que ele teve,<br />

dia 3 <strong>de</strong> agosto passado, com nossos colegas da <strong>Petros</strong> Charles<br />

Nascimento e Márcio Araujo. Conversa que aconteceu exatos 12<br />

dias <strong>de</strong>pois que <strong>Marcelo</strong>, literalmente, foi esquecido, como bagagem,<br />

a bordo <strong>de</strong> um avião da TAM que o levara do Rio <strong>de</strong> Janeiro para<br />

São Paulo.<br />

O episódio aconteceu no domingo, 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2012, e<br />

foi preciso que <strong>Marcelo</strong> recorresse a seus seguidores no Twitter<br />

para que os tripulantes fossem buscá-lo, 25 minutos <strong>de</strong>pois do<br />

<strong>de</strong>sembarque em Congonhas.<br />

Dez minutos após ter postado seu recado, recebeu a seguinte<br />

mensagem da companhia aérea: “Oi, <strong>Marcelo</strong>! Po<strong>de</strong>ria por gentileza<br />

<strong>de</strong>talhar via DM (mensagem privada) o que exatamente ocorreu para<br />

que possamos lhe auxiliar? Obrigado!”. Mais 15 minutos se passaram<br />

até chegar o socorro.<br />

Motivo da <strong>de</strong>mora: além <strong>de</strong>le, outros quatro <strong>de</strong>fi cientes físicos<br />

<strong>de</strong>sembarcavam no aeroporto, quase no mesmo horário. Em terra,<br />

fi cou sabendo que a TAM possuía apenas um elevador para ca<strong>de</strong>irantes.<br />

Em sua trajetória <strong>de</strong> tetraplégico, <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong> levou<br />

pouco tempo para apren<strong>de</strong>r que era preciso lutar por tais direitos.<br />

Afi nal, <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong>les para sobreviver.<br />

O assunto, porém, que nosso homenageado <strong>de</strong>ste XII <strong>Concurso</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>, autor <strong>de</strong> <strong>de</strong>z livros, fez questão <strong>de</strong> enfatizar foi<br />

o vergonhoso <strong>de</strong>scaso brasileiro com a leitura, o escasso número<br />

<strong>de</strong> livrarias até em cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> porte médio e o pouco incentivo das<br />

escolas e das famílias ao hábito <strong>de</strong> ler entre as crianças e adolescentes.<br />

“Capitais on<strong>de</strong> estive há alguns anos, como Porto Velho, em<br />

Rondônia, e Palmas, em Tocantins, não tinham uma só livraria<br />

na época. Hoje, sei que já existem”.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


Tudo isso o incomoda muito. <strong>Marcelo</strong> tem sobrinhos morando<br />

na Europa e, há algum tempo, <strong>de</strong>scobriu que pelo menos um <strong>de</strong><br />

seus jovens parentes, na França, lê ainda mais do que ele, que é,<br />

reconhecidamente, um leitor voraz.<br />

“Na França, até para conseguir namorado ou namorada, os<br />

jovens precisam ler, precisam assistir a bons fi lmes, frequentar<br />

teatros. Caso contrário, não rola o namoro. Aqui temos o tempo<br />

inteiro propaganda <strong>de</strong> cerveja e <strong>de</strong> mulher gostosa. Na França, é<br />

preciso ler para paquerar uma menina”, conta ele.<br />

Algo que o incomoda muito no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em São Paulo e<br />

em outras gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, é a necessida<strong>de</strong> que os jovens sentem<br />

das “baladas”, <strong>de</strong> saírem quase todas as noites para conversar e<br />

beber chopinho com os amigos.<br />

Nascido em 1º <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1959, <strong>Marcelo</strong> nunca teve problema com<br />

os livros. No colégio Santa Cruz, em São Paulo, a <strong>de</strong>dicação à leitura<br />

era obrigatória, especialmente a leitura voltada mais à fi losofi a.<br />

Em casa, a mãe também sempre o estimulou muito. E o pai,<br />

da mesma forma, até a fatídica manhã <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1971.<br />

<strong>Marcelo</strong> tinha 11 anos quando seis militares invadiram sua casa,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, e levaram preso o ex-<strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral <strong>Rubens</strong><br />

Beirodt <strong>Paiva</strong>. Ele era odiado pela extrema-direita porque tivera<br />

participação ativa na famosa CPI do IBAD (Instituto Brasileiro<br />

<strong>de</strong> Ação Democrática), em 1963, que comprovara pagamentos<br />

em dólares a conspiradores civis e militares que, no ano seguinte,<br />

ajudaram a <strong>de</strong>rrubar o governo <strong>de</strong>mocrático do presi<strong>de</strong>nte João<br />

Goulart. O IBAD era uma organização anticomunista suspeita <strong>de</strong><br />

receber fi nanciamento da Agência Central <strong>de</strong> Inteligência (CIA).<br />

A festa do padroeiro da cida<strong>de</strong>, São Sebastião, caíra justo naquela<br />

quarta-feira. A família se preparava para curtir a manhã do feriado<br />

na praia carioca mais conhecida do mundo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Tom Jobim<br />

e Vinicius <strong>de</strong> Moraes compuseram a canção sobre a beleza <strong>de</strong> uma<br />

garota a caminho do mar. Moravam em Ipanema, zona sul do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro.<br />

<strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong> tentou aparentar tranquilida<strong>de</strong> para não assustar<br />

ainda mais a mulher, Eunice, e os cinco fi lhos – Vera, Eliana, Ana Lúcia,<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 21


22<br />

Maria Beatriz e <strong>Marcelo</strong>. Pediu aos sequestradores até permissão para<br />

levar uns charutos. Os próprios captores <strong>de</strong>ram a enten<strong>de</strong>r que ele<br />

apenas cumpriria algumas formalida<strong>de</strong>s.<br />

O que aconteceu exatamente naqueles dias <strong>de</strong> medo e angústia?<br />

O menino não percebeu a truculência dos militares. Pouco antes<br />

<strong>de</strong>les chegarem, <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>, com o mandato cassado pelo golpe<br />

<strong>de</strong> 1964, recebera um telefonema estranho. Alguém queria lhe<br />

entregar uma correspondência vinda do Chile.<br />

No dia seguinte, quinta-feira, com a casa ocupada por aquela gente<br />

estranha, Eunice e a fi lha Eliana, <strong>de</strong> 15 anos, também foram levadas.<br />

A adolescente, cujo interrogatório varou a madrugada, voltou<br />

exausta, no dia seguinte. O retorno <strong>de</strong> Eunice <strong>Paiva</strong>, submetida a<br />

torturas físicas e psicológicas, só se daria 12 dias <strong>de</strong>pois. <strong>Marcelo</strong> foi<br />

bem tratado. Um dos criminosos até jogara botão com o menino.<br />

Nunca mais Eunice, <strong>Marcelo</strong> e suas quatro irmãs veriam o pai,<br />

um dos 183 <strong>de</strong>saparecidos políticos durante a ditadura, visto pela<br />

última vez num local <strong>de</strong> torturas em Petrópolis (RJ), conhecido<br />

como “Casa da Morte”.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


O tempo passou e a vida não podia ser mais a mesma para<br />

os <strong>Paiva</strong>. Oito anos mais tar<strong>de</strong>, seriam atingidos por outro<br />

acontecimento trágico. Dessa vez, a vítima era o único fi lho homem<br />

<strong>de</strong> Eunice.<br />

Aos 20 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, estudante <strong>de</strong> Engenharia Agrícola na<br />

Unicamp, em Campinas, on<strong>de</strong> a família passou a morar, <strong>Marcelo</strong><br />

saiu com os amigos para um passeio em Barão Geraldo, o bairro<br />

ver<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se situa a universida<strong>de</strong>.<br />

Foi numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sexta-feira, 14 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1979. Ele conta<br />

o que aconteceu em seu livro <strong>de</strong> estreia, Feliz Ano Velho:<br />

“Subi numa pedra e gritei: – Aí, Gregor, vou <strong>de</strong>scobrir o tesouro<br />

que você escon<strong>de</strong>u aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei<br />

com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi<br />

a melodia: biiiiin.”<br />

O mergulho <strong>de</strong> cabeça na lagoa rasa não lhe tirou a vida, mas o<br />

<strong>de</strong>ixou tetraplégico. Fraturou a medula e uma vértebra do pescoço.<br />

Foram 12 meses <strong>de</strong> uma recuperação lenta e dolorosa, com<br />

muitos dias e noites passados numa UTI. Mas a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 23


24<br />

sobreviver e o medo <strong>de</strong> se transformar em um vegetal se aliaram<br />

às sessões intensas <strong>de</strong> fi sioterapia e terapia ocupacional, e logo<br />

os melhores resultados possíveis surgiram: embora com muita<br />

difi culda<strong>de</strong>, ele voltou a movimentar um pouco os braços, as mãos<br />

e os <strong>de</strong>dos.<br />

<strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong> diz que, provavelmente, não teria se<br />

tornado um escritor se não fosse o aci<strong>de</strong>nte.<br />

Antes do aci<strong>de</strong>nte, queria ser engenheiro – o pai também o fora<br />

– mas o jornalismo sempre esteve por perto. Após sua cassação,<br />

<strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong> trabalhou no Última Hora, <strong>de</strong> Samuel Wainer, e<br />

fundou o Jornal <strong>de</strong> Debates junto com o amigo Fernando Gasparian.<br />

Conviveu com muitos jornalistas, amigos do pai. Alguns <strong>de</strong> seus<br />

próprios amigos eram fi lhos <strong>de</strong>les – <strong>de</strong> Hélio Fernan<strong>de</strong>s, Millôr<br />

Fernan<strong>de</strong>s, Ziraldo, entre outros. Mas ainda pensava na carreira <strong>de</strong><br />

engenheiro. Isso, evi<strong>de</strong>ntemente, não o impediria <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver<br />

outras ativida<strong>de</strong>s: escrever contos, peças teatrais, letras <strong>de</strong> música.<br />

Porém, somente <strong>de</strong>pois do aci<strong>de</strong>nte é que escrever virou uma profi ssão.<br />

Restabelecido, já se adaptando à nova vida <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>irante, trancou<br />

a matrícula na Unicamp. Fez novo vestibular e passou para a ECA,<br />

a Escola <strong>de</strong> Comunicação e Arte da USP. Fora <strong>de</strong> aula, continuou a<br />

vida normalmente – lendo, escrevendo e namorando muito também.<br />

Começou a escrever na publicação Leia Livros. O editor Caio<br />

Graco gostou muito <strong>de</strong> seu estilo, que sofria infl uência da literatura<br />

beat <strong>de</strong> J.D. Salinger e Jack Kerouac.<br />

No Brasil, ainda não havia ninguém fazendo essa literatura<br />

jovem, un<strong>de</strong>rground, com temas e personagens outsi<strong>de</strong>rs. A<br />

literatura brasileira era um mercado fechado, <strong>de</strong> poucos leitores e<br />

poucos autores, em geral acadêmicos.<br />

Poucos fugiam <strong>de</strong>sse script, sendo o caso mais notável o <strong>de</strong> Jorge<br />

Amado, que por não se enquadrar tanto e ter partido para a busca<br />

<strong>de</strong> leitores, passou a ser tachado <strong>de</strong> comercial.<br />

Caio Graco criou, em sua Editora Brasiliense, uma coleção que<br />

fez história – Cantadas Literárias – e saiu por aí convidando jovens<br />

autores. Reinaldo Morais foi o primeiro. Depois, foi a vez <strong>de</strong> Caio<br />

Fernando Abreu. Em seguida, <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 25


26<br />

“Talvez eu fosse apenas jornalista, se não fosse o aci<strong>de</strong>nte. Talvez<br />

estivesse ligado mais ao teatro. Talvez até mesmo me tornasse<br />

engenheiro, como eu queria no início. O aci<strong>de</strong>nte foi responsável<br />

pelo escritor que hoje sou. Fiquei surpreso <strong>de</strong> ter sido chamado para<br />

escrever um romance. Caio me convidou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler um conto<br />

meu. Eu estava, então, cursando o primeiro ano <strong>de</strong> Jornalismo na<br />

USP”, conta.<br />

<strong>Marcelo</strong> produziu cem páginas e mostrou a Caio Prado, que adorou<br />

e pediu mais cem para fechar o livro, cujo título inicial seria Do Lado<br />

<strong>de</strong> Lá dos Trilhos ou Do Outro Lado dos Trilhos, inspirado no autor<br />

teatral Eugene O’Neill, para quem a ferrovia separava dois mundos nas<br />

cida<strong>de</strong>s americanas. De um lado, os ricos, os brancos, a gente saudável,<br />

e do outro, os pobres, os negros, as putas, os <strong>de</strong>fi cientes.<br />

Seria um título muito bom, bem com a cara dos anos 1950 que<br />

<strong>Marcelo</strong> tinha em mente, se Feliz Ano Velho não fosse um título<br />

ainda melhor. Afi nal, o aci<strong>de</strong>nte acontecera a poucos dias do<br />

Natal e a duas semanas da virada <strong>de</strong> 1979 para 1980. O novo ano,<br />

certamente, não seria tão bom quanto o anterior.<br />

A coleção Cantadas Literárias é <strong>de</strong> ótima qualida<strong>de</strong>, mas as<br />

tiragens no Brasil eram, e ainda são, muito pequenas. <strong>Marcelo</strong><br />

lembra que na época estava em cartaz o fi lme Amargo Regresso,<br />

com Jane Fonda e Jon Voigt, no papel <strong>de</strong> um veterano da guerra<br />

do Vietnã que voltara paraplégico da frente <strong>de</strong> batalha.<br />

“Eu não quis ver o fi lme na época. Tinha difi culda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar com<br />

aquilo. Por isso, quando escrevi Feliz Ano Velho, achei que ninguém<br />

o leria. Quem se interessaria pela vida <strong>de</strong> um tetraplégico?”<br />

O sucesso foi uma surpresa até para o autor. Publicado em 1982,<br />

Feliz Ano Velho hoje conta com mais <strong>de</strong> 40 edições brasileiras, foi<br />

traduzido para seis idiomas (inglês, espanhol, alemão, francês, italiano<br />

e tcheco) e se converteu no livro brasileiro mais lido da década <strong>de</strong> 1980,<br />

além <strong>de</strong> virar peça teatral, dirigida por Paulo Betti, e fi lme, dirigido<br />

por Roberto Gervitz. Ganhou os prêmios Jabuti e Moinho Santista.<br />

Três anos após o aci<strong>de</strong>nte, esse livro mudou a vida <strong>de</strong> <strong>Marcelo</strong><br />

<strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong>, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se formar em Jornalismo na USP,<br />

cursou Teoria Literária na Unicamp.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


Muitos outros trabalhos vieram a seguir. O livro seguinte foi uma<br />

incursão no fantástico. Inspirado na série Além da Imaginação, ele<br />

escreveu o romance Blecaute (1986), que teve mais <strong>de</strong> 25 edições,<br />

contando a aventura <strong>de</strong> três universitários presos numa caverna<br />

que, <strong>de</strong> volta à cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scobriram que o resto do mundo<br />

havia travado.<br />

Em seguida, outro romance, Ua: brari (1990). Depois, um ensaio<br />

sobre a sexualida<strong>de</strong> feminina, As Fêmeas (1992). E, na sequência, o<br />

romance Não És Tu, Brasil (1996), inspirado na guerrilha do Vale do<br />

Ribeira, li<strong>de</strong>rada pelo capitão Carlos Lamarca, cuja tropa passara<br />

diante dos olhares <strong>de</strong> sua família, pelas terras do avô <strong>de</strong> <strong>Marcelo</strong>.<br />

O romance Bala na Agulha (1994) conta as <strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> um<br />

trafi cante brasileiro em Nova York enquanto o romance Malu <strong>de</strong><br />

Bicicleta (2003) aborda o drama <strong>de</strong> um mulherengo apaixonado<br />

pela mulher com quem casou e sobre cuja fi <strong>de</strong>lida<strong>de</strong> tem dúvidas.<br />

Depois vieram o livro <strong>de</strong> contos O Homem que Conhecia as<br />

Mulheres (2006); o romance A Segunda Vez que te Conheci (2008),<br />

sobre um jornalista que vira cafetão; e As Verda<strong>de</strong>s que Ela não Diz<br />

(2011), contos sobre amiza<strong>de</strong>s e infi <strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s.<br />

Hoje com 53 anos, <strong>Marcelo</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>Paiva</strong> acumulou também<br />

importantes contribuições à dramaturgia. Ainda nos anos 1980,<br />

foi aluno do Centro <strong>de</strong> Pesquisa Teatral do SESC <strong>de</strong> São Paulo.<br />

Escreveu a primeira peça, 525 Linhas, em 1989. Depois vieram,<br />

entre outras, Da Boca pra Fora (1998), que lhe garantiu o Prêmio<br />

Shell <strong>de</strong> melhor autor em 2000; Mais que Imperfeito (2001); Closet<br />

Show (2003); No Retrovisor (2003); e Amo-te (2006).<br />

A partir <strong>de</strong> 2009, passou a dirigir as próprias peças, tendo como<br />

primeira experiência A Noite Mais Fria do Ano. Em 2010, dirigiu O<br />

Predador Entra na Sala, <strong>de</strong> sua autoria, e Lá Fora, Algum Pássaro Dá<br />

Bom Dia, <strong>de</strong> Priscila Nicolielo. Participou <strong>de</strong> vários outros projetos<br />

teatrais e escreveu episódios para a TV.<br />

No jornalismo, foi crítico literário da Veja, passou pela Vogue<br />

e, <strong>de</strong>pois, pela Folha <strong>de</strong> S.Paulo, on<strong>de</strong> foi repórter, colunista e<br />

articulista. Des<strong>de</strong> 2004, é colunista e, ultimamente, blogueiro <strong>de</strong><br />

O Estado <strong>de</strong> S.Paulo.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 27


28<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


Feliz Ano Velho, porém, continua sendo sua gran<strong>de</strong> marca.<br />

Houve tempo em que ele nem queria mais ouvir falar na obra <strong>de</strong><br />

estreia. Hoje, mais conformado, compara a um velho e bom rock<br />

dos Rolling Stones. “É a minha Satisfaction”.<br />

<strong>Marcelo</strong> lembra que, embora paulista, passou a infância e parte<br />

da adolescência no Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> foi surfi sta, frequentador da<br />

barraca do Pepê em São Conrado. “Acho que sou mais conhecido<br />

no Rio do que em São Paulo. Quatro peças minhas saíram pela<br />

Casa da Gávea, com o Paulo Betti. E tive uma avó carioca da Rua<br />

Alice – mas não fazia programa”, brinca.<br />

O autor disse que erram totalmente os que escrevem para<br />

agradar o público.<br />

“Escrevo para me agradar. Se eu quisesse sempre agradar o<br />

público, faria outros ‘felizes anos velhos’. A única vez que retomei<br />

o assunto foi no teatro, com a peça No Retrovisor.”<br />

Outra peça <strong>de</strong>le, Da Boca pra Fora, foi sucesso recente no cinema,<br />

com o título E aí, Comeu?.<br />

Rotina, ele não tem muita. Po<strong>de</strong> escrever uma peça em uma<br />

semana e já levou seis anos para terminar um livro (Não És Tu,<br />

Brasil), enquanto outros livros fi caram prontos em poucas semanas.<br />

O que vem por aí? A pergunta foi respondida com cuidado.<br />

“Ano que vem, começo um romance que ainda estou<br />

ruminando. Já sei o começo, o meio e o fi m. Quando eu sentar<br />

para escrever, vou esquecer tudo, vou parar com tudo. Peça <strong>de</strong><br />

teatro e roteiro <strong>de</strong> fi lme não dão o mesmo trabalho. São quase<br />

como processos industriais, com o elenco dando palpites, alguns<br />

ótimos, outros nem tanto. Só faço questão <strong>de</strong> uma coisa, agora.<br />

