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A constituição do "eu" - Vigotski - Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO<br />

ZÍNIA FRAGA INTRA<br />

A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA<br />

EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER<br />

MENINA E DE SER MENINO<br />

VITÓRIA<br />

2007


ZÍNIA FRAGA INTRA<br />

A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA<br />

EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER<br />

MENINA E DE SER MENINO.<br />

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-<br />

Graduação em Educação <strong>do</strong> Centro de Educação<br />

da Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo, como<br />

requisito parcial para obtenção <strong>do</strong> grau de Mestre<br />

em Educação, na área de concentração em<br />

Processos Psicossociais da Aprendizagem.<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Profª Drª Ivone Martins de Oliveira.<br />

Vitória<br />

2007


As minhas sobrinhas, Lorena, Amanda, Julia,<br />

Rebeca e ao Davi. Fontes de minha inspiração.


A Deus por ter me da<strong>do</strong> o <strong>do</strong>m da vida.<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Aos meus pais e irmãos, que me proporcionaram uma infância rica em<br />

possibilidades de aprendizagem e por sempre acreditarem em mim.<br />

À querida professora Drª. Ivone Martins de Oliveira, que há sete anos tenho o prazer<br />

de acompanhar em seus projetos, pesquisas e estu<strong>do</strong>s, pela paciência e carinho<br />

com que me orientou, e pelos ensinamentos, que levo para toda vida.<br />

Às professoras Drªs. Sonia Lopes Victor e Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto,<br />

pelo carinho com que me tratam, pelas valorosas contribuições na qualificação e por<br />

terem aceita<strong>do</strong> o convite de participar desse momento tão importante.<br />

À professora Drª Vera Lucia Messias Fialho Capellini, por ter recepciona<strong>do</strong> tão bem<br />

as capixabas que visitaram Bauru e por aceitar participar da banca examina<strong>do</strong>ra.<br />

A professora Drª Vânia Carvalho de Araújo, por me mostrar a riqueza de se estudar<br />

a infância e pelos ensinamentos durante monitoria.<br />

À diretora, pedagoga, professora e demais profissionais da escola pesquisada, por<br />

terem me permiti<strong>do</strong> adentrar nesse espaço e pelo respeito que tiveram com<br />

pesquisa e a pesquisa<strong>do</strong>ra.<br />

Aos alunos <strong>do</strong> Jardim II, pelos beijos, abraços, elogios e pelos convites para brincar.<br />

Aos colegas de trabalho pela compreensão e paciência nos momentos de ausência<br />

e pela torcida para que tu<strong>do</strong> desse certo.<br />

Aos meus alunos por compreenderem que algumas vezes tive que me ausentar e<br />

pelo carinho com quem cuidam de sua professora.


Às minhas amigas Renata, Lucyenne e Tânia, pelos momentos agradáveis que<br />

passamos juntas durante a nossa formação e pelo apoio e dicas que me deram<br />

durante a realização desse trabalho.<br />

Às minhas amigas de luta, por uma Educação Infantil de qualidade, Joelma e<br />

Fabiola, pelos momentos de intensa aprendizagem que passamos juntas.<br />

À Fernanda minha amiga e confidente, que sempre me escutou.<br />

Ao Fabrício, surpresa boa, pela compreensão nos momentos de ausência e por ter<br />

cuida<strong>do</strong> de mim e da minha dissertação com tanto carinho.<br />

Aos funcionários e professores <strong>do</strong> Centro de Educação/ UFES, por terem participa<strong>do</strong><br />

da minha <strong>constituição</strong> enquanto professora.


Não há uma saída. Há muitas. Não há uma resposta única. Mesmo<br />

que por ilusão a encontremos, novas perguntas continuam a surgir.<br />

Somos calcário, chumbo, argila, água marinha? Sim e não.<br />

Desmanchamo-nos e nos refazemos.<br />

Sonia Kramer.


RESUMO<br />

Neste trabalho buscamos compreender a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as crianças na<br />

educação infantil. Os motivos que nos levaram a pesquisar a infância nesta<br />

modalidade de ensino diz respeito à recente inserção desse tema nas produções<br />

acadêmicas, acarretan<strong>do</strong> uma pequena produção, e ao fato de acreditarmos ser<br />

este um espaço privilegia<strong>do</strong> para analisarmos a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as crianças.<br />

A história da infância nos auxiliou a delinearmos a abordagem escolhida, atenden<strong>do</strong><br />

a uma perspectiva que leve em consideração a história e a cultura de nossa<br />

sociedade. Dessa forma, os estu<strong>do</strong>s da abordagem histórico-cultural nos auxiliaram<br />

na análise da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito na infância: baseamo-nos em <strong>Vigotski</strong> para<br />

entendermos o papel <strong>do</strong> outro e da linguagem na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito e em<br />

Wallon para compreendermos os percursos <strong>do</strong> desenvolvimento infantil. A pesquisa<br />

se constituiu em um estu<strong>do</strong> de caso de uma turma de crianças de cinco a seis anos<br />

de uma unidade de educação infantil <strong>do</strong> município de Vila Velha. A coleta de da<strong>do</strong>s<br />

se deu através de observações <strong>do</strong> cotidiano da turma, entrevistas com a professora<br />

e as crianças e <strong>do</strong>cumentos da escola. As análises priorizaram a interação entre as<br />

crianças e levaram ao enfoque <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de ser menina e ser menino, nas relações<br />

com os outros; <strong>do</strong>s diferentes papéis assumi<strong>do</strong>s pelas crianças e <strong>do</strong>s conflitos<br />

gera<strong>do</strong>s nesta interação. Foram discuti<strong>do</strong>s aspectos referentes aos diferentes<br />

mo<strong>do</strong>s de ser menina e ser menino, nessa turma, bem como sua relação com<br />

valores, concepções e práticas culturais que atravessam o ser mulher e ser homem<br />

no contexto histórico e cultural. A pesquisa evidenciou a importância <strong>do</strong> papel<br />

media<strong>do</strong>r <strong>do</strong> professor nas interações estabelecidas entre as crianças,<br />

proporcionan<strong>do</strong> a elas maior riqueza de possibilidades de vivenciar novos papéis e<br />

de questionar e refletir sobre valores e padrões cristaliza<strong>do</strong>s e rígi<strong>do</strong>s de mo<strong>do</strong>s de<br />

ser presentes na sociedade. A problematização e reflexão sobre relações de gênero<br />

podem proporcionar aos profissionais da educação infantil repensar práticas que<br />

reforçam estereotipias, quebran<strong>do</strong> preconceitos e possibilitan<strong>do</strong> práticas educativas<br />

que levem a um ambiente rico em interações e vivências de mo<strong>do</strong>s de ser para as<br />

crianças.<br />

Palavras-chave: Constituição <strong>do</strong> eu – interação – gênero – educação infantil –<br />

criança.


ABSTRACT<br />

The paper aims at understanding the constitution of the self among children in<br />

childhood education. The reason to research on the childhood in that modality of<br />

teaching is about the recent insertion of such theme in academic productions,<br />

carrying a tiny production, and to the fact of the belief that this privileged space is for<br />

the analysis of the self constitution among children. The history of childhood helped<br />

to delineate the chosen approach, attending a perspective that takes into<br />

consideration the history and culture of our society. This way, the studies of the<br />

historical-cultural approach helped with the analysis of the one’s constitution in the<br />

childhood: Vigotsky was the base to the understanding of the other’s role and the<br />

language in one’s constitution and Wallon was referred for the understanding the<br />

paths of the childhood development. The study is constituted in a study case of a<br />

group of children from five to six years old of a children education unit in the district of<br />

Vila Velha, state of Espírito Santo. Data collection was through a daily observation of<br />

the group, interviews with teachers and children and school <strong>do</strong>cuments. The<br />

analyses priority was the children’s interaction and led to the focus of being a girl or a<br />

boy, in relations with others; from the different roles assumed by children and the<br />

conflicts generated in that interaction. It was discussed the aspects referent to the<br />

different ways of being a girl or a boy, in this group, as well as the relation with<br />

values, conceptions and cultural practices which cross the woman being and man<br />

being in the historical and cultural contexts. The research emphasized the<br />

importance of the teacher’s mediator role in interactions established among the<br />

children, providing them with greater possibilities to live new roles, question and<br />

reflect on values and crystallized and strict patterns of ways of being present in<br />

society. The problem and reflection about relations of gender can make the<br />

professionals of the children’s education rethink practices which reinforce the<br />

stereotypy, breaking prejudice and making possible educative practices that guide to<br />

an environment full of interaction and experiences of ways of being for the children.<br />

Keywords: Self constitution. Interaction. Gender. Children education. Children.


LISTA DE FIGURAS<br />

Figura 1 - Corre<strong>do</strong>r com as salas de aula 1.............................................................56<br />

Figura 2 - Corre<strong>do</strong>r com as salas de aula 2...............................................................56<br />

Figura 3 - Sala de vídeo 1. .........................................................................................56<br />

Figura 4 - Sala de vídeo 2..........................................................................................56<br />

Figura 5 - Sala da pedagoga.................................................................................56<br />

Figura 6 - Banheiro feminino......................................................................................56<br />

Figura 7 – Rampa......................................................................................................56<br />

Figura 8 - Sala <strong>do</strong> berçário.........................................................................................56<br />

Figura 9 - Sala <strong>do</strong> berçário II.................................................................................57<br />

Figura 10 – Refeitório.................................................................................................57<br />

Figura 11 – Refeitório.................................................................................................57<br />

Figura 12 – Parquinho de areia..................................................................................57<br />

Figura 13 – Pátio........................................................................................................57<br />

Figura 14 – Casinha...................................................................................................57<br />

Figura 15 - Sala de professores 1..............................................................................57<br />

Figura 16 - Sala de professores 2..............................................................................57<br />

Figura 17 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à porta.......................................63<br />

Figura 18 – Quadro de giz.........................................................................................63<br />

Figura 19 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à janela.....................................63<br />

Figura 20 – Espelho..................................................................................................63<br />

Figura 21 – Prateleiras...............................................................................................63<br />

Figura 22 – Quadro de pincel....................................................................................63<br />

Figura 23- Dinâmica das relações entre as meninas...............................................77<br />

Figura 24 – Dinâmica das relações entre os meninos...............................................79


Figura 25 Dinâmica das relações entre meninas e meninos....................................80<br />

Figura 26. Dinâmica das relações entre meninas e meninos.....................................81<br />

.<br />

Figura 27 Dinâmica das interações na turma <strong>do</strong> Jardim II.........................................83


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO.........................................................................................................14<br />

1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA........................22<br />

1.1 REVISÃO DE LITERATURA................................................................................25<br />

1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE<br />

VIGOTSKI E WALLON...............................................................................................38<br />

2. METODOLOGIA....................................................................................................48<br />

2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL.............................................................54<br />

2.1.1 Funcionários da UMEI....................................................................................58<br />

2.1.2 A entrada da pesquisa<strong>do</strong>ra na sala <strong>do</strong> Jardim II..........................................60<br />

2.1.3 A sala <strong>do</strong> Jardim II...........................................................................................61<br />

2.1.4 A professora <strong>do</strong> Jardim II...............................................................................63<br />

2.1.5 A rotina da sala ...............................................................................................64<br />

2.1.6 As crianças <strong>do</strong> jardim II..................................................................................69<br />

2.1.7 As crianças e suas famílias ..........................................................................70<br />

3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II: CAMINHOS DE<br />

CONSTITUIÇÃO DO EU .......................................................................................... 73<br />

3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A CONSTRUÇÃO<br />

SOCIAL DA CRIANÇA...............................................................................................75<br />

3.2 SER MENINO E SER MENINA............................................................................85<br />

3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma <strong>do</strong> Jardim II ...........87<br />

3.2.2 As meninas e os conflitos..............................................................................99<br />

3.2.3 Menino pode brincar de casinha? – ser menino na turma <strong>do</strong> Jardim II...104<br />

3.2.4 Os meninos e os conflitos............................................................................112<br />

3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA........116<br />

4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS..................................................119<br />

5 REFERÊNCIAS....................................................................................................123<br />

ANEXO....................................................................................................................128


Da<strong>do</strong>s Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)<br />

(Biblioteca Central da Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo, ES, <strong>Brasil</strong>)<br />

Intra, Zínia Fraga, 1980-<br />

I61c A <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> “eu” entre crianças na educação infantil: diferentes<br />

mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino / Zínia Fraga Intra. – 2007.<br />

132 f. : il.<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Ivone Martins de Oliveira.<br />

Dissertação (mestra<strong>do</strong>) – Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo,<br />

Centro de Educação<br />

1. Desenvolvimento da personalidade. 2. Educação de crianças. 3.<br />

Interação social em crianças. 4. Crianças. 5. Relações de gênero. I.<br />

Oliveira, Ivone Martins de. II. Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo.<br />

Centro de Educação. III. Título.<br />

CDU: 37


INTRODUÇÃO<br />

O mais importante e bonito <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

é isto: que as pessoas não estão<br />

sempre iguais, ainda não foram<br />

terminadas – mas que elas vão<br />

sempre mudan<strong>do</strong>. Guimarães Rosa<br />

Quem tem o privilegio de acompanhar o cotidiano nas instituições de Educação<br />

Infantil percebe o quanto mudam as crianças no perío<strong>do</strong> em que ali permanecem,<br />

principalmente se entram bebês. É bonito vê-las, como disse Guimarães Rosa,<br />

mudan<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> tempo, ver que entram engatinhan<strong>do</strong> ou que resistem ao<br />

entrar, com me<strong>do</strong> daquele ambiente desconheci<strong>do</strong> tão grande e tão diferente <strong>do</strong> da<br />

sua casa, mas que aos poucos vão-se tornan<strong>do</strong> independentes, transitan<strong>do</strong> pelo<br />

espaço com total segurança. Já não têm mais me<strong>do</strong>, pois passam a conhecer o<br />

espaço tão bem ou até mesmo melhor que os adultos que trabalham nessas<br />

instituições.<br />

Acompanho de perto essas mudanças e durante a minha prática como professora<br />

de Educação Infantil, sempre me questionei sobre como essas transformações são<br />

possíveis? Que fatores levam a que elas ocorram? Somente a maturação biológica<br />

daria conta de explicar essas transformações?<br />

Observar as crianças pode levar-nos a entender esse processo.<br />

Uma criança de aproximadamente um ano e meio tenta abrir a torneira da pia <strong>do</strong><br />

refeitório para lavar suas mãos, mas não alcança. Outra criança que aparenta ser<br />

um pouco mais velha aponta para um ressalto de mármore que há ao la<strong>do</strong> da pia e<br />

diz:<br />

- Aqui, ó!<br />

Depois, sobe, abre a torneira e lava as mãos. A criança que estava com dificuldades<br />

faz o mesmo e fecha a torneira.


Qual foi a importância da criança mais experiente? Será que, sem ela ali, a outra<br />

conseguiria sozinha ou solicitaria a ajuda de um adulto? Um episódio que muitas<br />

vezes pode parecer banal aos olhos de quem não tem a sensibilidade de observar o<br />

cotidiano demonstra a <strong>constituição</strong> de um conhecimento apresenta<strong>do</strong> pelo outro.<br />

Dessa forma, o cotidiano escolar apresenta-me uma gama de oportunidades de<br />

observações, que eu venho acumulan<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s oito anos de profissão.<br />

Iniciei meu trabalho com crianças da primeira série <strong>do</strong> ensino fundamental da rede<br />

particular. Já há algum tempo vem acontecen<strong>do</strong> a entrada de crianças no ensino<br />

fundamental, principalmente em escolas particulares, em idade cada vez mais<br />

precoce, uma vez que os pais consideram vantajoso adiantar o percurso de seus<br />

filhos nos anos iniciais de escolarização.<br />

Dessa forma, na primeira série observei crianças com cinco, seis e sete anos. Muitas<br />

delas sentiam-se perdidas, pois tinham que lidar com notas, provas e o tempo<br />

reduzi<strong>do</strong> para brincar. As crianças que não sabiam ler eram tachadas de “mimadas”<br />

e “imaturas”, como se o processo de alfabetização se reduzisse a uma maturação<br />

biológica. Sempre tentei amenizar essa mudança brusca com a qual as crianças<br />

tinham que aprender a lidar, preparan<strong>do</strong> momentos avaliativos diferentes de uma<br />

prova, subverten<strong>do</strong> a ordem e levan<strong>do</strong>-as para brincar. Aquela situação, porém,<br />

inquietava-me.<br />

Concomitante com a minha inserção na vida profissional, fui-me constituin<strong>do</strong> como<br />

professora também na universidade, onde eu cursava Pedagogia. O mun<strong>do</strong><br />

acadêmico me seduziu, comecei a perceber que a educação não se reduzia<br />

simplesmente à minha sala de aula e que minhas práticas refletiam concepções e<br />

políticas enraizadas em nosso sistema de ensino. Confesso que inicialmente me<br />

assustei com a perversidade muitas vezes oculta da escola e com a idéia de que eu<br />

poderia estar contribuin<strong>do</strong> para isso.<br />

Na ânsia pelo novo, busquei mudanças em minha prática. Percebia que aquele<br />

ensino que tentava <strong>do</strong>cilizar os corpos cada vez mais ce<strong>do</strong> prejudicava as crianças,<br />

a quem muitas vezes vi chorar com saudades <strong>do</strong> parquinho, e que nos momentos de


prova não entendiam por que não podiam ajudar o colega, subvertiam a ordem e<br />

iam brincar escondidas.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, no ano de 2001 deixei a escola em busca de algo novo, que me<br />

fizesse compreender as crianças por meio de práticas diferenciadas. Ingressei no<br />

Programa de Iniciação Cientifica com o projeto intitula<strong>do</strong> “Afeto, emoção e<br />

linguagem na brincadeira da criança”, desenvolvi<strong>do</strong> na brinque<strong>do</strong>teca <strong>do</strong> Núcleo de<br />

Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Especial (NEESP) <strong>do</strong> Centro de<br />

Educação da Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo (CE/UFES). Esse projeto tinha<br />

por objetivo investigar os mo<strong>do</strong>s de manifestação da linguagem na configuração <strong>do</strong><br />

afeto e da emoção, em situações de jogo imaginário com crianças. As interações<br />

entre as crianças e os pesquisa<strong>do</strong>res eram intensas. Durante o perío<strong>do</strong> em que<br />

estivemos juntos, vários foram as cenas de brincadeiras em que acontecia a<br />

participação de mais de uma criança. As interações proporcionavam o<br />

enriquecimento da brincadeira.<br />

Essa pesquisa fazia parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Jogo, Mediação<br />

pedagógica e criança: estu<strong>do</strong>s na abordagem histórico-cultural”, que visava<br />

aprofundar a discussão sobre o desenvolvimento histórico e cultural da criança,<br />

ten<strong>do</strong> como referência o jogo infantil.<br />

Também dentro dessa pesquisa se desenvolvia o projeto coordena<strong>do</strong> pela<br />

professora Doutora Sonia Lopes Victor, que tinha como objetivo contribuir com a<br />

formação pedagógica e refletir a mediação pedagógica entre as crianças com<br />

deficiência mental e as crianças de desenvolvimento típico em interação em<br />

situações de brincadeira. Como as atividades eram desenvolvidas em crianças em<br />

faixa etária correspondente aos alunos da Educação Infantil, a pesquisa contribui<br />

para mostrar que além da escola existem outros espaços que podem propiciar um<br />

saber sistematiza<strong>do</strong> e intencional. O professor nestes espaços tem um papel<br />

fundamental de acompanhar e possibilitar às crianças caminharem além <strong>do</strong>s níveis<br />

de desenvolvimento já garanti<strong>do</strong>s. A pesquisa também contribui para uma reflexão<br />

da inclusão de crianças com deficiência mental nas salas regulares, valorizan<strong>do</strong> a<br />

mediação <strong>do</strong> professor, ten<strong>do</strong> como referência as manifestações da brincadeira de<br />

faz - de- conta entre as crianças.


Nesse perío<strong>do</strong>, percebi que pesquisar era muito mais <strong>do</strong> que procurar livros ou ir a<br />

bibliotecas. Pesquisar era observar, refletir sobre a minha prática na pesquisa, sobre<br />

as respostas das crianças e analisar, embasada na teoria, essas respostas. A partir<br />

desse momento, passei a “ver” diferente. Assim como alguém que não enxergava e<br />

passa a ver, o meu olhar se tornou mais sensível. Como disse Fernan<strong>do</strong> Pessoa, “O<br />

meu olhar é níti<strong>do</strong> como um girassol [...] olhan<strong>do</strong> para a direita e para a esquerda e<br />

de vez em quan<strong>do</strong> para trás e o que vejo a cada momento é aquilo que antes eu<br />

nunca tinha visto”. Na pesquisa é preciso olhar várias vezes para mesma situação,<br />

permitin<strong>do</strong>-se desviar o olhar para entender o que está acontecen<strong>do</strong> e sempre se<br />

descobrirá algo novo. Essa é a riqueza de se fazer pesquisa com crianças, a<br />

possibilidade <strong>do</strong> novo.<br />

As etapas da pesquisa foram de fundamental importância para a inserção <strong>do</strong>s<br />

recentes pesquisa<strong>do</strong>res, pois participamos desde a escolha <strong>do</strong>s brinque<strong>do</strong>s,<br />

montagem e o planejamento das atividades direcionadas com as crianças.<br />

Acompanhar e mediar a interação das crianças em situações de brincadeira<br />

possibilitou-nos a construção de um conhecimento sobre como interagir nessas<br />

situações e, junto com a criança, avançarmos em seu conhecimento sobre<br />

determinada brincadeira.<br />

Após o término desse estu<strong>do</strong>, iniciei meu trabalho como monitora da disciplina<br />

“Currículo em Educação Infantil”, interesse que surgiu ainda no perío<strong>do</strong> da pesquisa,<br />

pois nesse tempo lidávamos com crianças a partir de quatro anos de idade. Nossas<br />

leituras no grupo de pesquisa levaram-nos a refletir sobre o desenvolvimento das<br />

crianças na faixa etária da Educação Infantil.<br />

As contribuições foram riquíssimas, pois as discussões não se restringiam mais ao<br />

contexto <strong>do</strong> desenvolvimento infantil na brincadeira, ampliaram-se para o contexto<br />

da criança inserida no ambiente escolar, a história da trajetória das instituições de<br />

Educação Infantil, a forma como muitas instituições entendiam a criança e o seu<br />

desenvolvimento. Acrescenta-se a isso a valorosa troca de idéias com os alunos da<br />

disciplina que, com suas dúvidas, questionamentos e informações, me fizeram ter<br />

vontade de retornar à sala de aula com toda vivência e conhecimento adquiri<strong>do</strong>.


No ano de 2004, comecei a trabalhar como professora de Educação Infantil, no<br />

ensino municipal de Vila Velha. Trabalhar na escola pública era uma vontade política<br />

que adquiri com os professores da Universidade, uma vez que passei quatro anos<br />

usufruin<strong>do</strong> <strong>do</strong> ensino público superior, ao qual muitos ainda não têm acesso. Dessa<br />

forma, sentia-me comprometida a partilhar com a sociedade aquilo que tinha<br />

aprendi<strong>do</strong>.<br />

Trabalhan<strong>do</strong> em um espaço reserva<strong>do</strong> somente para a Educação Infantil, pude<br />

observar crianças em faixas etárias diferenciadas e perceber a interação entre elas,<br />

o espaço e os funcionários da Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI). Das<br />

muitas cenas que presenciei lembro-me de ter observa<strong>do</strong> crianças maiores (6 anos)<br />

orientan<strong>do</strong> as crianças menores (2 anos) a irem ao banheiro ou até mesmo<br />

auxilian<strong>do</strong> no momento de sua alimentação.<br />

No mesmo ano em que passei a lecionar para escola pública, tive o prazer de<br />

acompanhar, como aluna especial, o projeto “O processo de construção de<br />

conhecimentos sobre a prática <strong>do</strong>cente: um estu<strong>do</strong> com professores que atuam na<br />

Educação Infantil”, que tinha como objetivo analisar o processo de construção de<br />

conhecimento sobre a prática <strong>do</strong>cente por parte <strong>do</strong>s professores que atuam na<br />

Educação Infantil.<br />

Agora, em outro momento, não mais analisan<strong>do</strong> o desenvolvimento infantil, e sim os<br />

professores da Educação Infantil, suas falas, quan<strong>do</strong> participavam <strong>do</strong>s momentos de<br />

discussão, que eram nortea<strong>do</strong>s por textos, pude avançar um pouco mais em minha<br />

condição como professora e participar de um momento muito importante para os<br />

profissionais da escola pesquisada: era um momento de transição em busca <strong>do</strong><br />

novo, <strong>do</strong> desafio e da retomada da confiança por parte <strong>do</strong> grupo. Ouvir professores<br />

tão experientes, com uma vivência rica que eu já admirava antes mesmo de<br />

participar da pesquisa, veio a contribuir ainda mais para a minha formação. Lembro-<br />

me <strong>do</strong> relato de um professor sobre a experiência de uma criança, ex-aluno desse<br />

Centro de Educação Infantil, que foi para o Ensino Fundamental e que lá era tida<br />

como transgressora, pois, antes de ir para o recreio, tirava a blusa <strong>do</strong> uniforme.<br />

Indagada pela escola sobre o comportamento <strong>do</strong> filho, a mãe disse que o filho tinha


essa liberdade porque sua antiga escola lhe permitia fazer isso nos dias quentes.<br />

Nesse espaço, as crianças tinham liberdade para se expressar.<br />

Segun<strong>do</strong> o relato <strong>do</strong>s professores, as crianças tinham liberdade para interagir com<br />

to<strong>do</strong>s, dar sua opinião sobre a área onde brincavam e o cardápio. Relatos que me<br />

mostravam que outra forma de ensinar era possível. Ouvir e saber detalhes da vida<br />

daquelas crianças era o diferencial daquele grupo de professores.<br />

Isso me mostrou a importância <strong>do</strong>s relacionamentos teci<strong>do</strong>s dentro <strong>do</strong> espaço<br />

escolar. Durante os últimos anos, venho observan<strong>do</strong> com mais cuida<strong>do</strong> esse<br />

ambiente e a sua importância na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito. O que levamos <strong>do</strong> convívio<br />

com os outros? É possível viver isola<strong>do</strong> em um ambiente tão rico em interações?<br />

Vivencian<strong>do</strong> esse ambiente e toda riqueza que ele proporciona, percebo a<br />

importância que ele tem na formação e <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito. É comum ouvir mães<br />

falarem que as crianças só aceitam o que a professora diz, ou que adquiriram<br />

práticas que antes não tinham, como fazer fila, cantar para lanchar, cantar músicas<br />

novas. Isso só é possível através das interações que permeiam as instituições. As<br />

crianças, que até certo momento estavam restritas ao ambiente familiar, agora<br />

convivem com diversas pessoas, novos colegas, funcionários da escola e<br />

professores. Esse convívio pode ser prazeroso ou não, mas com certeza deixa<br />

marcas na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito.<br />

Como professora, gosto de observar as crianças quan<strong>do</strong> chegam à escola, nos<br />

momentos de brincadeiras e atividades direcionadas. É sempre interessante ver<br />

como buscam soluções diferenciadas para resolução de problemas, quan<strong>do</strong>, por<br />

exemplo, um colega que tem dificuldades ao balançar e outro o empurra para ajudar<br />

e o ensina como <strong>do</strong>brar as pernas para “voar” mais alto; ou quan<strong>do</strong>, nas atividades<br />

direcionadas, um colega ajuda o outro e, no momento em que aprende a ler, ele diz<br />

que foi o amigo quem lhe ensinou, parecen<strong>do</strong> que to<strong>do</strong> o esforço da professora em<br />

ensiná-lo tinha si<strong>do</strong> em vão, pois atribui ao colega o mérito <strong>do</strong> ensinamento; quan<strong>do</strong><br />

passam a conhecer tão bem o cheiro <strong>do</strong>s alimentos da escola, que já reconhecem<br />

qual vai ser a merenda <strong>do</strong> dia; quan<strong>do</strong>, em interação com a professora e os outros<br />

colegas, aprende algo novo. Esses momentos tão ricos em humanidade e o que é


própria dela - a interação – possibilitam-me apurar o olhar e me questionar sobre o<br />

processo de desenvolvimento desses sujeitos.<br />

Diante disso, busco compreender, neste estu<strong>do</strong>, como ocorre a “<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu”<br />

entre as crianças na Educação Infantil. Esse objetivo levou-me a discutir sobre os<br />

aspectos que interferem nessa <strong>constituição</strong>, a maneira como adultos e crianças<br />

participam desse processo, o papel da cultura e da história da humanidade no<br />

constituir subjetivo dessas crianças.<br />

Mas por que escolher a Educação Infantil? Além de a minha história profissional<br />

estar interligada com a Educação Infantil, o desenvolvimento das crianças me<br />

fascina, busco, nesta pesquisa, contribuir para a ampliação das discussões sobre a<br />

Educação Infantil, por se tratar de uma área recente e por ser o desenvolvimento<br />

infantil um tema pouco pesquisa<strong>do</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong> Rocha (1999), que pesquisou as produções acadêmicas publicadas sobre<br />

Educação Infantil em seminários e congressos como Associação Nacional de Pós-<br />

Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Sociedade <strong>Brasil</strong>eira para o<br />

Progresso da Ciência (SBPC), Sociedade <strong>Brasil</strong>eira de Psicologia (SBP) e outros, as<br />

pesquisas em Educação Infantil têm muda<strong>do</strong> ao longo das décadas. Na década de<br />

1970, a preocupação era com as crianças da pré-escola, propon<strong>do</strong> intervenções<br />

precoces para os “culturalmente marginaliza<strong>do</strong>s”. Nessa década, poucas pesquisas<br />

voltavam-se para as crianças de 0 a 6 anos, e as que se propunham a discutir o<br />

tema buscavam influências da educação compensatória para justificar a ampliação<br />

da Educação Infantil.<br />

Na década seguinte, com a crítica às teorias da privação cultural, a discussão<br />

política passou a orientar os estu<strong>do</strong>s teóricos sobre a influência <strong>do</strong>s movimentos<br />

sociais e feministas. Nesse momento, entraram em foco as pesquisas <strong>do</strong> tipo<br />

diagnóstico institucional, os levantamentos de da<strong>do</strong>s, os relatos de experiências; a<br />

partir daí tem-se uma idéia de qual era o cenário das instituições de Educação<br />

Infantil no <strong>Brasil</strong>.