Em todos os contratos que assino, quero participar, pois não<br />

gosto que se perca a essência <strong>de</strong> uma obra. Sempre pedi para me<br />

consultarem e não aceitei algumas coisas que colocaram <strong>de</strong>pois,<br />

cafajestadas que nem eu nem os personagens que criei seriam<br />

capazes <strong>de</strong> fazer”, observa.<br />

E <strong>de</strong>u um exemplo: E aí, comeu?. Apesar do título do fi lme,<br />

não foi originado <strong>de</strong> uma peça cafajeste. Da boca pra fora, disse,<br />

é constituída <strong>de</strong> três histórias elegantíssimas. No fi lme, teve uma<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 29


30<br />

surpresa ruim ao ler o roteiro. A adaptação incluiu três piadas que<br />

<strong>Marcelo</strong> <strong>de</strong>testou. Pediu para tirarem e foi atendido.<br />

“Não faço piadas racistas, homofóbicas ou machistas. Fujo sempre<br />

dos clichês, dos estereótipos, dos maniqueísmos. Não gosto <strong>de</strong><br />

maniqueísmos. Não é preciso ter vilões em todas as obras, por que<br />

isso? Tarantino não tem vilão, Scorsese não tem vilão, Kazan também<br />

não tinha”.<br />

Ele enten<strong>de</strong> que esse tipo <strong>de</strong> crítica não po<strong>de</strong> ser confundido<br />

com patrulha. O autor “precisa se <strong>de</strong>sapegar, pois uma adaptação<br />

é feita por outro artista, que tem o direito <strong>de</strong> intervir”. Mas quando<br />

fogem muito da obra, ele vai e pe<strong>de</strong> uma revisão. Por isso, agora<br />

quer participar <strong>de</strong> tudo.<br />

Romances dão mais trabalho, ele insiste. “É preciso parar com<br />

os outros projetos”. <strong>Marcelo</strong> faz questão <strong>de</strong> dizer que trabalha por<br />

projeto, <strong>de</strong>le ou <strong>de</strong> outras pessoas. No mesmo dia da entrevista<br />

para a <strong>Petros</strong>, logo mais, à noite, tinha uma leitura <strong>de</strong> roteiro em<br />

casa, com um elenco cheio <strong>de</strong> sugestões.<br />

E, no fi nal da conversa, novamente ele toca no tema que mais<br />

o <strong>de</strong>sgosta: a baixa priorida<strong>de</strong> à leitura.<br />

“Hoje, então, está tudo ainda mais fácil. Tem livro barato, livro<br />

emprestado pela biblioteca, livro com <strong>de</strong>sconto, livro quase <strong>de</strong><br />

graça na banca <strong>de</strong> jornal, livro no sebo. O problema não é dinheiro,<br />

nunca foi. O problema é falta <strong>de</strong> hábito. O mercado achou e muitos<br />

ainda acham que o problema é econômico, mas não é. Estou há<br />

30 anos nesse mercado e tenho certeza <strong>de</strong> uma coisa: não adianta<br />

inventar mais feiras e bienais. O que é preciso é trocar o chopinho<br />

na esquina pelo livro, pelo teatro.”<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>


XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 31


<strong>Contos</strong> Selecionados<br />

33


34<br />

A Matriz<br />

Adnelson Borges <strong>de</strong> Campos<br />

Seu interesse pelo ofício literário é relativamente recente: passaram-se<br />

apenas quatro anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia que o autor <strong>de</strong> A Matriz leu um anúncio<br />

sobre o concurso <strong>de</strong> contos na revista periódica da <strong>Petros</strong>. Além <strong>de</strong> duas<br />

participações no concurso da <strong>Petros</strong>, concorreu no Prata da Casa, um<br />

concurso interno da Petrobras. A princípio sua intenção era apenas<br />

registrar momentos <strong>de</strong> convivência familiar na infância e juventu<strong>de</strong>.<br />

“Comecei a <strong>de</strong>spejar as palavras no computador. Depois, veio o mais<br />

difícil: produzir textos <strong>de</strong> fi cção. Procurei saber como estruturar um<br />

conto e como diferenciá-los dos <strong>de</strong>mais gêneros literários.”<br />

Publicar o primeiro livro seria, segundo ele, a realização <strong>de</strong> um sonho<br />

pessoal. “Nada vale um aprendizado, um sentimento, se não pu<strong>de</strong>r ser<br />

compartilhado com os outros.”<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

10º lugar


O trabalho e a <strong>de</strong>dicação à família não lhe permitem muito tempo para<br />

escrever. Quando está um pouco angustiado, porém, é na produção <strong>de</strong><br />

novos textos que ele busca o conforto necessário. “Começo um processo<br />

que dura entre uma e duas horas, e só paro quando entendo que digitei<br />

aquilo que seria o ponto fi nal da história”, revela o autor que prefere<br />

redigir sob pressão. “Imprimo o texto, leio e em algum outro dia penso<br />

numa revisão.”<br />

Adnelson tem 49 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, é casado com Denise há mais <strong>de</strong> duas<br />

décadas e é pai <strong>de</strong> três fi lhos: Lucas (13 anos), Vinícius (12 anos) e Helena<br />

(8 anos). Na Petrobras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1986, atualmente é gerente <strong>de</strong> Segurança,<br />

Meio Ambiente e Saú<strong>de</strong> da Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Industrialização do Xisto, em<br />

São Mateus do Sul, PR.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 35 35


36<br />

A cida<strong>de</strong> está em festa. Vai ser lançada a pedra fundamental da<br />

nova igreja. Ela será linda, grandiosa, como diz a Gazeta. Acho que os<br />

padres e os políticos estão acreditando que este pedacinho <strong>de</strong> terra um<br />

dia vai ser gran<strong>de</strong>. A calmaria <strong>de</strong> hoje não traduz o que até há pouco<br />

tempo acontecia: não faz um ano estávamos brigando pelas divisas,<br />

ou matando-nos uns aos outros sem saber ao certo por quê.<br />

Lá do outro lado do mundo ainda há uma guerra, batalhas<br />

maiores, que também divi<strong>de</strong>m as pessoas e cujas consequências<br />

são sentidas aqui. Os imigrantes alemães, italianos, poloneses e<br />

ucranianos afastaram-se uns dos outros e vivem isolados em suas<br />

colônias. Tenho um vizinho russo que ainda não consegui ver, <strong>de</strong><br />

tão isolado que ele vive. Dizem que os americanos querem tomar<br />

conta do mundo, na Europa fornecem armas e aqui há o tal <strong>de</strong><br />

Percival Farquhar que constrói ferrovias e leva embora nossa<br />

ma<strong>de</strong>ira, protegido pelos pistoleiros da Lumber. Dizem que lá<br />

em Três Barras só se fala inglês e tremula a ban<strong>de</strong>ira dos Estados<br />

Unidos. Será que os governadores do Paraná e Santa Catarina não<br />

se importam com isso?<br />

Mas hoje, pelo menos na hora da missa, penso que todos estarão<br />

juntos. Temos esperança que Deus possa nos unir um pouco mais<br />

e que a nova igreja seja um marco nas nossas vidas, não apenas<br />

um monumento para <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> força política e sim um<br />

local <strong>de</strong> exaltação da fé.<br />

Lembro que há cinco anos participei da inauguração da nova<br />

ponte da estrada <strong>de</strong> ferro, que substituiu a ponte <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira levada<br />

pela enchente. Havia muita gente lá também. Foi no mesmo ano<br />

que a nossa União da Vitória virou capital do Estado das Missões e<br />

<strong>de</strong>pois voltou a ser só mais uma cida<strong>de</strong> no meio <strong>de</strong> tanta araucária.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

A Matriz


Adnelson Borges <strong>de</strong> Campos<br />

Houve um foguetório quando o trem cruzou a ponte, apitando,<br />

cuspindo fumaça e fazendo tremer os dormentes e as águas do<br />

Iguaçu. O progresso prometido pelos políticos ainda não ajudou<br />

o povo daqui, que continua à míngua e rezando para o Monge à<br />

espera <strong>de</strong> um milagre.<br />

Foi no dia do meu aniversário. Meu pai me dizia que era o<br />

melhor presente que alguém podia ganhar. Ele só não sabia que<br />

muita gente tinha morrido em nome <strong>de</strong>sse progresso.<br />

Eu sonhava em um dia me tornar um maquinista e guiar aquela<br />

locomotiva até o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, logo que o trilho seguisse em<br />

frente. Esqueci do meu sonho e só agora a ferrovia chegou a Santa<br />

Maria. Quem sabe não faço uma viagem até lá. Já pensou comprar<br />

uma passagem e viajar no vagão da primeira classe!<br />

Meu avô me contava, enquanto o trem estremecia nossos<br />

pensamentos, que quando ele era jovem, os bois é que atravessavam o<br />

Iguaçu – já há mais <strong>de</strong> 100 anos – no vau que foi <strong>de</strong>scoberto poucos<br />

metros abaixo do lugar on<strong>de</strong> hoje, em 1912, passava o trem em frente<br />

à população atenta. Não era esse pouquinho <strong>de</strong> gado que passa agora,<br />

dizia ele. Quando não existia o trem, a boiada parecia não ter fi m e<br />

preencher todo o Caminho <strong>de</strong> Viamão. Também havia muita mula<br />

transportando sal <strong>de</strong> Antonina até os campos <strong>de</strong> Palmas. Dizia que o<br />

sonho <strong>de</strong>le era seguir a tropa e conhecer Sorocaba. O avô do Beronha<br />

conseguiu fazer o percurso e disse ter cruzado muitas vezes com o<br />

Monge. Esse tal Monge <strong>de</strong>via ser mesmo um santo. Já era velhinho<br />

há cinquenta anos e contam que só morreu no ano passado na<br />

batalha do Campo <strong>de</strong> Irani. Ou será que eram várias pessoas? Uns<br />

dizem que o nome <strong>de</strong>le era João Maria, outros o chamavam <strong>de</strong> José<br />

Maria. Tem muitas cruzes por aí que dizem que foi ele quem fi ncou.<br />

Eu, o Beronha e a turma sempre bebemos da água dos pocinhos que<br />

dizem foi o Monge quem abençoou.<br />

O Beronha é meu amigo <strong>de</strong> infância. Passamos muitas tar<strong>de</strong>s<br />

nadando nas águas do Rio Vermelho, após atravessar o Iguaçu<br />

a nado ou remando um bote que nós mesmos construímos.<br />

Armávamos arapucas para pegar passarinhos e pescávamos com<br />

as re<strong>de</strong>s e espinheis que nós mesmos fazíamos.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 37


38<br />

Nesse mundo <strong>de</strong> pinheiros escolhemos um para ser a nossa<br />

referência, o ponto <strong>de</strong> encontro da turma. Ainda me lembro dos<br />

dias <strong>de</strong> outono em que catávamos pinhão caído da gran<strong>de</strong> árvore<br />

e os sapecávamos numa fogueira feita com grimpas do próprio<br />

pinheiro, ali mesmo. Nos arredores podíamos comer guavirova,<br />

ariticum ou butiá. Escolhemos bem o lugar, era mesmo especial,<br />

tanto que é lá que erguerão a igreja.<br />

Lembraremos que ali embaixo, on<strong>de</strong> construirão o altar,<br />

escon<strong>de</strong>mos as coisas <strong>de</strong> que mais gostávamos. Lá, vão fi car para<br />

sempre as minhas bolinhas <strong>de</strong> gu<strong>de</strong> que eu mesmo fi z com o barro<br />

do terreno do meu avô, a cetra do Beronha e as coisas da piazada.<br />

Aqui é quase tudo banhado, vai ser preciso muito pinheiro para<br />

a fundação da igreja. As principais construções fi caram do lado <strong>de</strong><br />

Porto União. O governo do Paraná quer novas construções, agora<br />

<strong>de</strong>sse lado dos trilhos. Uma <strong>de</strong>las será uma escola, pertinho da igreja.<br />

Ontem eu estava na bo<strong>de</strong>ga do Seu Kin<strong>de</strong>rmann e encontrei um<br />

dos garotos da turma, o Polaco. Ele fugia <strong>de</strong> casa para brincar com<br />

a gente, já que seus pais não queriam que ele se misturasse com os<br />

brasileiros. O Polaco hoje é construtor e junto com outras pessoas<br />

vai erguer a igreja nova. Dizem que ele, apesar <strong>de</strong> jovem e pouco<br />

instruído, põe muito engenheiro no bolso. O avô <strong>de</strong>le construiu<br />

muitas casas e não usava pregos, apenas fazia encaixes. Depois <strong>de</strong><br />

prontas fi cavam tão resistentes quanto as construções da cida<strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>, diziam. As casas que constroem são pontiagudas.<br />

Dizem que o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eles vieram, a Europa, é uma terra<br />

muito mais fria que a nossa e que os telhados são feitos assim para<br />

que a neve não se acumule em cima das casas. Bem diferentes das<br />

casas que tínhamos por aqui, construídas quase sem beiral.<br />

Ele era uma pessoa diferente, muito habilidoso, construía seus<br />

próprios brinquedos. Fez até um violino incrível e usava como cordas<br />

os pelos do rabo <strong>de</strong> um cavalo. A criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le surpreendia. O pai<br />

do Polaco dizia para ele que no futuro as casas seriam bem diferentes,<br />

fi cariam umas sobre as outras, como caixas <strong>de</strong> fósforo empilhadas.<br />

O Polaco, que falava trocando os artigos masculinos por femininos<br />

e tropeçando nos erres, estava incomodado com a história <strong>de</strong> uma<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

A Matriz


Adnelson Borges <strong>de</strong> Campos<br />

Irmanda<strong>de</strong> que estava se preparando para atacar as estações <strong>de</strong> trem<br />

e as serrarias. Diziam que a profecia do Monge estava se realizando,<br />

que os gafanhotos – ou melhor, os americanos – estavam dizimando<br />

as fl orestas, como previa o João Maria. Eles que faziam parte do<br />

exército <strong>de</strong> São Sebastião tinham que trazer <strong>de</strong> volta a Monarquia<br />

para que as coisas voltassem a ser como antes. Parecia tudo muito<br />

maluco, pois a estrada <strong>de</strong> ferro já tinha chegado aqui em 1905 e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

aquela época os gringos já cortavam ma<strong>de</strong>ira e carregavam muitos<br />

e muitos comboios, que mandavam para outros países.<br />

Ele estava preocupado porque os bandos também perseguiam<br />

os colonos europeus, pois estes ocupavam a terra que fora <strong>de</strong> seus<br />

antepassados e <strong>de</strong>pois confi scada pelo governo – chamavam suas<br />

terras <strong>de</strong> <strong>de</strong>volutas, e a lei as entregou aos estrangeiros. Esqueciam<br />

que na realida<strong>de</strong> a terra era dos bugres, que hoje quase nem existem<br />

mais. Os que restaram estão embrenhados nas matas mais distantes.<br />

Encostado no balcão e bebendo um copo <strong>de</strong> cachaça, um dos<br />

funcionários da ferrovia contava histórias dos fantasmas que os<br />

maquinistas encontravam nas estações, próximos das caixas d’água<br />

on<strong>de</strong> paravam para abastecer as locomotivas. Dizia que eram os<br />

espíritos dos jagunços mortos pelos vaqueanos que vagavam por<br />

lá, clamando pelas terras que lhes foram tomadas. Diziam que<br />

os tais fantasmas escondiam-se nos ocos das velhas imbuias que<br />

tinham resistido à <strong>de</strong>vastação do pessoal da Lumber. Havia uma<br />

história para cada uma das muitas curvas da ferrovia que parecia<br />

serpentear, imitando as curvas do Iguaçu e do Rio do Peixe.<br />

Fiquei pensando na briga entre os bandos, que representavam<br />

o “bem” e o “mal”. Mas afinal, quem era do bem? Acho que<br />

nenhum <strong>de</strong>les, porém, muitos inocentes <strong>de</strong>vem ter morrido sem<br />

compreen<strong>de</strong>r o que realmente acontecia. O tempo vai se encarregar,<br />

como sempre, <strong>de</strong> mostrar a verda<strong>de</strong>.<br />

A praça da futura matriz vai fi cando movimentada. Já estamos<br />

nos aproximando das três horas da tar<strong>de</strong>. Aproveito para dar<br />

uma última lustrada no sapato. Minha mãe diz que se conhece o<br />

capricho <strong>de</strong> um moço pelos sapatos que calça. Hoje é domingo,<br />

calcei os meus. A Lucinha já <strong>de</strong>ve estar quase chegando com a<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 39


40<br />

sua família, naquela charrete ver<strong>de</strong>, puxada por uma bela égua<br />

malhada, <strong>de</strong> crina escovada e cascos limpos e bem ferrados. Ela<br />

tem uma vida confortável, propiciada pelo comércio <strong>de</strong> erva-mate<br />

que seu pai instalou e que ganhou força com a ferrovia e com a<br />

navegação do rio. Emprestei o boné do meu primo, pedi para a<br />

vovó passar bem a minha camisa que a mamãe alvejou com muito<br />

carinho. Quis fi car bem apresentável. Nesta semana consegui um<br />

emprego no moinho, que fi ca aqui pertinho da praça. Quem sabe<br />

daqui a alguns anos eu não caso com a Lucinha nesta bela igreja<br />

que será erguida – dizem que vai levar alguns anos até fi car pronta.<br />

Lá vem ela, cabelos longos, rosto corado. Seu pai não nega a<br />

origem italiana e esbraveja com os meninos que correm na rua<br />

atrapalhando as charretes. O sol que hoje surgiu cedo torna a cena<br />

ainda mais bonita e aquece esta tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> outono. Já anunciaram<br />

a chegada do bispo que veio <strong>de</strong> Curitiba. Já vejo ao longe a fi gura<br />

do padre que conversa com o prefeito. Muitos os seguem agitados<br />

com o evento. Os sinos da capela em Porto União tocam para<br />

anunciar a missa campal. O céu agora está mais azul. Uma revoada<br />

<strong>de</strong> pássaros parece sinalizar algo, quem sabe melhores dias para<br />

todos nós. Espero contar boas histórias para os meus netos, quem<br />

sabe à bordo do vapor Cruzeiro ou numa das cabines do trem,<br />

cortando a Serra do Mar. Mas até lá ainda tem muita água para<br />

passar por <strong>de</strong>baixo da ponte <strong>de</strong> arcos.<br />

A cerimônia acabou. A praça voltou a fi car vazia. Um ventinho<br />

gelado começa a soprar – tenho uma boa caminhada pela frente.<br />

Acho que hoje vou pelos dormentes da estrada <strong>de</strong> ferro, assim posso<br />

me concentrar na lembrança do rosto da Lucinha, no seu sorriso<br />

que ilumina os meus pensamentos, que guia o meu caminho.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

A Matriz


Adnelson Borges <strong>de</strong> Campos<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 41


42<br />

Autoengano<br />

Bruno Alexandre Sieczko Guzzo<br />

Engenheiro eletricista, solteiro, sem fi lhos. Trabalha com Tecnologia da<br />

Informação na Petrobras Distribuidora, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Sempre gostou <strong>de</strong> escrever, mas levou tempo para perceber isso. Bruno<br />

relata que não sabia exatamente o porquê, mas gostava quando aparecia<br />

um assunto <strong>de</strong> trabalho bastante complicado, que exigia explicações<br />

textuais também complicadas.<br />

Nunca havia participado <strong>de</strong> um concurso literário e consi<strong>de</strong>ra a história<br />

<strong>de</strong>ste conto um pouco embaraçosa. “Fiquei sabendo <strong>de</strong> um concurso <strong>de</strong><br />

contos, cujo tema era uma foto. A inspiração bateu e escrevi o conto,<br />

a jato. Na hora <strong>de</strong> enviar, fi quei sabendo que o tal concurso havia se<br />

encerrado há dois anos! Depois <strong>de</strong> algumas risadas, procurei o conto<br />

ganhador. Achei-o sensacional, mas também achava que a história do<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

9º lugar


Wal<strong>de</strong>mar (protagonista <strong>de</strong> Autoengano) não estava ruim. Enviei os dois<br />

contos para alguns amigos, sem dizer nada. As respostas foram boas e<br />

ele veio parar aqui.”<br />

Não tem um autor preferido, mas se pu<strong>de</strong>sse recomendar, sugere como<br />

“obrigatórias” as obras do biólogo Richard Dawkins e do antropólogo<br />

Carlos Castañeda, especialmente seu livro O Fogo Interior. Duas vezes.<br />

“Não é mentira minha dizer que as histórias que escrevo não são<br />

inventadas. Parece realmente que elas vêm até mim sozinhas, enquanto<br />

acontecem <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> em algum lugar. Minha parte é recebê-las e botálas<br />

no papel sem as poluir com minha visão pessoal, e isso é um trabalho<br />

muito duro. Estou escrevendo um livro e ainda não faço a mínima i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> como vai terminar, mas é assim que funciona pra mim”, revela o autor.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

43<br />

43


44<br />

Wal<strong>de</strong>mar não queria trabalhar naquele dia. Havia dormido mal<br />

na noite anterior. Ficou acordado até tar<strong>de</strong>, esperando a vizinha<br />

chegar da Lapa. Estava calor, e Wal<strong>de</strong>mar tinha certeza que ela<br />

iria tomar banho e <strong>de</strong>pois trocar <strong>de</strong> roupa com a janela aberta.<br />

Era uma daquelas certezas que a gente tem <strong>de</strong> vez em quando,<br />

baseadas em nada. Mas a certeza era tão forte, tão certa, que ele<br />

não ousava ir dormir e per<strong>de</strong>r a oportunida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> ela ser<br />

baseada em nada. Estava alerta, tinha uma bilha no lugar <strong>de</strong> cada<br />

olho. Máquina fotográfi ca preparada. Pegou as pilhas do controle<br />

remoto pra garantir, mesmo não tendo nenhuma certeza <strong>de</strong> que<br />

elas seriam mais novas do que as pilhas que já estavam na máquina.<br />

Mas, certeza por certeza, não havia nenhuma.<br />

Não vale a pena <strong>de</strong>screver as horas <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>mar na<br />

noite anterior. Ficou sentado perto da janela, com visão da portaria<br />

e da janela do quarto da vizinha mulata. Deixou a televisão ligada,<br />

sintonizada em um canal que passava um leilão noturno bizarro.<br />

Perto das quatro da madrugada, a vizinha mulata chegou.<br />

O creme no cabelo já havia secado, mas ela continuava bonita.<br />

Wal<strong>de</strong>mar não conseguiu ver, mas ela estava com olheiras e cara <strong>de</strong><br />

cansada. Depois <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r a luz do quarto, a vizinha passou em<br />

frente à janela e não voltou mais. Wal<strong>de</strong>mar fi cou se remoendo por<br />

mais uma boa meia hora até se convencer, revoltado, que a maldita<br />

tinha ido dormir sem tomar banho e <strong>de</strong> luz acesa.<br />

Pois bem, Wal<strong>de</strong>mar acordou perto <strong>de</strong> nove horas e <strong>de</strong>cidiu<br />

que não ia trabalhar naquele dia. Enquanto escovava os <strong>de</strong>ntes, já<br />

pensava em <strong>de</strong>sculpas para fi car em casa. Tentou fi car com febre,<br />

mas não sabia como fazer isso. Tentou ter dor <strong>de</strong> barriga, garganta<br />

infl amada, mas nada. Estava bem, apesar do cansaço e da revolta<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Autoengano


Bruno Alexandre Sieczko Guzzo<br />

da noite anterior. Nem tomou café direito. Pegou suas coisas e foi<br />

direto na casa da tia Eneida, a reza<strong>de</strong>ira da rua. Lá, teve as omoplatas<br />

medidas com a ajuda <strong>de</strong> um pedaço <strong>de</strong> corda. O diagnóstico não<br />

foi o que ele queria ouvir: Wal<strong>de</strong>mar não estava com a espinhela<br />

caída. Teve que tomar um chá horroroso e <strong>de</strong>ixar um trocado com<br />

a tia, antes <strong>de</strong> ser liberado.<br />

Não teve escolha. Pegou um ônibus pro Largo da Carioca, on<strong>de</strong><br />

trabalhava. Durante o trajeto, continuou pensando em <strong>de</strong>sculpas<br />

para não trabalhar. Talvez o rapa estivesse no centro da cida<strong>de</strong><br />

hoje, e ele po<strong>de</strong>ria bater e voltar antes do almoço ainda. Talvez ele<br />

per<strong>de</strong>sse as mercadorias aci<strong>de</strong>ntalmente no ônibus, ou então fosse<br />

assaltado e tivesse que voltar pra casa. Ser assaltado era sempre um<br />

bom motivo para voltar pra casa.<br />

Pensou ainda que o Largo po<strong>de</strong>ria estar em obra e alimentou<br />

esperanças <strong>de</strong> ver os operários quando chegasse. O <strong>de</strong>sespero era<br />

tanto que Wal<strong>de</strong>mar conseguiu imaginar até que seria preso por<br />

ven<strong>de</strong>r veneno <strong>de</strong> rato, o que era proibido. A fi scalização po<strong>de</strong>ria<br />

estar disfarçada, e não se po<strong>de</strong> trabalhar em paz correndo o risco<br />

<strong>de</strong> ser preso.<br />

O ônibus avançava e Wal<strong>de</strong>mar continuava tentando inventar<br />

um motivo para não trabalhar. Ele evitava pensar, mas sabia que<br />

eram só <strong>de</strong>sculpas que ele mesmo rebateria sem muito esforço:<br />

o rapa não estava lá hoje. Caso contrário, ele já teria recebido<br />

um rádio dos colegas. Lógico que ele também não iria per<strong>de</strong>r a<br />

mercadoria sozinho, e on<strong>de</strong> já se viu camelô ser assaltado? Ninguém<br />

assalta camelô. O Largo da Carioca também não estava em obra<br />

– não era ano eleitoral – e mesmo se estivesse, ele po<strong>de</strong>ria montar<br />

sua banquinha em qualquer outro lugar. E o dia em que a polícia<br />

se disfarçar pra pren<strong>de</strong>r ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> chumbinho, os carros estarão<br />

voando e as donzelas andando nuas sem serem incomodadas.<br />

Então Wal<strong>de</strong>mar chegou. Olhando em volta, não viu operários,<br />

obras, rapa, polícia, nada <strong>de</strong> diferente. O Largo da Carioca estava<br />

como sempre: ensolarado, sujo e lotado <strong>de</strong> gente. E como o jornal<br />

havia dado que existem mais ratos do que pessoas no mundo, cada<br />

uma era um cliente em potencial.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 45


46<br />

Mas Wal<strong>de</strong>mar não <strong>de</strong>u o braço a torcer. Faltava pouco tempo<br />

pra hora do almoço, e ele precisava não trabalhar. Andou até o<br />

seu ponto <strong>de</strong> costume, mas não gostou <strong>de</strong>le naquele dia. Dava pra<br />

ver <strong>de</strong> longe que as pedras estavam soltando do chão, e ele tinha<br />

certeza que isso espantaria os fregueses. Um <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>ria até torcer<br />

o tornozelo e Wal<strong>de</strong>mar queria fi car longe <strong>de</strong> processos. Tentou<br />

do outro lado do Largo, mas lá o cheiro <strong>de</strong> urina era muito forte e<br />

também espantaria os fregueses. Foi pro outro extremo do Largo,<br />

mas lá o cheiro <strong>de</strong> fritura das barraquinhas é que era forte <strong>de</strong>mais.<br />

É certo que nenhum cliente pensaria em matar ratos sentindo um<br />

cheiro maravilhoso daqueles.<br />

Estava com fome, mas não comeu. Passou a hora do almoço<br />

e o resto da tar<strong>de</strong> procurando um lugar para não montar sua<br />

bancada. Ninguém po<strong>de</strong>ria dizer que Wal<strong>de</strong>mar não se esforçou<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. De fato, tamanho era o esforço <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>mar que se<br />

houvesse alguém supervisionando, ele provavelmente ganharia<br />

uns pontos com a chefi a.<br />

A tar<strong>de</strong> avançou e Wal<strong>de</strong>mar continuou <strong>de</strong>terminado a não<br />

trabalhar. O tempo passou, mas todas as certezas anteriores foram<br />

mantidas. Pensou que achar alguma notícia ruim sobre a saú<strong>de</strong><br />

fi nanceira dos seus potenciais clientes seria o ponto fi nal e foi até<br />

a banca do outro lado do Largo. Já tinha passado por quase todos<br />

os jornais e estava tentando fi car convencido com a queda na bolsa<br />

<strong>de</strong> valores - a única notícia ruim sobre economia que achou. Mas<br />

então viu algo sobre a previsão do tempo e se <strong>de</strong>u conta que ainda<br />

não havia pensado nisso. Abandonou a economia e focou seus<br />

esforços na meteorologia.<br />

O tempo não estava feio, mas havia uma enorme forma redonda,<br />

disfarçada <strong>de</strong> nuvem, pairando sobre o largo. Era muito melhor<br />

do que uma simples queda na bolsa <strong>de</strong> valores e uma análise<br />

rápida foi sufi ciente. A conclusão óbvia era <strong>de</strong> que se tratava,<br />

indiscutivelmente, <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> nave pronta pra atacar Wal<strong>de</strong>mar<br />

e seus fregueses. Ou po<strong>de</strong>ria ainda ser a chegada <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />

chuva, que também atacaria Wal<strong>de</strong>mar e seus fregueses. Uma <strong>de</strong>ssas<br />

duas era certeza.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Autoengano


Bruno Alexandre Sieczko Guzzo<br />

Além disso, havia chegado o fi nal <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> e não valeria a pena<br />

montar a bancada agora. Wal<strong>de</strong>mar então começou a voltar pra<br />

casa. Estava exausto e com fome, <strong>de</strong> tanto procurar <strong>de</strong>sculpas e<br />

manter as certezas o dia todo.<br />

Chegou em casa já <strong>de</strong> noite, mais ou menos no mesmo horário<br />

que chegaria num dia normal <strong>de</strong> trabalho. Tinhas as pernas doídas<br />

e uma sensação <strong>de</strong> culpa por não ter trazido um Real pra casa.<br />

Também estava cansado <strong>de</strong> pensar, mas se lembrou vagamente<br />

que morava sozinho e que não tinha patrão. Chegou a começar a<br />

cogitar a idéia <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria ter fi cado em casa sem precisar se<br />

justifi car pra ninguém, a não ser pra ele mesmo.<br />

Mas não havia tempo pra isso agora. Tinha certeza que hoje era<br />

noite <strong>de</strong> pago<strong>de</strong>, e que a vizinha mulata não po<strong>de</strong>ria passar dois<br />

dias seguidos sem tomar banho.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 47


48<br />

O Guarda-Chuva<br />

Nelson Choueri Júnior<br />

É engenheiro e mestre em Filosofi a. Trabalha na Petrobras, na área <strong>de</strong><br />

Suprimento da Refi naria <strong>de</strong> Paulínia, SP, e foi gerente <strong>de</strong> plataformas marítimas.<br />

É casado, tem sete fi lhos, uma neta, e muitos livros e amigos.<br />

A fi losofi a entrou em sua vida em 2008, mas a vocação vem <strong>de</strong> longe: <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

criança lia muito. Gostava <strong>de</strong> gibis, especialmente das revistas <strong>de</strong> terror, como<br />

Histórias Macabras e Noites <strong>de</strong> Terror. Adolescente, foi mochileiro, tendo se<br />

apaixonado pela literatura un<strong>de</strong>rground, <strong>de</strong> Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Foi<br />

infl uenciado também por Anthony Burgess e George Orwell e pelo brasileiro<br />

Campos <strong>de</strong> Carvalho. Machado <strong>de</strong> Assis é seu escritor preferido, contudo, Lopes<br />

Neto, José J. Veiga, Guy <strong>de</strong> Maupassant, O. Henry, Edgar Allan Poe, Oscar Wil<strong>de</strong>,<br />

João Ubaldo Ribeiro e Anton Tchekhov são lidos com frequência.<br />

Não tem escrito tanto quanto gostaria, mas, mesmo assim, tem diversos<br />

contos, alguns publicados em coletâneas ou na internet. Ficou em sétimo<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

8º lugar


lugar no VII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>, em 2007, com o conto O Magnifíco<br />

Crocodilo. Integrou também, em 2011, a obra Liberda<strong>de</strong> da Edições AG, com<br />

o conto Casamento Yang-Yang.<br />

A criação, para ele, é algo supremo: “o autor sai da Terra e viaja para on<strong>de</strong><br />

jaz a obra, que precisa ser arrebatada e oferecida aos daqui. É preciso ter<br />

coragem, astúcia e <strong>de</strong>terminação. De volta à Terra, o autor estranha a história<br />

que trouxe: parece que outro a escreveu, e isso é muito divertido – criar dá um<br />

enorme prazer. Uma vez raptada, ela precisa ser polida, lustrada e acariciada,<br />

para enfi m ser presenteada ao mundo. Para isso, é lida e relida <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

vezes e sofre pequenas alterações – com acréscimos e supressões –, num árduo<br />

processo”, conclui.<br />

Nelson <strong>de</strong>seja publicar um livro <strong>de</strong> contos, o que po<strong>de</strong>rá se realizar<br />

brevemente.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

49<br />

49


50<br />

Ele era lindo; tinha o pano preto e o cabo era <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, igual<br />

ao do papai. Para fi car igual ao do Wagner, só faltava ter o cabo <strong>de</strong><br />

cabeça <strong>de</strong> elefante, que o do Wagner tinha cabo <strong>de</strong> cabeça <strong>de</strong> elefante.<br />

O cabo do meu era liso, igual ao cabo do guarda-chuva do papai.<br />

Mas o pano era preto, da cor dos guarda-chuvas dos adultos, e isso<br />

me enchia <strong>de</strong> orgulho.<br />

Orgulho e responsabilida<strong>de</strong>. Mamãe jamais me perdoaria se<br />

cometesse uma nova falha.<br />

– Cuidado com seu guarda-chuva novo, que ele custou um<br />

dinheirão, seu cabeça-ôca. Não vá esquecê-lo na escola, nem vá lutar<br />

espada, como fez com o outro, que rasgou todo, e ainda entortou<br />

as varetas; não <strong>de</strong>u nem pra mandar o Seu Jeremias trocar o pano.<br />

Se você per<strong>de</strong>r esse, além <strong>de</strong> fi car sem guarda-chuva nenhum, seu<br />

peste, ainda vai levar uma surra <strong>de</strong> dar bicho nas feridas. Ai, que esse<br />

moleque ainda vai me <strong>de</strong>ixar louca. Ô vida apertada, meu Deus... –<br />

murmurou ainda, afastando-se.<br />

Zarpei para a escola, que eu estava atrasado.<br />

Quem ia querer prestar atenção na professora, na lousa, no<br />

livrinho <strong>de</strong> geografi a, no mapa do Brasil, surrado, maltratado, velho<br />

e roto como o próprio Brasil, pendurado torto na pare<strong>de</strong>; nas bolas<br />

<strong>de</strong> papel, cruzando os céus da sala <strong>de</strong> aula, nos olhos da Maria Clara,<br />

nos aviõezinhos <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rno, nas fi gurinhas <strong>de</strong> craques <strong>de</strong><br />

futebol, trocando <strong>de</strong> mãos, olhares esquivos e atentos - se eu estava<br />

<strong>de</strong> guarda-chuva novo? Guarda-chuva <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>!<br />

Durante a aula, <strong>de</strong>ixei-o pendurado na carteira, naquele rasgo<br />

na tábua, feito para colocar lápis e caneta, e passei a esperar a<br />

manhã se acabar, acariciando o meu guarda-chuva novo. Um<br />

século e meio <strong>de</strong>pois, o sinal tocou; a algazarra tomou conta <strong>de</strong><br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Guarda-Chuva


Nelson Choueri Júnior<br />

cada buraco daquela escola, e todos se precipitaram afoitamente,<br />

catando livros, lápis, borrachas, ca<strong>de</strong>rnos, penas, tinteiros, piões,<br />

fi eiras, bolas <strong>de</strong> gu<strong>de</strong>, bolas <strong>de</strong> meia, restos <strong>de</strong> lanches, espelhinhos,<br />

catecismos, enfi ando tudo <strong>de</strong> qualquer jeito nos estojos e malas<br />

e, aos empurrões, correram porta a fora feito boiada estourada,<br />

atropelando, tropeçando, passando rasteiras, caindo, <strong>de</strong>rrubando,<br />

distribuindo cascudos, recebendo bordoadas, para chegar logo aos<br />

corredores, e por fi m à rua que, ao contrário da sala <strong>de</strong> aula, era<br />

iluminada e cheia <strong>de</strong> vida.<br />

Nesse dia, porém, eu fi z tudo calma e cuidadosamente. Afi nal, eu<br />

já era dono <strong>de</strong> um guarda-chuva preto, <strong>de</strong> cabo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Fechei<br />

o ca<strong>de</strong>rno e o livro, coloquei lápis e borracha no estojo, fechei o<br />

estojo, botei-o na mala, ajeitei o livro e o ca<strong>de</strong>rno ao lado do estojo,<br />

fechei a mala, fi quei em pé, peguei o guarda-chuva, e alcancei a rua,<br />

transbordando <strong>de</strong> orgulho. Em vez <strong>de</strong> voltar para casa pela Rua dos<br />

Trilhos, que cortava caminho, escolhi a Avenida Liberda<strong>de</strong>, olhando<br />

as vitrines, <strong>de</strong>sviando dos bêbados, tocando <strong>de</strong> leve o chão com meu<br />

guarda-chuva novo, feito a elegante bengala do Bat Masterson. Parei<br />

na farmácia para me pesar, coloquei a mala ao lado, e o guardachuva,<br />

encostei-o na pare<strong>de</strong> próxima à balança, bem ao alcance<br />

dos meus olhos.<br />

Sentia um prazer enorme em largar meu guarda-chuva, para<br />

<strong>de</strong>pois apanhá-lo <strong>de</strong> novo, pois isso só <strong>de</strong>monstrava que eu tinha<br />

responsabilida<strong>de</strong>, e que já merecia ser dono daquele guarda-chuva.<br />

Caminhei pela avenida, <strong>de</strong>sci a Rua da In<strong>de</strong>pendência, e segui<br />

através <strong>de</strong> um bairro humil<strong>de</strong>, que eu conhecia bem – crianças<br />

sujas refrescando-se em poças <strong>de</strong> água suja, carroças velhas, porcos<br />

chafurdando no esgoto, galinhas e patas e suas crias... fui andando<br />

<strong>de</strong>vagar, olhando e sendo olhado, até chegar próximo da fábrica <strong>de</strong><br />

papel. Nesse ponto, resolvi cortar caminho, e pegamos - meu guardachuva,<br />

eu e a mala, uma trilha pelo meio do mato que atravessava<br />

o terreno da fábrica.<br />

Desci pela capoeira cheia <strong>de</strong> carrapichos, <strong>de</strong>sviando das urtigas<br />

e dos marimbondos, parando nas pitangueiras e nas amoreiras,<br />

admirando as coloridas borboletas, os besouros, as lagartas,<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 51


52<br />

prestando atenção aos chiados das cigarras e dos tizius, aos gorjeios<br />

dos papa-capins, dos sanhaços e dos sabiás-laranjeira; segui assim,<br />

distraído, até atingir a pontezinha que se estendia sobre o Riacho<br />

do Jequitibá. Depois da chuva que caíra <strong>de</strong> manhã, o dia tornarase<br />

muito agradável, a natureza radiante; o mundo era <strong>de</strong> fato<br />

maravilhoso, e eu me sentia parte <strong>de</strong>sse encantamento.<br />

Chegando ao meio da ponte, estaquei atordoado diante da visão<br />

<strong>de</strong> outro espetáculo ainda mais encantador; visão que eu nunca<br />

tivera antes: as águas do ribeirão estavam agitadas e lindas, tingidas<br />

<strong>de</strong> amarelo, <strong>de</strong> um amarelo ouro, <strong>de</strong>slumbrantemente belo. E,<br />