As pesquisas que antecederam os anos noventa estavam preocupadas em<br />

investigar a definição <strong>do</strong> caráter educativo da creche e da pré-escola, entretanto o<br />

“interior” das instituições era pouco investiga<strong>do</strong>.<br />

Com o passar <strong>do</strong> tempo, os estu<strong>do</strong>s passaram a aproximar-se <strong>do</strong>s diversos<br />

aspectos da pré-escola, como a relação família/creche, a formação profissional <strong>do</strong>s<br />

que trabalham com as crianças. No entanto, um grande número de pesquisas<br />

acabaram limitan<strong>do</strong>-se à denúncia de práticas insatisfatórias.<br />

Atualmente há um grande esforço <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res por pesquisas que entendam<br />

as instituições de Educação Infantil como um espaço privilegia<strong>do</strong> para a socialização<br />

das crianças e o desenvolvimento infantil, a partir <strong>do</strong> contexto em que ocorre, e das<br />

relações que o permeiam. Rocha destaca os trabalhos <strong>do</strong> Centro <strong>Brasil</strong>eiro de<br />

Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), da<br />

Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto pela intensa produção na área<br />

da Psicologia Infantil.<br />

Compartilhan<strong>do</strong> as idéias desses pesquisa<strong>do</strong>res, esta pesquisa busca compreender<br />

o desenvolvimento infantil a partir da observação de crianças que freqüentam uma<br />

Unidade de Educação Infantil. Consideran<strong>do</strong> a riqueza de cada dia, vivencia<strong>do</strong>, este<br />

estu<strong>do</strong> procura desvelar esse universo, observan<strong>do</strong> o cotidiano e buscan<strong>do</strong><br />

compreender nele os caminhos da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as crianças.<br />

Dessa forma, no primeiro capítulo, abor<strong>do</strong> alguns aspectos da história da infância,<br />

para mostrar em qual concepção de criança e de que perspectiva de<br />

desenvolvimento este estu<strong>do</strong> se baseia. Para isso, busco algumas pesquisas que<br />

vêm refletin<strong>do</strong> a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu na perspectiva sócio-histórica, procuran<strong>do</strong><br />

mostrar o reflexo desses trabalhos na Educação Infantil. Em seguida, aponto<br />

algumas contribuições da perspectiva histórico-cultural para a análise da<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito na infância. Trago especialmente as contribuições de Vigotiski<br />

sobre o papel <strong>do</strong> outro e da linguagem no desenvolvimento da criança e as<br />

contribuições de Wallon sobre o percurso da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu em diferentes<br />

momentos <strong>do</strong> desenvolvimento.


No segun<strong>do</strong> capítulo, a escolha meto<strong>do</strong>lógica da pesquisa delineia os passos que<br />

sigo para observar aquilo que proponho, reforçan<strong>do</strong> que o foco são as crianças,<br />

seres ativos historicamente, produtores e produto de uma cultura. A pesquisa<br />

constitui-se em um estu<strong>do</strong> de caso de uma turma de Jardim II 1 de uma unidade<br />

pública de Educação Infantil <strong>do</strong> município de Vila Velha. Nesse momento apresento<br />

a escola, a professora, as crianças <strong>do</strong> Jardim II e a rotina de trabalho da turma. E<br />

suas famílias.<br />

No terceiro capítulo analiso aspectos <strong>do</strong> percurso de <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as<br />

crianças <strong>do</strong> Jardim II. Para isso enfoco as interações estabelecidas na turma e<br />

destaco o ser menina e o ser menino nesse universo. As análises evidenciam inter-<br />

relações entre as atitudes e os comportamentos das crianças e concepções, valores<br />

e práticas presentes no contexto histórico e cultural em que elas vivem.<br />

Finalizan<strong>do</strong>, discuto algumas contribuições que o estu<strong>do</strong> traz para pensarmos/<br />

refletirmos sobre a prática pedagógica e a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as crianças nas<br />

relações entre meninas e meninos e o contexto histórico e cultural que permeia esse<br />

processo, a possibilidade de mo<strong>do</strong>s de mediar a interação entre as crianças,<br />

proporcionan<strong>do</strong> a elas experimentar diversos papéis/posições nas relações de<br />

gênero.<br />

1 A Rede Municipal de Educação de Vila Velha utiliza-se da nomenclatura clássica de Frobel (1782- 1852) de<br />

“jardins de infância” para definir as turmas da Educação Infantil. A turma de Jardim II corresponde à idade de<br />

cinco a seis anos de idade.


1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA<br />

Procuran<strong>do</strong> o caminho a seguir...<br />

[...] se existe uma história<br />

humana é porque o homem tem<br />

uma infância. Kramer<br />

Iniciamos este capítulo com uma citação de Kramer (1999), afirman<strong>do</strong> a importância<br />

de se estudar a infância para entendermos o ser humano. Entretanto pensar o termo<br />

infância na história é levar em consideração que esse só irá surgir no princípio da<br />

modernidade.<br />

Sarmento (2005, p.23) retrata a infância na história, apontan<strong>do</strong> a negação dessa<br />

categoria social ao longo <strong>do</strong>s anos. No início da modernidade, a infância surgiu não<br />

com uma, mas com duas idéias: uma que defende a inocência da criança, e a outra,<br />

que indica a “irracionalidade” da criança perante o adulto. “A criança é considerada<br />

como um não-adulto e este olhar adultocêntrico sobre a infância registra<br />

especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das características de um<br />

ser humano ‘completo’”.<br />

A revolução industrial trouxe consigo a prática da utilização das crianças como mão-<br />

de-obra barata e produtiva. Entretanto, no início <strong>do</strong> século XX houve uma<br />

mobilização contra a exploração <strong>do</strong> trabalho infantil, retiran<strong>do</strong> as crianças das<br />

fábricas, mas não <strong>do</strong> trabalho no campo. “Nesta conformidade as crianças foram<br />

consideradas como seres afasta<strong>do</strong>s da produção e <strong>do</strong> consumo e a infância<br />

investida da natureza da idade <strong>do</strong> não trabalho”. (SARMENTO, 2005, p.24)<br />

Segun<strong>do</strong> Sarmento (2005, p.24), atualmente percebemos o desenvolvimento ativo<br />

das crianças na indústria <strong>do</strong> consumo, com a erotização progressiva da infância<br />

pelos meios de comunicação. Essa concepção de infância encerra o “[...] círculo da<br />

negatividade, a idéia de que as crianças actuais vivem, definitivamente, um processo


de adultilização precoce e irreversível, e, por conseqüência, habitam a idade da não<br />

infância”.<br />

Conforme as análises de Sarmento, a infância é uma categoria social à qual sempre<br />

foi nega<strong>do</strong> o direito da expressividade. Apesar de to<strong>do</strong> o arcabouço teórico<br />

construí<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s anos, a infância atualmente ainda continua a ser negada e a<br />

criança é vista como uma mera receptora das produções <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> capitalista.<br />

Segun<strong>do</strong> Oliveira (2002), no <strong>Brasil</strong>, até metade <strong>do</strong> século XIX, não se falava <strong>do</strong><br />

atendimento a crianças pequenas longe de suas mães; tinha-se a idéia, conforme<br />

colocou Sarmento (2005), de uma criança inocente e desprovida de razão. As<br />

crianças mais pobres eram cuidadas por suas mães e as crianças filhas de<br />

aristocratas ou de grandes latifundiários eram criadas, quan<strong>do</strong> pequenas, pelas<br />

“amas de leite”, ou seja, as escravas e, quan<strong>do</strong> atingiam certa idade, recebiam aulas<br />

de suas tutoras.<br />

As crianças pequenas só eram assistidas em instituições quan<strong>do</strong> eram<br />

aban<strong>do</strong>nadas por suas mães e entregues às “rodas de expostos”. Essas instituições<br />

eram geralmente ligadas à igreja católica. Dessa forma, o atendimento a essas<br />

crianças dava-se mais como ”cuida<strong>do</strong>”.<br />

No início <strong>do</strong> século XX, com o crescimento urbano e industrial e a entrada da mulher<br />

no merca<strong>do</strong> de trabalho, criou-se um problema: Com quem vão ficar as crianças<br />

pequenas? As crianças maiores acompanhavam suas mães, ajudan<strong>do</strong>-as no<br />

trabalho. Nesse perío<strong>do</strong>, cresce o índice de mortalidade infantil, porque para saírem<br />

para trabalhar as mães deixavam seus filhos ainda bebês sozinhos e sem a<br />

alimentação devida, o que ocasiona um grande número de crianças mortas.<br />

Neste contexto, surgiram as “criadeiras” ou as “faze<strong>do</strong>ras de anjos”: mulheres que se<br />

responsabilizavam pelo cuida<strong>do</strong> de diversas crianças em espaços com higienização<br />

duvi<strong>do</strong>sa.<br />

Grandes lutas foram travadas para o surgimento de instituições que cuidassem das<br />

crianças pequenas, com a participação ativa <strong>do</strong> movimento de mulheres em busca<br />

de atendimento para seus filhos. Entretanto a infância foi negada mais uma vez, pois


esse atendimento era visto mais como um direito da mãe trabalha<strong>do</strong>ra de ter uma<br />

instituição que cuidasse <strong>do</strong> seu filho enquanto ela trabalhava, <strong>do</strong> que um direito da<br />

criança de ser atendida em suas necessidades e de ter condições educativas para<br />

desenvolver suas potencialidades.<br />

A partir da década de 1940, começaram a surgir, em São Paulo, creches que eram<br />

pensadas para o atendimento de higienização e saúde das crianças, para sanar os<br />

altos índices de mortalidade infantil. Essas instituições tinham um caráter filantrópico<br />

e assistencialista. Para elas, o cuidar era o mais importante.<br />

Na década de 1970, começaram a surgir as pré-escolas que, baseadas em uma<br />

teoria da privação cultural e da educação compensatória, definem a infância “[...]<br />

pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece e,<br />

fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua humanidade”<br />

(KRAMER,1996 p.16). Dessa forma, a pré-escola apareceu como a solução imediata<br />

e mágica para os problemas <strong>do</strong> fracasso escolar.<br />

Como afirma Kramer (1998), a infância é negada mais uma vez quan<strong>do</strong> não é<br />

reconhecida e as instituições de educação infantil tornam-se um preparatório para o<br />

ensino fundamental. Essa concepção ainda marca a Educação Infantil, quan<strong>do</strong> se<br />

pensa que a função da creche é o cuidar e da pré-escola é o educar.<br />

Nas décadas seguintes, ocorreu um intenso debate político-educacional, que foi<br />

importante para a consolidação de uma base teórica em defesa da infância. Em<br />

1975, criou-se a Coordena<strong>do</strong>ria de Ensino Pré-Escolar, no Ministério de Educação e<br />

Cultura, o que veio a demonstrar um avanço nas discussões sobre a infância.<br />

Segun<strong>do</strong> Oliveira (2000) lutas<br />

[...] pela democratização da escola pública, somadas a pressões de movimentos<br />

feministas e movimentos sociais de lutas por creches, possibilitaram a conquista, na<br />

Constituição de 1988, <strong>do</strong> reconhecimento da educação em creche e pré-escolas como<br />

um direito da criança e um dever <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a ser cumpri<strong>do</strong> nos sistemas de ensino.<br />

(p.50)<br />

No ano de 1988, concretizou-se então, em forma de lei, a reivindicação <strong>do</strong>s<br />

movimentos sociais e de teóricos e pesquisa<strong>do</strong>res da época. A década seguinte foi<br />

marcada por grandes fatos, como a promulgação <strong>do</strong> Estatuto da Criança e <strong>do</strong><br />

A<strong>do</strong>lescente e a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n°


9.394, de 20 de dezembro de 1996, que reconhece a Educação Infantil como etapa<br />

inicial da educação básica e define como responsabilidade <strong>do</strong> município o<br />

atendimento, autorização, credenciamento, supervisão e avaliação institucional.<br />

Ao longo <strong>do</strong>s anos, segun<strong>do</strong> Kramer (1996, p. 17), o ser “[...] paparica<strong>do</strong> ou<br />

moraliza<strong>do</strong>, miniatura <strong>do</strong> homem, sementinha a desabrochar cresceu como estatuto<br />

teórico”. Contu<strong>do</strong>, apesar de a LDB assegurar a Educação Infantil na Educação<br />

Básica e determinar a formação <strong>do</strong> profissional que atende esta faixa etária, o que<br />

vemos no País é que muitos municípios ainda não se adequaram a essa<br />

responsabilidade; neles há creches ligadas à Secretaria de Ação Social e<br />

profissionais sem a escolaridade necessária para essa modalidade de ensino.<br />

É nesse contexto de transformações e mudanças que esta pesquisa se propõe a<br />

contribuir para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> desenvolvimento infantil, fugin<strong>do</strong> da negação da criança<br />

e de uma psicologia que a retrata “[...] como imatura e dependente, carente e<br />

incompleta, quer como esponja absorvente, semente a desabrochar, quer ainda<br />

como perverso polimorfo ou sujeito epistêmico” (KRAMER, 1996, p. 17). Investigo<br />

nesta pesquisa a criança e sua condição histórica e cultural.<br />

Não negamos a história da infância, pois ela se torna fundamental para entendermos<br />

as crianças como atores sociais, interpretan<strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong> e os signos que as<br />

cercam, respeitan<strong>do</strong>-as em suas singularidades e multiplicidades. Encontramos na<br />

teoria histórico-cultural a “[...] possibilidade de compreender como o sujeito individual<br />

era/é teci<strong>do</strong> pelas tramas <strong>do</strong> contexto, sen<strong>do</strong> ao mesmo tempo ativo e criativo nesse<br />

processo” (KRAMER, 1996, p.23).<br />

1.1 REVISÃO DE LITERATURA<br />

Buscan<strong>do</strong> compreender como se dá a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito no ambiente escolar,<br />

trazemos a contribuição de autores que nos últimos anos têm pesquisa<strong>do</strong> essa<br />

temática. Inicialmente, muitas foram às dúvidas para definir os trabalhos a serem


analisa<strong>do</strong>s e sua importância para a presente pesquisa, pois têm si<strong>do</strong> varia<strong>do</strong>s os<br />

termos utiliza<strong>do</strong>s ao se falar de <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito: subjetividade? consciência?<br />

personalidade? Diante disso, optamos por reunir, neste trabalho, pesquisas que têm<br />

um enfoque histórico-cultural, por acreditarmos que são fortes as marcas deixadas<br />

em nós <strong>do</strong> nosso convívio com o outro.<br />

Quan<strong>do</strong> abordamos a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito, estamos também delimitan<strong>do</strong> aquilo<br />

que é próprio <strong>do</strong> sujeito, que será forma<strong>do</strong> ao longo das suas vivências, <strong>do</strong>s outros<br />

que as significam e de sua forma de interpretar a realidade (que também é<br />

constituída socialmente).<br />

Autores que procuram compreender como se dá a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito a partir da<br />

perspectiva histórico-cultural analisam aspectos varia<strong>do</strong>s e momentos distintos <strong>do</strong><br />

desenvolvimento infantil.<br />

Pino (2005) busca, em da<strong>do</strong>s de pesquisa empírica, analisar uma das principais<br />

teses de <strong>Vigotski</strong>: a natureza cultural <strong>do</strong> desenvolvimento da criança, ou seja, <strong>do</strong> ser<br />

humano. Dentro dessa perspectiva, o autor divide em <strong>do</strong>is pontos centrais o seu<br />

trabalho: 1) o homem é constituí<strong>do</strong> de funções naturais e culturais; 2) as funções<br />

culturais pressupõem a “transposição” <strong>do</strong> plano social para o plano pessoal.<br />

Dessa forma, o desenvolvimento cultural teria um começo, que estaria situa<strong>do</strong> logo<br />

após o nascimento, na ocasião em que o bebê entra em contato com o meio<br />

sóciocultural. Acreditan<strong>do</strong> que existe um marco zero cultural, Pino o coloca como<br />

ponto de investigação, tentan<strong>do</strong> detectar, nos primeiros meses de vida, os indícios<br />

da conversão das funções biológicas em funções culturais. O autor alerta que não é<br />

fácil diferenciar, na pesquisa, o fator cultural <strong>do</strong> biológico porque, em determina<strong>do</strong>s<br />

pontos, eles se fundem. O trabalho é uma tentativa de verificação empírica de uma<br />

base teórica. Na análise, o autor volta-se para os indícios da <strong>constituição</strong> cultural <strong>do</strong><br />

homem, pois, para ele, não há como afirmar precisamente quan<strong>do</strong> começa o<br />

desenvolvimento cultural da criança. Nesse tipo de reflexão, não se trata meramente<br />

de observar o fato, mas seguir os acontecimentos.<br />

(a) A pesquisa tem como sujeito-alvo uma única criança, <strong>do</strong> nascimento até um<br />

ano de idade, antes da emergência da fala. O autor justifica a utilização de


apenas uma criança, pois vários casos seriam inúteis para o que queria<br />

observar: os indícios <strong>do</strong> processo de <strong>constituição</strong> social.<br />

(b) Para análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s, o autor utilizou o que denomina “indica<strong>do</strong>res de<br />

desenvolvimento”, os quais são apresenta<strong>do</strong>s por ordem de aparição: o<br />

choro, o movimento (de mãos, de pés, de rosto ou ‘caretas’, de braços, de<br />

tronco, de pernas), o olhar e o sorriso. Por meio desses indica<strong>do</strong>res, Pino<br />

procurou analisar como o organismo integra o que capta <strong>do</strong> meio externo e<br />

cultural.<br />

(c) Depois de delinear esses indica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> desenvolvimento, o autor descreve<br />

alguns episódios observa<strong>do</strong>s na criança, <strong>do</strong> nascimento até completar um<br />

ano de idade. Divide essa fase em três níveis de desenvolvimento e analisa<br />

os indícios encontra<strong>do</strong>s, retoman<strong>do</strong> a pergunta inicial: Será possível<br />

encontrar nos primeiros meses de vida indícios que possam confirmar a<br />

conversão das funções biológicas em funções culturais?<br />

(d) De acor<strong>do</strong> com os níveis, Pino detém-se, inicialmente, no nível 0, encontra<strong>do</strong><br />

na análise <strong>do</strong>s episódios, que consiste nas primeiras 72 horas de vida de<br />

Lucas, o bebê seleciona<strong>do</strong> para o estu<strong>do</strong>. Nesse perío<strong>do</strong>, “[...] não é possível<br />

detectar indícios da ação da cultura sobre o desenvolvimento biológico em<br />

nenhum <strong>do</strong>s ‘indica<strong>do</strong>res’ escolhi<strong>do</strong>s”. (PINO, 2005, p.250). Segun<strong>do</strong> o autor,<br />

a vida acontece na criança mais <strong>do</strong> que ela acontece na vida. O choro é o<br />

único indica<strong>do</strong>r presente nesse momento, refletin<strong>do</strong> situações de mal-estar ou<br />

a entrada de novas sensações. Na análise <strong>do</strong>s níveis seguintes, o autor<br />

discorre sobre o desenvolvimento das funções auditiva e visual, da<br />

motricidade, sobre os primeiros indícios de relações humanas e de interesse<br />

da criança pelos objetos.<br />

(e) Nos níveis 5 e 6, o autor destaca um acontecimento fundamental no<br />

desenvolvimento cultural de Lucas que é, primeiramente, o ato de engatinhar<br />

e, logo depois, o ato de andar. Esta atividade traz a autonomia de<br />

deslocamento no espaço, o que vai mudar sua percepção de espaço e de<br />

mun<strong>do</strong>.


(f) Ao finalizar o trabalho, o autor retoma as perguntas iniciais e as discute,<br />

reafirman<strong>do</strong> as contribuições da cultura no tornar-se humano, mesmo ten<strong>do</strong><br />

analisa<strong>do</strong> uma criança em tão tenra idade. Afirma Pino (2005, p.268):<br />

(g) Como indícios não são nem verdades nem erros, nem causa, nem efeitos,<br />

mas pontos de amarração de uma rede lógica ou que pretende ser tal,<br />

tenho a convicção, sem poder dizer que é certeza, de que a ação <strong>do</strong> meio<br />

cultural começa a operar imediatamente após o nascimento da criança, de<br />

forma lenta, é verdade, mas constante, conferin<strong>do</strong> aos gradientes de<br />

evolução biológica as “marcas <strong>do</strong> humano.<br />

(h) Com o trabalho de Pino (2005) percebemos que nos constituímos em contato<br />

com o mun<strong>do</strong>. Mesmo sen<strong>do</strong> tão pequenas e frágeis, as crianças menores<br />

mergulham no mun<strong>do</strong> da cultura desenvolven<strong>do</strong>-se tanto biologicamente<br />

como culturalmente.<br />

(i) Vasconcellos (2002), em sua tese de livre <strong>do</strong>cência intitulada “Construção da<br />

subjetividade: processo de inserção de crianças pequenas e suas famílias à<br />

creche”, discute também a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu em crianças pequenas (1 ano e<br />

9 meses a 1 ano e 11 meses), tentan<strong>do</strong> entender a gênese <strong>do</strong>s processos de<br />

mudança no desenvolvimento de crianças no momento em que elas são<br />

convidadas a participar de um novo ambiente – a creche. A autora realiza<br />

uma pesquisa empírica em uma creche universitária, durante <strong>do</strong>is meses,<br />

com um grupo de oito crianças e seus pais ou responsáveis.<br />

(j) Vasconcellos faz uma análise crítica da literatura clássica da Psicologia. Cita<br />

a “Teoria <strong>do</strong> apego” de Bolwby e a noção de egocentrismo de Piaget, que,<br />

segun<strong>do</strong> a autora, inibiu por muito tempo a pesquisa com bebês. Ressaltan<strong>do</strong><br />

a importância das teorias de <strong>Vigotski</strong> e Wallon, enfatiza a interação social na<br />

construção <strong>do</strong> conhecimento e nas práticas das crianças.<br />

(k) Da teoria desses autores que embasam o seu trabalho ela destaca o<br />

significa<strong>do</strong> da interação social e <strong>do</strong> contexto sócio-histórico no processo de<br />

construção das primeiras competências das crianças. Ela também enfatiza a<br />

criança como um ser concreto, que se constrói como pessoa através <strong>do</strong><br />

convívio com os outros, ten<strong>do</strong> a influência histórica e cultural <strong>do</strong> seu tempo.


(l) Por meio dessa teoria, a autora buscou discutir o processo de significação de<br />

estar no mun<strong>do</strong> dessas crianças e a maneira como se dá o seu<br />

desenvolvimento, procuran<strong>do</strong> não separar o pensamento e o afeto, mas<br />

analisan<strong>do</strong> a influência das ações no desenvolvimento psíquico dessas<br />

crianças.<br />

(m) O que também apareceu de essencial na pesquisa de Vasconcellos foi o<br />

estabelecimento não apenas de relações harmoniosas, mas também as<br />

relações de conflito que incitavam as crianças a escolhas.<br />

(n) Dessa forma, com a contribuição desses autores, em sua análise<br />

Vasconcellos privilegiou a interação e a emergência da imitação que surgia<br />

desses contatos. A autora observou as crianças juntamente com seus<br />

familiares que, nesse perío<strong>do</strong> de inserção, permaneciam na creche por um<br />

tempo determina<strong>do</strong> até a adaptação dessas crianças ao novo espaço.<br />

(o) Utilizan<strong>do</strong>-se de <strong>Vigotski</strong>, a autora ressalta a importância <strong>do</strong> adulto e das<br />

crianças como media<strong>do</strong>res no processo de inserção quan<strong>do</strong> diz “[...] o<br />

desenvolvimento de qualquer pessoa passa necessariamente pelo outro, o<br />

interlocutor em situações dialógicas” (VASCONCELLOS, p. 101, 2002).<br />

(p) O mo<strong>do</strong> de ver o mun<strong>do</strong> depende <strong>do</strong>s valores, <strong>do</strong>s princípios e <strong>do</strong>s diferentes<br />

comportamentos sociais produzi<strong>do</strong>s na interação social com os pais, com os<br />

irmãos, com os amiguinhos e com as educa<strong>do</strong>ras da creche. Cabe à criança<br />

“[...] surpreender seus interlocutores, subverter a ordem e intervir no percurso<br />

pensan<strong>do</strong> sua própria história, garantin<strong>do</strong> o entrelaçamento de sua história<br />

singular à <strong>do</strong> coletivo-social” (VASCONCELLOS, 2002, p. 185).<br />

(q) A autora acredita que o trabalho pode contribuir para a construção de uma<br />

psicologia comprometida em buscar e ilustrar espaços interessantes para que<br />

as crianças pequenas possam constituir-se. Auxilia também no planejamento<br />

diário das professoras de Educação Infantil, proporcionan<strong>do</strong> às crianças um<br />

lugar lúdico e alegre e amplian<strong>do</strong> os espaços de interação, pois estes<br />

favorecem o desenvolvimento, quan<strong>do</strong> visam à produção de amizades, e o<br />

conhecimento não só cognitivo, como também o afetivo e social.


(r) Analisan<strong>do</strong> crianças um pouco maiores e ten<strong>do</strong> como foco as emoções e os<br />

conflitos nas interações, Galvão (1998) contribui para a ampliação das<br />

reflexões sobre o desenvolvimento infantil. A autora enfoca as interações e<br />

analisa situações de conflito e a emergência da emoção. Seu estu<strong>do</strong>, que tem<br />

como referência Wenri Wallon, traz importantes contribuições para nossas<br />

reflexões sobre a <strong>constituição</strong> da pessoa.<br />

Muito presente no cotidiano da Educação Infantil, o conflito nas relações<br />

interpessoais é objeto de análise da autora para discutir a <strong>constituição</strong> da criança<br />

como pessoa. Utilizan<strong>do</strong> a perspectiva waloniana <strong>do</strong> desenvolvimento, Galvão<br />

destaca que o processo de formação é marca<strong>do</strong> por conflitos. Apoian<strong>do</strong>-se em<br />

Wallon, a autora aponta que por volta <strong>do</strong>s três anos de idade há uma deflagração de<br />

uma crise <strong>do</strong> personalismo, e é nessa fase que começa a haver uma diferenciação<br />

efetiva entre o eu e o outro.<br />

Diante disso, a pesquisa foi realizada com uma turma de crianças de três anos e<br />

cinco meses e de quatro anos e oito meses de uma creche pública. Foram utiliza<strong>do</strong>s<br />

gravações <strong>do</strong> cotidiano, entrevistas e caderno de campo. A autora descreve<br />

detalhadamente a instituição escolhida, o projeto político pedagógico da escola, a<br />

rotina da instituição. Aborda também o impacto da sua presença em uma sala de<br />

Educação Infantil, na sua inserção na creche.<br />

Algumas cenas foram destacadas pela pesquisa<strong>do</strong>ra como indícios expressivos das<br />

emoções, nos quais os conflitos estavam presentes. Sua análise foi dividida em<br />

categorias. Os conflitos origina<strong>do</strong>s pela posse <strong>do</strong> objeto, pela delimitação <strong>do</strong> espaço<br />

e pelos incômo<strong>do</strong>s referentes ao contato físico são os que aparecem mais nos<br />

episódios analisa<strong>do</strong>s. Os conflitos em torno de nome, idéia, competição,<br />

postura/movimento, tempo, barulho, preferência pelo outro e imagem de si<br />

acontecem com menos freqüência. Tentan<strong>do</strong> analisar as categorias levantadas, a<br />

autora chega a quatro tópicos de análise: preservação <strong>do</strong> eu, afirmação <strong>do</strong> eu,<br />

regras, exuberância expressiva e contágio emocional.<br />

No tópico preservação <strong>do</strong> eu, destacam-se os conflitos em torno da posse <strong>do</strong>s<br />

objetos. Basean<strong>do</strong>-se em Wallon, a autora analisa a disputa por objetos como parte<br />

<strong>do</strong> processo de diferenciação <strong>do</strong> eu. Seu estu<strong>do</strong> aponta que a disputa pela posse


não se limita apenas aos objetos, também se estende ao espaço, ao nome e à idéia:<br />

“É como se o objeto, o nome, o lugar ou a idéia fossem prolongamentos <strong>do</strong> eu que<br />

precisassem ser, a to<strong>do</strong> custo, preserva<strong>do</strong>s; é como se o espaço afetivo em torno da<br />

pessoa fosse um contorno que devesse ser igualmente protegi<strong>do</strong>” (GALVÃO, 1999,<br />

p. 168).<br />

Os episódios de afirmação <strong>do</strong> eu chamaram a atenção da pesquisa<strong>do</strong>ra pela euforia<br />

e entusiasmo das crianças em pronunciar o pronome “eu” em atividades em que a<br />

professora lançava perguntas que solicitavam o posicionamento delas. A análise<br />

aponta que a professora é o principal alvo das condutas de afirmação <strong>do</strong> eu.<br />

(s) Galvão destaca que a falta de discussões sobre a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito nas<br />

práticas pedagógicas da Educação Infantil ante as decorrentes manifestações<br />

de diferenciação pessoal contribui para o delineamento de interações nem<br />

sempre pacíficas e tranqüilas na sala de aula. Por isso, a autora, propõe<br />

momentos de reflexão da prática <strong>do</strong> professor no turbilhão de emoções que<br />

constituem o contexto da Educação Infantil.<br />

(t) Preocupada em entender a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito, Pedrosa (1988) busca,<br />

através das interações entre as crianças em situação de brincadeira, indícios<br />

para essa <strong>constituição</strong>. Com o trabalho intitula<strong>do</strong> “Interação criança-criança:<br />

um lugar de construção <strong>do</strong> sujeito”, tem por objetivo estudar a interação social<br />

entre crianças de 1 a 3 anos de idade, conceben<strong>do</strong>-a como um espaço de<br />

interregulações no qual se constituem processos psicológicos.<br />

A autora baseia-se nas teorias de <strong>Vigotski</strong>, Wallon e Piaget. Entretanto é em Wallon<br />

que ela se apóia mais. Essas teorias evidenciam uma tendência muito forte da<br />

época em que foi defendida a tese, que é o sóciointeracionismo.<br />

Assim como Wallon, a autora não desconsidera o papel <strong>do</strong> biológico no<br />

desenvolvimento <strong>do</strong> ser humano, mas dá maior ênfase aos aspectos sociais nesse<br />

percurso: “Os processos ditos psicológicos são possibilita<strong>do</strong>s pelo cérebro<br />

biologicamente constituí<strong>do</strong>. Esses processos não estão pré-forma<strong>do</strong>s ao nascer;<br />

resultam da interação da criança com o meio” (PEDROSA, 1988, p. 5).