<strong>de</strong> quebra, ainda soltavam uma fumacinha igualmente amarela,<br />

tênue como uma joia fi na, um colar <strong>de</strong> princesa. Aquilo me <strong>de</strong>ixou<br />

extasiado, não podia resistir; então fi quei por ali, sobre a ponte,<br />

assistindo àquela rara visão do <strong>de</strong>spejo tóxico da fábrica <strong>de</strong> papel.<br />

Permaneci assim por muito tempo, até que as águas, caprichosas e<br />

sedutoras, foram se tornando levemente esver<strong>de</strong>adas. Eu já estava<br />

completamente embriagado com tanta beleza, e nem pensava mais<br />

em ir embora. Debrucei-me por cima da proteção <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira,<br />

que corria pela lateral da ponte e, assim acomodado, esperei que a<br />

apresentação das águas terminasse. Mas elas não queriam me dar<br />

sossego: foram fi cando ver<strong>de</strong>s, ver<strong>de</strong>s, ver<strong>de</strong>s, assim, como esmeralda;<br />

aquilo parecia um sonho; mas o que era um sonho diante <strong>de</strong> um<br />

espetáculo tão maravilhoso e verda<strong>de</strong>iro como aquele?<br />

De esmeralda, foram ficando azuladas, <strong>de</strong> um azul piscina,<br />

transparente, cristalino: que mágicas mãos <strong>de</strong> fada seriam aquelas<br />

que estavam pintando assim meu ribeirão?<br />

Já estava totalmente hipnotizado, quando senti algo passar por<br />

entre minhas pernas e precipitar-se nas águas, que corriam céleres<br />

e <strong>de</strong>slumbrantes. Assustei com o vulto, e pu<strong>de</strong> ver o agitar das águas<br />

e ouvir o mergulho fatal que ele <strong>de</strong>u para, alguns metros à frente,<br />

ressurgir, negro, implorante: o meu guarda-chuva. Não sei como<br />

aquilo pô<strong>de</strong> acontecer; mas aconteceu.<br />

Tive o ímpeto <strong>de</strong> me atirar também, atrás <strong>de</strong>le, mas recobrei os<br />

sentidos, percebi a realida<strong>de</strong> e, seguindo-o com o olhar, pu<strong>de</strong> vê-lo<br />

enroscar-se a uma touceira <strong>de</strong> capim meio submersa nas revoltas<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Guarda-Chuva


Nelson Choueri Júnior<br />

águas do riacho. Desci para o barranco e, com um longo galho <strong>de</strong><br />

aroeira, da margem, tentei alcançá-lo. A correnteza estava forte <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>, e a tarefa era <strong>de</strong>safi adora. E eu corria contra o tempo: as<br />

águas começaram a entrar pelo pano, eu me esforçava o quanto<br />

podia, mas era em vão. Finalmente, assisti ao que não queria ter<br />

assistido nunca: uma parte do meu guarda-chuva novo foi rasgada<br />

como se fosse o papel <strong>de</strong> seda <strong>de</strong> uma pipa; parecia uma ban<strong>de</strong>ira<br />

tremulando ao vento na correnteza – a ban<strong>de</strong>ira da <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong>fi nitiva<br />

que se avizinhava. As belas águas rasgaram completamente meu<br />

guarda-chuva novo e inutilizaram suas varetas, <strong>de</strong> forma que já não<br />

havia mais motivo para resgatá-lo, a menos que <strong>de</strong>sejasse fazer um<br />

enterro digno para ele. Aquilo era simplesmente lastimável. Mais<br />

que lastimável; era trágico. Não havia remédio, eu estava perdido.<br />

Meio <strong>de</strong>svairado, subi <strong>de</strong> novo até a ponte; não conseguia acreditar<br />

que eu tivesse me distraído a tal ponto; <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar meu guarda-chuva<br />

novo ser <strong>de</strong>struído assim, na minha frente. Odiei-me. Não era um<br />

menino responsável coisa nenhuma; era, sim, um cabeça-<strong>de</strong>-vento,<br />

como todos diziam. Não andava neste mundo; vivia no mundo da<br />

lua, a cabeça não-sei-aon<strong>de</strong>. Voltei a mirar aquelas águas, e pensei<br />

novamente em me atirar nelas, e <strong>de</strong>ixar o <strong>de</strong>stino cuidar <strong>de</strong> tudo<br />

para mim. Fazendo isso, ia me livrar da surra, e ainda daria uma boa<br />

lição em mamãe, o remorso. Refl eti mais um pouco, e achei que uma<br />

surra valia bem menos do que a culpa que ela sentiria, então <strong>de</strong>sisti<br />

<strong>de</strong> me matar. Além disso, um guarda-chuva, mesmo que novo, não<br />

valia a vida <strong>de</strong> uma criança; ninguém <strong>de</strong>veria morrer por causa <strong>de</strong><br />

um guarda-chuva.<br />

Bom, na verda<strong>de</strong>, acho mesmo é que eu fui covar<strong>de</strong>; não tive<br />

coragem bastante para me matar.<br />

Fosse pelo que fosse e nada mais tendo a fazer – segui meu<br />

caminho, retardando o passo – a fi m <strong>de</strong> analisar com cuidado minhas<br />

possibilida<strong>de</strong>s. Se eu chegasse em casa, e fosse logo anunciando a<br />

morte do meu guarda-chuva novo, difi cilmente escaparia da gran<strong>de</strong><br />

surra. Só se minha mãe estivesse com um excepcional bom humor – o<br />

que era raro – é que me livraria. Se eu, por outra, escon<strong>de</strong>sse o fato,<br />

e esperasse pelos acontecimentos, podia ser que ela nem percebesse<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 53


54<br />

nada na hora, e mais, se continuasse com sorte, não choveria logo nos<br />

outros dias, e ela só se lembraria do guarda-chuva quando voltasse a<br />

chover. Mas aí é que a porca ia torcer o rabo. Será que ela ia engolir se<br />

eu dissesse que havia voltado para casa com o guarda-chuva? E como<br />

explicaria o sumiço <strong>de</strong>le? Obra do Espírito Santo? E eu? Conseguiria<br />

resistir, e sustentar a mentira até a morte, se necessário fosse? Sim,<br />

porque, se após tantas mentiras, eu enfi m confessasse, aí mesmo é<br />

que eu podia encomendar o meu caixão, que além <strong>de</strong> <strong>de</strong>sleixado, eu<br />

estaria <strong>de</strong>monstrando ser um gran<strong>de</strong> mentiroso.<br />

Bem, parece que a coisa estava fi cando clara: ou eu contava logo<br />

e, sem sombra <strong>de</strong> dúvida, tomaria uma surra brutal, ou <strong>de</strong>ixava para<br />

<strong>de</strong>pois e, quase que certo, tomaria uma super brutal. Mas, nesse caso,<br />

com a vantagem <strong>de</strong> abrir a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, nesse intervalo <strong>de</strong><br />

tempo, que po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> dias, ou <strong>de</strong> até uma semana, quem sabe?<br />

– algo mágico, que viesse a mudar o rumo das coisas, acontecesse.<br />

Improvável, porém possível.<br />

Minha <strong>de</strong>cisão saltitava <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia à outra, e meu passo ia<br />

fi cando cada vez mais lerdo, para ganhar tempo. Difícil dilema, entre<br />

o ruim e o péssimo. Pensando, pensando, não vi as horas passarem,<br />

e eu já estava muito atrasado para o almoço e para o serviço, que<br />

eu pegava à uma e meia e largava às seis e meia. Ia levar uma surra<br />

em casa e uma bronca na ofi cina. Bonito!<br />

A certa altura, já perto <strong>de</strong> casa, tomei coragem e me <strong>de</strong>cidi: contaria<br />

logo e pronto, acontecesse o que tivesse <strong>de</strong> acontecer. Quanto mais<br />

cedo, melhor, pois assim fi caria logo livre do pensamento no caso,<br />

que a coisa mais chata do mundo é pensamento que não <strong>de</strong>sgruda,<br />

é pior que carrapato.<br />

Ao dobrar a esquina <strong>de</strong> nossa rua, fi quei espantado. As comadres<br />

tinham <strong>de</strong>ixado seus afazeres, e estavam reunidas na rua conversando<br />

e gesticulando, algumas ainda torcendo as roupas que estiveram<br />

esfregando no tanque minutos antes; as crianças em volta, feito<br />

pintinhos no terreiro, conversavam também alguma coisa tinha<br />

acontecido, ou ia acontecer. A primeira a me avistar foi Dona<br />

Valentina, que gritou para minha mãe, que estava sentada num toco,<br />

<strong>de</strong>svairada, chorando com a cabeça entre as mãos, como uma doida:<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Guarda-Chuva


Nelson Choueri Júnior<br />

– O Pedrinho está chegando, Dona Cida! Não foi ele que o trem<br />

pegou!!!<br />

– Ai, meu Jesus Cristinho, louvado seja!!! Ai, minha Nossa Senhora<br />

<strong>de</strong> Aparecida, minha madrinha!!! – Braços estendidos para o céu,<br />

minha mãe agra<strong>de</strong>cia do seu jeito, correndo ao meu encontro aos<br />

tropeções. Ela não me abraçou: asfi xiou-me num apertão como<br />

nunca antes. Beijava-me, apertava-me mais e mais, fazendo força,<br />

como que para me trazer <strong>de</strong> volta das profun<strong>de</strong>zas da morte, que<br />

era para on<strong>de</strong> a imaginação das pessoas do lugar havia me atirado.<br />

Minutos <strong>de</strong>pois, aplacadas as preocupações comigo, ela contou que<br />

alguém trouxera a notícia <strong>de</strong> que um menino havia sido atropelado<br />

pelo trem na volta da escola pela Rua dos Trilhos, coitadinho, e que<br />

o corpinho fora <strong>de</strong>sintegrado, a malinha, <strong>de</strong>stroçada – os papéis,<br />

encontrados em longínquas vizinhanças, que o vento carregara.<br />

– Inteiro mesmo, só sobrou o guarda-chuvinha <strong>de</strong>le, que o<br />

trem não pegou... – pon<strong>de</strong>rou mamãe com tristeza. – Novinho...<br />

– concluiu, abraçando-me com a mais pura ternura. Não restava<br />

dúvida alguma: o <strong>de</strong>stino virara a meu favor um jogo que até então<br />

parecera irremediavelmente perdido. Mamãe não teria coragem <strong>de</strong><br />

me aplicar uma surra <strong>de</strong>pois da minha ressurreição. O perdão era<br />

o maior troféu com que eu jamais po<strong>de</strong>ria sonhar.<br />

Naquele momento, tive um calafrio ao concluir que a morte<br />

<strong>de</strong> meu coleguinha não fora totalmente em vão – me salvara!<br />

– e o remorso resultante <strong>de</strong>sse sentimento ainda viria a mor<strong>de</strong>r<br />

dolorosamente minha alma. Mas nada po<strong>de</strong>ria quebrar a nova<br />

emoção que estava vivendo, nos braços <strong>de</strong> mamãe. Essas coisas eu<br />

<strong>de</strong>ixaria para resolver <strong>de</strong>pois; por favor, um problema <strong>de</strong> cada vez.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 55


56<br />

De Chegadas e Partidas<br />

Cleo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Os primeiros contos retirados da gaveta foram enviados para o III<br />

<strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>. A classifi cação entre os semifi nalistas trouxe um<br />

incentivo que o fez buscar um aprimoramento da técnica literária. Resolveu<br />

participar <strong>de</strong> uma ofi cina <strong>de</strong> contos com o escritor Charles Kiefer, em Porto<br />

Alegre, RS. A partir daí vieram diversas conquistas em concursos literários.<br />

Dentre os principais <strong>de</strong>stacam-se o <strong>Contos</strong> do Rio, do jornal O Globo, o<br />

Prêmio Habitasul, vencido em 2004, e o Prêmio Asabeça, com o qual teve<br />

seu primeiro livro <strong>de</strong> contos, Descontágio, lançado pela Editora Scortecci<br />

em 2007. Além é claro, das participações no <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>, do<br />

qual foi vencedor em 2006. Esteve entre os <strong>de</strong>z fi nalistas em 2010 e 2011.<br />

Cleo acredita que os escritores têm nos concursos um espaço precioso<br />

para divulgar seus trabalhos e chegar ao público leitor.<br />

Gaúcho <strong>de</strong> Novo Hamburgo, estudou Filosofia e agora se <strong>de</strong>dica à<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

7º lugar


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Processos Gerenciais. Funcionário da Petrobras, trabalha <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1985 na Refi naria Alberto Pasqualini, em Canoas, RS, na área <strong>de</strong> Transferência<br />

e Estocagem, on<strong>de</strong> é supervisor <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong> turno. Toca violão e nas<br />

horas <strong>de</strong> folga não per<strong>de</strong> uma roda <strong>de</strong> viola com os amigos. É casado com a<br />

veterinária Carla Visentini <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992 e tem duas fi lhas: Jéssica, <strong>de</strong> 20 anos,<br />

e Júlia, <strong>de</strong> 12 anos, que também apreciam <strong>de</strong>mais a literatura.<br />

Gosta dos autores latinos, especialmente Julio Cortázar. Entre os<br />

brasileiros, é fã <strong>de</strong> Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, e dos gaúchos<br />

Moacyr Scliar, Dionélio Machado e Luiz Antônio <strong>de</strong> Assis Brasil. O conto<br />

classifi cado neste ano foi escrito há bastante tempo e busca tratar com<br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za o tema da amiza<strong>de</strong> duradoura e das inevitáveis perdas que o<br />

<strong>de</strong>stino apresenta. Mesmo sabendo das difi culda<strong>de</strong>s para editar e ven<strong>de</strong>r<br />

livros no Brasil, preten<strong>de</strong> lançar sua segunda coletânea <strong>de</strong> contos em breve.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

57<br />

57


58<br />

A primeira xícara <strong>de</strong> chá e as histórias já estavam pela meta<strong>de</strong><br />

quando Rita apareceu. De longe ela po<strong>de</strong> ouvir o gargalhar <strong>de</strong><br />

Rosa, resposta às piadas <strong>de</strong> Ana Lúcia. Teresa controlava um<br />

sorriso, com a xícara a caminho dos lábios. O encontro <strong>de</strong>ssa<br />

vez não acontecia na data tradicional, mas isso não impediu<br />

que o ritual se cumprisse. Sobre a mesa da confeitaria, a toalha<br />

bordada por Clara recém colocada. A mesma em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

encontros. Talvez centenas. Os livros com marcações nas páginas<br />

selecionadas. Descobertas literárias <strong>de</strong> cada uma seriam reveladas<br />

em breve, como sempre.<br />

O convite <strong>de</strong> Rita causou alguma surpresa. Todas <strong>de</strong>veriam estar<br />

presentes. A importância do encontro foi logo percebida, mesmo<br />

que não a enten<strong>de</strong>ssem por completo. Estavam curiosas para saber<br />

das novida<strong>de</strong>s. Quem sabe alguma pérola encontrada por Rita nos<br />

sebos da Europa, um disco novo <strong>de</strong> algum jazzista francês. Ela<br />

gostava <strong>de</strong> garimpar relíquias. Mesmo assim, tudo parecia pouco<br />

para a urgência da convocação.<br />

A chegada <strong>de</strong> Rita sozinha, óculos escuros, causou inquietação.<br />

Talvez a doença <strong>de</strong> Clara tivesse se agravado, antecipando o retorno.<br />

Ana Lúcia tomou a frente:<br />

– Bonjour ma<strong>de</strong>moiselle! Vejam se não é nossa querida amiga<br />

viajante! Como estava Paris?<br />

– Estávamos ansiosas por notícias da Europa. E Clara, não vem?<br />

A resposta foi apenas um longo silêncio que com o passar<br />

dos segundos começou a se tornar inquietação. Em especial pela<br />

expressão <strong>de</strong> Rita, erguendo a urna hexagonal. Ela abraçou Ana<br />

Lúcia quase sem forças para chorar. Mesmo sem enten<strong>de</strong>r muito<br />

bem o que acontecia, as outras vieram abraçá-las, como se todas já<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

De Chegadas e Partidas


Cleo <strong>de</strong> Oliveira<br />

soubessem <strong>de</strong> tudo e as palavras fossem <strong>de</strong>snecessárias. Rita levou<br />

alguns minutos até vencer a treme<strong>de</strong>ira e falar:<br />

– Numa manhã estávamos saindo <strong>de</strong> Marselle em direção a Lion.<br />

Foi tudo muito rápido. Ela não se sentia bem. Quando o socorro<br />

chegou já estava <strong>de</strong>sacordada. Passamos a tar<strong>de</strong> num hospital.<br />

Ao anoitecer ela já havia nos <strong>de</strong>ixado. Sabíamos da doença, mas<br />

nunca pensei...<br />

– Meu Deus! Por que você não ligou? Po<strong>de</strong>ríamos ter ido ao seu<br />

encontro. Deve ter sido complicado, sozinha naquela terra estranha.<br />

Rita inclinou o corpo sobre o ombro <strong>de</strong> Ana Lúcia e tentou falar,<br />

mas a voz saiu afogada <strong>de</strong>mais ao lembrar-se daqueles momentos<br />

no hospital francês. As cinco continuavam abraçadas. Teresa<br />

acariciava os cabelos grisalhos <strong>de</strong> Rita.<br />

Todas enten<strong>de</strong>ram que o pequeno recipiente <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira lustrada<br />

continha as cinzas da amiga, e Rosa foi mais adiante, adivinhando<br />

ser aquele um encontro para <strong>de</strong>cidir o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Clara:<br />

E as cinzas, o que vamos fazer com as cinzas?<br />

– Foi para isso que marquei esse encontro com vocês – atropelou<br />

Rita, limpando os olhos. – Uma vez ela havia falado que, caso<br />

morresse, <strong>de</strong>veríamos juntas <strong>de</strong>cidir o seu <strong>de</strong>stino. Confi ava em nós.<br />

As amigas se entreolharam e houve um breve silêncio.<br />

– Eu sei! – disse Rosa com os olhos brilhando – po<strong>de</strong>ríamos levar<br />

as cinzas à ponte <strong>de</strong> ferro. Numa noite <strong>de</strong> lua clara. Soltá-las ao vento.<br />

Lembram quando íamos até lá para recitar nossos poemas? Naquelas<br />

noites <strong>de</strong> lua nos divertíamos lendo Shakespeare, Maiakóvski...<br />

– Gostei! Acho que Clara iria adorar! – o sorriso <strong>de</strong> Teresa era<br />

só aprovação. As outras também consentiram, ainda um pouco<br />

atordoadas com a rapi<strong>de</strong>z com que tudo se <strong>de</strong>cidia.<br />

O restante do encontro foi um misto <strong>de</strong> nostalgia e soluços. A<br />

poesia que <strong>de</strong>veria sair dos livros, agora saía das bocas. As passagens<br />

relembradas por cada uma, bons momentos que a doçura <strong>de</strong> Clara<br />

havia proporcionado ao grupo nesses anos. A presença amiga em<br />

cada difi culda<strong>de</strong>. Agora, mesmo em forma <strong>de</strong> homenagem, era a<br />

hora <strong>de</strong> retribuir. Do jeito que Clara gostava <strong>de</strong> aproveitar os seus<br />

dias, entre as amigas e a literatura.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 59


60<br />

Antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>spedirem, marcaram o encontro <strong>de</strong>fi nitivo para<br />

duas semanas <strong>de</strong>pois, quando a lua cheia chegasse.<br />

Longe do corpo quente e dos braços que po<strong>de</strong>riam disfarçar<br />

a verda<strong>de</strong>ira ausência, Rita tentava existir. Mas esbarrava nas<br />

lembranças <strong>de</strong> Clara. No corredor da sala, nas podas milimétricas<br />

dos bonsais, na solidão do chá nos fi nais <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>.<br />

Na ca<strong>de</strong>ira vazia.<br />

A vida parecia cada vez mais distante do normal na <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

das chuvas <strong>de</strong> inverno. Debruçada na janela, o olhar vago tratava <strong>de</strong><br />

impedir que o sorriso <strong>de</strong> Clara se per<strong>de</strong>sse no passado. Rita buscava<br />

também um isolamento. O telefone quase sempre mudo. Convites para<br />

passeios eram recusados com alegações <strong>de</strong> resfriados e indisposições.<br />