Segun<strong>do</strong> Pedrosa (1998, p.7), muitos trabalhos apontam erroneamente que a<br />

interação social é sinônimo de contato social ou de ação socialmente dirigida. Para a<br />

autora, interação social “[...] pressupõe uma relação de regulação ou de influência<br />

recíproca entre indivíduos - depende <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong>s integrantes”. Na<br />

perspectiva sócio-histórica o outro é peça fundamental na <strong>constituição</strong>.<br />

A autora analisa a imitação em situações de interação. Utiliza-se da teoria de<br />

Wallon, que entende a imitação como “[...] um esta<strong>do</strong> de fusão e diferenciação entre<br />

o sujeito e o modelo. E este modelo é a princípio o outro” (PEDROSA, 1988, p. 24).<br />

Assim, a imitação delineia-se a partir da fusão com o outro, de sua participação<br />

efetiva. A interação social está presente no percurso da imitação, como parte<br />

integrante, mesmo que o outro esteja ausente fisicamente, na hora <strong>do</strong> ato. Esclarece<br />

que a interação criança-criança é focalizada em seu trabalho como processo e não<br />

como contexto para o estu<strong>do</strong> de comportamentos individuais.<br />

Para realizar esse estu<strong>do</strong>, Pedrosa faz uma pesquisa de campo em uma creche da<br />

rede pública <strong>do</strong> município de São Paulo, enfocan<strong>do</strong> as brincadeiras das crianças no<br />

horário <strong>do</strong> recreio. Ao analisar os da<strong>do</strong>s, elege as regulações que permearam as<br />

interações e distingue quatro tipos de regulação: o “arranjo” da brincadeira, os<br />

ajustamentos rítmicos e posturais, os códigos comunicativos e as regras.<br />

Pedrosa analisou cuida<strong>do</strong>samente as transformações ocorridas durante os<br />

processos de interação e mostrou que estas são caminhos importantes para<br />

entendermos questões ligadas ao processo de <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito.<br />

Outra pesquisa que tem como foco o desenvolvimento infantil no contexto das<br />

interações é a tese de livre <strong>do</strong>cência de Oliveira (1995), cujo titulo é “Reinações<br />

infantis”. Preocupada com o crescimento <strong>do</strong> número de crianças atendidas em<br />

instituições de Educação Infantil e com a qualidade pedagógica desse ensino, a<br />

autora tem procura<strong>do</strong> discutir essas questões na área da Psicologia <strong>do</strong><br />

Desenvolvimento, consideran<strong>do</strong> que o desenvolvimento da criança e sua construção<br />

como sujeito ocorrem em um ambiente físico-social historicamente elabora<strong>do</strong>.


Oliveira traz como exemplo <strong>do</strong>is trabalhos sob sua orientação. Um deles fala sobre a<br />

interação das crianças na hora <strong>do</strong> almoço e o outro discute as atividades<br />

pedagógicas realizadas por uma educa<strong>do</strong>ra em uma creche pública.<br />

Nos <strong>do</strong>is contextos, a autora faz uma análise das interações tecidas na creche e<br />

mostra certa preocupação com a forma como essas interações têm si<strong>do</strong> mediadas<br />

pelos educa<strong>do</strong>res. Entretanto o que move esse trabalho é a intenção de<br />

[...] contribuir para aperfeiçoar, junto com os educa<strong>do</strong>res, o trabalho<br />

realiza<strong>do</strong> em nossas creches e pré-escola, particularmente naquelas<br />

atenden<strong>do</strong> população de baixa renda e desafiadas a superar o histórico<br />

assistencialismo que as tem caracteriza<strong>do</strong>. (OLIVEIRA, 1995, p.19)<br />

Oliveira também ressalta que, para contribuirmos de fato, devemos levar em<br />

consideração os múltiplos contextos em que as crianças se desenvolvem, nos quais<br />

são constituí<strong>do</strong>s recursos de desenvolvimento com parceiros de interação, uma vez<br />

que é com eles que as crianças constroem significações.<br />

Dessa forma, ela inicia uma análise mostran<strong>do</strong> como tem entendi<strong>do</strong> o conceito de<br />

interação humana e a noção de papel.<br />

Para discutir as concepções acerca das origens <strong>do</strong> desenvolvimento humano,<br />

consideran<strong>do</strong> o sujeito e o meio social, a autora busca nas teorias<br />

sociointeracionistas um caminho para essas discussões. Destacan<strong>do</strong> algumas<br />

similaridades entre os trabalhos de <strong>Vigotski</strong> e Wallon, ressalta os processos de<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> conhecimento e da subjetividade como sócio-históricos. Alerta que<br />

os postula<strong>do</strong>s sociointeracionistas têm si<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s sem a devida apropriação da<br />

matriz dialética, o que dificulta a análise das interações.<br />

Oliveira recupera o conceito de papel cria<strong>do</strong> na tradição sociogenética, conceito que<br />

também encontra nos trabalhos de <strong>Vigotski</strong> e Wallon, para mostrar “[...] como podem<br />

iluminar a compreensão <strong>do</strong> desenvolvimento da criança” (OLIVEIRA, 1995, p.31).<br />

Nas ciências humanas, o conceito de papel foi utiliza<strong>do</strong> através de duas metáforas.<br />

A primeira aponta as relações humanas, comparan<strong>do</strong>-as com um sistema vivo no<br />

qual o funcionamento dependeria <strong>do</strong>s diferentes órgãos, cada um <strong>do</strong>s quais tem a


sua função. E a segunda relaciona o comportamento humano ao drama social, em<br />

que diferentes papéis formam um enre<strong>do</strong>.<br />

A última metáfora de papel traz uma oportunidade criativa para a discussão da<br />

continuidade ou descontinuidade da relação personagem social-indivíduo, a partir de<br />

uma relação menos harmoniosa das relações humanas. Esse conceito veio a<br />

integrar a psicologia sobre a formação da consciência e da subjetividade a partir da<br />

relação eu-outro.<br />

Oliveira aponta que, contrariamente a outros autores, <strong>Vigotski</strong>, Wallon e Bakhtin<br />

levam em consideração as condições políticas, sociais e ideológicas nas relações de<br />

papel.<br />

Apesar das riquíssimas produções, o conceito de papel foi cristaliza<strong>do</strong>, limitan<strong>do</strong>-se<br />

ao uso ingênuo, como arreio que a sociedade impõe ao indivíduo. Todavia, a autora<br />

deixa claro o conceito de papel proposto em seu trabalho.<br />

Retoman<strong>do</strong> alguns pontos levanta<strong>do</strong>s pelos autores sociogenéticos,<br />

consideramos que a relação de recíproca <strong>constituição</strong> estabelecida desde<br />

o nascimento entre o indivíduo e o meio dá origem a situações sempre<br />

novas e singulares criadas pelas interações <strong>do</strong>s parceiros. Nestas, o<br />

significa<strong>do</strong> de cada ato é da<strong>do</strong> no conjunto da situação. Constituem assim<br />

os papéis entidades possibilitadas pelo mun<strong>do</strong> social, mas dinamicamente<br />

construídas no esforço de manter uma relação de integração indivíduomun<strong>do</strong>.<br />

(OLIVEIRA, 1995, p.38)<br />

Com esse referencial, a autora discute as interações adulto-criança e criança-<br />

cirança para compreender como estas estruturam suas “reinações infantis”, a partir<br />

da idéia de coordenação de papéis, enfocan<strong>do</strong> sessões de almoço com crianças de<br />

1 e 2 anos crianças de 2 e 3 anos em situações de jogo livre e sessões de jogos<br />

temáticos com crianças de 4 e 5 anos. To<strong>do</strong>s os episódios foram grava<strong>do</strong>s em<br />

vídeo, e foi feita uma transcrição microgenética de todas as sessões.<br />

As análises apontam que as ações das crianças até <strong>do</strong>is anos parecem estar ligadas<br />

à esfera afetiva, exploran<strong>do</strong> principalmente canais emotivo-posturais.<br />

Gradativamente, a criança passa a usar objetos simbólicos como substitutos para<br />

outros objetos diferencia<strong>do</strong>s de sua forma empírica. As novas experiências ajudam a<br />

enriquecer o enre<strong>do</strong> das brincadeiras, tornan<strong>do</strong>-o mais complexo.


A aquisição da linguagem pelas crianças ilumina o seu processo de internalização<br />

das relações sociais, pois necessitam explicitar mais aquilo que supõem estar<br />

regulan<strong>do</strong> papéis.<br />

A análise <strong>do</strong>s papéis assumi<strong>do</strong>s pelas crianças de 4 a 6 anos também é feita através<br />

da brincadeira de faz-de-conta que é mediada por novos fatores: o material<br />

disponível e a organização espacial.<br />

O processo dinâmico da coordenação de papéis entre parceiros cria um confronto<br />

de necessidades, objetivos e senti<strong>do</strong>s que as crianças vão buscar na interação com<br />

os outros, toman<strong>do</strong> diferentes pontos de vista para estruturar o agir.<br />

To<strong>do</strong>s os episódios analisa<strong>do</strong>s apontaram que “[...] o desempenho de papéis pela<br />

criança se faz graças a uma dinâmica segmentação e unificação de fragmentos de<br />

experiências passadas em contextos de atividade sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong>s no presente<br />

pelas ações infantis” (OLIVEIRA, 1995, p.69).<br />

Outro trabalho que não pode ser esqueci<strong>do</strong> é o desenvolvi<strong>do</strong> pelos pesquisa<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> (CINDEDI) /USP, que elaboram a perspectiva da Rede de Significações. Esse<br />

grupo de pesquisa<strong>do</strong>res tem focaliza<strong>do</strong> em especial as interações que se dão dentro<br />

da Educação Infantil, basea<strong>do</strong> em uma visão sócio-histórica, analisan<strong>do</strong> a complexa<br />

relação entre família, educa<strong>do</strong>ras e creche ao compartilharem o cuida<strong>do</strong>/educação<br />

da criança.<br />

Desse trabalho resultou a publicação de um livro intitula<strong>do</strong> “Rede de Significações e<br />

o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> desenvolvimento humano”. Durante anos, o grupo vem elaboran<strong>do</strong> e<br />

sistematizan<strong>do</strong> novas maneiras de investigação sobre o desenvolvimento infantil.<br />

Aqui destacamos <strong>do</strong>is trabalhos que estão no livro em forma de artigo, mas que<br />

ajudam a enriquecer a discussão sobre a interação. O primeiro trabalho, intitula<strong>do</strong><br />

“Crianças pequenas brincan<strong>do</strong> em creche: a possibilidade de múltiplos pontos de<br />

vista”, de Vasconcelos e Rosseti-Ferreira (2004), é fruto de uma pesquisa que<br />

enfocou a interação criança-criança nos primeiros <strong>do</strong>is anos de vida. Participaram<br />

da pesquisa quinze crianças (dez a dezenove meses), além de outros sujeitos<br />

presentes nas cenas avaliadas. Uma característica que chama atenção nessa


pesquisa é a perspectiva de análise sobre três pontos de vista: a <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r,<br />

<strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res e das crianças.<br />

De acor<strong>do</strong> com as análises, as interações criança-criança estão em processo de<br />

construção, acontecen<strong>do</strong> muito no aqui agora, fragmentadas. Para os autores,<br />

quan<strong>do</strong> os adultos se propõem a interagir com as crianças bem pequenas, são<br />

claramente promotores de desenvolvimento.<br />

Em outro trabalho, de Almeida e Rubiano (2004), intitula<strong>do</strong> “Vínculo e<br />

compartilhamento na brincadeira de crianças”, as autoras justificam a utilização <strong>do</strong><br />

modelo da rede de significações, pois este parte de uma concepção<br />

sociointeracionista e sócio-histórica, pressupon<strong>do</strong> a indissociabilidade entre social e<br />

individual, iluminan<strong>do</strong> assim o papel <strong>do</strong> vínculo na dinâmica interacional.<br />

O trabalho apresenta<strong>do</strong> pelas autoras focalizou três questões: a existência de<br />

vínculos entre pares no grupo de brinque<strong>do</strong>s, a natureza desses vínculos e suas<br />

relações com a construção de significações compartilhadas na interação lúdica.<br />

O artigo é uma síntese de diversos estu<strong>do</strong>s de crianças coetâneas (2 - 6 anos) em<br />

situações de atividades livres. O primeiro aspecto destaca<strong>do</strong> nessas observações foi<br />

a ocorrência de subagrupamentos, com algumas variáveis, como sexo e idade. Em<br />

relação à formação de grupos, a autora destaca que a definição de pertencer a um<br />

grupo socialmente permeia idade bastante precoce.<br />

Foi identificada a existência de vínculos na formação desses grupos. As autoras<br />

buscaram investigar a natureza e os significa<strong>do</strong>s desse fenômeno perguntan<strong>do</strong> às<br />

crianças (6, 8 e 10 anos), por meio de entrevistas, o que é um amigo, como se<br />

fazem amizades, o que gostam ou não gostam no amigo. Essa é uma prática pouco<br />

usual, principalmente em pesquisa com crianças.<br />

Pelas entrevistas, elas identificaram três características da amizade. A primeira foi a<br />

convivência. Esse componente apareceu em todas as faixas etárias, pois<br />

consideram queamigo é aquele que tem uma regularidade na convivência, amigo é<br />

aquele que brinca, que liga, que está junto. A segunda característica foi a afinidade<br />

de gostos e interesses. Isso muitas vezes se torna justificativa para que os meninos


e as meninas não brinquem juntos. A terceira característica foi a cumplicidade, que<br />

aparece na fala das crianças maiores, pois, para as crianças da primeira infância, o<br />

mais importante é a convivência. Dessa forma, aspectos como apoio, ajuda, consolo<br />

e segurança vão caracterizar esse tipo de vínculo.<br />

A partir da análise das três dimensões, pode-se formular um conceito comum:<br />

compartilhamento “[...] no senti<strong>do</strong> de ter algo junto com outrem – um momento de<br />

proximidade, o interesse ou a competência numa atividade, um conhecimento,<br />

valores e atitudes, um segre<strong>do</strong>, códigos de comunicação” (ALMEIDA E RUBIANO,<br />

2004, p.181) Outro tópico analisa<strong>do</strong> é o compartilhamento e a cultura, pois, nesse<br />

aspecto, rotinas compartilhadas criadas e transformadas no campo interacional<br />

constituem a cultura <strong>do</strong> grupo.<br />

As autoras ressaltam a importância da construção de vínculos para as crianças,<br />

pois, “[...] para a criança, talvez ainda mais <strong>do</strong> que para o adulto, o vínculo otimiza a<br />

possibilidade de assimilação e de participação na criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social no qual a<br />

ontogênese humana necessariamente se processa” (ALMEIDA E RUBIANO, 2004,<br />

p.187).<br />

Alguns pontos importantes marcam as pesquisas com crianças analisadas. Apesar<br />

da diferença de idade, algumas destacam que nem sempre a interação é<br />

harmoniosa. No entanto por meio dela são forma<strong>do</strong>s grupos entre as crianças, os<br />

quais têm fundamental importância para o desenvolvimento infantil.<br />

Os estu<strong>do</strong>s analisa<strong>do</strong>s mostram a relevância de se pesquisar o desenvolvimento<br />

infantil e o seu retorno para a escola, pois o professor pode ser um facilita<strong>do</strong>r nas<br />

interações tecidas nas instituições de Educação Infantil, seja pelo fato de as crianças<br />

estarem pela primeira vez nesse contexto seja por estarem viven<strong>do</strong> sensações e<br />

momentos ainda não vivencia<strong>do</strong>s por elas nos quais um adulto experiente pode<br />

auxiliar.<br />

Em to<strong>do</strong>s os trabalhos analisa<strong>do</strong>s fica clara a importância das interações na<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito e to<strong>do</strong>s dão pistas para os caminhos a serem segui<strong>do</strong>s na<br />

construção de uma base teórica sólida.


1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE<br />

VIGOTSKI E WALLON<br />

Ten<strong>do</strong> em vista nosso interesse em investigar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu em crianças na<br />

Educação Infantil, neste momento aprofundaremos a discussão sobre a perspectiva<br />

que a<strong>do</strong>tamos para analisar o desenvolvimento infantil. Para isso, iniciamos com<br />

Delari (2000), que faz uma análise teórica sobre a subjetividade, ten<strong>do</strong> como base a<br />

abordagem histórico-cultural.<br />

O autor justifica que essa teoria auxilia no debate sobre o papel de cada ser humano<br />

na construção coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Delari<br />

(2000) acredita que, para discutir a subjetividade, devemos relacioná-la com a<br />

discussão sobre a própria condição humana – condição necessária para que<br />

aconteça o devir humano. Para melhor analisar o tema, o autor divide o aporte<br />

teórico em <strong>do</strong>is movimentos distintos e relaciona<strong>do</strong>s: (1) dialogar com a concepção<br />

de <strong>Vigotski</strong> sobre o movimento pelo qual a linguagem e a consciência se<br />

interconstituem, na trama das relações sociais, e (2) destacar algumas das possíveis<br />

conseqüências dessa concepção para o debate contemporâneo sobre o tema da<br />

subjetividade.<br />

Para discutir o tema da subjetividade na abordagem histórico-cultural, o autor traz a<br />

discussão sobre consciência, pois, conforme destaca, <strong>Vigotski</strong> nunca tratou desse<br />

tema. Entretanto, deixa claro que não quer comparar os conceitos, pelo contrário,<br />

mostra <strong>do</strong>is motivos para não compará-los. O primeiro é o de que nem tu<strong>do</strong> que<br />

compõe nossa subjetividade, como mo<strong>do</strong> propriamente humano de nos<br />

relacionarmos com o mun<strong>do</strong> e com nossa própria existência, pode dar-se como<br />

movimento consciente. O segun<strong>do</strong> é o de que o conceito subjetividade pode ser<br />

trata<strong>do</strong> com relação ao homem “moderno”.<br />

Além de discutir o conceito de consciência na obra de <strong>Vigotski</strong>, para auxiliar no<br />

debate sobre a subjetividade o trabalho se propõe tratar <strong>do</strong> lugar da linguagem na


<strong>constituição</strong> humana, por considerar que a subjetividade é um fenômeno<br />

propriamente humano e que a linguagem é algo que define o humano.<br />

Delari faz uma análise histórica sobre o conceito moderno de sujeito e subjetividade.<br />

Vários acontecimentos históricos teriam ajuda<strong>do</strong> na <strong>constituição</strong> desses conceitos,<br />

como a Renascença, a descoberta <strong>do</strong> Novo Mun<strong>do</strong> e a Reforma Protestante, que<br />

produziu um processo de racionalização que se contrapunha ao caráter<br />

essencialmente místico das concepções de mun<strong>do</strong> e de homem hegemônico na<br />

Europa Medieval. Com a modernidade, foram construídas concepções como a de<br />

que cada ser humano pode compreender-se como um ser singular e com o direito<br />

<strong>do</strong> exercício público da razão. Entretanto, algumas dessas concepções foram<br />

questionadas, principalmente a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX, com idéias de Marx,<br />

Nietzsche e Freud.<br />

Delari aponta a origem <strong>do</strong> conceito de subjetividade, quan<strong>do</strong> Charles de Villers, em<br />

sua obra Filosofia de Kant, publicada em 1801, distingue subjetividade e<br />

objetividade. Essa obra aborda a subjetividade como algo muito próprio de cada<br />

indivíduo e inatingível ao outro. Também a vê como um movimento reflexivo no qual<br />

o individuo atinge o universal através de sua própria experiência.<br />

Ao discutir essa temática em uma perspectiva histórico-cultural, Delari acredita que<br />

a subjetividade deve ser compreendida em sua relação com o contexto social e<br />

histórico em que o sujeito está inseri<strong>do</strong>. O autor aborda a subjetividade<br />

[...] não como um lugar interno, íntimo e inatingível, um “palco” interior no<br />

qual se encenam “representações” <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior e/ou no qual estas<br />

representações são confrontadas e depuradas pelos procedimentos de<br />

uma razão pautada em leis universais. Pelo contrário poderia passar a ser<br />

vista antes como uma “usina” de interpretações e, portanto, de produção de<br />

senti<strong>do</strong>s. A subjetividade poderia ser tomada como espaço e/ou movimento<br />

de produção e de reprodução, de formação e de transformação, como<br />

lugar/movimento de atividade, ou de ‘trabalho” no senti<strong>do</strong> mais genérico e<br />

antropológico da palavra (DELARI, 2000, p. 46).<br />

Buscan<strong>do</strong> uma singularidade para A existência de cada ser humano e para interferir,<br />

de algum mo<strong>do</strong>, Na condição de sua própria existência, estu<strong>do</strong>s têm busca<strong>do</strong><br />

palavras ou significa<strong>do</strong>s, como subjetividade e sujeito, que, apesar de serem<br />

modernos, no trabalho de Delari são pauta<strong>do</strong>s em critérios materiais, históricos e


sociais, e não por princípios de uma liberdade estritamente individual, nem de uma<br />

reflexão abstrata e transcendental.<br />

Dessa forma, segun<strong>do</strong> o autor, as contribuições de <strong>Vigotski</strong> no debate sobre a<br />

consciência orientam-se para a construção de uma Psicologia cujo principal<br />

interesse é conhecer o que há de mais eleva<strong>do</strong> na produção humana, como as<br />

artes, a literatura e a compreensão <strong>do</strong> lugar <strong>do</strong> humano com relação à construção<br />

coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Assim, estar vivo é<br />

condição para consciência, e, ao nos tornamos “conscientes”, tornamos-nos também<br />

humanos.<br />

Assim como no trabalho de Delari, não buscamos pensar uma subjetividade<br />

construída no individualismo, e sim na coletividade, na história e na cultura. Vários<br />

são os conceitos utiliza<strong>do</strong>s para definir o que é próprio <strong>do</strong> ser humano:<br />

subjetividade, consciência e personalidade. Este trabalho se propõe analisar o<br />

desenvolvimento das crianças e enfoca, para isso, a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu; abordan<strong>do</strong><br />

uma noção de “eu” construída nas relações estabelecidas entre as crianças e nas<br />

relações entre os adultos e as crianças.<br />

Há várias vertentes que tentam explicar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> subjetivo. Entretanto, a<br />

vertente escolhida para este trabalho busca no social e na história a explicação para<br />

a forma como pensamos, agimos e sentimos. Pode parecer estranho dizer que<br />

aquilo que é “tão Íntimo” de um indivíduo foi construí<strong>do</strong> no social, mas é no social<br />

de nossas vidas particulares que nos tornamos pessoas. É na história de nossas<br />

vidas que nos tornamos únicos e diferentes e é com o outro que passamos a<br />

conhecer e A reconhecer o lugar que ocupamos na sociedade.<br />

Esse encontro com o outro se dá nas relações tecidas desde o nascimento. Mas o<br />

que seria o social? O que seriam as relações sociais? <strong>Vigotski</strong> aponta caminhos<br />

para a busca de respostas para essas questões, pois toda a sua teoria é marcada<br />

pela pretensão de ser uma teoria psicológica marxista.<br />

<strong>Vigotski</strong> busca elementos para desenvolver sua teoria sobre a <strong>constituição</strong> social e<br />

histórica <strong>do</strong> homem nas idéias de Marx e Engels.


Podemos distinguir os homens <strong>do</strong>s animais pela consciência, pela religião,<br />

por tu<strong>do</strong> o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se <strong>do</strong>s animais<br />

assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é<br />

condiciona<strong>do</strong> pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de<br />

vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material<br />

(MARX; ENGELS, 1984, p.15).<br />

Dessa forma, para esses autores a produção de idéias está diretamente entrelaçada<br />

com a atividade material e com o intercâmbio entre os homens através da<br />

linguagem. Ao produzirem uma atividade material, os homens também transformam<br />

sua realidade e os mo<strong>do</strong>s de pensar, ou seja, “[...] não é a consciência que<br />

determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 1984,<br />

p.15)<br />

Assim sen<strong>do</strong>, percebemos fortes influências <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s marxistas na obra de<br />

<strong>Vigotski</strong>, principalmente pela importância <strong>do</strong> social na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu, pois nos<br />

transformamos, à medida que transformamos o meio à nossa volta.<br />

Para <strong>Vigotski</strong>, o que nos distingue <strong>do</strong>s animais são as funções psicológicas<br />

especificamente humanas, como a memória, a atenção voluntária, a percepção<br />

mediada, que se desenvolvem a partir das relações que as crianças estabelecem<br />

com os outros. “Através <strong>do</strong>s outros constituímo-nos”, afirma <strong>Vigotski</strong> (2000, p. 25).<br />

Antes que as funções psicológicas se fizessem presentes no plano intrapsíquico,<br />

elas foram relações entre pessoas.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, Pino (2000) esclarece que as funções mentais estão em permanente<br />

construção, ou seja, os atos, como pensar, falar ou rememorar, são produzi<strong>do</strong>s<br />

constantemente. Dessa forma, não é uma única situação ou momento de nossas<br />

vidas que vai determinar a forma como pensamos e agimos; são as várias vivências<br />

que vão nortear as nossas vidas.<br />

O desenvolvimento das funções mentais superiores é explicita<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> conceito<br />

de internalização: “[...] qualquer função no desenvolvimento cultural da criança<br />

aparece em cena duas vezes, em <strong>do</strong>is planos – primeiro no social, depois no<br />

psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois<br />

dentro da criança” (VIGOTSKI, 2000, p. 26).


Para exemplificar o processo de internalização das funções psicológicas superiores,<br />

<strong>Vigotski</strong> (1998) remete ao gesto de apontar. Ressalta que muitas vezes o ato mal<br />

sucedi<strong>do</strong> de uma criança ao agarrar um objeto pode ser entendi<strong>do</strong> por sua mãe<br />

como um apontar para o objeto deseja<strong>do</strong>. A mãe relaciona-se com a criança como<br />

se ela tivesse apontan<strong>do</strong> o objeto, e, diante de repetidas situações, o ato mal<br />

sucedi<strong>do</strong> de agarrar pode transformar-se no gesto de apontar: uma indicação <strong>do</strong> que<br />

a criança deseja. Nesse momento, é o outro que dá senti<strong>do</strong> à ação da criança,<br />

interferin<strong>do</strong>, assim, no mo<strong>do</strong> como ela própria percebe a sua ação Uma função “[...]<br />

primeiro constrói-se no coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se<br />

constitui como função psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p.29).<br />

Para <strong>Vigotski</strong> (2000), a personalidade, é um conjunto de relações sociais 2 , nas<br />

quais, desde o nascimento, a criança está envolvida. E é sen<strong>do</strong> parte integrante<br />

dessas relações sociais que a criança incorpora significações culturais que a tornam<br />

ser humano, mas não como uma mera reprodução, e sim como uma (re)<strong>constituição</strong><br />

no plano intrapsíquico.<br />

A consciência de qualquer função mental só pode surgir num estágio tardio <strong>do</strong><br />

desenvolvimento, depois de ter si<strong>do</strong> exercida de forma consciente e<br />

espontaneamente. Assim é com as crianças que, em seus jogos de representações<br />

de papéis, se tornam conscientes de determina<strong>do</strong>s papéis sociais. E é imersa na<br />

cultura que se vai forman<strong>do</strong> a consciência de si e <strong>do</strong>s outros. Afirma <strong>Vigotski</strong>:<br />

Na perspectiva ontogenética, o humano de início, e antes de mais nada,<br />

vive, experimenta, emociona-se, age e assim vincula-se intimamente ao<br />

mun<strong>do</strong> social <strong>do</strong> qual depende, necessariamente, a sua própria<br />

sobrevivência – mas tu<strong>do</strong> vai se dan<strong>do</strong> antes mesmo dele saber que<br />

realiza todas essas coisas, ou de poder ter qualquer <strong>do</strong>mínio sobre<br />

elas.(VIGOTSKI, 2000, p. 87)<br />

A linguagem também toma um papel central nessa discussão, pois não é possível<br />

“torna-se humano” senão através da linguagem. Ela não é uma mera condição<br />

biológica, mas se atualiza mediante uma relação social. A linguagem encontra-se na<br />

gênese da consciência. <strong>Vigotski</strong> dá uma grande importância aos sistemas de signos<br />

(fala, escrita...) como media<strong>do</strong>res nas interações sociais. Entretanto é a fala que se<br />

constitui como mais importante para a construção da consciência, pois é na fala, no<br />

2 Essa afirmação se torna importante, pois ao refletirmos sobre determinadas práticas tanto de professores, pais e<br />

crianças percebemos a grande importância das relações que são tecidas no ambiente escolar.


significa<strong>do</strong> social que tem a palavra que a criança vai perceber que lugar ocupa na<br />

trama social. A linguagem vai mediar a sua relação com o mun<strong>do</strong> e com o outro.<br />

Basean<strong>do</strong>-se em <strong>Vigotski</strong>, Delari esclarece a importância da linguagem na<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu. Afirma que a linguagem não é apenas uma maneira de o ser<br />

humano se comunicar, mas também a “[...] própria ação social significativa pela qual<br />

vai se tornan<strong>do</strong> possível a existência de um “eu” e de um “outro”, uma relação<br />

histórica e culturalmente situada que implica o desempenho, a alternância e o<br />

choque entre papéis (DELARI, 2000, p.136)<br />

Dessa forma, a linguagem assume um papel fundamental, pois é ela que vai tornar<br />

possível conhecer quem é “outro” e o “eu”, através <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> das palavras.<br />

Assim a linguagem é de fundamental importância para a internalização das funções<br />

superiores, pois ela vai mediar aquilo que primeiro foi social para depois se tornar<br />

intrapsíquico.<br />

Os pontos analisa<strong>do</strong>s até aqui mostram a tentativa <strong>do</strong> autor em romper com uma<br />

Psicologia que ignora o social e para isso analisa a influência <strong>do</strong> outro e das<br />

interações na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> indivíduo,interações que vão, no decorrer da história<br />

pessoal, constituin<strong>do</strong> esse indivíduo e se tornan<strong>do</strong> também a história da sociedade.<br />

Discorren<strong>do</strong> sobre os estu<strong>do</strong>s de <strong>Vigotski</strong>, Pino destaca:<br />

As funções mentais constituíram a projeção no plano pessoal (da<br />

subjetividade? da consciência?) da trama da complexa rede de relações<br />

sociais em que cada ser humano está inseri<strong>do</strong> no interior de uma<br />

determinada sociedade com um determina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de produção e de<br />

acesso as seus produtos materiais e imateriais (PINO, 2005, p.110).<br />

Entretanto Pino (2000), basean<strong>do</strong>-se em <strong>Vigotski</strong>, alerta que não são os sonhos, as<br />

lembranças que o outro tem que são internaliza<strong>do</strong>s, mas, a significação dada pelo<br />

eu a esses sonhos e lembranças. Da mesma forma, as funções sociais exercidas<br />

pelo sujeito não são simplesmente internalizadas em sua íntegra, mas, sim, de<br />

acor<strong>do</strong> com o lugar que o sujeito ocupa nas relações sociais vivenciadas, pois cada<br />

um carrega em si a marca da sua própria história. “Função primeiro constrói-se no<br />

coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se constitui como função<br />

psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Para <strong>Vigotski</strong>, a<br />

personalidade é um conjunto de relações sociais.