Quando chegou o dia combinado, o grupo foi caminhando até<br />

a ponte. Rosa levava a urna. Rita trazia colado ao peito um volume<br />

<strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Maiakóvski. A neblina misturava ao longe o rio e a<br />

escuridão, e <strong>de</strong>snudava a lua aos pedaços. Na chegada, Ana Lúcia tomou<br />

gentilmente o livro <strong>de</strong> Rita, abriu na página marcada e passou à leitura:<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

“Fiz ranger as folhas <strong>de</strong> jornal<br />

abrindo-lhes as pálpebras piscantes...”<br />

De Chegadas e Partidas<br />

Teresa ofereceu a urna para que cada uma pegasse um punhado<br />

<strong>de</strong> cinzas. Rita, abraçada a uma pilastra, não quis tomar parte. Ficou<br />

mirando o rio, a superfície agitada engolindo as cinzas <strong>de</strong> Clara.<br />

...“não estamos alegres, é certo<br />

mas por que razão haveríamos <strong>de</strong> fi car tristes?...”<br />

Da poeira misturada à neblina afloravam figuras. Rita<br />

re<strong>de</strong>senhava nelas a alegria dos últimos anos. Momentos que se<br />

extinguiam na calmaria daquele breu.<br />

“O mar da história é agitado”<br />

O rio estava inquieto e volumoso pelas chuvas dos últimos dias.<br />

Rita dirigiu-se a Teresa e, enfi ando as duas mãos na urna, fartou-se


Cleo <strong>de</strong> Oliveira<br />

<strong>de</strong> Clara. Ficou parada com as duas mãos fechadas na altura do<br />

rosto. Quanto mais apertava, mais as cinzas teimavam em escorrer<br />

por entre os seus <strong>de</strong>dos. Lançou tudo para cima com a máxima<br />

força que os braços fi nos permitiram.<br />

“As ameaças e as guerras havemos <strong>de</strong> atravessá-las,<br />

rompê-las ao meio”<br />

Súbito, Rita passou a perna sobre o parapeito e saltou. Tudo<br />

muito rápido, sem a mínima chance <strong>de</strong> uma objeção. Trespassou<br />

a nuvem com os braços abertos. No rosto uma expressão <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong>. Respirando fundo pela boca e nariz, tragando Clara<br />

para sempre, como quem sorve a dileta fragrância das partidas e<br />

chegadas.<br />

“...cortando-as<br />

como uma quilha corta as ondas.”(*)<br />

(*)Trechos do poema “E então, que quereis?” <strong>de</strong> Vladimir<br />

Maiakóvski.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 61


62<br />

Casagran<strong>de</strong><br />

Eduardo Domingues<br />

Buscou nos assombramentos da infância e adolescência sob o regime<br />

militar a inspiração para concluir o conto Casagran<strong>de</strong>. Bacharel em Letras<br />

pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais (UFMG), procura conviver com<br />

a dicotomia entre a ativida<strong>de</strong> industrial e o universo literário. “Existem<br />

momentos em que a convivência entre essas partes é pacífi ca e produtiva. Mas<br />

há fases sombrias, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontro, <strong>de</strong> revolta, <strong>de</strong> nítida tristeza”. É um sistema<br />

complexo no qual as priorizações nem sempre se encontram em equilíbrio.<br />

Entre os autores <strong>de</strong> sua predileção estão James Joyce, T.S. Eliot,<br />

Bau<strong>de</strong>laire, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Ernesto Sábato, João<br />

Guimarães Rosa, Maria Esther Maciel, Nélida Piñon e Murilo Rubião.<br />

Publicou trabalhos em jornais e coletâneas <strong>de</strong> Minas Gerais e São Paulo.<br />

Permanecem ainda engavetados um livro <strong>de</strong> contos, outro <strong>de</strong> poemas e<br />

um romance.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

6º lugar


Representante <strong>de</strong> uma geração que conviveu com a repressão,<br />

comemora o surgimento <strong>de</strong> ferramentas que favorecem a criação literária,<br />

como os blogs, as re<strong>de</strong>s sociais, os jornais e as revistas online. Para ele, essa<br />

facilida<strong>de</strong> “cria uma concorrência positiva, incentivando novos talentos”.<br />

Por outro lado, difi culta a construção <strong>de</strong> um cânone literário válido para<br />

o novo século. Mas tudo isso contribui para o enriquecimento da visão<br />

brasileira, pós-mo<strong>de</strong>rna, pós-antropofágica das palavras. Tem como<br />

hobby a fotografi a. “Ela complementa a literatura com uma linguagem<br />

mais direta, mais dinâmica em sua adaptação às (in)conveniências do<br />

século XXI. Mas a palavra escrita é imprescindível”.<br />

Ingressou na Petrobras em 1981. Atualmente é técnico <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />

sênior e trabalha na área <strong>de</strong> Controle e Lastro da Petrobras-26, na Bacia <strong>de</strong><br />

Campos, RJ. Casado há 20 anos, tem uma fi lha e dois bichanos.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

63<br />

63


64<br />

Limalha fora o último a chegar ao velório. Seu terno azul<br />

escuro, apertado, camisa <strong>de</strong>sbotada, meias pretas combinando<br />

com Deus sabe o quê. Os cabelos e o rosto molhados pelo suor da<br />

caminhada, os <strong>de</strong>dos grossos e negros tentando em vão consertar<br />

o nó da gravata cinza, sapatos enrugados. Limalha era um tosco<br />

<strong>de</strong>sencontro e o peso <strong>de</strong> sua presença era proporcional apenas à<br />

sua <strong>de</strong>dicação e à fi <strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à causa.<br />

Cumprimentou minha mãe com exagerada <strong>de</strong>ferência, fazendo<br />

mesuras para as duas funcionárias do cemitério que passavam<br />

pelo corredor. Sua mão imensa pesou em minha cabeça quando<br />

<strong>de</strong>sgrenhou meu cabelo, como se fosse um agrado. Me chamava<br />

sempre <strong>de</strong> menino. Provável que não soubesse meu nome.<br />

Seus olhos brilharam fi tando o caixão, fechado <strong>de</strong>vido ao receio<br />

e à ignorância perante a infecção pulmonar do aparentado falecido.<br />

Eu ainda brincava <strong>de</strong> olhar o relógio pálido na pare<strong>de</strong> lateral, seu<br />

refl exo na vidraça. Os ponteiros assim invertiam seu movimento e<br />

eu queria mesmo acreditar que o tempo andava para trás. E jamais<br />

contava essas coisas à minha mãe: a fragilida<strong>de</strong> daquele momento<br />

eu o <strong>de</strong>positava nos bancos gastos do velório, com a máxima<br />

discrição e uma sanida<strong>de</strong> estudada.<br />

Meu pai não comparecera. Acreditava-se que assuntos da esfera<br />

estadual o haviam retido na Secretaria <strong>de</strong> Agricultura naquela tar<strong>de</strong>.<br />

Todos pareciam enten<strong>de</strong>r, principalmente tratando-se do senhor<br />

meu pai, funcionário público exemplar, licença médica alguma em<br />

vinte anos <strong>de</strong> casa, várias férias-prêmio ao longo da carreira. Ignorei<br />

se seu assento estaria <strong>de</strong>marcado, mas na segunda fi leira <strong>de</strong> bancos<br />

estavam, nesta or<strong>de</strong>m: Ione, da Caixa Econômica, Pingão, Anselmo,<br />

o motorista Pezão e o senhor João Ministério, cujo quarto era o<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Casagran<strong>de</strong>


Eduardo Domingues<br />

último do corredor. Na verda<strong>de</strong>, apenas minha família, o senhor<br />

João e o relojoeiro Anselmo morávamos no prédio. Os <strong>de</strong>mais<br />

eram amigos <strong>de</strong> meu pai. Conheciam as circunstâncias e por isso<br />

haviam comparecido.<br />

No caixão do Casagran<strong>de</strong> os cheiros <strong>de</strong> verniz e formol se<br />

misturavam. Casagran<strong>de</strong>, que tantas vezes minha mãe escon<strong>de</strong>ra<br />

no armário <strong>de</strong> utensílios <strong>de</strong> limpeza do prédio, sempre que o<br />

DOI/CODI da 4ª Divisão <strong>de</strong> Exército enviava seu agente Veloso,<br />

do Comando contra-subversão e contra-terrorismo e aspirante<br />

ao SNI para busca e apreensão. Aquele mesmo Veloso abusado e<br />

intragável que lia em voz alta os reclames <strong>de</strong>ntro do trolleybus,<br />

só para testar suas cordas vocais. Aquele mesmo Veloso janota<br />

que portava uma 9 mm carregada e dois pentes na cintura, uma<br />

navalha <strong>de</strong>ntro do bolso falso da calça, vinte cruzeiros na carteira,<br />

um início <strong>de</strong> hérnia lombar e uma <strong>de</strong>senvolvida neurastenia. Ainda<br />

não havíamos acostumado nosso olhar aos refl exos do sol no piso<br />

e nas rodinhas gastas do carrinho do caixão quando ouvimos sua<br />

voz estri<strong>de</strong>nte entrando pela garagem:<br />

– Senta a pua, Mengele! Eu disse pra você fi car aqui e não entrar.<br />

É visita <strong>de</strong> rotina!<br />

O ajudante enfiou as mãos nos bolsos da calça e virou<br />

rapidamente a cabeça para o lado da rua, <strong>de</strong>ixando o vento atiçar<br />

mais ainda seu cigarro Hollywood sem fi ltro. Parecia sem espaço,<br />

quase no meio da calçada.<br />

– Supimpa! Murmurou entre os <strong>de</strong>ntes, com voz <strong>de</strong> débil mental.<br />

Veloso entrou, olhou primeiro o caixão e <strong>de</strong>pois para a<br />

primeira fi la, os joelhos alinhados como num <strong>de</strong>sfi le <strong>de</strong> Sete <strong>de</strong><br />

Setembro. Não parecia haver outro ângulo para olhar aquele<br />

rosto magro, gru<strong>de</strong>nto e falso sob a luz surreal que nos batizava.<br />

Então, súbito:<br />

– Quem é o morto?<br />

Quero crer que naquele instante muitos homens se esforçavam<br />

para manter a imobilida<strong>de</strong>. Tanto trabalho havia sido feito para<br />

retirar o corpo <strong>de</strong> Casagran<strong>de</strong> do prédio utilizando-se a saída dos<br />

fundos pela gra<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois a caixa d’água e o subterfúgio do síndico<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 65


66<br />

com os caminhões que transportavam batata para o Mercado<br />

Central, as manobras <strong>de</strong> dobradura das lonas sobre a carroceria<br />

que Pezão realizava como ninguém, sob chuva ou sol; tantos riscos<br />

corridos do aparelho até aquele momento, o caixão repleto <strong>de</strong><br />

fl ores, a telinha branca sobre o rosto, o lacre sob a coroa <strong>de</strong> fl ores,<br />

tudo tão perfeitamente ensaiado e realizado sem um vacilo sequer.<br />

– Eu perguntei quem é o morto!<br />

– O senhor po<strong>de</strong>ria abaixar o tom <strong>de</strong> voz, por gentileza? Estamos<br />

num velório – disse o senhor João Ministério, fingindo não<br />

reconhecer a triste fi gura.<br />

Minha mãe se levantou e, com seu 1,5 metro <strong>de</strong> estatura, fi tou<br />

o agente:<br />

– O senhor é da família?<br />

– Claro que não, minha senhora. Estou aqui numa visita <strong>de</strong><br />

rotina do Departamento. Procurando pessoas.<br />

– Tem café e bolinhos ali naquela mesa. Fique à vonta<strong>de</strong>, senhor...<br />

– Veloso. Policial Veloso, minha senhora, a seu dispor.<br />

Os olhos <strong>de</strong> minha mãe encheram-se <strong>de</strong> lágrimas e ela voltou<br />

ao banco, amparada pelo senhor João. Percebia-se que não havia<br />

como questionar uma senhora que chorava. A conversa havia<br />

terminado. Então Limalha fi cou ainda mais inquieto na ca<strong>de</strong>ira,<br />

coçando a meia direita como se atacado por mil pulgas ou como se<br />

fi zesse sinais. O ruído dos carros na rua parecia não querer entrar<br />

naquele ambiente, espancado nas pare<strong>de</strong>s do fundo e esquecidos<br />

segundos após, como uma amnésia localizada. As fl ores estavam<br />

mais espessas junto ao morto.<br />

Eu sabia que seria simples: bastaria uma distração daquele<br />

casquilho e Limalha partiria seu pescoço. Agora ele se mantinha<br />

por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> uma pistola, mas tivesse ele coragem <strong>de</strong> enfrentar<br />

outro homem, mano a mano, e sua existência chegaria ao fi m. Sem<br />

carpi<strong>de</strong>iras, sem orações, sem her<strong>de</strong>iros. Apenas um movimento<br />

rápido do braço direito <strong>de</strong> Limalha e sua respiração cessaria. Eu<br />

via essas coisas, do modo que meu pai me contava. Tivesse Veloso<br />

a coragem <strong>de</strong> lutar às claras, e a faca <strong>de</strong> meu amigo conheceria<br />

seu sangue e o <strong>de</strong> seu assecla. Eu os via rolando entre os túmulos,<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Casagran<strong>de</strong>


Eduardo Domingues<br />

seus ossos fraturados e suas vísceras expostas, mas não ainda.<br />

Aquele labirinto borgiano aberto <strong>de</strong> lápi<strong>de</strong>s e cruzamentos soprava<br />

pequenas nuvens <strong>de</strong> algodão molhado em minhas narinas.<br />

Começamos a caminhada seguindo os coveiros que empurravam<br />

o carrinho enferrujado sob o féretro, na trilha aberta no gramado.<br />

Três minutos <strong>de</strong>ssa tortura e eu já me impacientava. Preocupavame<br />

a terra presa na sola dos sapatos, o barro que a chuva tornava<br />

espesso. Lembro-me com horror e tédio da argila das covas, do<br />

cheiro das fl ores e do silêncio, diante da laje eterna. Uma oração<br />

rápida, interrompida ru<strong>de</strong>mente:<br />

– Tem que abrir o caixão antes do sepultamento.<br />

Uma bomba havia caído no meio das lápi<strong>de</strong>s e, <strong>de</strong><br />

repente, todos os tornozelos <strong>de</strong> todos os homens pareceram<br />

irremediavelmente acorrentados uns aos outros, seus elos<br />

tocando <strong>de</strong> tempos em tempos o chão, faiscando em elétricas<br />

<strong>de</strong>scargas. Meu coração estava disparado e o calor que eu<br />

sentia <strong>de</strong>baixo da chuva era <strong>de</strong>sproporcional. Túmulos com<br />

seus números e datas passavam diante dos meus olhos numa<br />

sucessão macabra, vertiginosa. Uma alucinação dava lugar a<br />

outra, as mãos molhadas nos bolsos do calção muito curto, o<br />

medo tingindo o céu <strong>de</strong> cinza esver<strong>de</strong>ado, como num abismo.<br />

Todos tremiam, mas não minha mãe. Minha pequena mãe não<br />

tremia. Ela continuou firme, olhando o agente nos olhos, numa<br />

força que jamais tive.<br />

– Mengele, abra o caixão! Disse Veloso entre perdigotos.<br />

Limalha foi o primeiro a ver o rosto sereno <strong>de</strong> meu pai. Eu, o<br />

segundo. Sua pele fi na e muito pálida não pertencia àquele dia<br />

insone e tumultuado.<br />

– Homessa, Mengele! Esse não é o nosso homem!<br />

Assim dizendo, enxugou a aba do chapéu enquanto se afastava<br />

do caixão, com urgência. Deu um safanão no assistente, passou<br />

por todos nós e <strong>de</strong>sapareceu no morrinho, <strong>de</strong>pois da capela. Nós<br />

fi camos para o funeral.<br />

Ainda hoje me pergunto como aquilo fora feito. Ainda hoje<br />

percorro o quarteirão da Secretaria, na esperança <strong>de</strong> ver meu<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 67


68<br />

pai saindo do seu gabinete, terno alinhado, o couro dos sapatos<br />

sempre brilhante. Dizem que tenho difi culda<strong>de</strong>s em lidar com a<br />

realida<strong>de</strong>. Fuga pós-traumática na terapia. Realida<strong>de</strong> alterada. Sei<br />

apenas que <strong>de</strong>vo insistir e tentar enten<strong>de</strong>r como meus camaradas<br />

fi zeram aquilo.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Casagran<strong>de</strong>


Eduardo Domingues<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 69


70<br />

Alegrete, <strong>de</strong> Trem<br />

Luís Eduardo Neves<br />

Às vésperas do seu 75º aniversário, natural <strong>de</strong> Porto Alegre, RS, fi lho <strong>de</strong><br />

alegretenses, raramente apela para reminiscências ao escrever. O conto<br />

Alegrete, <strong>de</strong> Trem é uma exceção.<br />

Formado em Geologia na primeira turma <strong>de</strong> UFRGS, ingressou na Petrobras<br />

em 1961 pela antiga Região <strong>de</strong> Produção da Bahia. Participou da fundação do<br />

Cenpes, em 1967, e trabalhou na extinta subsidiária Braspetro (exterior e se<strong>de</strong>)<br />

antes <strong>de</strong> retornar ao órgão hoje intitulado <strong>de</strong> Exploração & Produção, on<strong>de</strong><br />

se aposentou em 1990. Dedicou-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então à leitura e à escrita <strong>de</strong> contos.<br />

Participou <strong>de</strong> quase todos os concursos da <strong>Petros</strong> e foi classifi cado em seis<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

5º lugar


<strong>de</strong>les, <strong>de</strong>stacando-se um segundo lugar, em 2006, e um terceiro, em 2010.<br />

Criticado por ter misturado contos meio trágicos com contos meio<br />

cômicos na sua primeira coletânea (A Comédia Urbana, 1992), adotou<br />

as categorias Lúbricos, Lúdicos e Conjugais para editá-los e reeditá-los<br />

periodicamente, com acréscimos, através da Fábrica <strong>de</strong> Livros do SENAI/RJ.<br />

Como não planeja o que escreve, termina seus contos quando encontra<br />

um fi nal a<strong>de</strong>quado. Este método, ou melhor, esta falta <strong>de</strong> método, acabou<br />

gerando quatro novelas com mais <strong>de</strong> cem páginas porque seus fi nais<br />

custaram muito a chegar. “Culpa dos personagens...”, sentencia o autor.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

71<br />

71


72<br />

Mas que ligeiros passavam os postes <strong>de</strong> telégrafo pela janela<br />

do vagão... e que assustados fugiam os pássaros dos fi os on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scansavam! Era o seu trem que corria, fumaça no céu, fuligem<br />

no nariz. Pressa por quê? Era uma criança viajando <strong>de</strong> férias, mais<br />

contente impossível.<br />

Os avós à espera, sonho anual <strong>de</strong>les feito real com a chegada<br />

do neto. Será que receberam o telegrama?... Quanto ao sonho<br />

do menino, o <strong>de</strong> viajar sozinho, já não era um sonho. Partida na<br />

véspera, à noite, para a aventura <strong>de</strong> atravessar o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Despedidas com mil recomendações dos pais preocupados, entrega<br />

da passagem ao homem <strong>de</strong> boné e busca do seu beliche numa<br />

cabine com gente estranha que roncou mais do que a locomotiva.<br />

Ainda bem que o balanço do trem <strong>de</strong>u sono...<br />

Fez força para sonhar com o cavalo manso e cego dum olho que<br />

o avô o <strong>de</strong>ixava montar na chácara on<strong>de</strong> morava, mas só apareciam<br />

no seu pensamento as lagartixas correndo pelo muro <strong>de</strong> pedra que<br />

ro<strong>de</strong>ava o pasto.<br />

Lá era meio longe do centro da cida<strong>de</strong>, mas aos domingos o avô o<br />

levava <strong>de</strong> charrete ao Cine Ypiranga com Y, on<strong>de</strong> via um episódio do<br />