Esse outro tão essencial para o nosso desenvolvimento, presente nas idéias de<br />

<strong>Vigotski</strong>, também pode ser encontra<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s de Wallon, quan<strong>do</strong> remete ao<br />

“fantasma <strong>do</strong> outro” que nos constitui e vem marcar a nossa história. Para ele, o “[...]<br />

socius ou o outro é um parceiro perpétuo <strong>do</strong> eu na vida psíquica” (WALLON, 1980,<br />

p. 159).<br />

Wallon (1995) rejeita a idéia de um sujeito meramente biológico e acredita que o<br />

desenvolvimento biológico seja acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> social. O autor critica a tendência<br />

que explica a origem da consciência no âmbito individual e afirma que seu percurso<br />

de desenvolvimento é marca<strong>do</strong> por uma progressiva “socialização” dessa entidade<br />

primária. Não se trata de um “eu” que se abre ao mun<strong>do</strong> social, mas, sim, de um ser<br />

que aos poucos se individualiza. Para Wallon (1980, p.152),<br />

[...] a consciência não é uma célula individual que deve um dia abrir-se<br />

sobre o corpo social, é o resulta<strong>do</strong> da pressão exercida pelas exigências da<br />

vida em sociedade sobre as pulsões dum instinto ilimita<strong>do</strong> [...]. Este “eu”<br />

não é então uma entidade primária, é a individualização progressiva duma<br />

libi<strong>do</strong> primeiramente anônima à qual as circunstâncias e o desenrolar da<br />

vida impõem que se especifique e que entre nos quadros duma existência<br />

e duma consciência pessoais.<br />

Assim como <strong>Vigotski</strong>, Wallon também busca uma nova Psicologia que considere o<br />

social no desenvolvimento humano. Buscan<strong>do</strong> fontes marxistas, baseia-se no<br />

materialismo dialético para construir a base de suas análises e de sua teoria<br />

psicológica, ou seja, “uma psicologia dialética” (GALVÃO, 2001, p. 11).<br />

Buscan<strong>do</strong> compreender o desenvolvimento <strong>do</strong> psiquismo humano, Wallon volta a<br />

atenção para a criança, pois acredita que através dela, é possível compreender o<br />

psiquismo humano. Faz uma análise de cada momento da infância, evidencian<strong>do</strong> a<br />

importância <strong>do</strong> outro em todas as fases de desenvolvimento e a importância <strong>do</strong>s<br />

aspectos afetivo, cognitivo e motor na <strong>constituição</strong> da personalidade <strong>do</strong> sujeito.<br />

Wallon entende que, ao nascer, os primeiros contatos da criança com o mun<strong>do</strong> são<br />

de ordem afetiva: as emoções. O choro, a cólera, entre outras, são formas de<br />

expressão da criança diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que ela começa a conhecer. A criança muito<br />

pequena não consegue diferenciar-se <strong>do</strong> outro e <strong>do</strong>s objetos que a cercam, mas aos<br />

poucos vai eliminan<strong>do</strong> aquilo que não é dela e apreenden<strong>do</strong> aquilo que vem de fora.


Assim sen<strong>do</strong>, Wallon destaca que nessa etapa da vida o sujeito “[...] está to<strong>do</strong><br />

cometi<strong>do</strong> na sua emoção; está uni<strong>do</strong> confundi<strong>do</strong> por ela com as situações que lhe<br />

correspondem, quer dizer, com o ambiente humano de que provêm, na maior parte<br />

das vezes, as situações emocionais” (WALLON, 1995, p. 201).<br />

Por volta <strong>do</strong>s três anos de idade, a criança começa uma busca pela autonomia, o<br />

que vai causar alguns conflitos entre ela e os que a cercam. “É para começar, uma<br />

oposição muitas vezes totalmente negativa que a faz defrontar-se com outras<br />

pessoas sem outro motivo que o de sentir a sua própria independência, a sua<br />

própria existência” (WALLON, 1995, p. 203).<br />

Nesta fase, a negação ao outro é constante, pois a criança precisa afirmar-se como<br />

pessoa. O outro torna-se assim ponto de referência para as suas negações, e a<br />

oposição é elemento chave para essa <strong>constituição</strong>.<br />

O autor destaca que, por volta <strong>do</strong>s quatro anos a criança só pode agradar a si<br />

mesma se agradar também ao outro. Não admira a si própria se não for admirada<br />

pelo outro.<br />

Este duelo entre a necessidade e a apreensão de se afirmar, de se mostrar,<br />

leva a um segun<strong>do</strong> tempo mais positivo que o primeiro, a um novo<br />

afrontamento entre o eu e o outrem, a uma nova forma de participação e<br />

oposição (WALLON, 1995, p. 206).<br />

A afeição ao adulto também se torna presente nesse momento, em que o outro se<br />

torna imprescindível para que ela se perceba, e é através <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong> outro que a<br />

criança se vê.<br />

Dos sete aos qutorze anos, a curiosidade da criança e, mais tarde, <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente<br />

volta-se para o mun<strong>do</strong> exterior. Agora, mais segura e estável, ela busca conhecer-se<br />

e diferenciar-se não só no outro, mas nas novidades que o mun<strong>do</strong> lhe proporciona.<br />

Mas o início <strong>do</strong>s conflitos anuncia a chegada da puberdade. O autor afirma que,<br />

nesse momento, um<br />

[...] mesmo sentimento de desacor<strong>do</strong> e de inquietação desponta da acção,<br />

da pessoa, <strong>do</strong> conhecimento; em cada um existem mistérios a desvendar, e<br />

surge uma mesma necessidade de posse de certo mo<strong>do</strong> essencial, pois a<br />

posse actual não basta para satisfazer e procura para si perspectivas<br />

indefinidas (WALLON, 1995, p. 215)


Assim como a criança na crise <strong>do</strong>s três anos de idade, o a<strong>do</strong>lescente passa por<br />

momentos de negação da idéia <strong>do</strong> outro, quer tornar-se também um ser autônomo,<br />

livre das ordens ditadas pelos adultos.<br />

Entretanto, no plano intrapsíquico, as contradições são permanentes entre “[...] as<br />

emoções e os automatismos motores, entre os automatismos e a representação<br />

simbólica, entre as emoções e a representação” (GALVÃO, 2004, p. 22). Dessa<br />

forma, os conflitos, pontos chave na teoria de Wallon e para o <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu,<br />

vão permear toda a nossa vida<br />

Em todas as etapas descritas acima, o outro é de fundamental importância para a<br />

<strong>constituição</strong> da vida psíquica <strong>do</strong> sujeito, e, em certos momentos, o “eu” confunde-se<br />

com o “outro”. “Entre o eu e o outro, a fronteira pode ter novamente tendência para<br />

desaparecer em certos casos de choque ou de obnubilidade mental”. (WALLON,<br />

1980, p. 157)<br />

O “eu” surge a partir das – e nas – relações estabelecidas com o outro. Primeiro há<br />

uma indiferenciação em relação ao outro e ao meio ambiente; os limites entre o eu e<br />

o outro estão ainda por se estabelecer e o “eu” (con)funde-se com o outro.<br />

O perío<strong>do</strong> inicial <strong>do</strong> psiquismo parece ter si<strong>do</strong>, contrariamente à concepção<br />

tradicional, um esta<strong>do</strong> de indivisão entre o que releva da situação exterior<br />

ou <strong>do</strong> próprio sujeito. Tu<strong>do</strong> o que chega simultaneamente à sua<br />

consciência fica confundi<strong>do</strong> nela ou pelo menos as delimitações que se<br />

podem fazer nela não são primeiro as <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong>s outros, as <strong>do</strong> acto<br />

pessoal e <strong>do</strong> seu objecto exterior. A união da situação ou <strong>do</strong> ambiente e <strong>do</strong><br />

sujeito começa por ser global e indiscernível (WALLON, 1975, p. 170).<br />

Wallon (1980) ressalta a importância <strong>do</strong> social na vida da criança, afirman<strong>do</strong> que o<br />

desenvolvimento biológico depende <strong>do</strong> desenvolvimento social e vice-versa, e traz<br />

inúmeras contribuições para os questionamentos levanta<strong>do</strong>s na introdução deste<br />

trabalho, em que são questiona<strong>do</strong>s o papel <strong>do</strong> outro e suas relações com a criança<br />

no transcorrer <strong>do</strong> desenvolvimento. “Assim, pode estar ligada à evolução normal da<br />

consciência pessoal na criança toda a diversidade das atitudes que fazem <strong>do</strong> ser<br />

humano um ser íntimo e essencialmente social”. (WALLON, 1980, p. 162)


Consideran<strong>do</strong> as idéias de <strong>Vigotski</strong> e de Wallon, nesta investigação escolhemos a<br />

Unidade de Educação Infantil como espaço para analisar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu na<br />

diversidade de interações que vão permear a entrada da criança na escola.


2. METODOLOGIA<br />

Pensar o percurso meto<strong>do</strong>lógico de uma pesquisa não é nada fácil. É como preparar<br />

uma viagem. Mas não vamos sozinhos, temos a companhia das crianças, o que<br />

torna pensar o caminho um ato cuida<strong>do</strong>so para não tirar delas o direito de<br />

aproveitar.<br />

Quem já viajou com crianças sabe que são múltiplas as possibilidades de interação,<br />

principalmente quan<strong>do</strong> o lugar é novo para o adulto e conheci<strong>do</strong> para as crianças.<br />

Elas agem como guias sutis, mostran<strong>do</strong>, através das suas vivências, a forma como<br />

negociam, compartilham e criam culturas. Foi isso o que fizemos nos três meses de<br />

pesquisa de campo: viajamos com as crianças e elas foram mostran<strong>do</strong> inúmeras<br />

possibilidades de conhecer o lugar e a elas próprias. Porém, não fomos como um<br />

viajante errante e sem rumo. Às vezes nos sentimos perdi<strong>do</strong>s, mas, como sempre,<br />

as crianças mostraram-nos novos caminhos a seguir.<br />

É um desafio pensar as questões teórico-meto<strong>do</strong>lógicas em pesquisas com<br />

crianças. Recentemente, a Sociologia tem-se debruça<strong>do</strong> sobre o tema, a fim de<br />

entender o universo infantil, e tem contribuí<strong>do</strong> com riquíssimas discussões para<br />

pensarmos de que crianças estamos falan<strong>do</strong> e de que forma vem acontecen<strong>do</strong> a<br />

sua socialização no mun<strong>do</strong> atual, um mun<strong>do</strong> onde cada vez mais ce<strong>do</strong> as crianças<br />

começam a passar grande parte <strong>do</strong> seu tempo fora <strong>do</strong> contexto familiar e a interagir<br />

com diferentes sujeitos. Assim sen<strong>do</strong>,<br />

[...] a sociologia da infância estimula a compreensão das crianças como<br />

atores capazes de criar e modificar culturas, embora inseridas no mun<strong>do</strong><br />

adulto. Se as crianças interagem no mun<strong>do</strong> adulto porque negociam,<br />

compartilham e criam culturas, necessitamos pensar em meto<strong>do</strong>logias que<br />

realmente tenham em foco suas vozes, olhares, experiências e pontos de<br />

vista. (DELGADO, 2005, p.353)<br />

Não é mais possível pensar a pesquisa sobre crianças. É preciso pensar a pesquisa<br />

com as crianças. Para que possamos compreender melhor esse universo riquíssimo<br />

devemos, segun<strong>do</strong> Kramer (2005, p.49), olhar, ouvir e escrever, sempre orienta<strong>do</strong>s<br />

pela teoria, pois “[...] a teoria sensibiliza o olhar e o ouvir e orienta o escrever”.<br />

Orienta<strong>do</strong>s por uma teoria que respeita as crianças, suas formas de agir, é que<br />

vemos a possibilidade de construir pesquisas que tenham como foco as crianças.


Esse enfoque diverge de muitas outras pesquisas, como sugere Sarmento (1997,<br />

p.24): “A focalização a<strong>do</strong>ptada centrava-se menos nas crianças como objecto <strong>do</strong><br />

que nas crianças como pretexto, referente ou destinatário de processos, que, esses<br />

sim, constituíam o verdadeiro objecto de estu<strong>do</strong>”.<br />

Sarmento (1997) mostra-nos o rico caminho apresenta<strong>do</strong> pelas crianças, quan<strong>do</strong> o<br />

foco são as suas interações e as suas formas de interpretação da realidade:<br />

O estu<strong>do</strong> das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra<br />

realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis <strong>do</strong>s<br />

respectivos mo<strong>do</strong>s de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos<br />

sociais que o olhar <strong>do</strong>s adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente<br />

(SARMENTO, 1997, p.25).<br />

Dessa forma, buscamos a escolha de uma meto<strong>do</strong>logia que beneficiasse<br />

observação desse contexto, levan<strong>do</strong> em conta a multiplicidade de formas de<br />

interação, a partir da qual o pesquisa<strong>do</strong>r tivesse a possibilidade de observar,<br />

presenciar e vivenciar toda essa dinâmica.<br />

Consideramos a pesquisa qualitativa a melhor alternativa para quem se propõe a<br />

observar as interações no contexto escolar, pois esse tipo de pesquisa privilegia o<br />

ambiente natural, e não o ambiente cria<strong>do</strong> em laboratório, e tem como principal<br />

instrumento o pesquisa<strong>do</strong>r, imerso nesse ambiente. O cuida<strong>do</strong> com os da<strong>do</strong>s<br />

coleta<strong>do</strong>s se dá na medida em que a grande maioria deles é de caráter descritivo,<br />

permitin<strong>do</strong> assim uma aproximação maior <strong>do</strong> real, trazen<strong>do</strong> a preocupação com o<br />

processo e não com fatos isola<strong>do</strong>s, nos quais o sujeito geralmente se apresenta de<br />

forma fragmentada. Outra característica da pesquisa qualitativa é a atenção dada<br />

pelo pesquisa<strong>do</strong>r ao significa<strong>do</strong> que as pessoas atribuem aos acontecimentos e ao<br />

processo. Esse ponto é importante para o tipo de pesquisa proposto neste trabalho,<br />

em que o significa<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong> pelas crianças e pelos adultos que convivem com elas<br />

ao fenômeno analisa<strong>do</strong> é de importância crucial.<br />

A pesquisa qualitativa atende aos nossos propósitos de abordar a investigação<br />

sobre crianças sob uma perspectiva diferenciada. A idéia é fazer com elas e não<br />

falar sobre elas, respeitan<strong>do</strong> suas diferenças, consideran<strong>do</strong> o ambiente onde estão<br />

situadas e ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de não criar estereótipos, e sim meios de compreender<br />

as diferentes formas de interação no contexto da Educação Infantil.


Buscan<strong>do</strong> a melhor forma de fazer uma pesquisa que respeite as crianças,<br />

encontramos no estu<strong>do</strong> de caso a possibilidade de fazê-la a partir das crianças.<br />

Segun<strong>do</strong> Sarmento (2003, p.137), este tipo de pesquisa<br />

[...] apresenta a plasticidade suficiente para que sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> de forma<br />

tão diferenciada, possa permanecer como poderosamente presente na<br />

base de alguns <strong>do</strong>s mais importantes contributos para o estu<strong>do</strong> das<br />

escolas e demais organizações sociais.<br />

Sarmento, em seu texto, mostra como o estu<strong>do</strong> de caso vem sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> por<br />

diversos autores que pretendem investigar a escola e seus sujeitos. O estu<strong>do</strong> de<br />

caso apresenta-se como a melhor escolha para o tipo de abordagem deste trabalho,<br />

no qual o desenvolvimento das crianças é o foco. Para compreender melhor a<br />

utilização <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de caso nesta pesquisa, destacamos algumas características<br />

postas por Ludke e André (1986, p.18-19):<br />

1. “Os estu<strong>do</strong>s de caso visam à descoberta”. Apesar de já atuar na Educação<br />

Infantil, fomos à busca <strong>do</strong> novo, pois o contexto, o grupo de crianças, é um<br />

universo novo e cheio de riquíssimas descobertas que, no decorrer <strong>do</strong> trabalho<br />

vão se revelan<strong>do</strong>.<br />

2. “Os estu<strong>do</strong>s de caso enfatizam a ‘interpretação em contexto’”. Esse é um <strong>do</strong>s<br />

pontos de maior relevância da pesquisa, pois, para discutir a construção da<br />

pessoa, devemos levar em conta o contexto no qual está inserida a pesquisa,<br />

bem como a sua participação nessa <strong>constituição</strong>.<br />

3. “Os estu<strong>do</strong>s de caso buscam retratar a realidade de forma completa e<br />

profunda”. Imersos na pesquisa, buscamos ao máximo relatar a realidade, em<br />

suas várias facetas.<br />

4. “Os estu<strong>do</strong>s de caso usam uma variedade de fontes de informação”. Várias<br />

foram as informações que o cotidiano da Educação Infantil nos apresentou e<br />

variadas foram as formas de apresentação: desenhos, relatórios, escritas, falas<br />

e olhares, to<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>s e analisa<strong>do</strong>s com muita dedicação.<br />

Assim foi definida a viagem pelo contexto da Educação Infantil, e em particular, da<br />

escola e das crianças pesquisadas.


Nesta pesquisa, os procedimentos de coleta de da<strong>do</strong>s utiliza<strong>do</strong>s foram observações<br />

diretas em sala de aula e em outros espaços da UMEI, como parquinho e refeitório;<br />

entrevistas semi-estruturadas com professoras, pedagoga, diretora e pais, e análise<br />

de <strong>do</strong>cumentos, relatórios, desenhos e registro das crianças.<br />

O registro <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s foi feito no diário de campo e através da máquina fotográfica.<br />

Durante a pesquisa de campo, observamos especialmente aspectos referentes às<br />

interações e seus indícios na construção “<strong>do</strong> eu”, e os conflitos imbrica<strong>do</strong>s nesse<br />

processo na sala de aula; aos processos de diferenciação <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> outro; às<br />

concepções <strong>do</strong>s profissionais da escola a respeito <strong>do</strong> desenvolvimento “<strong>do</strong> eu” das<br />

crianças e <strong>do</strong>s impactos de suas atividades educativas sobre esse desenvolvimento.<br />

Na análise <strong>do</strong> material empírico, procuramos basear-nos em apontamentos da<br />

análise microgenética. Góes, em seu texto: “A abordagem microgenética na matriz<br />

histórico-cultural: uma perspectiva para o estu<strong>do</strong> da <strong>constituição</strong> da subjetividade”,<br />

observa que esse tipo de análise pode ser um caminho promissor para quem<br />

pretende fazer estu<strong>do</strong> de caso com essa abordagem. Para a autora, a análise<br />

microgenética é<br />

[...] uma forma de construção de da<strong>do</strong>s que requer a atenção a detalhes e<br />

o recorte de episódios interativos, sen<strong>do</strong> o exame orienta<strong>do</strong> para o<br />

funcionamento <strong>do</strong>s sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as<br />

condições sociais da situação, resultan<strong>do</strong> num relato minucioso <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos (GOÉS, 200, p.9).<br />

A partir <strong>do</strong> momento em que as interações passam a ser tomadas como foco, a<br />

pesquisa vai exigir <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r um olhar apura<strong>do</strong> para os detalhes e para sua<br />

análise posterior, que não se limitará à mera descrição <strong>do</strong>s fatos, mas se estenderá<br />

a uma análise ampla, incluin<strong>do</strong> vários fatores que venham a interferir no<br />

desenvolvimento infantil.<br />

<strong>Vigotski</strong> e seus colabora<strong>do</strong>res inovaram ao propor uma análise de base<br />

microgenética em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX, pois os procedimentos de pesquisa em<br />

psicologia eram basea<strong>do</strong>s na estrutura estímulo-resposta. Para propor um novo<br />

méto<strong>do</strong>, <strong>Vigotski</strong> fez uma análise detalhada <strong>do</strong>s outros méto<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s naquela<br />

época, porque acreditava que o desenvolvimento psicológico <strong>do</strong> ser humano é parte


<strong>do</strong> desenvolvimento histórico geral da nossa espécie. Para isso <strong>Vigotski</strong> baseou-se<br />

na abordagem materialista dialética.<br />

Ao dizer que o desenvolvimento psicológico está liga<strong>do</strong> ao desenvolvimento histórico<br />

geral da nossa espécie, amplia-se a noção de micro, pois ao falarmos de<br />

microgenética podemos reduzir o méto<strong>do</strong> meramente ao recorte <strong>do</strong>s episódios, por<br />

isso, Góes ressalta a importância da abordagem microgenética e esclarece a sua<br />

utilização dizen<strong>do</strong>:<br />

Essa análise não é micro porque se refere à curta duração <strong>do</strong>s eventos,<br />

mas sim por ser orientada para minúcias iniciais daí resulta a necessidade<br />

de recortes num tempo que tende a ser restrito . É genética no senti<strong>do</strong> de<br />

ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e se relacionar<br />

condições passadas e presentes, tentan<strong>do</strong> explorar aquilo que, no<br />

presente, está impregna<strong>do</strong> de projeção futura. É genética, como<br />

sociogenética, por buscar relacionar os eventos singulares com outros<br />

planos da cultura, das práticas sociais, <strong>do</strong>s discursos circulantes, das<br />

esferas institucionais (GOÉS, 2000, p.15).<br />

Apesar de lidarmos com da<strong>do</strong>s referentes a um determina<strong>do</strong> grupo de crianças<br />

situa<strong>do</strong>s em uma UMEI, é na história de cada um e na história da humanidade que<br />

vamos buscar as raízes para o desenvolvimento infantil.<br />

Vigotiski (2003, p.86) descreve alguns objetivos que considera essenciais para<br />

análise <strong>do</strong>s processos psicológicos proposta por ele e seus colabora<strong>do</strong>res<br />

[...] o objetivo e os fatores essenciais da análise psicológica são os<br />

seguintes: (1) uma análise <strong>do</strong> processo em oposição a uma análise <strong>do</strong><br />

objeto; (2) uma análise que revela as relações dinâmicas ou causais, reais<br />

em oposição à enumeração das características externas de um processo,<br />

isto é, uma análise explicativa e não descritiva; e (3) uma análise <strong>do</strong><br />

desenvolvimento que reconstrói to<strong>do</strong>s os pontos e faz retornar à origem o<br />

desenvolvimento de uma determinada estrutura (p.86).<br />

Os objetivos propostos pelo autor tornam-se fundamentais para o tipo de pesquisa<br />

que faz, uma vez que a análise <strong>do</strong> processo é de vital importância para se entender<br />

o desenvolvimento infantil. É impossível fazer análises pertinentes de aspectos<br />

isola<strong>do</strong>s de um processo. To<strong>do</strong> processo é dinâmico e precisa de uma análise<br />

explicativa e aprofundada. Ao analisar esse processo, devemos recorrer à sua<br />

origem, que para nós é histórica e cultural.


Góes salienta o caráter promissor da articulação da análise microgenética com o<br />

paradigma indiciário e entende essas junções como novas construções sobre os<br />

mo<strong>do</strong>s de conhecer e investigar.<br />

[...] julgo que há uma convergência quanto à composição de delineamentos<br />

com ênfase indiciária e dialógica, composição que é profícua como ponto<br />

de vista meto<strong>do</strong>lógico e, mais especificamente, como perspectiva de<br />

investigação da <strong>constituição</strong> de sujeitos concebida no âmbito <strong>do</strong>s<br />

processos intersubjetivos e das práticas sociais. (GOÉS,2000p.21)<br />

Entendemos serem valorosas as contribuições dadas pelo paradigma indiciário a<br />

análise <strong>do</strong>s processos <strong>do</strong> desenvolvimento, pois, assim como a abordagem<br />

microgenética, esse paradigma preocupa-se com as minúcias, com as situações<br />

singulares e a inter-relação <strong>do</strong>s indícios e com as condições macrossociais.<br />

Ao falarmos de indícios baseamos-nos no “modelo indicial”, denomina<strong>do</strong> assim por<br />

alguns autores, como Carlos Ginsburg.<br />

Em seu artigo denomina<strong>do</strong> “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, Ginsburg<br />

(1989) situa a história desse paradigma entre 1874 e 1876 quan<strong>do</strong> Morelli lançou<br />

uma série de artigos analisan<strong>do</strong> a autoria de pinturas a partir de ângulos que<br />

ninguém se propunha analisar, por exemplo o formato da mão, as unhas, entre<br />

outros detalhes da Monalisa, ao invés <strong>do</strong> seu sorriso.<br />

Entretanto ele assevera que esse paradigma tem raízes milenares.<br />

Por milênios o homem foi caça<strong>do</strong>r. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar<br />

e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer<br />

operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um<br />

denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINSBURG, 1989, p.<br />

179).<br />

Dessa forma, procurar por pistas, indícios, faz parte da história da sobrevivência<br />

humana, para descobrir e entender o que se está procuran<strong>do</strong>. Como lembra<br />

Ginsburg, a análise desses fatos reveste-se de características diferentes, mas uma<br />

delas perpassa todas as análises, que é a de utilizar situações muitas vezes<br />

consideradas sem importância, ou até triviais.<br />

Procuran<strong>do</strong> por indícios, estaríamos optan<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Pino (2005), por pistas, não<br />

evidências, por sinais, não significações, por interferências, não causas desses


processos. O que se procura nesses processos são os indícios de natureza<br />

semiótica, de um fenômeno semiótico.<br />

O paradigma indiciário vem contribuir para a análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s, pois evidencia<br />

aquilo que é muitas vezes negligencia<strong>do</strong> em pesquisas com crianças, que é o seu<br />

cotidiano, sua imaginação, fantasia e poder de criação, pois, por serem in-fans, ou<br />

seja, aqueles que não possuem a fala, muitas vezes deixamos de perceber o mun<strong>do</strong><br />

a partir <strong>do</strong> ponto de vista da criança.<br />

Para aprofundar a discussão <strong>do</strong> “eu” entre crianças na Educação Infantil, a pesquisa<br />

de campo foi realizada em uma UMEI <strong>do</strong> município de Vila Velha, no perío<strong>do</strong> de<br />

outubro de 2006 a dezembro <strong>do</strong> mesmo ano.<br />

2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL<br />

A UMEI foi inaugurada em novembro de 2003 e surgiu a partir de reuniões entre as<br />

lideranças comunitárias e a Prefeitura de Vila Velha, pois é uma região de classe<br />

média baixa, onde não havia outra Unidade de Educação Infantil.<br />

Há uma demanda muito grande para a matrícula na UMEI. Na Rede Municipal de<br />

Educação de Vila Velha, as matrículas passam por um sistema de cadastro que o<br />

responsável da criança preenche. Nesse cadastro, o responsável tem que dizer qual<br />

é a sua renda, se é mora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bairro, quantas pessoas moram na casa, se recebe<br />

algum auxílio <strong>do</strong> Governo e se a criança tem alguma necessidade especial. Esse<br />

cadastro é envia<strong>do</strong> para a Secretaria de Educação, que analisa e pontua cada item,<br />

classifican<strong>do</strong> a criança para a chamada de acor<strong>do</strong> com as vagas oferecidas pela<br />

UMEI. No último semestre, a UMEI chegou a receber duzentos cadastros. A grande<br />

maioria era para a modalidade creche.<br />

Atualmente a UMEI atende 354 alunos em <strong>do</strong>is turnos. As crianças de berçário I e II<br />

permanecem na escola nos <strong>do</strong>is turnos, em tempo integral. Em média, as turmas de


erçário têm vinte crianças para duas auxiliares; as <strong>do</strong> maternal e da pré-escola têm<br />

uma média de 25 alunos.<br />

O prédio da escola tem <strong>do</strong>is andares. No andar superior existem cinco salas de aula,<br />

uma sala de vídeo, a sala da pedagoga e <strong>do</strong>is banheiros. No banheiro feminino, há<br />

uma divisão com um vaso sanitário para adultos. No andar inferior encontram-se três<br />

salas de aula, que são destinadas à modalidade creche. As salas de berçário têm<br />

banheiro próprio e lactário. No primeiro andar também há um refeitório, uma<br />

cozinha, a lavanderia, o parquinho de areia com brinque<strong>do</strong>s, a sala <strong>do</strong>s professores,<br />

direção e secretaria, além de <strong>do</strong>is banheiros para as crianças e <strong>do</strong>is para os adultos.<br />

Apesar de a escola ser grande, ela não atende toda a demanda <strong>do</strong> bairro e <strong>do</strong>s<br />

bairros vizinhos, por isso sofre constantemente críticas da população pela demora<br />

em se conseguir uma vaga na Unidade.<br />

As fotos abaixo mostram os ambientes da UMEI onde aconteceu a pesquisa.<br />

Figura 1 - Corre<strong>do</strong>r com as salas de aula 1. Figura 2 - Corre<strong>do</strong>r com as salas de aula.2.<br />

Figura 3 - Sala de vídeo 1. Figura 4 Sala de vídeo 2.<br />

-


Figura 5 - Sala da pedagoga. Figura 6 - Banheiro feminino.<br />

Figura 7 - Rampa Figura 8 - Sala <strong>do</strong> berçário I.<br />

Figura 9 - Sala <strong>do</strong> berçário II. Figura 10 – Refeitório.<br />

Figura 11 – Refeitório. Figura 12 – Parquinho de areia.


Figura 13 – Pátio. Figura 14 – Casinha.<br />

Figura 15 - Sala de professores 1. Figura 16 - Sala de professores 2.<br />

2.1.1 Funcionários da UMEI<br />

A UMEI tem 37 funcionários que trabalham nos <strong>do</strong>is turnos. Para melhor<br />

organização <strong>do</strong> trabalho esses turnos serão dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grupos: <strong>do</strong>s<br />

funcionários de apoio e o <strong>do</strong>s professores. Chamaremos de funcionários de apoio as<br />

auxiliares de serviços gerais (ASGs), cozinheiras e as auxiliares de UMEI. No grupo<br />

<strong>do</strong>s professores também serão incluídas as pedagogas e a diretora.<br />

a) Funcionários de apoio<br />

A escola tem quatro cozinheiras e quatro ASGs. Treze auxiliares da Unidade atuam<br />

na modalidade creche e uma. atua na secretaria da escola. No município de Vila


Velha os profissionais que trabalham nessa modalidade tem que ter como, requisito<br />

mínimo, formação em nível de ensino médio completo. Apesar de a legislação <strong>do</strong><br />

Município estabelecer que as auxiliares de UMEI devem ajudar no trabalho <strong>do</strong><br />

professor, na creche isso não acontece, pois não há professores nessa modalidade.<br />

As unidades <strong>do</strong> município de Vila Velha não têm secretária escolar, por isso<br />

geralmente uma auxiliar de UMEI é deslocada para os serviços de secretaria. A<br />

UMEI conta com um vigia, que é contrata<strong>do</strong> por uma empresa de segurança e atua<br />

na escola das 6h às 18h.<br />

A grande maioria <strong>do</strong>s funcionários de apoio da UMEI possui o ensino médio<br />

completo, como mostra a tabela 1.<br />

TABELA 1 FORMAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DE APOIO.<br />

Funcionários de<br />

apoio<br />

Ensino Fundamental Ensino Médio Ensino Superior<br />

Incompleto Completo Incompleto Completo Incompleto Completo<br />

ASG 1 2 1 _ _ _<br />

Cozinheiras _ _ 1 3 _ _<br />

Auxiliares de UMEI _ _ _ 12 _ 1<br />

Vigilante _ _ _ 1 _ _<br />

Total 1 2 2 16 - 1<br />

Fonte: Arquivos da UMEI<br />

Entre as auxiliares de UMEI, seis cursaram o Magistério e uma terminou<br />

recentemente o curso de Pedagogia a distância, ofereci<strong>do</strong> pela UFES.<br />

b) Professoras<br />

Fazem parte <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>cente da UMEI <strong>do</strong>ze professoras, que atuam na<br />

modalidade pré-escola (Jardim I a Pré-escola). Uma delas exerce atividades de<br />

apoio. Essa categoria surgiu em 2006, na Prefeitura, com a função de auxiliar os<br />

professores e auxiliares nas atividades diárias e de cobrir a falta de algum professor.