<strong>de</strong>tetive Dick Tracy em preto-e-branco e um fi lme colorido, quem<br />

sabe As Minas do Rei Salomão... O velho não entrava no cinema,<br />

aproveitava a tar<strong>de</strong> para visitar parentes. Se assistisse a um fi lme<br />

<strong>de</strong> cowboy recordaria o seu tempo <strong>de</strong> tropeiro, levando gado <strong>de</strong><br />

fazen<strong>de</strong>iros ricos para invernadas ou para embarque num trem...<br />

Pena que ele próprio não fosse um fazen<strong>de</strong>iro rico...<br />

Mal amanheceu, bal<strong>de</strong>ação em Santa Maria, que um dia se<br />

chamou Santa Maria da Boca do Monte. Arrepio pelo vento gelado<br />

e pelo medo <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r na plataforma que não acabava <strong>de</strong> tão<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Alegrete, <strong>de</strong> Trem


Luís Eduardo Neves<br />

comprida. A mala pesava, mas nada <strong>de</strong> gastar seu dinheiro com<br />

carregador. Guardava-o para uns chocolates, num prenúncio <strong>de</strong><br />

vida marcada por planos e precauções. Cheiro <strong>de</strong> carvão. Café da<br />

manhã quente <strong>de</strong>mais no restaurante da estação, mas ele tinha o<br />

tempo <strong>de</strong> espera por outro trem, só com assentos, para prosseguir<br />

a viagem até as cinco da tar<strong>de</strong>. Se não se atrasasse...<br />

De criança só ele, pelo menos no vagão escolhido, on<strong>de</strong><br />

conseguiu um lugar junto à janela para apreciar as coxilhas e a<br />

preguiça <strong>de</strong> bois malhados, <strong>de</strong>itados ou pastando, indiferentes<br />

ao resfolego da locomotiva e a ele, nariz colado à vidraça gelada.<br />

Nas pontes <strong>de</strong> ferro barulhentas o trem diminuía e aí dava medo,<br />

mas passava. Diziam que o engenheiro construtor duma <strong>de</strong>las se<br />

suicidou por medo <strong>de</strong> que ela <strong>de</strong>smoronasse no dia da inauguração.<br />

Mas esta história se contava sobre muitas pontes...<br />

Num vilarejo sem nome, on<strong>de</strong> o trem nem parou, um<br />

cachorrinho perneta tentou emparelhar com o trem, mas coitado...<br />

Quando bateu a fome, farnel <strong>de</strong> galinha assada e fria com uma<br />

farofa que salpicou a camisa. Bala azedinha logo <strong>de</strong>pois, nunca<br />

antes, meu fi lho! Mas o mais importante era a sua In<strong>de</strong>pendência,<br />

só por viajar só.<br />

A Morte só existia no brado retumbante dum hino. O livro <strong>de</strong><br />

História tinha uma coisa que ele não entendia: D. Pedro I, espada<br />

na mão, era mais moço que o fi lho, aquele velho barbudo... A<br />

ban<strong>de</strong>ira do Brasil era sagrada. Diante <strong>de</strong>la ele <strong>de</strong>sfi lava uma vez<br />

por ano, feito soldado, passo certo embora banda <strong>de</strong>safi nada. E<br />

o seu país era enorme, mapa colorido em capas <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rno e na<br />

pare<strong>de</strong> da sala <strong>de</strong> aula. Pernambuco... capital? Não po<strong>de</strong> olhar...<br />

Quem disso se lembra? Só mesmo um velho, numa sessãonostalgia,<br />

com preguiça <strong>de</strong> contar o resto daquela viagem e duma<br />

vida cheia <strong>de</strong> bal<strong>de</strong>ações, com cenas surgidas duma memória<br />

cansada: a fumaça do trem, gente carregando malas, a galinha<br />

com farofa, aquele cachorrinho perneta, o cavalo cego dum olho,<br />

as lagartixas, as estações com nomes circunstanciais como Tigre,<br />

Jacaquá, sabe-se lá... e on<strong>de</strong> mais o trem parava p’ra matar a sua<br />

se<strong>de</strong> <strong>de</strong> vapor.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 73


74<br />

A do menino era <strong>de</strong> gasosa <strong>de</strong> limão, vendida nas paradas por<br />

outros, <strong>de</strong> pés <strong>de</strong>scalços, que ele jamais reveria não fosse aquela<br />

rêverie que o envolveu e lhe <strong>de</strong>volveu os avós, distantes tempo<br />

e espaço. Dois astros perdidos no firmamento e achados no<br />

pensamento só porque se lembrou daquela viagem <strong>de</strong> trem...<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Alegrete, <strong>de</strong> Trem


Luís Eduardo Neves<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 75


76<br />

O Canário<br />

Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Nasceu e viveu a infância em Bom Despacho, interior <strong>de</strong> Minas Gerais,<br />

on<strong>de</strong>, na juventu<strong>de</strong>, foi estimulado ao hábito da leitura, facilitado pela<br />

mo<strong>de</strong>sta biblioteca municipal on<strong>de</strong>, porém, não faltavam obras <strong>de</strong> autores<br />

importantes. Entre os brasileiros, chamou-lhe a atenção os que abordam a<br />

riqueza <strong>de</strong> personagens e histórias regionais, tais como José Lins do Rego,<br />

<strong>de</strong> Fogo Morto; Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, <strong>de</strong> Os Sertões; Graciliano Ramos, <strong>de</strong><br />

São Bernardo, e mineiros como Mário Palmério, <strong>de</strong> Vila dos Confi ns; e,<br />

inevitável, Guimarães Rosa, <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertões, Veredas – uma lista mínima,<br />

apenas para citar alguns dos que marcaram a experiência do autor.<br />

Leitor contumaz, aventurou-se na poesia e, um pouco menos, nos<br />

contos. Em 2011 fi cou em 2º lugar no <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> Crônicas da Associação<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

4º lugar


Médica Brasileira. Participou do X <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>, on<strong>de</strong> foi<br />

classifi cado em 6º lugar, com o conto O Temporal.<br />

Formado em Medicina, mora e trabalha em Belo Horizonte, MG, cida<strong>de</strong><br />

que tem em seus arredores a beleza permanente das montanhas e incontáveis<br />

lugarejos com atrativos para quem queira usufruir a atmosfera mineira.<br />

A inspiração para o conto O Canário veio das inúmeras idas às fazendas<br />

<strong>de</strong> parentes na infância e adolescência e, nos últimos anos, à Fazenda<br />

Engenho d’Água, localizada próxima à Floresta Estadual Uaimi-í, em<br />

Glaura, município <strong>de</strong> Ouro Preto, MG. Seus proprietários, Helton e<br />

Breno, <strong>de</strong>senvolveram no local um projeto <strong>de</strong> tratamento e soltura <strong>de</strong><br />

aves apreendidas em situação ilegal. Um aprendizado a mais <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

77<br />

77


78<br />

Tião acordou cedo. Demasiado até, quando lá fora o meioescuro<br />

ainda dominava. Chovera à noite, das chuvinhas miúdas,<br />

o tic-tic sem fi m no telhado. Tivera sono remansoso, <strong>de</strong>stes que<br />

nem sonho comportava. De quando em vez, movia-se no colchão<br />

<strong>de</strong> palha – palhas secas estralando – se aconchegava às cobertas,<br />

e pegava a dormir <strong>de</strong> novo. Até tar<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ver refl etida em cima,<br />

nas telhas, a luz <strong>de</strong> lamparina do quarto ao lado, aon<strong>de</strong> o ronco<br />

do pai, madrugada entreira, chegou a incomodá-lo.<br />

Antes <strong>de</strong> o galo cantar, Tião já apeara da cama. Tinha avisado<br />

no dia anterior que iria à vila. Sua mãe, lá do quarto, interrogou:<br />

– Tião, pra que tão cedo assim?<br />

– Deu vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fi car na cama não... – respon<strong>de</strong>u.<br />

Tinha seus <strong>de</strong>zesseis anos. De nome Sebastião, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno<br />

Tião é como o chamavam.<br />

Criado na roça, ajudando o pai na plantação e no apartear do<br />

gadinho campeiro, cresceu esperto o moleque. Teve seus abcês,<br />

encaminhado nas letras por artes <strong>de</strong> D. Zizica da escola rural. Sonhador<br />

por <strong>de</strong>mais, isto era! Capaz <strong>de</strong>, beira <strong>de</strong> córrego, fi car cismarento vendo<br />

o correr da água entre as pedras ou a viagem das nuvens na vastidão do<br />

céu. Ou ainda, franciscano, atentar aos passarinhos, seus voos e cantos.<br />

Após levantar-se, andou pela casa em penumbras, persignouse<br />

frente à imagem <strong>de</strong> Nossa Senhora na sala, on<strong>de</strong> a vela acesa<br />

tremelicava, e saiu para o terreiro. Fora, frio <strong>de</strong> primavera –<br />

novembros – cheiro <strong>de</strong> terra molhada e um ventinho treteiro<br />

na cara. Foi até <strong>de</strong>baixo da mangueira e <strong>de</strong>u uma boa mijada,<br />

aliviando o <strong>de</strong>sconforto da bexiga. Capucho, o cachorro da casa,<br />

veio fazer agrados, mas Tião não quis saber: “sai pra lá”, foi tocando<br />

o <strong>de</strong>sinquieto, que parou à distancia, <strong>de</strong>sditoso.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Canário


Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Ao voltar para <strong>de</strong>ntro, o rádio do pai já sintonizara a Aparecida;<br />

dupla sertaneja cantava paixões <strong>de</strong>senfreadas. Em cima da mesa,<br />

bolo <strong>de</strong> fubá, biscoitos, queijo amarelo e manteiga. Sua mãe trazia<br />

o café fumegante, cheiro gostoso espalhando-se casa afora.<br />

– Eta, que acordou cedo <strong>de</strong> vera, hein?! – disse ela.<br />

– Quero aproveitar a fresca – respon<strong>de</strong>u.<br />

– Num volta tar<strong>de</strong>, menino – gritou o pai lá do quarto.<br />

Tomou café e a seguir pegou na varanda a gaiola com o canárioda-terra,<br />

pediu a benção (“a benção pai, a benção mãe” – “vai com<br />

Deus, meu fi lho”) e saiu. Quando atravessou o curral, o sol pispiava<br />

a nascer; coloridos amarelos-ouro tingiam o alto do cerrado, beira<br />

do horizonte. A porteira guinchou quando a abriu.<br />

Gaiola na mão, foi morro abaixo rumo ao fundo do vale on<strong>de</strong><br />

o caminho virava para a esquerda rumo à fazenda do Pôsico e da<br />

ponte <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira rio acima, cerca <strong>de</strong> uma légua. Seguiu pelo <strong>de</strong>clive<br />

em trilho estreito que ia até a margem do rio on<strong>de</strong> estava a canoa.<br />

Quando o céu resplan<strong>de</strong>ceu, já ia na meada das correntes. Raios<br />

bateram direto nas asas do canário, que refulgiu que nem limão<br />

maduro. Tião sorveu o ar fresco peito a<strong>de</strong>ntro. Sentia-se inteiro o<br />

marmanjo, bem que satisfeito da vida. À beira do rio, atraiu-lhe<br />

o olhar o cipó-<strong>de</strong>-são-joão, tapete laranja estendido no barranco.<br />

Dava linha para a imaginação, enquanto os remos remordiam a<br />

superfície semovente do rio. Dinorah fi cara <strong>de</strong> encontrá-lo no<br />

Largo da Matriz após a missa. Pensava na moça: olhos gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> pestanas recurvas, a pele negra e macia que nem jabuticaba...<br />

Seu coração alvoroçava-se. Uma ave passou rente à sua cabeça,<br />

um gavião atrevido certamente. Viu na outra margem luzes <strong>de</strong><br />

lampião. “Pescadores”, pensou. Hora havia que o vento reforçava,<br />

querendo levar-lhe o chapéu <strong>de</strong> palha e lançá-lo à correnteza.<br />

Pássaros trinavam no capão beira-rio; até o canário cismou <strong>de</strong><br />

querer cantar. O sol, redoma <strong>de</strong> fornalha em brasa, <strong>de</strong>rramava<br />

seus raios contra a montanha, reverberando encosta abaixo até se<br />

esparramar sobre as águas.<br />

Remou até a outra margem, on<strong>de</strong> numa prainha arenosa<br />

amarrou a canoa, que ali permaneceria no seu aguardo. Foi em<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 79


80<br />

frente, seguindo pela estradinha que ia dar na Vila. Logo a seguir,<br />

topou com Seu Ariosto. Cambeta, espigado e magro, tinha o<br />

costume <strong>de</strong> juntar-se ao seu pai e outros para o truco nos fi nais<br />

<strong>de</strong> semana. Não gostava <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r e trancafi ava a cara quando<br />

as cartas lhe fugiam; mas se tratava <strong>de</strong> um bom homem, <strong>de</strong> atos<br />

corretos, <strong>de</strong> honestas intenções.<br />

– Ei Tião, sobe aqui no carro! Levo sem paga – convidou-o em<br />

riso aberto.<br />

Tião não titubeou e empoleirou-se no carro <strong>de</strong> boi que seguia<br />

morro acima na manhã estival, os chumaços <strong>de</strong> baraúna gemendo<br />

cantoria sem fi m.<br />

– Vou levando encomenda pro Chico do Armazém: ovos,<br />

queijo, carne <strong>de</strong> lata na banha... – disse o carreiro. Tiro proveito<br />

do domingo, não tem arranjação na roça pra fazer.<br />

– E Dona Geralda, nos serviço <strong>de</strong> casa? – arguiu Tião.<br />

– Tá lá, no manejo dos menino. Precisa ver o Cletinho, anda<br />

num senvergonhismo danado o miúdo, querendo o tempo todo<br />

cair nas artes, um travesso... Saiu do engatinho; agora acha que é<br />

gente pra correr casa toda, querendo por que quer ir pro curral. Dia<br />

<strong>de</strong>ste peguemos o saliente quase que ao pé do Rochedo, boi sem<br />

linha que zanzava por ali, beira da casa. Geralda é que diz: “menino<br />

mais estripulento este; num po<strong>de</strong> tirar os olhos <strong>de</strong>le um tico”. E ocê,<br />

que <strong>de</strong>u pra ir pra cida<strong>de</strong> tão cedo com este passarim-canário aí?<br />

– Tô levando pra Dinorah, Sô’Riosto, fi quei <strong>de</strong> encontrar com<br />

ela <strong>de</strong>pois da missa.<br />

– Eta menino danado, tá <strong>de</strong> namoro fi rme? Filha <strong>de</strong> quem a Dinorah?<br />

– Seu Divino, da Prefeitura...<br />

– Ah, que mexe com a papelada do imposto. Bobo é que ocê<br />

num é, hein Tião! Menina mais formosa, uma tetéia!<br />

Tião fi cou a mirar a estradinha que fi cava para trás, ver<strong>de</strong>s do mato<br />

em tons diversos, o transvôo <strong>de</strong> pássaros nas grimpas das árvores,<br />

arruaça <strong>de</strong> maritacas cruzando o céu, ipês salpicando <strong>de</strong> amarelo a<br />

mata. Saltou do carro numa baixada e correu até um amontoado <strong>de</strong><br />

arbustos on<strong>de</strong> colheu goiabas maduras, frias, molhadas pelo orvalho,<br />

que dividiu com o companheiro <strong>de</strong> jornada.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Canário


Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Passaram à frente <strong>de</strong> um sítio abandonado, porteira em cacos e<br />

casinha velha <strong>de</strong> portas e janelas escurecidas, trepa<strong>de</strong>iras subindo<br />

pelas pare<strong>de</strong>s.<br />

– Pobre do Levindo – pon<strong>de</strong>rou Seu Ariosto – morrer daquele<br />

jeito... Tudo por causa da <strong>de</strong>smiolada da mulher que se embeiçou<br />

por viajante que carregou ela pros confi ns do mundo. Carecia <strong>de</strong><br />

acabar assim não. Mas cada um tem seu <strong>de</strong>stino traçado. Danada<br />

aquela Zaíra... E bonita que dava gosto. Morena, cabelão comprido<br />

até a cintura e uns en<strong>de</strong>moninhados <strong>de</strong> uns olhos que entortavam<br />

qualquer idéia. Tinha que <strong>de</strong>sembestar mesmo em <strong>de</strong>sgraceira, do<br />

tanto que o Levindo <strong>de</strong>u <strong>de</strong> cair no ferrão da tristura e da cachaça.<br />

Agora t’aí o sítio, tudo abandonado; ninguém quer morar em casa<br />

on<strong>de</strong> um acabou daquele jeito.<br />

Seu Ariosto fez o sinal da cruz <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tirar o chapéu.<br />

Adiante, fazendinha nos trinques, bananal vistoso, o recanto do<br />

Noé da Don’Ana. O riacho transcorria num luxo <strong>de</strong> transparência,<br />

risonho e saltitante, as margens cheias <strong>de</strong> mato on<strong>de</strong> fl ores do<br />

campo dançavam ao vento. Da chaminé subia fumaça clara<br />

enovelada ao ar da manhã. Um tiziu soltava seu canto dando<br />

saltinhos no galho do limoeiro: tiziuuu... tiziuuu...<br />

– Passarim mais aparecido – falou Tião – tem <strong>de</strong> pular toda<br />

hora que canta!<br />

– Carece <strong>de</strong>stas manhas, a natureza – pon<strong>de</strong>rou Ariosto – jeitos<br />

<strong>de</strong> fazer o rotineiro, como Deus instalou nas coisas e nos viventes.<br />

Estru’dia mesmo vi um tiú na estrada indo pra Pachêca, cê num<br />

imagina que tamanho, pra mais <strong>de</strong> metro! Parecia mais um jacaré<br />

fugitivo do rio. Bonito ele correndo, rabeando, sumindo no<br />

matagal... Se a gente enten<strong>de</strong> do mundo? Necas, nele mesmo é que<br />

semo sem governo, na ignorança <strong>de</strong> suas valida<strong>de</strong>s.<br />

E Seu Ariosto tocava os bois, cutucando-os com o ferrão:<br />

– Vamo Estrelo... Malhado!<br />

Casinhas simples começavam a aparecer, cercas <strong>de</strong> bambu,<br />

quintais com árvores diversas, cachorros a correr em latição,<br />

querendo assustar as parelhas, meninos brincando na rua. Mais à<br />

frente Tião agra<strong>de</strong>ceu a carona.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 81


82<br />

– No mais tardar, lá pelas quatro tô <strong>de</strong> volta, Tião; querendo,<br />

volta comigo – e lá foi Seu Ariosto, o carro entoando sua cantiga<br />

sem fi m.<br />

Chegado à praça da igreja, sentou-se num banco <strong>de</strong>baixo do<br />

caramanchão a <strong>de</strong>sfrutar o frescor da sombra. Observando o<br />

movimento, reconheceu passantes: – Zequinha Ferroviário, Antão<br />

do caminhão <strong>de</strong> leite, Dona Çãozica indo rumo à igreja. Passou<br />

também Divaldi, primo da Dinorah, que se aproximou:<br />

– Que cê tá fazendo aí, Tião?<br />

– Esperando Dinorah – respostou seco.<br />

– Então fi ca aí que uma hora ela aparece – Divaldi fez cara <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>boche e foi andando num balanço <strong>de</strong> moleque querendo se dar<br />

ares <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>. “Entojado”, matutou Tião.<br />

Não <strong>de</strong>u muito tempo e ela surgiu, uma belezura no meio da<br />

manhã, sorriso nos lábios, alvura <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes, tudo conformado em<br />

encantamento que se transmudava em pura ternura no peito do<br />

garoto. Ela foi chegando, açambarcando tudo, colocando no <strong>de</strong>svão<br />

do vazio o restante dos viventes. Trajava vestido <strong>de</strong> cores claras<br />

indo até abaixo dos joelhos, cinto largo na cintura. Sentou-se ao<br />

lado <strong>de</strong> Tião, que mal conseguia suster a emoção:<br />

– Ei, Tião, há muito que ocê chegou?<br />

– Um tanto, Dinorah.<br />

– Estava com sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim, estava? – perguntou com olhos<br />

travessos.<br />

– Um tanto... Quer dizer, muito, Dinorah.<br />

Ele pegou a mão <strong>de</strong>la entre as suas.<br />

– Tava mesmo com sauda<strong>de</strong>, Dinorah. E você lembrou <strong>de</strong> mim,<br />

nem que um tantinho?<br />

Dinorah apertou sua mão.<br />

– Ah, Tião, você que é mesmo bocoió. Nem me lembro d’ocê,<br />

um minutinho nem...<br />

E o abraçou, sussurrando em seu ouvido:<br />

– Gosto tantão d’ocê!<br />

Depois Dinorah perguntou o que fazia ali aquela gaiola com<br />

o canário.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Canário


Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

– Trouxe pr’ocê, Dinorah; o mais vistoso que eu consegui pegar<br />

na roça.<br />

De repente Tião notou nos refl exos dos olhos <strong>de</strong>la – luzes e<br />

sombras em águas <strong>de</strong> poço fundo – a turbulência que afl orava.<br />

Não percebeu ali nem um pouco da alegria que esperara.<br />

– Como é que faz <strong>de</strong>ste jeito com o bichinho, <strong>de</strong>ixando ele ai<br />

assim nesta gaiola? Num vê que ele é que nem nós, Tião, gosta nem<br />

um pouco <strong>de</strong> fi car na prisão... Olha a tristurinha <strong>de</strong>le.<br />

Tião permaneceu ali encabulado, sem saber o que fazer. Foi<br />

Dinorah – cheia <strong>de</strong> dó pela ave – que propôs:<br />

– Vamos lá pra casa, a gente solta ele no quintal.<br />

Não havia como recusar e pouco tempo <strong>de</strong>pois, em meio a<br />

mangueiras, bananeiras e outras árvores, o canário escapou pela<br />

portinhola aberta, alçando voo contra o azul do céu.<br />

Tião fi cou por ali, na casa <strong>de</strong> Dinorah, on<strong>de</strong> almoçou frango<br />

caipira, arroz, angu, tutu e couve. Dona Candinha, mãe <strong>de</strong>la, parece<br />

que simpatizava com ele, tratando-o com apreço. Havia os irmãos<br />

mais velhos, que até mangavam <strong>de</strong>le, mas sem <strong>de</strong>spiques; sobrinhos<br />

corriam e gritavam pela casa junto aos cachorros. Seu Divino <strong>de</strong><br />

quando em vez levantava a voz, exigindo or<strong>de</strong>m, sem que muito o<br />

aten<strong>de</strong>ssem. Mais tar<strong>de</strong>, Divaldi chegou, cumprimentou Dinorah,<br />

mas não se mostrou amistoso com Tião, a quem fez que não viu.<br />

“Ciumeira <strong>de</strong> primo enrabichado”, cismou Tião e, no <strong>de</strong>spiste,<br />

convidou a namorada para irem até a praça tomar sorvete. Queria<br />

mais é fi car a sós com a moça, po<strong>de</strong>r-se banhar nos seus olhos, apertála<br />

justinho ao peito. Que o assanhado do Divaldi fosse se danar!<br />

– Aquele seu primo... – começou a comentar.<br />

– Esquenta não, Tião, é um metido a besta – foi ela logo botando<br />

água na fervura.<br />

Na travessia <strong>de</strong> volta, impulsionando a canoa na travessia do rio,<br />

quando o sol tendia <strong>de</strong>cidido para o horizonte, Tião enternecia-se<br />

na reminiscência dos acontecimentos. Sem parar <strong>de</strong> remar, fechou<br />

os olhos para melhor lembrar-se <strong>de</strong> quando – já o canário fora <strong>de</strong><br />

vistas – Dinorah sorriu para ele, <strong>de</strong>u-lhe um abraço apertado e,<br />

após olhar fundo em seus olhos, falou:<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 83


84<br />

– Obrigado, Tião; este é o melhor presente que podia dar pra mim.<br />

O beijo na boca que veio a seguir – o primeiro – selou <strong>de</strong> vez<br />

sua felicida<strong>de</strong>.<br />

Da margem vinha a cantoria estri<strong>de</strong>nte das cigarras. A noite<br />

<strong>de</strong>scia com passadas matreiras por encostas, sopés <strong>de</strong> serras e<br />

pirambeiras, revestindo o mundo com seus mistérios. Os remos<br />

batiam ritmados na superfície do rio.<br />

Quando Tião pisou o chão do alpendre <strong>de</strong> sua casa, a barra do<br />

horizonte já se tingia <strong>de</strong> vermelhos e alaranjados. Olhou para as gaiolas<br />

<strong>de</strong>penduradas e foi logo pensando, aos ver os pássaros lá <strong>de</strong>ntro:<br />

– Amanhã solto todos – e foi entrando casa a<strong>de</strong>ntro.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

O Canário


Antonio Ângelo <strong>de</strong> Oliveira<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 85


86<br />

Regra <strong>de</strong> Três<br />

Luís Fernando Lima <strong>de</strong> Brito<br />

O autor do texto Regra <strong>de</strong> Três, po<strong>de</strong>-se dizer, não é exatamente do time<br />

<strong>de</strong> escritores que produz com muita frequência. A média atual é um conto<br />

ou crônica a cada dois anos. Mesmo assim, ele tem por hábito participar<br />

<strong>de</strong> concursos literários. Já venceu ao menos dois: as edições do Stanislaw<br />

Ponte Preta, realizada no Rio <strong>de</strong> Janeiro, e o Felippe D´Oliveira, no Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul. Seu processo criativo passa pela constante observação do<br />

cotidiano, prática com a qual Luis Fernando procura assimilar pequenos<br />

<strong>de</strong>talhes e, “principalmente, os absurdos do dia a dia”.<br />

Seu autor preferido no momento é o português José Saramago, e o livro<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

3º lugar


<strong>de</strong> cabeceira, uma publicação sobre astronomia, intitulada Selene, a Lua ao<br />

Alcance <strong>de</strong> Todos, <strong>de</strong> <strong>Rubens</strong> <strong>de</strong> Azevedo. A ciência que trata dos astros, aliás,<br />

é seu hobby predileto. Para Luis Fernando, o mercado editorial brasileiro<br />

está em fase <strong>de</strong> crescimento e caminha para o reconhecimento dos autores<br />

nacionais além das nossas fronteiras. Por enquanto, publicou apenas contos<br />

e crônicas em coletâneas <strong>de</strong> concursos literários, mas preten<strong>de</strong> publicar<br />

uma obra autoral um dia.<br />

É casado e tem dois fi lhos – Pedro e Eduardo. Trabalha na gerência <strong>de</strong><br />

Patrocínios Culturais da Petrobras, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

87<br />

87


88<br />

Desengatilhou a arma. Desistira <strong>de</strong> usá-la. Era um homem bom,<br />

um simples contador, e não um assassino. Não importava o que o<br />

infeliz na sua frente acabara <strong>de</strong> contar. Não importava também o<br />

que sua mulher havia feito. Não iria pegar trinta anos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia por<br />

isso. Sua mulher o traíra muitas vezes, agora sabia, mas isso não<br />

era o fi m do mundo. O sujeito à sua frente abrira o bico, contara<br />

toda a verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>talhara as confi dências que ouvira tantas vezes<br />

da mulher do contador, naquele mesmo quarto. Agora ele sabia<br />

que foram cinco amantes em seis anos. Jamais suspeitara. Cinco,<br />

em seis anos... Na média, zero vírgula oitenta e três, três, três,<br />

infi nitos três, uma dízima periódica <strong>de</strong> amantes por ano. Odiava<br />

dízimas periódicas. Dízimas eram um argumento usado pelos não<br />

iniciados para tentar <strong>de</strong>monstrar a imperfeição da matemática. Só<br />

que a matemática era perfeita, ele o sabia. Tão perfeita que se ele<br />

se incluísse entre os amantes – afi nal, os maridos também amam –<br />

seriam seis homens em seis anos. Assim, na média – e, no fundo, no<br />

fundo, o que importa é a média -, um homem por ano. Agora sim.<br />

Um. Número redondo, perfeito, a unida<strong>de</strong> clara e concisa. Ajudava<br />

a enxergar a verda<strong>de</strong>ira dimensão do problema. Não era tão grave.<br />

Apenas um por ano, e incluindo a ele próprio! Antes <strong>de</strong> digerir<br />

completamente este raciocínio, o outro sujeito começou a dizer<br />

que sua mulher só o havia traído por <strong>de</strong>testar seu jeito <strong>de</strong> ser. Ela<br />

o achava um chato, que tinha <strong>de</strong> quantifi car tudo a sua volta para<br />

que o mundo fi zesse sentido. “Só que o mundo não tem sentido”,<br />

dizia ela. Ah, como estava errada! Galileu já havia dito que o livro<br />

do mundo está escrito em caracteres matemáticos. E quem era ela<br />

para discordar <strong>de</strong> Galileu? Já ele, ele sim acreditava nos números,<br />

acreditava na matemática e nas outras ciências. Mas não era tão<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Regra <strong>de</strong> Três


Luís Fernando Lima <strong>de</strong> Brito<br />

cartesiano como sua mulher dizia. Era exagero <strong>de</strong>la e ele não iria<br />

pegar trinta anos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia por causa <strong>de</strong> uma simples traição<br />

quíntupla, ou sêxtupla, que seja. Mesmo reduzindo a pena em dois<br />

terços e <strong>de</strong>scontando quatro anos por bom comportamento, teria<br />

<strong>de</strong> cumprir uns bons vinte por cento da pena. E, acreditem, seis<br />

anos é muita coisa quando se está atrás das gra<strong>de</strong>s.<br />

***<br />

Havia saído do trabalho na hora do almoço para pagar a conta <strong>de</strong><br />

telefone, naquela sexta-feira nebulosa, quando o celular tocou e uma<br />

voz feminina e anônima, vinda <strong>de</strong> um orelhão qualquer, contou-lhe<br />

tudo. Deu o nome do amante da mulher, <strong>de</strong>u o en<strong>de</strong>reço, contou<br />

<strong>de</strong>talhes sórdidos. Ele registrou tudo, acreditou em cada palavra que<br />

ouviu. Agora sim, tudo se encaixava. Era tão óbvio. Como não havia<br />

percebido antes? As saídas misteriosas no meio da tar<strong>de</strong>, enquanto<br />

ele estava no trabalho, as frequentes dores <strong>de</strong> cabeça, o tom <strong>de</strong> voz<br />

sarcástico, as piadinhas na frente dos amigos... Aquele telefonema<br />

anônimo era a prova dos nove. Não voltou ao escritório. Pegou um<br />

ônibus e foi para casa. Sua mulher não estava. Subiu na banqueta e<br />

abriu uma caixa <strong>de</strong> papelão guardada no canto mais inacessível do<br />

guarda-roupa. Era a pistola da Segunda Guerra que nunca usara,<br />

herança do pai, herói <strong>de</strong> Monte Castelo. Não sabia atirar, mas pelo<br />

menos sabia que tinha <strong>de</strong> ter uma bala na agulha para funcionar. E<br />

tinha. Saiu apressadamente, foi até o en<strong>de</strong>reço anotado às pressas<br />

no verso da conta <strong>de</strong> telefone e agora estava ali, na frente do sujeito<br />

número cinco, sem saber ao certo o que fazer. Respirou fundo, pôs<br />

a cabeça para funcionar novamente. Seria mais lógico sair dali, se<br />

separar da mulher, ver a fi lha apenas nos fi ns <strong>de</strong> semana. Ele po<strong>de</strong>ria<br />

se casar <strong>de</strong> novo, ela po<strong>de</strong>ria se apaixonar por algum outro imbecil,<br />

e bola pra frente que a vida continua. Guardou a arma sob a camisa<br />

e caminhou para a porta.<br />

– Não quero mofar seis anos na ca<strong>de</strong>ia, disse antes <strong>de</strong> sair, como<br />

se sentisse obrigação <strong>de</strong> explicar ao outro a repentina mudança <strong>de</strong><br />

atitu<strong>de</strong>. Saiu, encostando a porta vagarosamente.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 89


90<br />

Já era noite. Chovia. Chuva <strong>de</strong> trovão e relâmpagos. Estava calmo<br />

e incrivelmente orgulhoso da atitu<strong>de</strong> que tomara. Era maduro e<br />

equilibrado o sufi ciente para saber que essas coisas po<strong>de</strong>m acontecer<br />

com qualquer casal. Quem sabe ele também não teria sua parcela <strong>de</strong><br />

culpa? Talvez se tivesse dado mais atenção à mulher... “O amor não<br />

é uma equação tão simples como parece a princípio. Muitas são as<br />

variáveis”, pensou.<br />

Meteu a mão no bolso para aquecê-la e sentiu um papel dobrado<br />

e amassado. Era a conta <strong>de</strong> telefone. Esquecera <strong>de</strong> pagar. Vencia<br />

naquele dia e o banco já havia fechado. Suou frio. Multa <strong>de</strong> dois por<br />

cento, juros <strong>de</strong> <strong>de</strong>z por cento. Tremeu. Nunca pagara uma multa<br />

na vida, nunca atrasara uma conta. Dois por cento mais <strong>de</strong>z por<br />

cento igual a doze por cento <strong>de</strong> puro prejuízo. Aquilo era o fi m<br />

da picada! E tudo culpa daquela vaca, daquela ca<strong>de</strong>la vagabunda!<br />

Parou, repentinamente. E aquele <strong>de</strong>sgraçado lá atrás? Deve estar<br />

rindo <strong>de</strong>le agora, pensando “ganhou cinco pares <strong>de</strong> chifre, com<br />

juros, multa e correção monetária!”. Foi a gota d´água.<br />

Deu meia volta. Um relâmpago cortou o céu. Contou: um, dois,<br />

três, quatro segundos, trovão. A chuva apertou, soando como um<br />

rádio fora <strong>de</strong> sintonia, no exato momento em que entrou no prédio.<br />

Na rua, as pessoas corriam ensopadas, fugindo do temporal. Outro<br />

relâmpago. Um, dois, três, quatro segundos, trovão. A porta estava<br />

<strong>de</strong>strancada. Entrou no quarto <strong>de</strong> supetão. O sujeito pulando da<br />

cama, o marido engatilhando a arma. Relâmpago. Um, dois, três,<br />

quatro segundos, trovão. O homem se ajoelhou, implorou perdão.<br />

O contador esperou por outro relâmpago. Um, dois, três, quatro<br />

segundos, trovão. Ninguém percebeu nada. O estrondo assustador<br />

abafara o único tiro, certeiro e friamente calculado.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Regra <strong>de</strong> Três


Luís Fernando Lima <strong>de</strong> Brito<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 91


92<br />

Conto <strong>de</strong> Fadas<br />

Flávio Cesar <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Júnior<br />

Nasceu em Belo Horizonte, MG, em 1964. Formou-se em Medicina pela<br />

UFMG em 1988, especializando-se em Oftalmologia. Casado, tem uma fi lha.<br />

Escreveu crônicas em jornais universitários no tempo <strong>de</strong> estudante. Publicou<br />

seu primeiro romance em 2004: Quintessência (Editora Monções), uma história<br />

policial ambientada em Belo Horizonte no fi nal do século XXI. Seu segundo<br />

romance, Casas <strong>de</strong> Vampiro (Tarja Editorial), <strong>de</strong> fi cção científi ca e terror, foi<br />

publicado em 2010. O terceiro romance é um fi xup 1 que reúne os gêneros<br />

steampunk e história alternativa, chamado Homens e Monstros – A Guerra Fria<br />

Vitoriana (Draco – 2012).<br />

Seu conto publicado na coletânea Paradigmas 2 (Tarja) foi selecionado para<br />

o volume Paradigmas Defi nitivos (Tarja – 2012). Tem contos e noveletas nas<br />

coletâneas Steampunk 2 (Tarja - 2009), Imaginários 1 (Draco - 2009), Vaporpunk<br />

(Draco - 2010), Assembleia Estelar (Devir - 2010) e Dragões (Draco – 2012).<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

2º lugar


Em 2011, seu conto Por um Fio foi premiado em segundo lugar no<br />

<strong>Concurso</strong> Hydra, sendo publicado na revista americana Orson Scott Card’s<br />

Intergalactic Medicine Show. Tornou-se membro da prestigiosa SFWA (Science<br />

Fiction & Fantasy Writers of America). Sua noveleta Pendão da Esperança,<br />

publicada na coletânea Space Opera (Draco – 2011) ganhou o Prêmio Argos<br />

2012, promovido pelo Clube <strong>de</strong> Leitores <strong>de</strong> Ficção Científi ca, na categoria<br />

Melhor História Curta. Continua escrevendo compulsivamente.<br />

1Um romance fi xup é o resultado <strong>de</strong> uma técnica literária que consiste na criação <strong>de</strong><br />

contos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes entre si, que po<strong>de</strong>m ser lidos em qualquer or<strong>de</strong>m, mas que lidos em<br />

conjunto formam uma trama.<br />

2Steampunk é um subgênero da fi cção científi ca que ganhou fama no fi nal dos anos<br />

1980 e início dos anos 1990.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

93<br />

93


94<br />

– Posso perguntar o que uma senhorita <strong>de</strong>sse garbo e elegância<br />

está fazendo, sozinha, num lugar inóspito como esse?<br />

– Não me enche o saco, ô sapo!<br />

– Puxa vida, me perdoe, eu só estava tentando puxar conversa...<br />

– Tsc. Desculpe, sapo. É que hoje o meu humor já foi pro brejo.<br />

– Literalmente.<br />

– Pra você ver...<br />

– Mas, me diga, por que tanta contrarieda<strong>de</strong>? A senhorita é<br />

bem conhecida por estas bandas. Sei que não me engano, é a<br />

princesa que vive naquele enorme castelo ali na colina, cercada <strong>de</strong><br />

mordomias, ricos vestidos, só come do bom e do melhor...<br />

– E do que adianta isso tudo, se nem consigo arrumar um<br />

namorado?<br />

– Ah, então é isso? Desculpe, mas não compreendo. Olha,<br />

princesa, por favor, não tome o que eu vou dizer como ofensa,<br />

mas apesar <strong>de</strong> ser um sapo, não acho você tão <strong>de</strong>sgraçada <strong>de</strong> feia<br />

assim! E é rica, ainda por cima.<br />

– Obrigada, eu acho. Sabe o que acontece? É que meu pai, o rei,<br />

faz questão <strong>de</strong> que eu, sua única fi lha, tenha um bom casamento;<br />

bom em termos fi nanceiros, se é que você me enten<strong>de</strong>. O problema<br />

é que os príncipes ricos e bonitos, que já são raros <strong>de</strong> se ver, estão<br />

todos se casando com outras princesas. Já andam me chamando<br />

<strong>de</strong> “tia” pelos corredores do castelo, e eu é que não estou a fi m <strong>de</strong><br />

fi car “engolindo sapo”.<br />

– Isso me <strong>de</strong>ixa bastante aliviado. Mas, veja, princesa, se quer<br />

mesmo saber... Acho que talvez eu possa te ajudar!<br />

– O quê?! Como assim, você sabe <strong>de</strong> algum príncipe que esteja<br />

disponível?<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Conto <strong>de</strong> Fadas


Flávio Cesar <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Júnior<br />

– Tá falando com o próprio, minha cara.<br />

– Hein?! Você não está sugerindo que eu...<br />

– Calma lá, neném! Deixe eu explicar primeiro: o caso é que eu<br />

sou, ou melhor, eu era um príncipe. E veja só que coincidência, eu<br />

era um príncipe muito rico e, modéstia às favas, até bem bonitão.<br />

Só que, um belo dia, levantei da cama com o pé esquerdo e esbarrei<br />

por aí com uma bruxa que cismou comigo, e me transformou em<br />

sapo. Des<strong>de</strong> então estou assim, com essa estampa lamentável.<br />

– Eu, hein! Que história mais esquisita!<br />

– E quem é que enten<strong>de</strong> o que vai na cabeça <strong>de</strong>ssas bruxas?...<br />