Apenas uma professora contratada atua na modalidade creche, com a turma <strong>do</strong><br />

maternal. Duas pedagogas trabalham na escola, em turnos diferentes, com todas as<br />

turmas da creche e pré-escola. A diretora atua na escola oito horas diárias.<br />

Apenas uma professora e a diretora estão fazen<strong>do</strong> o curso de Pedagogia, no<br />

momento, como mostra a tabela 2:<br />

TABELA 2 – Formação <strong>do</strong>s professores<br />

Ensino Superior Pós-Graduação Lato<br />

Sensu<br />

Incompleto Completo Incompleto Completo<br />

Professoras 1 4 2 5<br />

Pedagogas _ 1 _ 1<br />

Diretora 1 _ _ _<br />

Total 2 5 2 6<br />

Fonte: Arquivos da UMEI.<br />

A maioria das professoras e as duas pedagogas são efetivas; existin<strong>do</strong> apenas uma<br />

professora contratada. Todas as professoras e pedagogas efetivas participaram <strong>do</strong><br />

último concurso realiza<strong>do</strong> em 2004, pois, anteriormente, o Sistema Municipal de<br />

Educação de Vila Velha não tinha professores efetivos na Educação Infantil. Esse foi<br />

o primeiro concurso para professores da Educação Infantil, mas não atendeu a todas<br />

as modalidades, apenas à pré-escola. O ingresso de professores concursa<strong>do</strong>s e<br />

qualifica<strong>do</strong>s para atender a pré-escola marcou um movimento nacional de<br />

profissionalização dessa modalidade. A falta de profissionais qualifica<strong>do</strong>s tem como<br />

conseqüência um baixo salário, pois, no <strong>Brasil</strong>, os menores salários são destina<strong>do</strong>s<br />

a esses profissionais, ao la<strong>do</strong> de um ensino de qualidade duvi<strong>do</strong>sa, em que não há<br />

preocupação com a formação e nem apoio financeiro.<br />

Dessa forma a partir de 2004, Vila Velha passou a ter quase que cem por cento <strong>do</strong>s<br />

professores de Educação Infantil efetivos, e deixou para trás um passa<strong>do</strong> de cem<br />

por cento de professores contrata<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong> com a vontade<br />

de alguns políticos.<br />

O grande desafio agora é o concurso para a modalidade creche, luta que vai exigir<br />

vontade política e engajamento <strong>do</strong>s professores, pois a não-qualificação e a situação


irregular desses profissionais, respigam nos baixos salários e na qualidade <strong>do</strong><br />

ensino para as crianças pequenas.<br />

Apenas uma professora da UMEI atua num único turno. As outras professoras e<br />

pedagogas também trabalham nos municípios vizinhos de Cariacica, Vitória, Serra e<br />

Viana.<br />

A pesquisa foi realizada em um contexto de mudanças na escola, pois, no ano em<br />

que foi realiza<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong>, vários profissionais tinham saí<strong>do</strong> da UMEI, que passou<br />

assim por momentos de adaptação. Os profissionais também passavam por<br />

momentos decisivos, pois estava para se definir a verba destinada à Educação<br />

Infantil através <strong>do</strong> FUNDEB.<br />

3.1.2 A entrada da pesquisa<strong>do</strong>ra na sala <strong>do</strong> Jardim II<br />

Posso entrar no seu<br />

reino, meu rei?<br />

- Só se ocupar todas<br />

as pausas, reinan<strong>do</strong><br />

sobre as palavras.<br />

- Posso entrar no seu<br />

reino, meu rei?<br />

- Só se trouxer o livro<br />

de adivinhar canto de<br />

passarinho.<br />

- Posso entrar no seu<br />

reino, meu rei?<br />

- Só se vier pulan<strong>do</strong><br />

amarelinha e inventan<strong>do</strong><br />

o caminho.<br />

Pé aqui...<br />

Pé acolá...<br />

Pode entrar!<br />

Eloí Elizabet Bocheco<br />

Antes de entrar na UMEI, pedimos licença a to<strong>do</strong>s os funcionários e principalmente<br />

às crianças. Aos poucos fomos fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> universo tão particular daquelas


crianças e da UMEI, sempre com muito cuida<strong>do</strong>, perguntan<strong>do</strong> se podia participar<br />

com elas das brincadeiras, das atividades e das discussões, pois quem convive com<br />

criança sabe que “bisbilhoteiro” não tem vez em suas vidas. Dessa forma, muitas<br />

vezes fomos a aluna, a filhinha na brincadeira ou meramente ouvinte nos momentos<br />

de discussão, só observan<strong>do</strong> como resolviam seus problemas sem que um adulto<br />

lhes dissesse o que era o correto.<br />

Escolhemos essa UMEI pelos constantes elogios que ouvíamos a respeito de sua<br />

boa organização. Ao chegar à escola e propor o trabalho para a pedagoga e a<br />

diretora, tivemos uma boa aceitação por parte das duas. A pedagoga pediu que<br />

ficássemos em uma sala que, de acor<strong>do</strong> com o trabalho, seria de melhor<br />

aproveitamento. Dessa forma, foi marca<strong>do</strong> um encontro com uma das professoras<br />

<strong>do</strong> Jardim II. Entretanto, ao sermos recebi<strong>do</strong>s pela pedagoga, esta disse que não<br />

tinha uma boa notícia: a professora que ela havia sugeri<strong>do</strong> não quis participar da<br />

pesquisa, alegan<strong>do</strong> não estar se sentin<strong>do</strong> muito bem para receber alguém em sua<br />

sala. Conversan<strong>do</strong> com a pedagoga sobre outras possibilidades, ela colocou-me em<br />

contato com a outra professora <strong>do</strong> Jardim II, que aceitou colaborar com na pesquisa.<br />

Durante três meses acompanhamos as crianças <strong>do</strong> Jardim II to<strong>do</strong>s os dias.<br />

Estivemos presente na sala de aula, no parquinho, no refeitório e na sala de vídeo.<br />

Na medida <strong>do</strong> possível, ajudávamos as crianças em suas atividades e na confecção<br />

de alguns jogos com a professora. Participamos desses momentos por acreditar que<br />

assim ficaria mais fácil nossa inserção na sala. Dessa forma poderiamos<br />

acompanhar mais de perto os momentos de interação entre as crianças e entre a<br />

professora e as crianças. Vale ressaltar o respeito <strong>do</strong>s profissionais da escola para<br />

com o estu<strong>do</strong>, pois entendiam que observar as crianças era muito importante para o<br />

desenvolvimento da pesquisa.<br />

2.1.3 A sala <strong>do</strong> Jardim II<br />

A sala <strong>do</strong> Jardim II D é bem ampla. Tem duas janelas que dão vista para a rua e<br />

duas janelas, para o corre<strong>do</strong>r. Tem um espelho grande e <strong>do</strong>is quadros, um de giz e


outro de pincel, este último utiliza<strong>do</strong> pela professora para afixar as atividades das<br />

crianças, quatro jogos de mesas e cadeiras, cada uma com seis mesas e cadeiras<br />

forman<strong>do</strong> um círculo. A sala tem um barril cheio de brinque<strong>do</strong>s, uma caixa com<br />

peças de encaixar, jogos de alinhavo, letras, memória e quebra-cabeças. Tem ainda,<br />

<strong>do</strong>is armários, um para cada professora, e tês prateleiras onde são guarda<strong>do</strong>s os<br />

materiais de uso diário, como lápis de cor, borracha, canetinha, cola e tesoura.<br />

Figura 17 – Mesas e cadeiras que Figura 18 – Quadro de giz.<br />

ficam próximas à porta.<br />

Figura 19 – Mesas e cadeiras que Figura 20 – Espelho.<br />

ficam próximas à janela.


Figura 21 – Prateleiras. Figura 22 – Quadro de pincel.<br />

3.1.4 A professora <strong>do</strong> Jardim II<br />

Em 1993, a professora terminou o curso de Magistério, numa escola cenecista. No<br />

mesmo ano, começou a trabalhar como professora de Educação Infantil. No ano de<br />

1994, começou a fazer o pré-vestibular e, em 1995, ingressou no curso de<br />

Pedagogia na UFES. Ela conta que sempre gostou muito de estudar e que escolheu<br />

a profissão por considerá-la uma função nobre. Quan<strong>do</strong> entrou na universidade,<br />

ficou muito orgulhosa e feliz. Estu<strong>do</strong>u bastante para passar, mas hoje se entristece<br />

com os tantos cursos de Pedagogia de qualidade duvi<strong>do</strong>sa existentes no merca<strong>do</strong>.<br />

Em 1999, a professora terminou o curso de Pedagogia com habilitações em<br />

Matérias Pedagógicas de 2.º Grau e Séries Iniciais 3 . No ano seguinte, começou a<br />

trabalhar como contratada na Rede Municipal de Ensino de Vitória, onde foi<br />

convidada para fazer uma extensão de carga horária.<br />

No ano seguinte, ingressou em uma escola particular onde trabalhou na mesma até<br />

o ano de 2004. Foi então aprovada no concurso da Rede Municipal de Vila Velha,<br />

com uma ótima classificação, para o cargo de professora de Educação Infantil. Em<br />

2006, foi chamada para assumir o cargo de coordena<strong>do</strong>ra em um colégio de Vitória.<br />

Em 2003 fez um curso de pós-graduação em Administração Escolar. Recentemente,<br />

foi chamada para efetivar-se em Vitória como professora de Educação Infantil,<br />

entretanto preferiu ficar em Vila Velha, apesar <strong>do</strong> baixo salário que recebe pelo<br />

3 Ao ser indagada se tinha interesse em dar aulas para o Magistério, ela sorriu e disse que não;<br />

afirma que fez essa habilitação por ser a única opção compatível com o seu horário de trabalho.


Município. Disse que era porque mora próximo <strong>do</strong> local de trabalho e pode almoçar<br />

em casa, além de gostar bastante da UMEI e da liberdade que tem para expor suas<br />

opiniões.<br />

Luiza tem 31 anos e é uma professora muito comprometida com a escola. No<br />

perío<strong>do</strong> em que acompanhei a sua turma, percebi que ela se dedicava a to<strong>do</strong>s os<br />

alunos. No refeitório, sempre se preocupava em orientar as crianças para não<br />

deixarem sujeira ou copos na mesa. Sempre conversávamos sobre a situação <strong>do</strong>s<br />

profissionais da Educação Infantil no município de Vila Velha. A professora acredita<br />

na importância da formação continuada <strong>do</strong>s professores e valorizava muito esses<br />

momentos. Tinha uma relação muito tranqüila com seus alunos. Sempre estava<br />

disposta a ouvi-los, inclusive aos alunos de outras salas, que, quan<strong>do</strong> estavam em<br />

perigo, a procuravam, buscan<strong>do</strong> ajuda. Luiza leva muito a sério os horários e a<br />

rotina da sala.<br />

2.1.5 A rotina da sala<br />

Uma das características que marcam o desenvolvimento das atividades <strong>do</strong> Jardim II<br />

é a preocupação da professora com a rotina da sala. Em uma das situações em que<br />

faltou e a substituta não seguiu a rotina deixada em seu planejamento, a professora<br />

manifestou sua insatisfação com o ocorri<strong>do</strong>.<br />

Barbosa (2000), em sua tese de <strong>do</strong>utoramento intitulada “Por amor e por força:<br />

rotinas da Educação Infantil”, considera que a rotina se tornou uma categoria<br />

pedagógica muito utilizada nas instituições de Educação Infantil para organizar o<br />

trabalho.<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, utilizamos a rotina para organizar o nosso dia-a-dia. “As rotinas<br />

podem ser vistas como produtos culturais cria<strong>do</strong>s, produzi<strong>do</strong>s e reproduzi<strong>do</strong>s no dia-<br />

a-dia, ten<strong>do</strong> como objetivo a organização da cotidianidade” (BARBOSA, 2000,p.95).<br />

Mas não deve impedir a imaginação. A complexidade deve ser a propulsora <strong>do</strong>


novo. A rotina não deve ser uma sucessão de atos sem senti<strong>do</strong> e pequenas ações<br />

que levam as crianças a terem atos repetitivos, fazen<strong>do</strong>-os de uma forma mecânica.<br />

O professor teve ter claro o porquê dessa organização, pois ela reflete suas<br />

concepções e proposta.<br />

Em uma entrevista com a professora <strong>do</strong> Jardim II, ela nos contou que assumiu a<br />

turma no mês de maio e percebeu que não havia uma rotina a seguir. Achava que<br />

as crianças ficavam perdidas: Começou por estabelecer essa rotina. Dessa forma, o<br />

primeiro passo foi organizar o tempo, com músicas, momento de rodinha, fazer com<br />

que a ouvissem e pudessem falar também.<br />

Essa rotina proporcionava, segun<strong>do</strong> Luiza, uma organização melhor da sala, pois as<br />

crianças sabiam quais eram os momentos das atividades dirigidas e os momentos<br />

em que poderiam escolher a atividade que quisessem fazer .<br />

Tem um momento em que a gente faz a atividade junto: é o bingo. Então “ta” to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> junto, mas tem um momento onde ele vai escolher para onde ele vai, aí tem<br />

o cantinho da cozinha.. Então, nessa hora, eles se misturam, eles inventam outra<br />

brincadeira. Cada um vai lá e pega o que se identifica. Tem um grupo que gosta de<br />

desenhar, vai lá e pega a folha, pega a canetinha, pega lápis e vai desenhar. O outro<br />

grupo vai para a cozinha brincar, o outro grupo derrama os brinque<strong>do</strong>s, o outro<br />

grupo pega os pinos, o outro grupo pega o jogo da memória.<br />

(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)<br />

A rotina tem a função também de proporcionar a autonomia das crianças em relação<br />

ao espaço escolar, pois elas têm a liberdade de escolher suas atividades, saben<strong>do</strong><br />

que, no momento determina<strong>do</strong>, terão que guardar tu<strong>do</strong> no seu lugar, como nos<br />

relatou a professora.<br />

Eu prezo muito a organização. Então eles já sabem que vai ter um momento de tirar<br />

tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> lugar e vão ter o momento de botar tu<strong>do</strong> no lugar e que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vai<br />

ajudar a guardar onde pegou e colocar tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> jeitinho que eles encontraram.<br />

(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)


Durante o perío<strong>do</strong> da pesquisa, presenciei esses momentos em que as crianças<br />

podiam escolher a brincadeira, mas, no momento determina<strong>do</strong>, guardavam os<br />

brinque<strong>do</strong>s sem reclamar, pois sabiam que isso fazia parte da organização da sala.<br />

A rotina torna-se importante, pois traz consigo a organização, que ajuda as crianças<br />

a buscarem sua autonomia, auxilia o professor na realização de suas atividades.<br />

Entretanto, não pode aprisionar o cotidiano, ela deve ser constantemente avaliada.<br />

[...] a rotina oferece referência, segurança e organização sem se contrapor<br />

ao pulsar, ao movimento e ao prazer. Deve ser coerente com os princípios<br />

que fundamentam nossa proposta de trabalho, possibilitar e/ou facilitar a<br />

realização de nossos projetos, sen<strong>do</strong> questionada e avaliada<br />

constantemente, para assegurar sua problematização e reestruturação, se<br />

necessário. (SERRÃO, 2003, p.28)<br />

Muitas vezes o termo rotina é considera<strong>do</strong> como sinônimo de chato e repetitivo.<br />

Entretanto sua utilização nas escolas deve ser repensada. O que autores, como<br />

Serrão (2003) e Barbosa (2000), dizem é que a rotina não deve travar o cotidiano na<br />

sua multiplicidade de possibilidades, pelo contrário, deve refletir a novidade.<br />

A rotina é muito comum na Educação Infantil, mas muitas vezes é algo imposto por<br />

secretarias, direção, pedagogo e professores, sem nenhuma participação da criança<br />

na sua organização e definição. A rotina nas escolas deve ser avaliada e<br />

questionada, isso porque muitas vezes é realizada sem finalidades e sem um<br />

objetivo, pois compreende atitudes tão cristalizadas que ninguém questiona.<br />

Barbosa (2000) alerta para os poucos estu<strong>do</strong>s sobre a rotina nas escolas, já que ela<br />

é parte integrante das práticas educativas e didáticas na Educação Infantil.<br />

Descreveremos agora a rotina da UMEI pesquisada, principalmente no que tange à<br />

turma analisada.<br />

Os portões da UMEI abriam às 12h50min, e as crianças sentavam em fila no<br />

refeitório. Esse momento sempre era acompanha<strong>do</strong> por mais de um funcionário até<br />

a chegada das professoras, que se posicionavam à frente da fila da sua turma. Às<br />

13h uma das professoras ou a pedagoga cantava no microfone com as crianças.<br />

Havia uma escala para isso e cada dia era uma professora diferente que cantava.<br />

Depois era feita uma oração, conduzida cada dia por uma criança e, em seguida,


to<strong>do</strong>s subiam paras suas salas. Esse procedimento durava cerca de 15 minutos. Ao<br />

chegar à sala, as crianças guardavam suas mochilas e iam fazer a rodinha. A<br />

professora sempre a organizava para que ficasse um menino senta<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> de<br />

uma menina. Depois de senta<strong>do</strong>s, a professora escolhia um CD de cantigas de roda,<br />

que fazia parte de um livro, e colocava-o para tocar. As crianças sempre cantavam e<br />

participavam ativamente, muitas vezes gostavam de acompanhar a música pelo livro<br />

e se divertiam muito com isso. A professora olhava sua pauta, onde registrava o<br />

nome <strong>do</strong>s ajudantes <strong>do</strong> dia. As crianças, com muita ansiedade, esperavam-na dizer<br />

quem seria o ajudante, pois ele também seria o primeiro da fila para ir ao parquinho.<br />

Luiza sempre escolhia um menino e uma menina. Após esse momento, a professora<br />

solicitava que os ajudantes pegassem o cartaz <strong>do</strong> calendário e o pintassem. Depois<br />

cada criança preenchia o seu próprio calendário. O momento de rodinha também era<br />

um espaço em que a professora explicava qual seria a rotina <strong>do</strong> dia e em que os<br />

conflitos e as dúvidas eram expostos. Era constante as crianças reclamarem da<br />

atitude <strong>do</strong> colega na rodinha, esperan<strong>do</strong> uma resposta da professora. Luiza sempre<br />

ouvia e conversava com elas. Em alguns momentos essas conversas duravam mais<br />

de meia hora.<br />

Às 14h10min a professora organizava a fila e as crianças iam para o parquinho,<br />

onde brincavam até as 14h40min. Dirigiam-se então ao refeitório, onde ficavam para<br />

lanchar até as 15h. Depois, elas voltavam para a sala, escovavam os dentes e<br />

desenvolviam alguma atividade no papel, ou alguma brincadeira dirigida. No perío<strong>do</strong><br />

em que estive na escola, a professora desenvolveu o projeto de jogos matemáticos.<br />

Dessa forma, algumas vezes, após o lanche, as crianças brincavam e depois<br />

registravam no papel, individualmente, suas impressões e/ou elaborações sobre a<br />

atividade.<br />

Durante as atividades dirigidas, a professora mandava-os sentar novamente em<br />

rodinha, para que ela explicasse o jogo ou a atividade copiada. Nos jogos, Luiza<br />

explicava uma vez e permitia que todas pelo menos uma vez, jogassem. Ela as<br />

acompanhava enquanto jogavam e intervinha quan<strong>do</strong> era necessário.<br />

Após esse momento, as crianças registravam o jogo, por meio de desenhos ou de<br />

alguma atividade matemática a ele relacionada, como somar os pinos que


derrubavam no boliche. A professora ficava andan<strong>do</strong> pela sala, ajudan<strong>do</strong> as que<br />

precisavam de seu auxílio. As crianças transitavam tranqüilamente pelas mesas<br />

para pegar algum material empresta<strong>do</strong>, ou para pedir ajuda ao colega. A professora<br />

permitia esse livre trânsito pela sala e até mesmo incentivava aquelas que haviam<br />

termina<strong>do</strong> a atividade a ajudar o colega.<br />

Com o término das atividades, as crianças podiam brincar com os brinque<strong>do</strong>s da<br />

sala até as 16h45min, quan<strong>do</strong> desciam e se sentavam no refeitório para esperar a<br />

chegada <strong>do</strong>s pais. Estes ficavam na porta <strong>do</strong> refeitório esperan<strong>do</strong> que a pedagoga<br />

anunciasse o nome da criança pelo microfone. Quan<strong>do</strong> isso ocorria, ela dirigia-se<br />

até a porta. Só era permitida a entrada <strong>do</strong>s pais das crianças <strong>do</strong> berçário e <strong>do</strong><br />

maternal.<br />

Além da rotina das atividades, havia também o dia <strong>do</strong> vídeo, às quintas-feiras, de<br />

quinze em quinze dias. Nesse dia, a professora de apoio ficava com as crianças<br />

para as professoras planejarem as atividades com a pedagoga ou individualmente.<br />

Entretanto, durante os três meses em que estivemos na escola, só presenciamos<br />

duas reuniões com a pedagoga. O dia <strong>do</strong> brinque<strong>do</strong> era a sexta-feira, para o qual<br />

cada criança podia trazer um brinque<strong>do</strong> de casa. Os materiais da sala eram<br />

organiza<strong>do</strong>s de forma que as crianças fossem independentes para pegar os objetos<br />

nas prateleiras. As crianças tinham liberdade para usar o material e os brinque<strong>do</strong>s<br />

disponíveis na sala, entretanto o brinque<strong>do</strong> só era permiti<strong>do</strong> para aquela que tivesse<br />

acaba<strong>do</strong> a atividade proposta pela professora.<br />

Quadro 1 – Rotina <strong>do</strong> dia<br />

12h50min às 13h Entrada das crianças na UMEI<br />

13h às 13h15min Momento para músicas e oração no refeitório<br />

13h15min ás 14h10min Rodinha, cantigas e calendário<br />

14h10min às 14h40min Brincadeira livre no parquinho<br />

14h40min às 15h Lanche<br />

15h às 15h20min Escovação


15h20min às 16h20min Atividade dirigida<br />

16h20min às 16h45min Momento livre para brincarem com os<br />

brinque<strong>do</strong>s da sala de aula.<br />

16h45min às 17h Momento da saída das crianças.<br />

Fonte: Documentos da UMEI.<br />

Quadro 2- Rotina da semana<br />

Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira<br />

Dia livre Dia livre Dia livre Dia <strong>do</strong> vídeo<br />

(15h20min<br />

16h20min)<br />

às<br />

Fonte: Documentos da UMEI.<br />

Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> da pesquisa, observamos que poucas vezes Houve<br />

mudanças na rotina, o que ocorria somente quan<strong>do</strong> chovia, pois as crianças não<br />

podiam ir ao parquinho, ou quan<strong>do</strong> estava programada alguma comemoração na<br />

escola. Contu<strong>do</strong> a riqueza de vivências pôde ser observada, pois a organização da<br />

turma não impedia que elas brincassem, sentissem, entre outras coisas.<br />

2.1.6 As crianças <strong>do</strong> jardim II<br />

A sala tinha 22 crianças, onze meninos e onze meninas entre 6 anos e 4 meses e 5<br />

anos e 7 meses. Essa idade foi conferida no final da pesquisa, em dezembro de<br />

2006. Foi escolhida porque a linguagem, as brincadeiras e interações nessa faixa<br />

etária estão mais elaboradas, o que nos permite ter um acesso maior às<br />

elaborações das crianças sobre si mesmas e sobre os outros.<br />

As crianças <strong>do</strong> Jardim II gostavam muito de cantar. A professora sempre lhes<br />

ensinava canções novas. No início da aula, sempre em rodinhas, as crianças<br />

cantavam músicas que algumas vezes eram acompanhadas de coreografia.<br />

Dia <strong>do</strong> brinque<strong>do</strong>


Os alunos da turma pesquisada estavam juntos desde o ano anterior e algumas<br />

crianças estudavam na UMEI desde o maternal. Durante as atividades dirigidas pela<br />

professora, as crianças se mostravam solícitas a fazê-las. Às vezes, surgia o<br />

comentário de que a atividade era chata, ou algumas crianças demoravam a fazê-<br />

las, pois se distraíam com os brinque<strong>do</strong>s da sala ou com a conversa <strong>do</strong>s colegas.<br />

Durante essas atividades, a turma dividia-se em grupos, usan<strong>do</strong> o limite <strong>do</strong> jogo de<br />

seis cadeiras e seis mesas para definir quem fazia ou não parte de cada grupo. Só<br />

era permiti<strong>do</strong> emprestar material a quem pertencesse ao grupo naquele dia. Em<br />

alguns momentos, surgia a rivalidade sobre quem pintava mais bonito ou quem<br />

terminava primeiro.<br />

2.1.7 As crianças e suas famílias<br />

Segun<strong>do</strong> Wallon, a família é o primeiro grupo ao qual a criança vai pertencer ao<br />

nascer: “[...] a família é um grupo natural no senti<strong>do</strong> em que para a criança a razão<br />

de ser ou não ser se encontra colocada pelo nascimento num grupo distinto que lhe<br />

assegura a alimentação, a segurança necessária, a primeira educação” (Wallon,<br />

1980,p.168)”.<br />

Devi<strong>do</strong> à sua dependência biológica, a criança necessita de um ambiente que lhe<br />

assegure os meios necessários para o seu desenvolvimento biológico e social.<br />

Dessa forma, ressaltamos a importância de considerar as famílias das crianças<br />

pesquisadas, pois nos trazem indícios importantes para a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu.<br />

As crianças moravam em bairros próximos à escola. Seis moravam no mesmo bairro<br />

e o restante dividia-se entre outros sete bairros. A maioria delas (12) tinha irmãos. A<br />

maioria <strong>do</strong>s pais havia completa<strong>do</strong> o ensino médio e as mulheres tinham maior grau<br />

de escolarização. Nenhum <strong>do</strong>s pais tinha formação superior e somente um era<br />

analfabeto. Quatro famílias recebiam auxílio <strong>do</strong> Governo Federal, através <strong>do</strong> bolsa-<br />

família.


12<br />

10<br />

8<br />

6<br />

4<br />

2<br />

0<br />

Mãe<br />

Pai<br />

Ens.<br />

Fund.Incompl<br />

Mãe<br />

Pai<br />

Ens.<br />

Fund.Compl<br />

Mãe<br />

Pai<br />

Ens. Médio<br />

Incompleto<br />

Mãe<br />

Pai<br />

Ens. Medio<br />

Completo<br />

Mãe<br />

Pai<br />

Analfabeto<br />

Ens. Fund.Incompl Mãe Ens. Fund.Incompl Pai Ens. Fund.Compl Mãe<br />

Ens. Fund.Compl Pai Ens. Médio Incompleto Mãe Ens. Médio Incompleto Pai<br />

Ens. Medio Completo Mãe Ens. Medio Completo Pai Analfabeto Mãe<br />

Analfabeto Pai<br />

Gráfico 1 – Formação escolar <strong>do</strong>s pais.<br />

As crianças chegavam à escola acompanhadas por um familiar, pai, mãe, tios, avós<br />

ou irmão mais velho com pouca diferença de idade e até mesmo por vizinhos.<br />

Apenas duas crianças usavam transporte escolar.<br />

Em uma reunião de pais, em que foram questiona<strong>do</strong>s sobre se trabalhavam,<br />

observamos que a maioria das mães não trabalhava fora de casa. (12 das 22 mães).<br />

Gráfico 2 – Mães que trabalham ou não.<br />

Mães que trabalham<br />

Mães que não trabalham<br />

Das 22 crianças, apenas oito moravam com o pai e a mãe; o restante morava<br />

apenas com a mãe, ou com a mãe e os avós. Uma delas morava apenas com os<br />

avós. Um fato interessante é que nove crianças moravam com seus avós, o que<br />

mostrava a mudança na dinâmica das estruturas familiares.


Pais Pais e avós Mãe e avós Avós<br />

Gráfico 3 –Pessoas com quem moram as crianças.<br />

Ouvin<strong>do</strong> os pais ou conversan<strong>do</strong> com eles, percebemos que muitos se sentiam<br />

privilegia<strong>do</strong>s em ter seu filho naquela UMEI. Devi<strong>do</strong> à dificuldade em conseguir uma<br />

vaga e ao fato de a UMEI ser nova e bonita, muitos pais resistiam em tirar seus<br />

filhos para cursarem o ensino fundamental, pois a escola que ia receber as crianças<br />

é antiga.<br />

Há uma participação ativa da comunidade na escola. As reuniões ocorrem à noite e<br />

é muito profícua a participação <strong>do</strong> movimento comunitário no Conselho de Escola. O<br />

bairro onde está localizada é considera<strong>do</strong> de classe média baixa. A diretora da<br />

escola expôs que a população sempre reivindica por melhorias na escola e está<br />

sempre presente nas reuniões com a Secretaria Municipal de Educação.<br />

Dessa forma, conhecen<strong>do</strong> um pouco mais o universo dessa UMEI, nossas<br />

observções e análises nos levaram para um aspecto da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu, enten<strong>do</strong><br />

que vários outros atravessam a <strong>constituição</strong> da criança.<br />

3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II:<br />

CAMINHOS DE CONSTITUIÇÃO DO EU.