– Tudo bem, sapo. Quero dizer, príncipe! Mas se é que você já<br />

foi mesmo assim, ricaço e bonitão, você há <strong>de</strong> convir comigo que<br />

agora... bem, as coisas mudaram um bocado! Aliás, meu pai nunca<br />

iria acreditar nessa sua história. Eu mesma, confesso que estou meio<br />

em dúvida. Nunca vi isso <strong>de</strong> príncipe virar sapo.<br />

– E por acaso você já tinha visto um sapo que fala?<br />

– Hummmmm... não sei, mas acho que tem lógica.<br />

– Para sua tranquilida<strong>de</strong>, princesinha, <strong>de</strong>vo dizer que meu atual<br />

estado é transitório, quero dizer, que ele po<strong>de</strong> ser transitório. E,<br />

veja só que coisa, você é exatamente a pessoa que po<strong>de</strong> me ajudar<br />

a voltar a ser rico e bonitão.<br />

– Sei... E como seria isso, exatamente?<br />

– A tal bruxa me disse que o encanto só iria se quebrar quando<br />

uma legítima princesa me <strong>de</strong>sse um beijo.<br />

– Ahn?! Aaaah, rá, rá, essa sim, é muito boa! E você acha que eu<br />

vou pôr a minha boquinha num sapo sujo e nojento? Ficou doido?<br />

– Pera lá, comadre! Também não precisa ofen<strong>de</strong>r, que você é<br />

bonitinha, mas não é nenhuma Kate Middleton! Número um: eu<br />

fui com a sua cara. Número dois: você está caçando um marido<br />

bonito e cheio da grana. Três: eu sou tudo isso e só estou precisando<br />

<strong>de</strong> um beijinho em troca. Se você topar, a gente po<strong>de</strong> até se dar bem;<br />

se não, manda seu retratinho para alguma agência <strong>de</strong> encontros,<br />

que eu vou continuar comendo mosca por mais um tempo.<br />

– Puxa, não precisa fi car tão bravo! Desculpe, acho que eu<br />

realmente me excedi um pouco...<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 95


96<br />

– Tudo bem, vá lá. Sabe, é que eu já estou fi cando cansado <strong>de</strong><br />

levar fora. Mas <strong>de</strong>ixe estar, que algum dia vou encontrar uma<br />

princesa bondosa e sensível, que vai ser capaz <strong>de</strong> enxergar além da<br />

minha trágica aparência física. Nem precisa ser bonitona, basta ter<br />

bom coração. Olha, o papo está muito bom, mas acho que eu vou...<br />

Não, não, espere!... Você tem toda razão. Acho que nós dois<br />

temos muito em comum, inclusive o fato <strong>de</strong> sermos dois solitários<br />

afl itos em busca <strong>de</strong> conforto para nossos corações. (suspiro) Tá<br />

bom, príncipe, eu topo.<br />

– Opa! Então vamos lá, chega mais perto aqui...<br />

– CHUAC! ARGH!<br />

– Que foi? Não gostou?<br />

– Tem gosto <strong>de</strong> perna <strong>de</strong> rã. Ei, mas vem cá, que história é essa?<br />

Você continua com cara <strong>de</strong> sapo! Não aconteceu absolutamente nada!<br />

– Ih, é mesmo! Droga! Já estou assim há tanto tempo que esqueci<br />

<strong>de</strong> te avisar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>talhe: o parágrafo único do feitiço da bruxa<br />

dizia que o beijo tem que ser dado na boca. Na cabeça não serve.<br />

– Ah, não! Sem essa, ô sapo!<br />

– Tudo bem, tudo bem, eu compreendo! A culpa foi toda minha,<br />

que não <strong>de</strong>veria ter esquecido o <strong>de</strong>talhe. Foi a emoção do momento,<br />

enten<strong>de</strong>? Mas você fez o que pô<strong>de</strong>, e eu vou lhe ser eternamente<br />

grato por isso. Vou-me embora e não te importuno mais. Espero<br />

que seja feliz, princesa, e que algum dia encontre o seu príncipe.<br />

– Não, não vá! Olha só... Eu acho que, para quem já <strong>de</strong>u um beijo<br />

num sapo, o segundo <strong>de</strong>ve ser mais fácil. Bom, que remédio? Mas<br />

sem língua, hein! Chega aqui... lá vai... CHUAC! ARRRGGGHHH!<br />

– Muito obrigado!<br />

– CUSP! CUSP! Mas... o que foi que <strong>de</strong>u errado <strong>de</strong>sta vez?! Você<br />

continua tão sapo quanto antes!<br />

– Mais do que nunca. Aliás, do jeitinho que eu nasci.<br />

– O quê?! O que foi que aconteceu com o tal príncipe rico e bonitão?<br />

– Veja bem, princesa: para que um sapo, que é um anfíbio, se<br />

transforme em um príncipe, que é um ser humano e, portanto, um<br />

mamífero terrestre, é necessário que se passem longos e penosos<br />

milhões <strong>de</strong> anos. On<strong>de</strong> já se viu preten<strong>de</strong>r que um simples beijinho,<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

Conto <strong>de</strong> Fadas


Flávio Cesar <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Júnior<br />

ou dois, ou até mil, passem por cima <strong>de</strong> milênios <strong>de</strong> evolução<br />

natural das espécies?<br />

– Mas você tinha dito que...<br />

– Ah, aquilo? Desculpe aí, garota! É que ontem mesmo uns<br />

amigos meus diziam que, com essa história mal contada <strong>de</strong><br />

príncipe, qualquer sapo bom <strong>de</strong> conversa arranca um beijo até<br />

<strong>de</strong> uma princesa. Aí eu apostei com eles que, com meu papo, eu<br />

arrancaria até dois beijos <strong>de</strong> uma princesa. E eles aceitaram o<br />

<strong>de</strong>safi o. Estão ali, enfi ados num charco qualquer, assistindo. Como<br />

você vê, não contavam com a credulida<strong>de</strong> humana.<br />

– Sapo, isso foi... <strong>de</strong>sumano!<br />

– E você esperava humanida<strong>de</strong> logo <strong>de</strong> um sapo? Bem, se pu<strong>de</strong>r<br />

esperar, volte daqui a alguns milhões <strong>de</strong> anos que talvez eu...<br />

– Sapo cachorro, <strong>de</strong>sgraçado <strong>de</strong> uma fi ga! Eu te pego!<br />

– Ups! Essa não!<br />

O sapo <strong>de</strong>u um salto formidável para longe, indo cair em meio<br />

a um bando <strong>de</strong> outros sapinhos, surgidos não se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong>.<br />

– Tchau, princesinha! Queria fi car mais, mas tenho algumas<br />

apostas para receber. Até qualquer dia!<br />

E <strong>de</strong>sapareceu aos saltos brejo afora, junto com os <strong>de</strong>mais.<br />

Praguejando e pisando duro, a princesa juntou a barra da saia suja<br />

<strong>de</strong> lama e voltou para o castelo, resmungando:<br />

– Também é muita burrice, não <strong>de</strong>sconfi ar <strong>de</strong> um sapo que fala!...<br />

Moral da história: nada na natureza evolui aos saltos, muito<br />

menos o sapo.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong> 97


98<br />

A Gaiola<br />

Eber Veríssimo Rocha<br />

O primeiro colocado <strong>de</strong>ste ano nasceu no Estado do Paraná, mas<br />

mudou-se para o Rio <strong>de</strong> Janeiro com os pais – quando ainda cursava o<br />

ensino primário. Está casado há <strong>de</strong>z anos com Raquel Pereira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Rocha, grávida do terceiro fi lho do casal. O caçula fará companhia aos<br />

irmãos Pedro e Abel.<br />

Éber é formado em Ciências Náuticas e atualmente trabalha na operação<br />

<strong>de</strong> navios como expatriado da Petrobras em Houston, Texas, Estados Unidos.<br />

O amor pela literatura, segundo ele, é herança da mãe, professora, e do<br />

pai, pastor Batista. Nos últimos, anos somou-se ao prazer <strong>de</strong> ler o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

escrever: “encontrei na criação <strong>de</strong> contos e histórias o caminho para satisfazer<br />

essa vonta<strong>de</strong>”. Esta foi a segunda vez que ele participou do <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong><br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

1º lugar


<strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong>. O autor <strong>de</strong> A Gaiola acredita que o concurso tem sido uma<br />

ferramenta incentivadora e gratifi cante para ele e muitos outros concorrentes.<br />

Entre seus autores preferidos <strong>de</strong>staca “o incrível Machado <strong>de</strong> Assis” e, na<br />

literatura norte-americana, Ernest Hemingway. “Apesar <strong>de</strong> épocas, países<br />

e estilos diferentes, vejo nas obras <strong>de</strong>sses autores a capacida<strong>de</strong> que ambos<br />

tinham <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar a alma humana, <strong>de</strong>scobrir seus segredos e revelá-los<br />

no papel, através da pena”.<br />

Para ele, a literatura, assim como as manifestações artísticas em geral, tem<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> trazer à tona os sentimentos e emoções do ser humano. “Tem<br />

sido este o motivo pelo qual escrevo. Agra<strong>de</strong>ço à <strong>Petros</strong> e sua iniciativa por<br />

fazer parte disto”.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

99<br />

99


100<br />

No quarto, além dos muitos panos espalhados pelo chão, havia<br />

uma ca<strong>de</strong>ira. Não havia janela. As pare<strong>de</strong>s eram <strong>de</strong> pedra e barro,<br />

numa mistura que impedia a entrada <strong>de</strong> luz e calor do sol durante<br />

o dia e do frio durante a noite. Também impedia a entrada <strong>de</strong> ar<br />

puro, mas não se sabe bem como permitia a entrada <strong>de</strong> sons - coisa<br />

que ele consi<strong>de</strong>rava uma espécie <strong>de</strong> dádiva. A consciência <strong>de</strong> já estar<br />

acordado veio quando ele começou a distinguir aqueles sons; podia<br />

ouvi-los vindo <strong>de</strong> outra parte da casa. Também ouviu animais e a<br />

sua própria respiração.<br />

Colocou-se em pé e tateou o ar até encontrar a ca<strong>de</strong>ira. Sentouse<br />

e fi cou ouvindo tudo: o contato <strong>de</strong> cascos com o chão duro e<br />

pedregoso e os pardais que, provavelmente, estavam se afastando<br />

com a aproximação dos cavalos. Naquela manhã pô<strong>de</strong> distinguir<br />

algo novo, um canto <strong>de</strong> pássaro que nunca tinha ouvido antes, com<br />

sons agudos e prolongados.<br />

– Como seria ele? – pensou – como os pardais? E veio à sua<br />

memória uma lembrança <strong>de</strong> muitos anos antes, quando seu pai<br />

colocou um pardal vivo em suas mãos. Disse-lhe que não o apertasse,<br />

mas que também não abrisse as mãos, ou ele fugiria. Lembrava da<br />

leveza das penas e <strong>de</strong> tocar o pequeno bico. A sensação dos pezinhos<br />

na palma <strong>de</strong> sua mão e <strong>de</strong> segurar uma vida.<br />

– E esse, como seria? – questionou-se, ouvindo a própria voz.<br />

A porta foi aberta e um cheiro conhecido indicou a presença <strong>de</strong><br />

seu pai. – Vamos. – Ele disse.<br />

Levantou-se da ca<strong>de</strong>ira, pegou um pedaço gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> pano que<br />

estava pendurado ali e o seguiu até fora da casa tateando as pare<strong>de</strong>s.<br />

Foi-lhe dado um vaso com água. Cuspiu o primeiro gole e <strong>de</strong>pois<br />

bebeu o restante com vonta<strong>de</strong>. Em seguida, um pedaço <strong>de</strong> pão. Sentiu<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

A Gaiola


Eber Veríssimo Rocha<br />

o seu formato oval e a massa enrijecida. Levou-o à boca e começou<br />

a comê-lo indiferente ao sabor que já conhecia tão bem.<br />

Começaram a caminhar em silêncio. Gostava <strong>de</strong> caminhar assim,<br />

em silêncio, porque lhe permitia ouvir, cheirar, sentir tudo à sua<br />

volta, coisas <strong>de</strong> um mundo só seu. Mas também gostava quando o<br />

pai lhe falava - e isso não acontecia há algum tempo.<br />

Seus pés <strong>de</strong>scalços sentiram a mudança do terreno pedregoso para<br />

a terra fi na e já um tanto aquecida pelo sol da manhã. Um passo em<br />

falso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma poça <strong>de</strong> água fez com que terra e água entrassem<br />

por um corte no seu pé esquerdo. Podia sentir a terra molhada<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. Parou, segurando o braço <strong>de</strong> seu pai, e esfregou o pé na<br />

superfície da água algumas vezes, fazendo com que a dor diminuísse.<br />

Uma nova lembrança veio à sua cabeça: lembrou-se <strong>de</strong> quando não<br />

eram só os dois, quando ela ainda estava viva.<br />

– Pai você se lembra…? – falou em voz alta.<br />

– O que você disse? – perguntou-lhe o pai.<br />

– Nada. – Respon<strong>de</strong>u.<br />

Voltaram a andar, e o conjunto <strong>de</strong> vozes e sons aumentava<br />

gradativamente: pessoas, animais, rodas em contato com o chão, o<br />

bater <strong>de</strong> ferro... e ... o pássaro novamente. Perto, muito perto, ao lado<br />

<strong>de</strong>les. Podia ouvir o canto agudo, prolongado e bastante harmonioso,<br />

como se estivesse <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. Como se fosse ele próprio. O pássaro<br />

estava com o pai, provavelmente numa gaiola, agora ele entendia.<br />

E se perguntasse como ele era...<br />

O canto cessou.<br />

Pelo tempo que estavam caminhando, o chão <strong>de</strong> terra batida que<br />

agora estava sob seus pés e a mistura <strong>de</strong> sons e cheiros tornando-se mais<br />

forte, sabia estar próximo ao mercado agora. Os ven<strong>de</strong>dores arrumando<br />

suas coisas e pren<strong>de</strong>ndo os animais que seriam vendidos já podiam ser<br />

ouvidos. Entretanto, havia algo antes: um som bastante conhecido, que<br />

o acompanhara durante quase toda a sua vida. Que fazia parte <strong>de</strong>le.<br />

Reconhecia cada um pela voz, pessoas como ele, que todos os dias<br />

estavam ali na entrada do mercado. Alguns dos que não podiam ver<br />

eram <strong>de</strong>ixados ali por familiares, amigos, exploradores… Outros<br />

chegavam por conta própria.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

101


102<br />

Sentia o cheiro daqueles com chagas e doenças que também<br />

disputavam esmolas ali. Estes, vez por outra, eram escorraçados<br />

pelos ven<strong>de</strong>dores.<br />

Pararam e ele sentou-se sobre a capa estendida com a ajuda <strong>de</strong> seu<br />

pai, que entregou-lhe uma pequena bolsa <strong>de</strong> pano com algo <strong>de</strong>ntro.<br />

Despediu-se e o <strong>de</strong>ixou, levando consigo a gaiola com o pássaro. O<br />

número <strong>de</strong> passos crescia, e os gritos <strong>de</strong> ajuda também. O som do<br />

primeiro grito por esmola sempre lhe saía estranho ao ouvido, como<br />

se a voz quase falhasse, os seguintes eram fortes e chorosos, em tom<br />

<strong>de</strong> lamento. Não precisava encenar para que fi cassem assim. Sua<br />

vida era assim. Ao fi nal da manhã notou que o fl uxo das caravanas<br />

que passavam por ali alternava, ora com um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

pessoas, ora apenas alguns viajantes. Passando a mão pela capa<br />

estendida, recolheu as duas únicas moedas que recebera ate então<br />

naquela manhã. Tocou a superfície e reconheceu o <strong>de</strong>senho em cada<br />

uma <strong>de</strong>las: ainda não era o sufi ciente para comer. Tateou o chão até<br />

alcançar a bolsa <strong>de</strong> pano e retirou do seu interior um pão semelhante<br />

ao que comera pela manhã. Enquanto comia ouviu aos poucos o<br />

aproximar <strong>de</strong> passos. O pássaro cantou novamente e ele enten<strong>de</strong>u<br />

que o pai tinha voltado. Havia alguém com ele.<br />

– O que você acha? Está <strong>de</strong> acordo? – ouviu o pai perguntar.<br />

O pássaro se agitava na gaiola. Podia ouvir o bater das asas se<br />

chocando contra as gra<strong>de</strong>s.<br />

– Sim, po<strong>de</strong>mos fazer negócio – respon<strong>de</strong>u o homem.<br />

Depois, um tilintar <strong>de</strong> várias moedas – o pássaro <strong>de</strong>via ser<br />

muito bonito.<br />

Talvez se perguntasse como ele era...<br />

– Obrigado – disse o pai.<br />

Passos começaram a se afastar e o canto do pássaro tornou-se cada<br />

vez mais distante. Mas alguma coisa estava errada... ele reconhecia<br />

aqueles passos, não eram passos do estranho, eram os passos <strong>de</strong><br />

seu pai.<br />

– Vamos – disse o homem, enquanto passava a corda em suas mãos.<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

A Gaiola


Eber Veríssimo Rocha<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

103


104<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

DIRETORIA EXECUTIVA<br />

Presi<strong>de</strong>nte<br />

Luís Carlos Fernan<strong>de</strong>s Afonso<br />

Diretores<br />

Carlos Fernando Costa, Maurício França Rubem,<br />

Newton Carneiro da Cunha<br />

Secretário-geral<br />

Wagner Luiz Constantino <strong>de</strong> Lima<br />

CONSELHO DELIBERATIVO<br />

Titulares<br />

Diego Hernan<strong>de</strong>s (presi<strong>de</strong>nte), Nilton Antonio <strong>de</strong> Almeida Maia, Jorge José Nahas Neto,<br />

Ronaldo Te<strong>de</strong>sco Vilardo, Paulo Teixeira Brandão e Paulo César Chamadoiro Martin<br />

Suplentes<br />

Eurico Dias Rodrigues, Claudia Padilha <strong>de</strong> Araújo Gomes, Alexandre Aparecido <strong>de</strong> Barros,<br />

Agnelson Camilo da Silva, Fernando Leite Siqueira e Danilo Ferreira da Silva<br />

CONSELHO FISCAL<br />

Titulares<br />

Silvio Sinedino Pinheiro (presi<strong>de</strong>nte), Bruno Passos da Silva Melo, José Elias da Silva e<br />

Epaminondas <strong>de</strong> Souza Men<strong>de</strong>s<br />

Suplentes<br />

Denise Frazão Ginzo, Walber Monteiro <strong>de</strong> Almeida, Oscar Angelo Scottá e<br />

Emidio Rebelo Filho


Comissão Julgadora<br />

João Augusto Bastos <strong>de</strong> Mattos, Maria Beatriz Luiz Cerqueira Santos<br />

e João Paulo Vaz (vencedores das três últimas edições do concurso,<br />

respectivamente) e Carlos Heitor Cony (jornalista e escritor)<br />

Gerência <strong>de</strong> Comunicação e Relações Institucionais<br />

Gerente Executivo: Fernando Fulanetti<br />

Coor<strong>de</strong>nação geral: Tatiana Stallone<br />

Coor<strong>de</strong>nação editorial: Charles Nascimento<br />

Criação e projeto gráfi co: Márcio Araujo<br />

Apoio técnico: Ieda Oliveira e Larissa Silva<br />

Evento <strong>de</strong> premiação: Tânia Barros, Rachel Viana e<br />

Luiz César Cabral<br />

Texto sobre o homenageado<br />

José Sérgio Rocha<br />

Revisão<br />

Mary Anne Sá/Millennium Comunicação Integrada<br />

Fotos e ilustrações<br />

João Wainer/Folhapress, Nelson Perez e Shutterstock<br />

Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Ana Paula Reis<br />

Patrocínio<br />

Este livro foi composto na tipologia Minion,<br />

em corpo 11 e o miolo impresso em papel polen soft 80 g/m 2 .<br />

XII <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Contos</strong> <strong>Petros</strong><br />

105


patrocínio

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!