Correr, cantar, conversar, brincar, sorrir e chorar. Tu<strong>do</strong> faz parte <strong>do</strong> cotidiano da<br />

Educação Infantil. Essas situações fazem parte da teia tecida pelas interações entre<br />

as crianças. Mesmo brincan<strong>do</strong> sozinha, a criança traz consigo elementos de<br />

interações estabelecidas com outras pessoas.<br />

<strong>Vigotski</strong> auxilia na compreensão desse fenômeno quan<strong>do</strong> afirma que os processos<br />

humanos têm sua origem nas relações sociais. O homem significa o mun<strong>do</strong> e a si<br />

próprio através da experiência de relação com outros homens. O desenvolvimento<br />

psíquico envolve a apropriação das experiências vividas no plano intersubjetivo.<br />

Essas apropriações permitem ao homem interiorizar “[...] estratégias para<br />

memorizar, narrar, solucionar problemas, etc., criadas pelos grupos humanos com<br />

os quais ele partilha experiências” (OLIVEIRA, 2002, p. 136).<br />

Assim, o desenvolvimento constitui-se em um “[...] processo dialético complexo, que<br />

implica revolução, evolução, crises, mudanças desiguais de diferentes funções,<br />

incrementos e transformações qualitativas de capacidades” (GÓES, 2002, p. 99).<br />

Nesse contexto, a criança é concebida, desde o início, como um ser social, e o<br />

processo de tornar-se um ser singular é desencadea<strong>do</strong> a partir da interação com o<br />

outro e com a cultura e das apropriações decorrentes dessas relações.<br />

As interações na teoria histórico-cultural são constitui<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> eu. Tanto Wallon<br />

quanto Vigotiski ressaltam a importância <strong>do</strong> outro no processo de se tornar humano.<br />

Para <strong>Vigotski</strong> (1996, p. 113), a criança “[...] começa a utilizar consigo mesma os<br />

meios e formas de comportamento que, no princípio, eram coletivos”. Ou seja, aquilo<br />

que era <strong>do</strong>s outros passa a ser <strong>do</strong> eu também, mas de uma forma particular e<br />

singular.<br />

Nessa perspectiva que concebe a criança como um ser histórico e cultural, são os<br />

outros, através das interações, que vão possibilitar a internalização das práticas<br />

culturais e históricas da humanidade. O outro é “[...] parceiro perpétuo <strong>do</strong> eu na vida<br />

psíquica” (WALLON, 1980, p. 159).<br />

Dessa forma, torna-se de grande importância analisar as crianças que chegam até a<br />

Educação Infantil a partir das interações, pois cada personagem presente nas


instituições de Educação Infantil deixa de alguma forma marcas na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong><br />

eu dessas crianças. Conforme afirma Oliveira (1992, p.31):<br />

Nessa interação contínua e estável com outros seres humanos, a criança<br />

desenvolve to<strong>do</strong> um repertório de habilidades ditas humanas. Passa a<br />

participar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> simbólico <strong>do</strong> adulto, comunica-se com ele através da<br />

linguagem, compartilha a história, os costumes e hábitos de seu grupo<br />

social, o que garante ao ser humano uma intensa capacidade adaptativa<br />

aos mais varia<strong>do</strong>s meios físicos e sociais.<br />

No contexto cultural, particularmente no educacional, uma gama de possibilidades,<br />

de aprendizagens e experimentações abre-se para a criança. Assim, o outro,<br />

especialmente o adulto, tem a responsabilidade de apresentar o mun<strong>do</strong> a essa<br />

criança. Todavia não é só a criança que se desenvolve, mas também os adultos que<br />

interagem com elas, pois aprendem a ser mães, professoras, avós. É impossível<br />

falar de desenvolvimento envolven<strong>do</strong> uma única pessoa, já que esse compreende<br />

inúmeros protagonistas.<br />

Como afirma <strong>Vigotski</strong> (2000), a personalidade constitui-se num “agrega<strong>do</strong> de<br />

relações sociais transferidas internamente” e é por meio <strong>do</strong>s outros que construímos<br />

nossas significações sobre os mo<strong>do</strong>s de ser, de agir, de nos relacionarmos com<br />

outras pessoas e de sentir. Assim sen<strong>do</strong>, consideramos pertinente o estu<strong>do</strong> das<br />

interações para compreender o desenvolvimento e especialmente a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong><br />

eu das crianças. Por isso, iniciamos a pesquisa de campo focalizan<strong>do</strong> as interações<br />

que se estabelecem entre elas.<br />

Devi<strong>do</strong> ao fato de as crianças estarem há algum tempo juntas (algumas se<br />

conheceram no maternal), era constante em momentos de rodinha ou de<br />

brincadeiras elas fazerem referência a acontecimentos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> como: “Você<br />

lembra quan<strong>do</strong> você chorou na escola?” ou “No ano passa<strong>do</strong>, você foi a gatinha <strong>do</strong><br />

teatro.” Elas já conheciam gostos, vontades e manias <strong>do</strong>s colegas, tinham vínculos<br />

estabeleci<strong>do</strong>s, conheciam o espaço e to<strong>do</strong>s os funcionários, já não interagiam<br />

propriamente para se conhecer, mas para estreitar amizades, conhecer,<br />

experimentar, solucionar problemas.<br />

Discutin<strong>do</strong> sobre vínculos e sua relação com o desenvolvimento humano, Almeida e<br />

Rubiano (2004) chegaram à idéia de “compartilhamento”, no senti<strong>do</strong> de ter algo junto<br />

com o outro, que pode ser um momento, um interesse, uma atividade, um segre<strong>do</strong>,


ou até mesmo códigos de comunicação que só na relação eu-outro podem ser<br />

entendi<strong>do</strong>s.<br />

Para criarmos vínculos, temos que ter algo em comum, uma história e uma vivência.<br />

Isso cria códigos de comunicação. No Jardim II, as crianças compartilhavam uma<br />

história de convivência que já durava três anos. Isso era importante para o<br />

desenvolvimento delas, pois facilitava a apropriação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social através <strong>do</strong><br />

outro.<br />

3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A<br />

CONSTITUIÇÃO SOCIAL DA CRIANÇA<br />

A formação de grupos e suas interações mostraram-se importantes para<br />

entendermos o desenvolvimento infantil. Era notória a formação de grupos entre as<br />

crianças, principalmente nos momentos de brincadeiras, em que ficavam mais livres<br />

para escolher com quem queriam brincar. No momento das atividades dirigidas, a<br />

professora muitas vezes determinava quem ia sentar perto de quem na rodinha ou<br />

na mesa.<br />

Wallon (1980, p. 167) ressalta a importância <strong>do</strong>s grupos na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito e<br />

na aprendizagem social, e define a existência de um grupo como uma<br />

[...]reunião de indivíduos ten<strong>do</strong> entre si relações que notificam a cada um o<br />

seu papel ou o seu lugar dentro <strong>do</strong> conjunto. A escola não é um grupo<br />

propriamente dito, mas um meio onde podem constituir-se grupos com<br />

tendência variável e que podem estar em discordância ou em concordância<br />

com os seus objectivos.<br />

Observamos que muitos grupos forma<strong>do</strong>s não eram dura<strong>do</strong>uros, duravam o tempo<br />

de uma brincadeira ou <strong>do</strong> manuseio de um brinque<strong>do</strong>. A esse respeito Wallon<br />

comenta:<br />

Quer sejam temporários ou dura<strong>do</strong>uros, to<strong>do</strong>s os grupos têm objectivos<br />

determina<strong>do</strong>s e a sua composição depende desses mesmos objectivos; <strong>do</strong>


mesmo mo<strong>do</strong>, a repartição <strong>do</strong>s cargos rege entre eles as relações <strong>do</strong>s<br />

membros e, se necessário, a sua hierarquia. Pode haver postos de<br />

iniciativa, de coman<strong>do</strong>, de sustento, de submissão [...] (WALLON, 1980, p.<br />

173).<br />

Mesmo duran<strong>do</strong> pouco tempo, os grupos tinham a sua organização e papéis<br />

hierárquicos que os definiam como um grupo.<br />

Era no momento das brincadeiras que a divisão de grupos se ressaltava. As<br />

crianças brincavam muito com os brinque<strong>do</strong>s da sala, principalmente com bonecas,<br />

bonecos e carrinhos que estavam lá. Entretanto também gostavam muito de jogos<br />

matemáticos confecciona<strong>do</strong>s pela professora, como bingo, lu<strong>do</strong>, jogo da velha, trilha<br />

e boliche de números. Além disso, brincavam em frente ao espelho, principalmente<br />

as meninas, cantan<strong>do</strong> e dançan<strong>do</strong>.<br />

Um aspecto que se destacou nas primeiras observações e análises da turma <strong>do</strong><br />

Jardim II foi a divisão entre meninas e meninos, estabelecida pelas próprias<br />

crianças. Essa característica foi ressaltada pela professora no primeiro encontro<br />

que tivemos. Nessa ocasião ela relatou que a divisão entre meninos e meninas era<br />

algo constante no grupo.<br />

Almeida e Rubian (2004) asseveram que, na formação de grupos, segun<strong>do</strong> a<br />

pesquisa empírica, o que vai mediar a escolha de parceiros é a idade e o sexo. Para<br />

as autoras, a escolha por sexo se dá por afinidade como, por exemplo, gostar <strong>do</strong><br />

mesmo tipo de brincadeira. Afirmam:<br />

Segun<strong>do</strong> a percepção das crianças, essa é a razão principal da menor<br />

probabilidade de amizades entre meninos e meninas [...]. As brincadeiras<br />

intersexuais restringem a alguns tipos (pega-pega) e ou/a certas crianças<br />

que se dispõem a participar de jogos mais típicos <strong>do</strong> sexo oposto<br />

(ALMEIDA; RUBIAN, 2004, p.180).<br />

Percebemos, pelas brincadeiras e atividades realizadas pelas crianças, que a<br />

separação em grupos de meninos e meninas seguia interesses, padrões de<br />

comportamento e mo<strong>do</strong>s de ser, o que não significa que meninos e meninas não<br />

interagissem e/ou brincassem juntos em alguns momentos. Às vezes os meninos<br />

participavam de brincadeiras ditas de meninas e vice-versa. Segun<strong>do</strong> as autoras,<br />

esse é um <strong>do</strong>s motivos da escolha de parceiros para o grupo. A convivência e a<br />

cumplicidade também auxiliam nessa escolha, e não somente o sexo.


Encontramos grupos que eram mais constantes, o que não quer dizer que eram<br />

fixos, pois as crianças transitavam entre um e outro, dependen<strong>do</strong> da brincadeira e<br />

<strong>do</strong> brinque<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong>. De acor<strong>do</strong> com as observações feitas durante a pesquisa,<br />

pudemos destacar, dentro <strong>do</strong> grupo das meninas e <strong>do</strong>s meninos, agrupamentos que<br />

se uniam a outros, de acor<strong>do</strong> com afinidades e brincadeiras.<br />

Mostramos abaixo essa dinâmica de interações entre as meninas.<br />

Figura 23 – Dinâmica das interações entre as meninas.<br />

O grupo normalmente composto apenas por meninas era integra<strong>do</strong> pelas alunas<br />

Aline, Janaína, Karla, Lúcia, Letícia, Larissa, Mariana, Paula e Raquel. Eram<br />

meninas que estavam constantemente juntas nas brincadeiras ou sentadas<br />

próximas. Mariana, Lúcia, Janaína e Aline lideravam muitas vezes as ações e<br />

posicionamentos <strong>do</strong> grupo.


Letícia, Larissa e Raquel faziam parte desse grupo, mas não tinham a liderança<br />

apenas acatavam a decisão das que se destacavam. Elas brincavam bastante em<br />

frente ao espelho, com produtos de maquiagem que algumas traziam escondi<strong>do</strong> de<br />

suas mães. Penteavam-se, dançavam e cantavam imitan<strong>do</strong> personagens de<br />

programa de televisão.<br />

Paula e Karla ora participavam das brincadeiras com as outras meninas, ora eram<br />

excluídas das atividades lúdicas. Costumavam ficar sempre próximas das meninas<br />

para terem a oportunidade de brincar com elas.<br />

Ana Carolina e Bianca eram “amigas” e era assim que se definiam. Sempre estavam<br />

juntas e não chegavam a formar um grupo; transitavam em to<strong>do</strong>s os grupos, mas<br />

sempre unidas. Brincavam muito de “casinha” e de fazer “comidinha”. Bianca sempre<br />

trazia brinque<strong>do</strong>s, como panelinhas, pratinhos, fogãozinho e bonecas.<br />

Os meninos, por outro la<strong>do</strong>, tinham uma dinâmica de interações um pouco diferente.


Figura 24 – Dinâmica das interações entre os meninos.<br />

O grupo normalmente composto apenas por meninos era integra<strong>do</strong> pelos os alunos<br />

André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo, que estavam constantemente juntos,<br />

brincan<strong>do</strong> ou senta<strong>do</strong>s próximos. Eles se aproximavam nas brincadeiras de futebol,<br />

nas simulações de luta ou em brincadeiras com armas de brinque<strong>do</strong> montadas com<br />

peças de jogo da própria sala. Cláudio, Elvis e Douglas eram constantemente<br />

cita<strong>do</strong>s pelas meninas como os mais bonitos da sala. Cláudio, em especial, ganhava<br />

presentes das meninas da sala.<br />

Alex, Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricar<strong>do</strong>, Pedro e Yan gostavam de brincar com os<br />

fantoches da sala, organizan<strong>do</strong> peças de teatro e brincan<strong>do</strong> com os jogos de<br />

matemática.<br />

Entretanto, observamos ainda uma outra rede complexa de interações: alguns<br />

grupos eram forma<strong>do</strong>s por meninas e meninos, embora fossem menos constantes e<br />

mais solúveis, já que se desfaziam com mais facilidade <strong>do</strong> que os outros grupos,<br />

seja por convite de outro colega seja por um brinque<strong>do</strong> que chamasse mais atenção.<br />

A figura 25 exemplifica essa situação.


Figura 25 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.<br />

Alex, Luiz Paulo, Mateus, Pedro, Yan, Paula, Bianca, Ana Carolina e Karla<br />

integravam um desses grupos, que se reunia nas brincadeiras de casinha, nos jogos<br />

matemáticos e nas brincadeiras com fantoches. Quan<strong>do</strong> a professora não<br />

determinava os locais onde eles iam sentar-se para fazer as atividades dirigidas, era<br />

comum vê-los se reunir na mesma mesa para cumprir a tarefa proposta.<br />

Como já foi dito, as crianças transitavam entre os grupos. Os meninos e as meninas<br />

só se uniam se tivessem um interesse comum. Alguns meninos aceitavam brincar de<br />

casinha e assumiam papéis <strong>do</strong> gênero masculino, como garçom, pai, filho ou irmão.<br />

Existia também uma outra dinâmica de interações entre as meninas e os meninos.<br />

Estes não chegavam a formar um grupo, mas interagiam, e esse tipo de interação<br />

apresentava algumas características. Normalmente, os meninos tomavam a<br />

iniciativa de se aproximar das meninas que estavam envolvidas em algumas<br />

atividades lúdicas, atrapalhavam de alguma forma a brincadeira e eram censura<strong>do</strong>s<br />

por elas, que, em alguns momentos, corriam atrás deles, o que gerava a brincadeira<br />

de pique-pega.


Figura 26 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.<br />

Esse grupo era forma<strong>do</strong> por Aline, Janaína, Lúcia, Mariana, Letícia, Larissa, Raquel,<br />

André, Cláudio, Elvis, Rodrigo e Douglas. Às vezes sentavam juntos no mesmo<br />

conjunto de mesinhas para fazer suas atividades, entretanto essa interação nem<br />

sempre era harmoniosa.<br />

A relação entre esses grupos às vezes não se dava de forma harmoniosa,<br />

principalmente por conta <strong>do</strong> espaço que muitas vezes era invadi<strong>do</strong> por outro grupo.<br />

Entretanto as crianças tinham liberdade para trocar de grupo. Por exemplo: se uma<br />

menina quisesse deixar a brincadeira <strong>do</strong> espelho e brincar de casinha, era aceita.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, entre os meninos, a mistura e a flexibilidade na formação <strong>do</strong>s grupos<br />

não era percebida. Os que participavam das brincadeiras de luta ou <strong>do</strong>s jogos de<br />

encaixe não costumavam transitar entre os grupos que brincavam de fantoche, de<br />

casinha ou com os jogos matemáticos e com o outro grupo acontecia a mesma<br />

coisa. Os grupos só se uniam quan<strong>do</strong> a brincadeira era o futebol.


A figura 27 sintetiza a dinâmica das interações estabelecidas entre todas as crianças<br />

da turma.


Figura 27 – Dinâmica das interações entre as crianças <strong>do</strong> Jardim II.


Os grupos ajudaram-nos a pensar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu das crianças inseridas nesta<br />

UMEI.<br />

Wallon (1980) mostra-nos a importância <strong>do</strong>s grupos na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser social<br />

que somos e no desenvolvimento de nossa personalidade e diferenciação <strong>do</strong> outro.<br />

O indivíduo só existe como um ser social se for membro de algum grupo. Existir<br />

como um ser social significa pertencer a um grupo, que deixa marcas em nossa<br />

<strong>constituição</strong> e orienta nosso desenvolvimento.<br />

Quais as marcas deixadas pelos grupos que se formavam no Jardim II na<br />

<strong>constituição</strong> de cada um de seus membros? Que orientações os grupos imprimiam<br />

na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu de cada uma dessas crianças?<br />

Um primeiro aspecto que se destaca é a divisão entre meninas e meninos. Estu<strong>do</strong>s<br />

apontam que agrupamentos de crianças na Educação Infantil, ten<strong>do</strong> como critério a<br />

divisão entre meninas e meninos, é freqüente (ALMEIDA;RUBIANO, 2004).<br />

Entretanto, alguns desses estu<strong>do</strong>s destacam que essa divisão não é natural, mas<br />

histórica. As crianças não são naturalmente meninos e meninas, elas se constroem<br />

através de suas relações com os grupos sociais estabeleci<strong>do</strong>s. Logo que nascemos,<br />

temos nossos corpos li<strong>do</strong>s, como meninos ou meninas e, através deles, significa<strong>do</strong>s<br />

nos são passa<strong>do</strong>s durante toda a vida: “[...] o corpo seria a primeira forma de<br />

distinção social, derivan<strong>do</strong> e marcan<strong>do</strong> todas as outras construções” (SAYÃO, 2003,<br />

p. 71). Assim, nascer com características biológicas que nos definam como menino<br />

ou menina leva à configuração uma gama de relações que vão permear toda a<br />

história de nossas vidas.<br />

Como já foi dito anteriormente, desde o primeiro encontro com a professora da<br />

turma, as questões de gênero mostravam-se como uma possibilidade importante de<br />

análise da turma <strong>do</strong> Jardim II. Ao longo da pesquisa, o que era possibilidade tornou-<br />

se característica importante para análise. Dessa forma, organizamos os episódios no<br />

senti<strong>do</strong> de que nos mostrassem indícios da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser menino e <strong>do</strong> ser<br />

menina, na turma pesquisada.


3.2 SER MENINO E SER MENINA<br />

Uma observação mais cuida<strong>do</strong>sa <strong>do</strong> cotidiano da Educação Infantil evidenciou a<br />

presença de algumas práticas escolares cristalizadas que diferenciavam o ser<br />

menina <strong>do</strong> ser menino no Jardim II; filas para meninos e para meninas, lugar próprio<br />

para sentar na rodinha, local diferencia<strong>do</strong> para colocar as mochilas. Práticas que iam<br />

moldan<strong>do</strong> os mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino não de uma forma rígida, mas<br />

que ajudavam na diferenciação entre as crianças.<br />

Existem vários trabalhos que discutem a relação menino e menina nas instituições<br />

de Educação Infantil (GOBBI, 1997; COSTA, 2004; FINCO, 2004; SOUZA, 2006)<br />

Todavia, muitos deles discutem somente o gênero feminino e sua história de<br />

discriminação interligada à figura feminina da professora. Nesses estu<strong>do</strong>s, os<br />

meninos são vistos, nos da<strong>do</strong>s empíricos, como os mais fortes, e essa imagem é<br />

reforçada nas práticas educativas.<br />

Discorren<strong>do</strong> o cotidiano institucional da Educação Infantil, Costa (2004) analisa<br />

cenas <strong>do</strong> cotidiano de meninas e meninos, buscan<strong>do</strong> compreender como as<br />

crianças expressam, interpretam, reproduzem ou ressignificam os comportamentos e<br />

regras sociais na construção <strong>do</strong>s gêneros e as expressões de sexualidade e poder.<br />

Para a autora, discutir as relações de gênero na Educação Infantil é de fundamental<br />

importância<br />

[...] para conhecer melhor as meninas e os meninos que freqüentam as<br />

instituições, pois trata-se de construções sociais que foram histórica e<br />

culturalmente construídas e que em muitos momentos influenciam ou<br />

mesmo determinam comportamentos estereotipa<strong>do</strong>s (COSTA, 2004, p.12)<br />

A autora define gênero segun<strong>do</strong> Joan Scott, como uma relação entre homens e<br />

mulheres e não apenas entre mulheres, e aponta a necessidade de estudar a<br />

história <strong>do</strong>s meninos e não apenas a das meninas. Quan<strong>do</strong> discutimos gênero,<br />

estamos também analisan<strong>do</strong> a relação entre homens e mulheres de uma<br />

determinada sociedade e suas expectativas, que variam conforme o lugar e a época.


A pesquisa de Costa (2004) tem o compromisso de procurar diminuir os equívocos<br />

pedagógicos e construir uma educação emancipatória na relação entre meninos e<br />

meninas.<br />

O gênero é discuti<strong>do</strong>, nessa pesquisa, através das relações tecidas dentro das<br />

instituições de Educação Infantil, de acor<strong>do</strong> com as relações que também são<br />

estabelecidas na sociedade. Em suas considerações finais, Costa apresenta<br />

crianças diferentes daquelas divulgadas em outras pesquisas, em que as meninas<br />

são passivas e os meninos são fortes e “durões”; pelo contrário, em sua pesquisa<br />

ela encontra meninas que também ocupavam a liderança e meninos que deixavam<br />

transparecer seus sentimentos e o direito de chorar.<br />

Analisan<strong>do</strong> o encontro de meninos e meninas na escola, Souza (2006) investiga as<br />

relações de gênero por meio das interações estabelecidas entre as crianças e a<br />

professora. O seu objetivo é verificar se os estereótipos sexuais são reproduzi<strong>do</strong>s<br />

e/ou reforça<strong>do</strong>s pelas professoras da Educação Infantil. Em sua pesquisa, a autora<br />

constata que a professora reforçava a estereotipia sobre os papéis socialmente<br />

aceitos.<br />

Santos (2004) acredita que seja difícil para as professoras terem uma atitude<br />

diferenciada, já que também receberam uma educação que segregava a mulher de<br />

uma vida social ativa. Todavia, é possível pensar em uma educação igualitária para<br />

meninos e meninas.<br />

Em nossa pesquisa, buscamos caminhos diferentes <strong>do</strong>s da maioria das<br />

investigações sobre o gênero. Buscamos a diferença, mas não o confronto e a<br />

oposição. Entendemos a importância dessas investigações que revelam práticas<br />

discriminatórias e segregacionistas na educação das crianças e evidenciam a<br />

necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre os padrões rigidamente<br />

estabeleci<strong>do</strong>s pela sociedade <strong>do</strong> que é masculino ou feminino. Entretanto,<br />

buscamos compreender como se dá a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> subjetivo <strong>do</strong> ser menina e <strong>do</strong><br />

ser menino, entrelaça<strong>do</strong>s nas relações sociais e nas construções culturais e<br />

simbólicas dessa relação.


3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma <strong>do</strong> Jardim II<br />

Ó mãe, me explica,<br />

Me ensina<br />

Me diz o que é feminina?<br />

Não é no cabelo,<br />

Ou no dengo, ou no olhar<br />

É ser menina por to<strong>do</strong><br />

lugar.<br />

Joyce<br />

De mo<strong>do</strong> geral, ser criança no mun<strong>do</strong> ocidental atual é estar ligada a uma lógica<br />

perversa, a lógica da produção e <strong>do</strong> consumo. Jobim e Souza (2005) nos mostram-<br />

nos que cada época cria expectativas sobre suas crianças, o que trará<br />

conseqüências constitutivas sobre o sujeito em formação.<br />

A escassez de diálogo entre os adultos e as crianças, concorre para que elas fiquem<br />

sozinhas nesse contexto conturba<strong>do</strong>, expostas à violência e à erotização da mídia,<br />

que acaba crian<strong>do</strong> uma produção cultural específica para elas, aligeiran<strong>do</strong> o<br />

crescimento. Com isso elas se inserem cada vez mais ce<strong>do</strong> no ambiente <strong>do</strong>s<br />

adultos.<br />

Essa lógica torna-se mais perversa quan<strong>do</strong> nos referimos às meninas, que são cada<br />

vez mais alvo da mídia e da sociedade de consumo. Segun<strong>do</strong> Felipe e Guizzo<br />

(2004), a mídia (televisão, propagandas, livros, revistas, entre outros meios.) veicula<br />

discursos e mo<strong>do</strong>s de felicidade que se tornam verdades para as crianças. Só é feliz<br />

quem é magra, loira e de cabelos compri<strong>do</strong>s.<br />

Esses discursos marcam o ser menina na sociedade atual. A publicidade “[...]<br />

remete a determina<strong>do</strong>s padrões de beleza amplamente valoriza<strong>do</strong>s nos nossos dias:<br />

o corpo jovem, magro, branco e sensual. As meninas-bonecas são visivelmente<br />

muito magras, quase todas brancas, de olhos claros” (FELIPE; GUIZZO, 2004,<br />

p.128).


Para as meninas <strong>do</strong> Jardim II, ser menina era ter cabelos compri<strong>do</strong>s, que pudessem<br />

ser manusea<strong>do</strong>s e admira<strong>do</strong>s pelas colegas, e ser magra. Em um <strong>do</strong>s episódios<br />

envolven<strong>do</strong> Lúcia e Mariana, um conflito se instaurou porque uma chamou a outra<br />

de “gorda”.<br />

As crianças estão em rodinha ouvin<strong>do</strong> música, e a professora está conversan<strong>do</strong> com<br />

outra professora na porta da sala. Quan<strong>do</strong> ela volta para a rodinha, Mariana reclama<br />

que Lúcia a chamou de gorda.<br />

Mariana: Tia, a Lúcia me chamou de gorda e disse que não quer brincar comigo.<br />

Professora: E qual é o problema de ser gorda?<br />

Lúcia: Mas ela me chamou de gorda também. (Lúcia é uma criança magra)<br />

Professora: Mas qual o problema de ser gorda? Se Mariana é gorda é porque ela<br />

come bem. E você, Mariana, deve falar: Eu sou gorda sim, mas sou muito feliz.<br />

Mariana: Ninguém na minha casa me chama de gorda. Meu pai, quan<strong>do</strong> eu me<br />

arrumo, sempre diz: “Como você está bonita”.<br />

Lúcia neste momento abaixa a cabeça.<br />

Professora: Pois é, aqui na sala ninguém é igual, to<strong>do</strong>s somos diferentes; tem uns<br />

que têm cabelos enrola<strong>do</strong>s, outros lisos, tem gor<strong>do</strong> e magro e não tem problema.<br />

A professora pede que eles se olhem e vejam se tem alguém igual na sala.<br />

Professora: Não tem problema ser gor<strong>do</strong>.<br />

Mariana: Tia, meu pai e minha mãe não gostam que me chamem de gorda.<br />

Professora: Mas temos que nos aceitar <strong>do</strong> jeito que somos. Você tem que dizer: “Eu<br />

sou gorda sim, mas sou feliz”.<br />

Mariana: Meu pai, irmão, mãe e tia não me chamam de gorda.<br />

Professora: Pois é, a Lúcia não vai fazer mais isso e vai brincar com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

(Diário de campo, 20 de outubro)<br />

Por que Mariana não aceitava ser gorda? Além de negar “ser gorda”, afirmava que<br />

sua família também não gostava que a chamassem dessa forma.<br />

Ser gorda é uma ofensa muito grave, assim como ser chamada de feia. Não existem<br />

apresenta<strong>do</strong>ras de programas infantis gordas. Até mesmo as propagandas<br />

destinadas às consumi<strong>do</strong>ras infantis exibem meninas magras e às vezes erotizadas,<br />

como afirmam Felipe e Guizzo (2005), analisan<strong>do</strong> propagandas de sandálias de


plástico destinadas às meninas. Nessa análise, os autores revelam um fato<br />

preocupante que é a erotização <strong>do</strong>s corpos infantis pela da mídia. Cada vez mais<br />

vemos propagandas mostran<strong>do</strong> meninas que cultivam a beleza como se isso fosse<br />

inerente ao ser feminino - ao ter tal sandália a menina conseguirá ter a atenção<br />

daquele menino da escola - e ressaltan<strong>do</strong> uma imagem <strong>do</strong> feminino ligada ao<br />

supérfluo e ao consumo desenfrea<strong>do</strong>.<br />

Esses senti<strong>do</strong>s para o ser menina chegam cada vez mais ce<strong>do</strong> até nossas crianças.<br />

As meninas da turma <strong>do</strong> Jardim II, por exemplo, tinham apenas cinco e seis anos.<br />

Conforme ressaltam Felipe e Guizzo (2005, p.124)<br />

O corpo infantil vem sen<strong>do</strong> alvo de constantes e acelera<strong>do</strong>s investimentos.<br />

Com o surgimento <strong>do</strong>s veículos de comunicação de massa, em especial a<br />

TV, as crianças passaram a ser vistas como pequenos consumi<strong>do</strong>res e a<br />

cada dia são alvos constantes de propagandas. Ao mesmo tempo em que<br />

elas têm si<strong>do</strong> vistas como veículo de consumo, é cada vez mais presente a<br />

idéia da infância como objeto a ser aprecia<strong>do</strong>, deseja<strong>do</strong>, exalta<strong>do</strong>. [...]<br />

chama atenção para o fato de haver uma ‘‘erótica infantil’’, isto é, uma<br />

erotização da imagem da criança, amplamente veiculada pela mídia.<br />

Com acelaração da passagem da infância para o mun<strong>do</strong> adulto <strong>do</strong> consumo, até<br />

mesmo as músicas destinadas ao público adulto têm chega<strong>do</strong> até a infância com<br />

muita facilidade, porque seus ritmos são alegres e seduzem as crianças. Em uma<br />

das cenas observadas no Jardim II, as crianças pediam à professora que colocasse<br />

um CD de uma cantora famosa, que era magra, tinha cabelos compri<strong>do</strong>s e uma voz<br />

parecida com a de uma criança. Suas músicas faziam menção a namoros,<br />

indicavam que ela era bonita e não precisava mais <strong>do</strong> ex-namora<strong>do</strong> e anunciavam<br />

novos amores.<br />

As meninas se arrumam na frente <strong>do</strong> espelho, passam batom, mexem no cabelo e<br />

fazem caras bem expressivas. Conversam se olhan<strong>do</strong>-se no espelho, colocam<br />

óculos escuros e arquinhos nos cabelos.<br />

Lúcia se aproxima da professora e pede que ela coloque o CD da cantora Kelly Key.<br />

A professora diz que esse CD é de Alex e ele não tinha vin<strong>do</strong> á aula nesse dia.<br />

Então ela coloca uma música <strong>do</strong> cantor Latino, ”Festa no apê”.<br />

Lúcia e Mariana são as meninas que mais dançam, colocan<strong>do</strong> a mão na cintura,<br />

balançan<strong>do</strong> os cabelos e abaixan<strong>do</strong> até o chão.<br />

As crianças cantam e dançam a música.


Lúcia se aproxima de Elvis e pede que ele as olhe dançan<strong>do</strong>.<br />

Elvis, que está brincan<strong>do</strong> com os pinos, continua a brincar e nem olha para as<br />

meninas.<br />

Karla reclama, pois queria ouvir “A linda rosa juvenil”. A professora troca o CD e<br />

Lúcia reclama, pois gostaria de continuar a dançar. (Diário de campo, 21 de<br />

novembro)<br />

Em que a mídia tem contribuí<strong>do</strong> para a formação das meninas? Quan<strong>do</strong> vemos<br />

apresentações <strong>do</strong> cantor de “Festa no apê” na televisão, ele sempre vem<br />

acompanha<strong>do</strong> de moças bonitas, com roupas curtas e cabelos compri<strong>do</strong>s. Elas<br />

dançam e são admiradas pelos homens.<br />

As meninas, nesse episódio, arrumaram-se em frente ao espelho para dançar;<br />

repetiram os gestos das dançarinas, colocan<strong>do</strong> a mão na cintura; mexeram nos<br />

cabelos e rebolaram, enquanto abaixavam-se até o chão. Queriam o olhar e a<br />

atenção de Elvis, que estava mais interessa<strong>do</strong> em brincar com os pinos <strong>do</strong> que em<br />

ver as meninas dançan<strong>do</strong>. Elas pareciam dançar também para serem olhadas e<br />

admiradas pelo outro - nesse caso os meninos – da mesma forma que os homens<br />

admiram as mulheres bonitas, magras e de cabelos compri<strong>do</strong>s que dançam nas<br />

apresentações de cantores como o Latino.<br />

Jobim e Souza (2005, p.109) alertam para essa fusão “[...] entre a imagem e a<br />

realidade, proporcionada pela mídia que também atua fomentan<strong>do</strong> um ideal de<br />

felicidade atrela<strong>do</strong> ao consumo de valores e signos”.<br />

Cada sociedade produz um conceito de infância. E qual seria o nosso? Ao reparar<br />

na letra da música “Festa no apê”, vemos alguns <strong>do</strong>s ideais e valores que envolvem<br />

o ser menina/mulher em nossa sociedade.<br />

Festa No Apê<br />

Hoje é festa lá no meu apê<br />

Pode aparecer<br />

Vai rolar bunda lelê<br />

Hoje é festa lá no meu apê<br />

Tem birita<br />

Até amanhecer<br />

Chega aí


Pode entrar<br />

Quem está aqui está em casa<br />

Olá, Prazer!<br />

A noite (hum) é nossa.<br />

Garçom, por favor, venha aqui e sirva bem a visita.<br />

Tá bom<br />

Tá é bom<br />

Aqui ninguém fica só<br />

Entra aí e toma um drink<br />

Porque a noite é uma criança.<br />

Tesão, sedução, libi<strong>do</strong> no ar<br />

No meu quarto tem gente até fazen<strong>do</strong> orgia<br />

Tá bom<br />

Tá é bom<br />

Tu<strong>do</strong> é festa<br />

Pegação<br />

Vou zoar o mulherio e a chapa vai esquentar.<br />

O ideal de felicidade nessa música está atrela<strong>do</strong> a bebidas e namoro com várias<br />

pessoas. Pode até parecer engraça<strong>do</strong> ver crianças dançan<strong>do</strong> como adultos, ou<br />

cantan<strong>do</strong> certos tipos de músicas. Entretanto, se entendemos o sujeito como um ser<br />

histórico, inscrito em uma cultura e através dela se constituin<strong>do</strong>, fica-nos a pergunta:<br />

Que meninas estamos ajudan<strong>do</strong> a formar dentro das escolas e fora delas também?<br />

Jobim e Souza (2006, p.115) afirma: “cada sujeito, ao interagir com o seu meio,<br />

estará interagin<strong>do</strong> com signos, com uma história, com uma ideologia, e vai, assim,<br />

nessa troca com o outro, construin<strong>do</strong> seu próprio conhecimento que é<br />

marcadamente cultural”.<br />

Se em nossa <strong>constituição</strong> somos influencia<strong>do</strong>s por uma cultura, as crianças atuais<br />

são constituídas por uma cultura que erotiza precocemente. Mais uma vez negamos<br />

a infância para uma adultilização precoce, pois quanto mais rápi<strong>do</strong> crescem, mais<br />

ce<strong>do</strong> se tornam consumi<strong>do</strong>res em potencial.<br />

Em seu artigo sobre infância e contemporaneidade, Souza (1998) fala com uma<br />

certa preocupação sobre esse momento da história, pois o outro mais experiente,<br />

ou seja, o adulto, que estaria a mediar a relação da criança com o mun<strong>do</strong>, não tem<br />

ti<strong>do</strong> muito tempo para isso, e a criança tem fica<strong>do</strong> à mercê da televisão, que dita<br />

normas e formas de comportamento. Muitas vezes os pais reforçam essas idéias ao<br />

comprarem roupas de adulto para as crianças e ao permitirem que tenham acesso à<br />

produção massifica<strong>do</strong>ra da mídia, sem nenhum tipo de filtro por parte deles.


Construir-se menina nesse contexto revela o quanto a mídia, na sociedade atual,<br />

dita as ordens de seu subjetivo. Aquilo que é mostra<strong>do</strong> como padrão de felicidade se<br />

torna verdade para essas meninas.<br />

É assim que elas se vão se construin<strong>do</strong>. Não somos naturalmente<br />

meninas/mulheres, mas, sim, histórica e culturalmente meninas/mulheres. Dessa<br />

forma, analisan<strong>do</strong> as filigranas, ou seja, os detalhes das histórias das meninas,<br />

teci<strong>do</strong>s na turma <strong>do</strong> Jardim II, percebemos que fazem parte de um universo muito<br />

maior, que é produzi<strong>do</strong> em nossa sociedade.<br />

As meninas dessa turma eram muito vai<strong>do</strong>sas. Dos dezoito episódios registra<strong>do</strong>s<br />

que as envolviam, em oito elas brincavam com produtos de maquiagem e com<br />

danças e em quatro brincavam de casinha. Elas demonstravam muita preocupação<br />

com a beleza. Na cena descrita abaixo, muito freqüente nessa turma, elas mostram<br />

preocupação com os cabelos.<br />

Lúcia está na frente <strong>do</strong> espelho junto com Aline. Aline tenta convencê-la a colocar o<br />

cabelo de la<strong>do</strong>. Aline diz:<br />

- A minha mãe sempre arruma o meu cabelo assim.<br />

Ela fala e mexe no seu cabelo, com um pente na mão. Lúcia a deixa dividir o seu<br />

cabelo. Elas estão na frente <strong>do</strong> espelho da sala.<br />

(Diário de campo, 7 de novembro)<br />

A maioria das meninas da sala, sete das onze, tinha cabelos compri<strong>do</strong>s. Com os<br />

quais constantemente se preocupavam . Nos episódios em que brincavam com<br />

materiais para maquiagem, elas iam para a frente <strong>do</strong> espelho, mexiam neles,<br />

jogan<strong>do</strong>-os de la<strong>do</strong>. Às vezes iam ao banheiro escondi<strong>do</strong> da professora para molhá-<br />

los. Ter os cabelos compri<strong>do</strong>s parecia ser algo muito importante para elas.<br />

Em certa ocasião, Lúcia ficou muito chateada por sua mãe ter corta<strong>do</strong> seus cabelos.<br />

No refeitório, algumas meninas estão em um grupinho conversan<strong>do</strong> sobre os<br />

cabelos de Lúcia, que foram corta<strong>do</strong>s acima <strong>do</strong> ombro. Dizem que ficou bonito.A<br />

professora também diz que ficou bonito, mas Lúcia nada responde. Ela fica séria e


cruza os braços. Está visivelmente aborrecida. Outra professora se aproxima, coloca<br />

a mão em seus cabelos e diz:<br />

- Será que é igual a Sansão? Perdeu a força?<br />

Diz isso e olha para Luiza que é a professora de Lúcia. (Diário de campo, 8 de<br />

dezembro).<br />

A outra professora sabia o quanto era importante para Lúcia ter cabelos compri<strong>do</strong>s,<br />

pois ela era uma aluna muito vai<strong>do</strong>sa. Observamos várias cenas dessa aluna em<br />

frente ao espelho, jogan<strong>do</strong> os cabelos para a frente só para ver o efeito que<br />

produziam baten<strong>do</strong> no espelho. Quan<strong>do</strong> conversava com os colegas, sempre mexia<br />

neles. Cortá-los foi como ter tira<strong>do</strong> a sua “força”, a sua identidade: para ser menina<br />

bonita e admirada pelos outros tinha que ter os cabelos compri<strong>do</strong>s como mostravam<br />

a televisão e as revistas.<br />

Ser menina também está imbrica<strong>do</strong> na relação com o menino. Não basta apenas<br />

considerar que há meninos e meninas no espaço da Educação Infantil, mas, sim,<br />

que há relações que produzem/reproduzem “[...] mo<strong>do</strong>s de ser homem e mulher, ou<br />

menino e menina, que trazem conseqüências para sua convivência com o grupo,<br />

assim como para suas vidas” (SAYÃO, 2003, p. 78).<br />

Através dessas relações, eles conhecem/reconhecem sua condição social de ser<br />

homem ou mulher. Atravessadas nessas relações estão as expectativas de uma<br />

sociedade que atribui valores, cujos reflexos sentimos nas relações tecidas no grupo<br />

<strong>do</strong> Jardim II.<br />

No episódio descrito abaixo, algumas meninas estavam na frente <strong>do</strong> espelho<br />

arruman<strong>do</strong>-se e também fazen<strong>do</strong> uma das coisas de que mais gostavam: dançar. Ao<br />

dançar, elas carregavam nas expressões faciais; falavam e se expressavam olhan<strong>do</strong><br />

para o espelho.<br />

Lúcia, Mariana, Karla e Letícia estão dançan<strong>do</strong> na frente <strong>do</strong> espelho. Douglas está<br />

em outra mesa brincan<strong>do</strong> com os pinos.<br />

Lúcia chama Douglas e diz:<br />

- Olha a gente dançan<strong>do</strong> e diz quem dança mais bonito?<br />

Douglas olha, dá uma risada e diz:


- Todas vocês são feias!<br />

Lúcia faz uma expressão de quem não gostou, vira-se para o espelho e continua<br />

dançan<strong>do</strong> (Diário de campo 26 de outubro).<br />

As meninas pareciam esperar que os meninos as admirassem por estarem<br />

dançan<strong>do</strong> como em muitos programas televisivos em que mulheres dançam com<br />

roupas curtas e têm a admiração <strong>do</strong> público. Será que Douglas não percebi<strong>do</strong> a<br />

expectativa das meninas? Por que disse que todas eram feias? Douglas parecia não<br />

havia dar importância a um tipo de comportamento muito valoriza<strong>do</strong> por elas. Disse<br />

que todas eram feias e achava engraça<strong>do</strong> vê-las brincar de dançar e ficar irritadas<br />

por terem si<strong>do</strong> chamadas de feias.<br />

Com base no episódio analisa<strong>do</strong>, podemos perguntar-nos: O que as meninas<br />

esperavam <strong>do</strong>s meninos? Ouvir que eram feias fez com que se sentissem ofendidas.<br />

Qual seria a resposta certa?<br />

No decorrer de nossas vidas, internalizamos funções sociais, como as de filha, de<br />

mãe, de professora Essas funções, que se configuram no plano intrapsíquico, como<br />

diz <strong>Vigotski</strong>, primeiro foram relações sociais. “O desenvolvimento segue não para a<br />

socialização, mas para a individualização de funções sociais (transformações das<br />

relações sociais em funções psicológicas)” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Dessa forma,<br />

as funções sociais que assumimos têm grande influência na forma como falamos,<br />

pensamos e sentimos. De acor<strong>do</strong> com Pino (2000, p.72), “[...] as funções<br />

psicológicas constituem a projeção na esfera privada (plano da pessoa ou da<br />

subjetividade) <strong>do</strong> drama das relações sociais em que cada um está inseri<strong>do</strong>” (p.72).<br />

As funções sociais que o sujeito assume não são simplesmente internalizadas em<br />

sua íntegra, mas, sim, de acor<strong>do</strong> com o lugar que o sujeito ocupa nas relações<br />

sociais vivenciadas, pois cada um carrega em si a marca da sua própria história.<br />

No decorrer de nossas vidas, assumimos funções que nos vão constituin<strong>do</strong>. Essas<br />

funções são construídas nas nossas relações com o outro. Logo que nascemos,<br />

somos defini<strong>do</strong>s pelos outros, por nossas características biológicas, como meninos<br />

ou meninas. Ser menina, para algumas dessa turma, era ser bonita, ter cabelos<br />

compri<strong>do</strong>s e ser atraente, funções de uma menina/mulher que vão sen<strong>do</strong>


internalizadas, mesmo que, inicialmente, o outro da relação, o menino, não lhe<br />

responda da forma esperada. Afirma Góes (2000, p. 22):<br />

“[...] longe de ser uma cópia <strong>do</strong> plano externo, o funcionamento interno<br />

resulta de uma apropriação das formas de ação, que é dependente tanto<br />

de estratégias e conhecimentos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pelo sujeito quanto de<br />

ocorrências no contexto interativo”.<br />

Na relação com os meninos, constatamos que elas também se apropriavam de um<br />

determina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de ser menina/mulher. Nem sempre o desfecho de um episódio<br />

envolven<strong>do</strong> meninas e meninos era semelhante ao que ocorreu nessa situação<br />

descrita. Às vezes as meninas demonstravam ficar irritadas com os meninos e<br />

corriam atrás deles.<br />

O tipo de relação entre as meninas <strong>do</strong> grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína) e<br />

os meninos <strong>do</strong> grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo) apresentava<br />

indícios de um processo inicial de apropriação <strong>do</strong>s jogos de sedução presentes entre<br />

homens e mulheres em nossa sociedade.<br />

Além <strong>do</strong>s meninos, outros participam na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser menina. Como somos<br />

um emaranha<strong>do</strong> de relações, é-se menina também na relação com outras meninas.<br />

A imagem e a beleza eram importantes para algumas meninas <strong>do</strong> Jardim II. Era<br />

comum vê-las pegarem lápis de cor, giz de cera e pincel e transformá-los, por<br />

exemplo, em batons, rímel, lápis para contorno <strong>do</strong> olho. Em suas falas, algumas<br />

mostravam qual era o padrão aceitável de beleza, pois ser gorda e não ter os<br />

cabelos compri<strong>do</strong>s e de fácil manuseio era motivo de ofensa em momentos de<br />

brigas. 4<br />

Como já foi menciona<strong>do</strong>, percebia-se a formação de diferentes subgrupos, entre as<br />

meninas. O grupo forma<strong>do</strong> por Aline Marina, Lúcia, Janaína, Letícia e Larissa<br />

destacava-se por coeso. Era mais constante o encontro dessas meninas e, quan<strong>do</strong><br />

uma decidia não querer participar mais de determinada brincadeira, todas também<br />

4 Mariana era constantemente chamada de gorda pelos seus colegas em momentos de brigas. Em<br />

um <strong>do</strong>s episódios, ela e Lúcia estavam em frente ao espelho brigan<strong>do</strong>, apertan<strong>do</strong> os olhos, mexen<strong>do</strong><br />

nos cabelos. Lúcia chama Mariana de gorda e esta respondeu que ela era uma idiota. Durante a<br />

pesquisa, foram seis episódios, <strong>do</strong> total de trinta e <strong>do</strong>is, em que outro colega chamou Mariana de<br />

gorda. Como mostramos em outro episódio, Mariana não gostava de que a chamassem assim, pois<br />

ser chamada de gorda para ela era uma ofensa.


mudavam para outra atividade lúdica. A característica marcante desse grupo é a<br />

preocupação com a beleza; o ponto de encontro delas era em frente ao espelho,<br />

onde se olhavam, mexiam nos cabelos, conversavam como se quisessem ver as<br />

suas expressões refletidas. Mostrar para as colegas que tinham a sandália da<br />

propaganda, o batom e a roupa mais bonita era importante para essas meninas.<br />

Em outro grupo, também existia uma disputa pelo poder entre Aline, Mariana, Lúcia<br />

e Janaína. Elas disputavam a atenção das colegas e a liderança <strong>do</strong> grupo. Diante<br />

disso, eram constantes as intrigas e as brigas entre elas. Ofendiam-se uma às<br />

outras; chaman<strong>do</strong>-se de gorda, idiota e feia. Costumavam brincar com bonecas que<br />

traziam de casa. Certa vez, quan<strong>do</strong> Janaína trouxe uma boneca mais velha, com<br />

roupas feitas pela sua mãe, Lúcia quis vê-la e disse que era linda. Quan<strong>do</strong> Janaína<br />

saiu de perto, ela debochou da colega dizen<strong>do</strong> às outras que a boneca era feia.<br />

As relações de poder que envolvem a relação entre as meninas apresentam-se<br />

como um reflexo de relações instauradas na própria sociedade em que elas vivem. É<br />

algo desencadea<strong>do</strong> em rede, que começa quan<strong>do</strong> se impõem às crianças padrões a<br />

serem assumi<strong>do</strong>s. Esse mo<strong>do</strong> de se relacionar com o poder atinge a todas as<br />

crianças, mesmo aquelas que em um da<strong>do</strong> momento estão em posição de<br />

submissão ao outro. Muitas vezes vi Mariana, que freqüentemente era chamada de<br />

gorda e era submetida ao poder das outras colegas, exercer certo poder e submetê-<br />

las aos seus caprichos, escolhen<strong>do</strong> inclusive ela com quem iria brincar, quan<strong>do</strong><br />

possuía um objeto deseja<strong>do</strong> por essas colegas.<br />

Dessa forma, o poder exerci<strong>do</strong> pelas meninas não é um poder localiza<strong>do</strong>, pois traz<br />

as marcas da sociedade de consumo, tornan<strong>do</strong>-se um poder em rede, atravessa<strong>do</strong><br />

pelas relações sociais mais amplas.<br />

O que dizer da família nesse emaranha<strong>do</strong> de relações? O que é ser menina em<br />

relação à família? Wallon (1980, p.167) ressalta a importância da família como<br />

primeiro grupo a que a criança vai pertencer. Esse meio “[...] onde a criança vive e<br />

os que ambiciona são o molde que dá cunho à sua pessoa”.<br />

Durante o perío<strong>do</strong> em que estivemos na escola, acompanhamos a chegada e a<br />

saída das crianças com suas famílias. Os pais não podiam ir até as salas levar seus


filhos, então deixavam-nos no refeitório, onde iam buscá-los na hora da saída. As<br />

observações desses momentos indicam-nos o que é ser menina na relação com<br />

suas famílias.<br />

Tanto Lúcia quanto Aline eram alunas muito preocupadas com a beleza e a forma<br />

como estão vestidas. Aline tinha posturas muito parecidas com as de uma mulher<br />

adulta, na sua forma de falar e andar. Tentan<strong>do</strong> entender a apropriação desse mo<strong>do</strong><br />

de ser por parte de Aline, voltamos o nosso olhar para sua família. Descobrimos que<br />

a menina não morava com o pai, só com a mãe, os tios a<strong>do</strong>lescentes e os avôs. A<br />

mãe de Aline ia buscá-la sempre usan<strong>do</strong> short e top. Tinha os cabelos compri<strong>do</strong>s e<br />

aparentava ser nova.<br />

A mãe de Lúcia também parecia ser muito vai<strong>do</strong>sa. Tinha cabelos compri<strong>do</strong>s e bem<br />

cuida<strong>do</strong>s. Ia buscar a filha de carro, sempre bem arrumada, de saia e sandálias de<br />

salto, diferente das outras mães, que vinham de chinelo, como se estivessem<br />

trabalhan<strong>do</strong> em casa e tirassem um tempo para levar ou buscar seus filhos.<br />

Tanto a mídia como as famílias contribuem para a <strong>constituição</strong> de um determina<strong>do</strong><br />

mo<strong>do</strong> de ser menina. As meninas aprendem que ser mulher é preocupar-se com a<br />

beleza e ter namora<strong>do</strong>. A mídia auxilia nessa <strong>constituição</strong> quan<strong>do</strong> impõe padrões de<br />

beleza e certos hábitos de consumo.<br />

Outro aspecto da relação tecida entre meninos e meninas da turma <strong>do</strong> Jardim II e<br />

que atravessava o ser menina era o papel de servir ao menino. Uma das alunas em<br />

especial, Aline, dizia constantemente que era namorada de Cláudio e tinha atitudes<br />

de cuida<strong>do</strong> para com ele. Quan<strong>do</strong> ele não conseguia fazer a tarefa, ela ia ajudá-lo,<br />

elogiava-o, sempre chamava-o de bonito e levava a mochila dele na hora da saída.<br />

Cláudio algumas vezes correspondia, agradecen<strong>do</strong> ou sorrin<strong>do</strong> para Aline,<br />

entretanto, quan<strong>do</strong> os colegas falavam que eles eram namora<strong>do</strong>s, Cláudio não<br />

gostava e negava ser namora<strong>do</strong> de Aline, que, por sua vez, ficava triste e até<br />

chorava.<br />

Em uma dessas situações, quan<strong>do</strong> todas as crianças estavam envolvidas na<br />

brincadeira da “galinha <strong>do</strong> vizinho”, a professora anunciou que estava na hora de ir<br />

embora. Rapidamente, Aline correu para sala e pegou a sua mochila e a de Cláudio.


A professora brigou com ela, pois não deveria ter-se adianta<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> Aline<br />

entregou a mochila para Cláudio, este falou em um tom bravo que não tinha pedi<strong>do</strong><br />

nada a ela. Aline começou a chorar e a professora disse que ele não precisava ter<br />

fala<strong>do</strong> assim.<br />

O que podemos observar nessas relações tecidas entre meninos e meninas? Ser<br />

menina/mulher também é agradar o menino/homem. Nós nos construímos através<br />

<strong>do</strong>s outros e das relações estabelecidas pela nossa cultura. Ser mulher em nossa<br />

sociedade também se configura a partir <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> com o outro, namora<strong>do</strong> ou<br />

mari<strong>do</strong>. Historicamente, as atribuições da mulher envolvem cuidar da casa, <strong>do</strong>s<br />

filhos e <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Aline via Cláudio como um namora<strong>do</strong> e se colocava diante dele<br />

como aquela que cuida, que serve, mesmo sen<strong>do</strong> censurada de vez em quan<strong>do</strong> por<br />

isso.<br />

Voltan<strong>do</strong> o nosso olhar para a família de Aline, percebemos serem constantes os<br />

comentários sobre o fato de sua mãe namorar, já que estava separada <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />

Ela nos contava <strong>do</strong>s passeios que faziam juntos, como ir à pizzaria e a lanchonete,<br />

por exemplo.<br />

Para Cipollone (2003, p.33) a menina em especial recebe uma educação mais “[...]<br />

para fazer-se desejar <strong>do</strong> que para desejar, para usar a sedução como instrumento<br />

para ser, para suprir o que falta com disponibilidade e paciência”.<br />

Aline estava aprenden<strong>do</strong> que ser menina/mulher é cuidar <strong>do</strong> menino/homem,<br />

agradan<strong>do</strong>-o, sen<strong>do</strong> sempre gentil. Certa vez, percebemos que ela estava triste em<br />

um canto da sala. Ao ser indagada sobre o motivo da tristeza, ela respondeu que era<br />

porque seu namora<strong>do</strong> não tinha i<strong>do</strong> à aula.<br />

Entretanto, não era só Aline que se mostrava interessada por Cláudio. Ele era<br />

considera<strong>do</strong> o aluno mais bonito pelas meninas. Em um <strong>do</strong>s episódios, a professora<br />

veio até a rodinha com um saco de plástico cheio de brinque<strong>do</strong>s manda<strong>do</strong>s pela<br />

mãe de Cláudio. To<strong>do</strong>s aqueles brinque<strong>do</strong>s que estavam com ele foram da<strong>do</strong>s por<br />

colegas da sala e a mãe não queria que ele ficasse com nenhum deles. A professora<br />

mostrava os brinque<strong>do</strong>s perguntan<strong>do</strong> quem havia da<strong>do</strong>. Quase todas as meninas se


levantaram e foram buscar o que haviam da<strong>do</strong> ao aluno. To<strong>do</strong>s os presentes eram<br />

usa<strong>do</strong>s: bolinhas de gude, carrinhos e bonequinhos.<br />

Mas por que Cláudio era o escolhi<strong>do</strong>? Ele era um menino muito ativo, considera<strong>do</strong><br />

“leva<strong>do</strong>” pela professora. Gostava de correr, jogar futebol e era “popular” entre os<br />

meninos e as meninas.<br />

Cipollone (2003, p.33) mostra que essas situações de amores, amizades e troca de<br />

presentes fazem parte <strong>do</strong> contexto da Educação Infantil e participam da <strong>constituição</strong><br />

<strong>do</strong> eu, incluin<strong>do</strong> entre elas:<br />

Ciúmes e rivalidades, sorrisos, olhares, silêncios, emoções que se<br />

transformam em sentimentos; não mais, portanto, reações instantâneas e<br />

diretas, mas uma progressiva interiorização que progredirá com o progredir<br />

das capacidades de representação mental.<br />

Embora a preocupação com os atributos físicos, com a beleza, com a admiração <strong>do</strong>s<br />

outros (geralmente <strong>do</strong>s meninos) e com “namoros, bem como com a liderança <strong>do</strong><br />

grupo atravessasse de forma recorrente o ser menina nessa turma, outros aspectos<br />

se ressaltaram quan<strong>do</strong> voltamos nosso olhar para outros agrupamentos de meninas.<br />

O outro grupo de meninas era forma<strong>do</strong> por Karla, Paula, Raquel, Ana Carolina e<br />

Bianca. Esse agrupamento era mais flexível nas relações. Elas não se preocupavam<br />

tanto com os atributos físicos. Também traziam batons para se maquiar, mas<br />

envolviam-se mais com as brincadeiras de casinha. Essas brincadeiras, além <strong>do</strong><br />

fantoche e <strong>do</strong>s jogos matemáticos em sala também incluíam os meninos.<br />

A relação era diferente da <strong>do</strong> outro grupo de meninas que interagiam com os<br />

meninos mais com a preocupação de ser admiradas e consideradas bonitas por<br />

eles.<br />

Eram constantemente chamadas pela professora de “boas meninas”. Só entravam<br />

em conflito com os colegas quan<strong>do</strong> alguém as machucava ou atrapalhava suas<br />

brincadeiras. Eram meninas que dividiam o seu material com colegas, e quan<strong>do</strong><br />

solicitadas pela professora ou pelos colegas, ajudavam-nos. Bianca, Ana Carolina,<br />

Paula e Karla gostavam de brincar com as crianças <strong>do</strong> berçário. No momento <strong>do</strong><br />

lanche, cuidavam para que não caíssem e os auxiliavam na alimentação.


3.2.3 As meninas e os conflitos<br />

Uma característica marcante da interação entre os grupos ou mesmo das relações<br />

entre os membros de um mesmo grupo eram os conflitos. Havia situações de conflito<br />

entre meninos e meninas, entre as meninas e entre os meninos. Segun<strong>do</strong> Oliveira<br />

(2002, p.136),<br />

[...] formas concretas de organização das atividades humanas em um meio<br />

sociocultural específico geram normas, regras e valores sempre<br />

potencialmente conflituosos e confrontantes, poden<strong>do</strong> ser confirma<strong>do</strong>s,<br />

desaparecer ou diversificar-se.<br />

Como afirma a autora, a apropriação de regras e valores determinada por um meio<br />

sociocultural é potencialmente conflituosa. Nem toda interação é harmoniosa,<br />

contu<strong>do</strong> é importante deixar claro qual o conceito de conflito apresenta<strong>do</strong> nesta<br />

pesquisa. Acreditamos ser o conflito<br />

[...] necessário à vida, inerente e constitutivo, tanto da vida psíquica, como<br />

da dinâmica social. Sua ausência indica apatia, total submissão e, no limite,<br />

remete à morte. Sua não explicitação pode levar a violência. [...] O conflito<br />

é a sociedade em movimento (GALVÃO, 2004, p.15).<br />

Dessa forma, o conflito passa a ser parte integrante da interação e <strong>do</strong> processo de<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu, pois, em um local onde se encontram indivíduos diversos, com<br />

valores e referências culturais distintas, ele se torna inevitável.<br />

O conflito no desenvolvimento <strong>do</strong> eu é ressalta<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s de Wallon. Na<br />

diferenciação eu-outro, o conflito evidencia-se na afirmação <strong>do</strong> próprio eu. Wallon<br />

ressalta, que por volta <strong>do</strong>s três anos, “[...] a pessoa entra num perío<strong>do</strong> em que a sua<br />

necessidade de afirmar, de conquistar a sua autonomia, lhe vai causar, de início<br />

uma série de conflitos”. (WALLON,1995, p.203)<br />

Esses conflitos podem ser acompanha<strong>do</strong>s de perto pelos educa<strong>do</strong>res da Educação<br />

Infantil, pois a criança se opõe a tu<strong>do</strong> o que é <strong>do</strong> outro. Para Galvão (1995, p.55),


os conflitos são “[...] a expulsão e a incorporação <strong>do</strong> outro, são movimentos<br />

complementares e alternantes <strong>do</strong> processo de formação <strong>do</strong> eu”.<br />

Durante toda a vida, passamos por momento de conflito com o outro, pois “o<br />

fantasma <strong>do</strong> outro” nos acompanha, mesmo que não estejamos em interação face a<br />

face. Os conflitos também aparecem no plano intrapsíquico, constituin<strong>do</strong>-nos,<br />

agregan<strong>do</strong> valores, crenças, formas de pensar ou rejeição. No plano psicológico,<br />

não deve ser visto como destrui<strong>do</strong>r, mas como renova<strong>do</strong>r, porque a cada dia nos<br />

(re)constituímos.<br />

Dessa forma, tentan<strong>do</strong> entender a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu da criança, elegemos como<br />

categoria de análise também o conflito por constatar que ele esteve presente em<br />

diversos momentos, marcan<strong>do</strong> as interações. Classificamos alguns conflitos<br />

existentes na turma analisada: os que aconteciam entre meninos, entre meninos e<br />

meninas e entre meninas.<br />

Os conflitos entre as meninas, em sua maioria, estavam relaciona<strong>do</strong>s ao controle<br />

das brincadeiras. Lúcia era a criança que mais se destacava em querer ocupar o<br />

espaço de líder. Numa cena em que outra colega tinha a posse <strong>do</strong> jogo e a<br />

autorização da professora para brincar, Lúcia irritou-se e rasgou o jogo.<br />

A professora entrega o jogo de bingo para Paula. É ela quem vai cantar o bingo. Ela<br />

se senta no cantinho da sala e Raquel, Leticia e André pedem para brincar. Ela<br />

entrega uma fichinha para cada um. Como vai cantar o bingo, senta-se numa<br />

cadeira enquanto os colegas se sentam no chão. Lúcia se aproxima e diz:<br />

- Quero jogar! (Pegan<strong>do</strong> as fichas da mão de Paula).<br />

Paula diz:<br />

- Pára Lúcia! Eu vou te dar.<br />

Paula começa a puxar as fichas. Lúcia pega uma delas, rasga e joga em cima de<br />

Paula. Paula começa a chorar e as crianças chamam a professora para ver o que<br />

aconteceu. A professora olha para Lúcia e diz:<br />

- Eu dei o joguinho para Paula! Ela é que deveria ficar responsável pelo jogo; você<br />

não tinha nada que rasgar.<br />

Lúcia encosta-se na parede e não fala nada. A professora diz:


- Agora você vai ter de consertar. E coloca a ficha na mão de Lúcia, que fica<br />

tentan<strong>do</strong> juntar. Depois de alguns segun<strong>do</strong>s, a professora pega e diz:<br />

- Não quero ver você fazer isso novamente. (Diário de campo, 16 de novembro).<br />

Paula era constantemente solicitada pelas colegas para brincar e parecia não se<br />

importar com a disputa pela liderança nas brincadeiras de beleza. Entretanto<br />

gostava muito <strong>do</strong>s jogos matemáticos e sempre que podia pedia à professora o<br />

bingo. Nessa cena, ela ficou nervosa ao ver Lúcia rasgar a ficha e se preocupou<br />

com o que a professora iria falar, pois havia confia<strong>do</strong> a ela o brinque<strong>do</strong>. Lúcia<br />

pareceu irritar-se por não liderar a brincadeira, não aceitou receber de Paula a ficha<br />

e acabou rasgan<strong>do</strong>-a.<br />

Os conflitos entre as meninas eram mais constantes na disputa pela liderança e na<br />

diferenciação entre elas. Além de evidenciarem um movimento em direção a uma<br />

afirmação <strong>do</strong> eu, apontavam, também, uma busca pelo poder, por meio da liderança<br />

no grupo. Algumas meninas sempre procuravam definir as ações, as formas de agir<br />

<strong>do</strong> grupo: queriam que to<strong>do</strong>s os colegas as admirassem, tentavam determinar o tipo<br />

de relação que umas tinham com as outras, queriam definir quem deveria ser amiga<br />

de quem, tentavam escolher as brincadeiras, entre outras.<br />

As questões de liderança e de poder nas relações entre meninas não têm si<strong>do</strong><br />

enfocadas em pesquisas sobre crianças na Educação Infantil. A presente<br />

investigação evidencia a necessidade de realização de novos estu<strong>do</strong>s sobre o tema.<br />

Constatamos também, entre as meninas, conflitos pela posse de objetos. Mais uma<br />

vez a preocupação com aspectos referentes ao corpo e à imagem de menina<br />

valorizada nessa turma se destacou: as meninas disputavam objetos utiliza<strong>do</strong>s para<br />

maquiagem. Em um <strong>do</strong>s episódios,o conflito instaurou-se é em torno da posse <strong>do</strong><br />

batom.<br />

Lúcia, Mariana, Janaína, Letícia, Karla e Raquel estão na frente <strong>do</strong> espelho<br />

passan<strong>do</strong> batom. Elas passam batom, mexem no cabelo. O batom é de Karla.<br />

Janaína chama Karla e Raquel. Elas combinam algo e voltam com os de<strong>do</strong>s<br />

indica<strong>do</strong>res levanta<strong>do</strong>s, pedin<strong>do</strong> a Lúcia, Mariana e Larissa para os cortarem. Lúcia<br />

vira o rosto e mesmo assim Janaína passa os de<strong>do</strong>s no braço de Lúcia. E diz:


- Vocês não vão mais passar o batom. Não somos mais sua amiga.<br />

Lúcia fala:<br />

- Não quero passar esse batom horroroso.<br />

Lúcia empurra Raquel, e as meninas vão falar com a professora. (Diário de campo,<br />

27 de novembro).<br />

Nesse episódio, quem tinha o batom nas mãos era quem mandava. Apesar de o<br />

batom ser de Karla, era Janaína que dizia quem podia ou não usar o batom e<br />

excluía Lúcia, Mariana e Letícia da brincadeira. Lúcia e Mariana, sempre que tinham<br />

a posse de algum brinque<strong>do</strong>, também escolhiam o colega com quem iam brincar, e<br />

Karla muitas vezes ficava de fora. Karla parecia concordar com a idéia de Janaína<br />

de não deixar as colegas brincarem com o seu batom e apoiava a sua atitude ao unir<br />

os de<strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res e pedir às meninas que o cortassem. Entretanto Lúcia não<br />

aceitava ser excluída e justificava o fato dizen<strong>do</strong> que não ia brincar mais, pois o<br />

batom era horrível.<br />

Em outra cena muito parecida, foi Mariana quem pediu para “cortar” e ficou rin<strong>do</strong> das<br />

colegas que passavam o batom de Karla. Mais uma vez, as meninas pareciam<br />

disputar a liderança da brincadeira e tentavam inferiorizar quem estava com o<br />

batom.<br />

Galvão (1998) analisa os conflitos gera<strong>do</strong>s pela posse de um objeto entre crianças<br />

de três a quatro anos. Nessa análise, ela observa que a disputa é gerada pela<br />

limitação <strong>do</strong>s objetos na sala de aula e pela busca da criança na diferenciação <strong>do</strong><br />

eu. O objeto que está com o outro é deseja<strong>do</strong> pelo “eu”. Dessa forma, ter o batom<br />

seria ser mais menina/mulher, pois para acompanhar práticas de outras mulheres e<br />

até mesmo a mídia, passar batom é muito importante: “[...] o objeto e a pessoa que o<br />

detém seriam vistos como entidades fundidas” (GALVÃO, 1998, p. 164). A posse <strong>do</strong><br />

objeto poderia fazer com que a menina/mulher se diferenciasse <strong>do</strong> outrocomo mais<br />

bonita.<br />

No início da pesquisa, a professora falou à pesquisa<strong>do</strong>ra sobre a presença de<br />

conflitos entre as meninas. Algumas vezes ela tentava ameniza-los com conversas,<br />

mas havia momentos em que ela desistia de ter essa conversa com as meninas.


Ao analisarmos o ser menina na turma <strong>do</strong> Jardim II, percebemos que não há uma<br />

uniformização nos mo<strong>do</strong>s de ser. Embora ressaltemos um grupo de meninas que se<br />

preocupava em ter os cabelos compri<strong>do</strong>s, em ser magra, em ter namora<strong>do</strong> e ser<br />

admiradas pelos meninos, esses não eram os únicos mo<strong>do</strong>s de ser menina<br />

presentes nessa sala. Encontramos também meninas que evidenciavam a<br />

apropriação de outros mo<strong>do</strong>s de ser e de se relacionar com os colegas. Apesar de<br />

acreditarmos em uma <strong>constituição</strong> embasada na cultura e na história, cada um<br />

construirá a si mesmo de maneira particular e singular. Segun<strong>do</strong> Charlot (1996, p.<br />

9), “[...] nossa história escolar, aliás, nossa história como um to<strong>do</strong>, é cem por cento<br />

social, pois, se não fôssemos socializa<strong>do</strong>s, não seríamos humanos. Mas ela é ao<br />

mesmo tempo cem por cento singular, pois minha história é diferente.”<br />

Dessa forma, considerar todas as meninas como iguais seria negar a singularidade<br />

e a história de cada criança. No entanto, entre as meninas percebia-se a formação<br />

de <strong>do</strong>is grupos, defini<strong>do</strong>s pelas afinidades entre elas. Isso não quer dizer que eram<br />

fecha<strong>do</strong>s e que não houvesse um livre acesso entre os grupos, como, por exemplo,<br />

quan<strong>do</strong> uma menina se cansava de brincar na frente <strong>do</strong> espelho maquian<strong>do</strong>-se e ia<br />

juntar-se às outras que estavam a brincar de casinha.<br />

Atualmente, os estu<strong>do</strong>s sobre o gênero têm aponta<strong>do</strong> para a perspectiva de<br />

analisarmos o ser menina na relação com o ser menino. Após analisarmos os mo<strong>do</strong>s<br />

de ser menina na turma <strong>do</strong> Jardim II, vem-nos a pergunta sobre o que é ser menino<br />

nesse espaço? Que papel os meninos <strong>do</strong> Jardim II assumem na relação com as<br />

meninas e com outros colegas? Qual o seu lugar no jogo de sedução? De que<br />

maneira a família participa na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser menino entre essas crianças?<br />

3.2.3 MENINO PODE BRINCAR DE CASINHA? – SER MENINO NA TURMA DO<br />

JARDIM II<br />

Há um menino<br />

Há um moleque


Moran<strong>do</strong> sempre no<br />

meu coração<br />

Toda vez que o<br />

adulto balança<br />

Ele vem pra me dar<br />

a mão.<br />

Milton Nascimento<br />

Nos estu<strong>do</strong>s sobre gênero, é comum encontramos análises só sobre as meninas/<br />

mulheres. Nessa trama de relações, a história nos mostra que, durante muito tempo<br />

e em alguns casos, até hoje a mulher teve sua história e participação negada na<br />

vida social. Dessa forma, alguns estu<strong>do</strong>s sobre gênero priorizam o estu<strong>do</strong> da<br />

menina/mulher e as marcas deixadas por anos de submissão. Entenden<strong>do</strong> que a<br />

sociedade é <strong>do</strong>minada pelo universo masculino, não em termos de quantidade, mas<br />

em relação à marca cultural e social, esses estu<strong>do</strong>s percebem ainda fortemente<br />

sinais dessa submissão.<br />

Os poucos trabalhos identifica<strong>do</strong>s por nós, que estudam o universo masculino na<br />

escola (CARVALHO, 2004; SAYÃO, 2002; E SANTOS, 2004) indicam duas<br />

vertentes: a primeira, que acentua a passividade feminina e a agressividade<br />

masculina, e a mais recente, que vê os meninos como prejudica<strong>do</strong>s pelo pre<strong>do</strong>mínio<br />

<strong>do</strong> feminino nesse espaço. Entretanto esses estu<strong>do</strong>s procuram distanciar-se de uma<br />

perspectiva que cristaliza formas de ser menino e buscam no contexto de cada<br />

escola a resposta para essas diferentes formas.<br />

Santos (2004) pesquisou o porquê <strong>do</strong> fracasso <strong>do</strong>s meninos em contraposição ao<br />

das meninas nas escolas de ensino fundamental. Tentan<strong>do</strong> fugir das estereotipias e<br />

buscan<strong>do</strong> analisar esse desempenho através das múltiplas relações tecidas no<br />

contexto escolar, a autora observa que nesse contexto há varias formas de ser<br />

menino e que elas vão sen<strong>do</strong> constituídas nos diversos espaços em que as crianças<br />

circulam. A autora percebe que a escola valoriza o bom aluno, ou seja, aquele que<br />

segue os padrões, e que alguns meninos assumem posturas antiescola, como a<br />

agressividade, a valorização <strong>do</strong>s esportes em detrimento de outras disciplinas<br />

escolares. Para Santos, os alunos que têm um bom rendimento apresentam


posturas mais compatíveis com as normas da escola, e suas famílias têm uma boa<br />

relação com a instituição.<br />

Ao finalizar, a autora sugere a possibilidade de múltiplas formas de ser menino e de<br />

ser menina, que não precisam necessariamente corresponder aos modelos de<br />

menina quieta e passiva e de menino pertuba<strong>do</strong>r.<br />

Com base nesses estu<strong>do</strong>s, pretendemos analisar as histórias singulares <strong>do</strong>s<br />

meninos <strong>do</strong> Jardim II, observan<strong>do</strong> as relações tecidas no ambiente escolar.<br />

Entedemos que os meninos também precisam ter sua história contada até mesmo<br />

para compreendermos as marcas deixadas por essa história nessa <strong>constituição</strong>.<br />

O que era ser menino na turma <strong>do</strong> Jardim II? Quais eram as características desse<br />

ser menino? Que atitudes um menino podia ou deveria ter?<br />

Entre os meninos, observava-se uma preocupação em não participar de atividades<br />

ou brincadeiras consideradas “de meninas”. No episódio descrito a seguir,<br />

constatamos que Pedro parecia estar gostan<strong>do</strong> de brincar de casinha com algumas<br />

meninas, entretanto, ao perceber que estava sen<strong>do</strong> observa<strong>do</strong> pela professora e<br />

pela pesquisa<strong>do</strong>ra, sentiu necessidade de se justificar:<br />

As crianças estão brincan<strong>do</strong> na sala, a pesquisa<strong>do</strong>ra e a professora estão em uma<br />

mesinha próximas a algumas crianças que estão brincan<strong>do</strong> de casinha. Neste grupo<br />

estão Paula, Raquel, Ana Carolina, Bianca e Pedro. Na brincadeira, Paula, Raquel e<br />

Ana Carolina estão visitan<strong>do</strong> a casa de Bianca e Pedro. A pesquisa<strong>do</strong>ra e a<br />

professora estavam observan<strong>do</strong> essa cena e quan<strong>do</strong> Pedro percebe, olha para a<br />

pesquisa<strong>do</strong>ra e a professora e diz:<br />

- Eu tô brincan<strong>do</strong> aqui, mas eu sou o pai! (Diário de campo, 10 de outubro).<br />

Pedro foi o único a dizer qual era o seu papel na brincadeira, as meninas não<br />

precisaram justificar-se. A brincadeira de casinha era aceitável para a menina. São<br />

poucos os meninos que brincam de casinha; <strong>do</strong>s onze meninos da turma <strong>do</strong> Jardim<br />

II, apenas três: Pedro, Mateus e Luiz Paulo. Observamos que esses meninos se<br />

dispunham a brincar de casinha. Outros papéis também eram assumi<strong>do</strong>s por eles,


como o de garçom na festinha para as bonecas. Apenas uma vez é que um menino,<br />

o Mateus, se propôs ser o filho na brincadeira.<br />

Diferente da análise <strong>do</strong> ser menina nessa turma, em que observamos as<br />

características que mais se destacavam, investigar aspectos referentes ao ser<br />

menino pareceu-nos pertinente enfocar o que menos sobressaía. Esse caminho<br />

revelou-nos algo interessante: o motivo pelo qual os meninos não podiam, ou não<br />

queriam participar das brincadeiras ditas de “meninas”.<br />

A análise <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que atravessavam o enuncia<strong>do</strong> de Pedro quan<strong>do</strong> dizia: “Eu tô<br />

brincan<strong>do</strong> aqui, mas eu sou o pai” mostra-nos que ele queria dizer: “Eu estou aqui,<br />

mas sou um menino”. Apesar de assumir um papel considera<strong>do</strong> masculino na<br />

brincadeira, Pedro sentia necessidade de justificar para os adultos a sua<br />

participação nessa atividade lúdica.<br />

Para as meninas, brincar de casinha é considera<strong>do</strong> um ato “natural”, pois assumem<br />

papéis, como o de mãe, daquela que cuida da casa e zela por ela. Entretanto, se<br />

considerarmos que os meninos, provavelmente, também podem ser pais e<br />

assumirão responsabilidades assim como as meninas, deveria também ser “natural”<br />

que meninos experimentassem esse papel nas brincadeiras de casinha.<br />

Durante toda a nossa vida, vamos assumin<strong>do</strong> vários papéis e posições 5 no nosso<br />

drama particular e assim vamos nos constituin<strong>do</strong>. Ao vivermos certas situações em<br />

uma relação, temos a possibilidade de experimentar outros mo<strong>do</strong>s de ser, que são<br />

papéis ou posições e não essências (OLIVEIRA, 2004).<br />

Talvez venha daí o preconceito de meninos quan<strong>do</strong> entram em brincadeiras ditas<br />

“femininas”. Acredita-se em uma essência feminina e outra masculina. Entretanto,<br />

nos esquecemos de que a variedade de situações vivenciadas pelas crianças<br />

proporcionará um enriquecimento na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito.<br />

5 Oliveira (2004) faz aproximações entre o termo jogo de papéis e a teoria <strong>do</strong> posicionamento. A<br />

noção de papel surge na obra de <strong>Vigotski</strong>. Outros autores, como Wallon e Bakthin também auxiliam<br />

na compreensão desse conceito. A teoria <strong>do</strong> posicionamento surge da produção de Harreé, Davies,<br />

Langenhove e Gillet. Para a autora, há aproximações teóricas importantes, e a teoria <strong>do</strong><br />

posicionamento vem ampliar o conceito de jogos de papéis.


Além de não poderem/deverem brincar de casinha, meninos também não<br />

podem/devem dançar. Assim, a recusa de meninos em participar de uma atividade<br />

que envolve dança revela as marcas culturais presentes no universo masculino.<br />

Para algumas pessoas, meninos não podem dançar, pois essa atividade é<br />

considerada feminina.<br />

Na rodinha, as crianças cantam e dançam alegremente. A professora faz gestos e<br />

eles prestam atenção para fazer igual. Em uma determinada música, pede para as<br />

crianças rebolarem. Alguns meninos dançam: Luiz Paulo, Mateus, e Pedro. Elvis<br />

observa com certo ar de desprezo, como se não se importasse com a dança, mas<br />

em alguns momentos balança os braços e canta também. Douglas nem olha para os<br />

colegas dançan<strong>do</strong>. Perceben<strong>do</strong> que alguns meninos não querem participar, a<br />

professora diz:<br />

- Homem também rebola, olha só o Pedro e o Luiz Paulo (Diário de Campo, 21 de<br />

novembro).<br />

Apesar da tentativa da professora para que os outros meninos também dançassem,<br />

mostran<strong>do</strong> que há outros que também dançam, é difícil combater padrões traça<strong>do</strong>s<br />

pela idéia de gênero, como, por exemplo, aquilo é de menina e isso é de menino.<br />

Apesar de Elvis demonstrar certo interesse e até ensaiar algum tipo de movimento,<br />

os olhares <strong>do</strong>s outros colegas não permitiam que ele “rebolasse”.<br />

Pesquisas como a de Finco (2004), que tratam de comportamentos e comentários<br />

das crianças a respeito de os meninos não poderem dançar ou se envolver em<br />

brincadeiras de casinha, mostram os valores embuti<strong>do</strong>s pelos adultos. Para essa<br />

autora, quan<strong>do</strong> os meninos se negam a brincar de casinha ou a dançar, estão<br />

demonstran<strong>do</strong> que se apropriam de valores que lhes foram repassa<strong>do</strong>s. Para Finco,<br />

crenças, como “homem não rebola”, vão moldan<strong>do</strong> comportamentos que, ao longo<br />

<strong>do</strong> tempo, se tornam cristaliza<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong> a autora, em nossa sociedade a<br />

masculinidade está marcada<br />

[...] basicamente na coragem física, no trabalho, na perseverança, na<br />

competitividade e no sucesso, elementos que expressam como os mais<br />

importantes para a <strong>constituição</strong> da masculinidade considerada<br />

hegemônica: a coragem, diretamente relacionada à força física, à energia,<br />

à ousadia, à virilidade (FINCO, 2004, p. 103).


Como já foi dito, poucos eram os meninos que conseguiam quebrar esses padrões e<br />

brincaram com as meninas. Eles não chegavam a assumir papéis femininos, mas<br />

lidavam muito bem com brincadeiras que os outros meninos não gostavam de<br />

partilhar com as meninas. Os meninos que se permitiam participar das brincadeiras<br />

ditas “femininas” eram Alex, Luiz Paulo, Yan, Mateus e Pedro. Buscan<strong>do</strong> elementos<br />

para entender a flexibilidade desses meninos, que brincavam tanto com meninas<br />

quanto com meninos, encontramo-los nas características de suas famílias, o<br />

primeiro grupo em que essas crianças foram inseridas.<br />

Pedro era uma criança que gostava muito de atividades relacionadas ao teatro, à<br />

brincadeira de fantoches. Em uma conversa com a mãe dele, a professora comentou<br />

sobre essas características de Pedro. A mãe disse que incentiva essas atividades e<br />

que, quan<strong>do</strong> podia, sempre comprava fantoches, microfones de brinque<strong>do</strong>. Pedro é<br />

filho único de um casal que aparenta ter mais de quarenta anos. Ele gostava muito<br />

de conversar com os colegas e <strong>do</strong>s jogos de faz-de-conta.<br />

Outra criança que também se destacava pela flexibilidade nas brincadeiras era Luiz<br />

Paulo. Ele vivia com sua mãe e os avós. Demonstrava muito carinho pela mãe<br />

quan<strong>do</strong> ela ia buscá-lo. Em uma reunião de pais, a professora destacou essa<br />

característica de Luiz Paulo. A mãe disse que ele a ajudava bastante em casa, nos<br />

afazeres <strong>do</strong>mésticos, e que costumava comentar com ele que os <strong>do</strong>is tinham que<br />

zelar pela casa.<br />

Assim como no caso das meninas, existiam <strong>do</strong>is agrupamentos diferentes no grupo<br />

<strong>do</strong>s meninos. O grupo <strong>do</strong>s cita<strong>do</strong>s acima tinha livre acesso às brincadeiras de<br />

casinha e fantoche e costumava brincar com jogos matemáticos junto com as<br />

meninas. A presença deles não era impedida por elas. Era constante dizerem que<br />

eles podiam participar. Entretanto, esses meninos não tomavam parte nas<br />

brincadeiras de “maquiagem”.<br />

O outro grupo de meninos, forma<strong>do</strong> por André, Cláudio, Rodrigo, Douglas e Elvis,<br />

não participava dessas atividades. Gostava mais de correr, jogar futebol e brincar<br />

com os pinos da sala, transforman<strong>do</strong>-os em armas de brinque<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is grupos<br />

pouco se reuniam, somente quan<strong>do</strong> a professora propunha jogos coletivos, como os<br />

jogos matemáticos.


Os meninos <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> grupo não participavam das brincadeiras com as meninas.<br />

Pareciam gostar de implicar com aquelas que mais se preocupavam com a beleza,<br />

chaman<strong>do</strong>-as de feias e denunciavam à professora as brigas entre elas ou algo que<br />

estivessem fazen<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>.<br />

Ao pensarmos essas relações, tendemos a imaginar, à primeira vista, que elas não<br />

são significativas para a <strong>constituição</strong> de meninas e meninos. Parece não haver<br />

diálogo ou partilha entre eles e elas. Entretanto, o referencial a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> neste estu<strong>do</strong><br />

leva-nos a considerar que há interação e que esse mo<strong>do</strong> de relação também<br />

participa da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu dessas crianças. Embora não brinquem com as<br />

meninas, esses meninos interagem com elas quan<strong>do</strong> as provocam e se divertem ao<br />

vê-las irritadas. Seria esse um tipo de relação possível em um contexto que parece<br />

distinguir tão fortemente papéis e ações para meninos/homens e meninas/mulheres?<br />

Três desses meninos eram admira<strong>do</strong>s pelas meninas, que constantemente os<br />

chamavam de “bonitos”. Um deles, o Cláudio, era considera<strong>do</strong> o namora<strong>do</strong> de uma<br />

delas. Mas por que estes meninos eram admira<strong>do</strong>s pelas meninas? Em um <strong>do</strong>s<br />

episódios, Lúcia, Janaína, Mariana e Aline estavam brincan<strong>do</strong> de fazer bolo, que<br />

seria para os meninos mais bonitos da sala.<br />

Lúcia, Janaína, Mariana e Aline brincam de fazer bolo com a areia <strong>do</strong> parquinho. A<br />

pesquisa<strong>do</strong>ra pergunta:<br />

- Para quem será a festa?<br />

Mariana responde:<br />

- Vai ser para o Elvis.<br />

Pesquisa<strong>do</strong>ra:<br />

Mas por que para o Elvis?<br />

Mariana:<br />

- É porque ele é bonito!<br />

Aline também diz:<br />

- Mas não é só ele não, o Cláudio também é bonito e gostosão!<br />

(Diário de campo, 8 de novembro)<br />

Nesse episódio, as meninas indicavam quais os meninos que consideravam bonitos.<br />

Em outros episódios, elas também fizeram isso. Quais eram as características


desses meninos? Eram considera<strong>do</strong>s “leva<strong>do</strong>s” pela professora, pois sempre<br />

estavam corren<strong>do</strong> e algumas vezes desobedeciam às suas ordens. Como eles<br />

reagiam a esse comportamento das meninas? Não percebemos entre os meninos<br />

interesse em agradar às meninas. Pareciam estar mais interessa<strong>do</strong>s em implicar<br />

com elas, chaman<strong>do</strong>-as de gordas ou feias. Riam das respostas que elas davam<br />

com cara feia.<br />

Analisan<strong>do</strong> o contexto familiar <strong>do</strong>s meninos considera<strong>do</strong>s “bonitos”, percebemos que<br />

tanto o Cláudio quanto o Elvis têm uma educação severa em casa por parte de suas<br />

mães. A mãe de Elvis comentou que hoje estava bem mais calma com ele, não batia<br />

mais, tentava conversar. Ela disse que Elvis era o mais leva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus quatro<br />

filhos. A mãe de Cláudio também era muito rígida com ele. Na reunião de pais,<br />

queria sempre saber se tinha feito algo de erra<strong>do</strong>, para que pudesse corrigi-lo em<br />

casa. A professora comentou que ele era muito admira<strong>do</strong> pelas meninas e a mãe<br />

disse que não gostava disso, pois podia atrapalhar seus estu<strong>do</strong>s.<br />

Os meninos mais admira<strong>do</strong>s da turma tinham uma educação familiar rígida, pois<br />

“eram meninos”!<br />

Em nossa sociedade, os meninos/homens têm que ser fortes e até mesmo<br />

autoritários. Apesar de essa postura estar mudan<strong>do</strong>, percebemos que em alguns<br />

casos tal educação permanece. Diferente <strong>do</strong>s outros meninos que eram flexíveis<br />

nas brincadeiras, esses meninos não se envolviam em brincadeiras com meninas, a<br />

não ser nos jogos de “pique-pega”.<br />

Entretanto, nenhum <strong>do</strong>s meninos ficava tanto tempo na frente <strong>do</strong> espelho como as<br />

meninas, que iam se arrumar, passar batom e cantar. Já as meninas, umas mais e<br />

outras menos, sempre passavam por lá e de alguma forma se arrumavam para ficar<br />

“bonitas”.<br />

A via de análise pelo gênero mostra-nos uma riqueza de momentos em que<br />

podemos perceber a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> sujeito menina e menino, suas concepções e<br />

valores, a primeira característica que lhes foi dada ao nascer. Tu<strong>do</strong> gira em torno <strong>do</strong><br />

gênero: as roupas <strong>do</strong> enxoval, os primeiros brinque<strong>do</strong>s, a forma como devem<br />

comportar-se e as atividades que podem fazer. Isso vai constituin<strong>do</strong> a subjetividade


de cada um de uma forma marcante e única, em uma cultura massifica<strong>do</strong>ra em que<br />

se diz que meninos têm que ser de um jeito e meninas de outro.<br />

Segun<strong>do</strong> Sayão (2002, p. 6) encontramos no <strong>Brasil</strong><br />

[...] uma rica diversidade cultural, e os papéis de homens e mulheres<br />

evidenciam isso, ou seja, há diferentes formas de ser mulher e ser homem<br />

em nossa sociedade, que expressam, por exemplo, na dança, na música,<br />

no trabalho <strong>do</strong>méstico e extra<strong>do</strong>méstico, nos gestos, no meio rural ou <strong>do</strong><br />

meio urbano, e, no caso das crianças, nas brincadeiras, principalmente.<br />

Dessa forma, devemos ter claro que não somos naturalmente meninos/homens e<br />

meninas mulheres, que nos construímos a partir de características adquiridas<br />

culturalmente e que cada sociedade vai ter uma forma diferente de significar seus<br />

sujeitos. Não podemos dizer que as características analisadas aqui são as mesmas<br />

para todas as crianças. Há diferentes formas de expressar culturalmente e<br />

historicamente o ser menina e o ser menino.<br />

3.2.4 OS MENINOS E OS CONFLITOS<br />

Ao discutirmos os conflitos na <strong>constituição</strong> das meninas turma <strong>do</strong> Jardim II,<br />

constatamos que esses conflitos emergiam principalmente em situações de busca<br />

da liderança <strong>do</strong> grupo. Entre os meninos, não percebemos uma preocupação tão<br />

acentuada com a liderança <strong>do</strong> grupo e o poder.<br />

Os conflitos geralmente aconteciam nas situações de brincadeira e envolviam os<br />

meninos <strong>do</strong> grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo) e <strong>do</strong> grupo 6 (Alex,<br />

Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricar<strong>do</strong>, Pedro, Yan). Os meninos <strong>do</strong> primeiro grupo<br />

gostavam de brincar mais de futebol e de simular lutas com armas, enquanto os <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> grupo preferiam brincar com jogos de montar, bingo, casinha, <strong>do</strong>minó e<br />

teatro. Algumas vezes presenciamos situações de conflito envolven<strong>do</strong> esses <strong>do</strong>is<br />

grupos por conta da disputa pelo espaço.<br />

Luiz Paulo, Pedro e Mateus estão em um canto da sala brincan<strong>do</strong> com o quebra-<br />

cabeça. Elvis passa corren<strong>do</strong> em cima das peças e logo depois Douglas também<br />

passa. Luiz Paulo levanta e fala:


- O’ tia, olha só. Eles pisaram na pecinha.<br />

Elvis também fala:<br />

- Ah! Eles ficam no caminho.<br />

A professora olha para Elvis e diz:<br />

- A sala não é lugar de correr! Eu já falei isso para vocês!<br />

A professora continua a preparar o cartaz e Elvis volta para o cantinho onde estava<br />

brincan<strong>do</strong> com Douglas, enquanto os outros meninos continuam a montar o quebra-<br />

cabeça. (Diário de campo, 5 de novembro).<br />

O tipo de brincadeira escolhi<strong>do</strong> pelos meninos gerou o conflito, pois uma brincadeira<br />

atrapalhava a outra. Douglas e Elvis estavam brincan<strong>do</strong> com armas montadas com<br />

as peças da sala e se escondiam entre as mesas. Elvis começou a correr, simulan<strong>do</strong><br />

uma perseguição e pisou no jogo <strong>do</strong>s meninos. Logo em seguida, Douglas fez o<br />

mesmo. O conflito foi gera<strong>do</strong> pela falta de espaço para duas brincadeiras ao mesmo<br />

tempo. Entretanto a intervenção da professora foi no senti<strong>do</strong> de mostrar apenas que<br />

não havia espaço para brincadeira de correr.<br />

Galvão (1998) mostra que esse tipo de conflito pode ser motiva<strong>do</strong> pela ameaça à<br />

integridade física e pela quebra de um “espaço afetivo” que é construí<strong>do</strong> pelo outro.<br />

Analisan<strong>do</strong> a cena, percebemos que as duas possibilidades de conflito coexistiram,<br />

pois Douglas e Elvis podiam machucar os colegas, ao invés de estragar o brinque<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> montamos um quebra-cabeça sabemos <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> e <strong>do</strong> tempo que<br />

perdemos para que fique pronto. Por esse motivo, Luiz Paulo, Pedro e Mateus não<br />

gostaram da atitude de Douglas e Elvis, apesar de não terem si<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong>s pela<br />

correria <strong>do</strong>s colegas.<br />

Outro motivo de conflito é a posse de brinque<strong>do</strong>s. No parquinho, era permiti<strong>do</strong><br />

brincar de futebol, entretanto, quem chegasse primeiro tinha a posse da bola e o<br />

direito de organizar o time. Algumas vezes presenciamos conflitos entre os meninos<br />

das duas turmas <strong>do</strong> Jardim II. Em uma das cenas eles pediram a intervenção da<br />

professora.<br />

Cláudio chega com a bola na mão e os meninos que estavam com ele também se<br />

aproximam da professora. Ele reclama que os alunos da outra turma querem tomar<br />

a bola dele, não os deixan<strong>do</strong> brincar. Cláudio já tinha monta<strong>do</strong> o time em que to<strong>do</strong>s


os meninos eram da sua turma. A professora olha para os meninos da outra turma e<br />

diz:<br />

- Eles chegaram primeiro hoje; depois que eles brincarem um pouco mais, Cláudio<br />

vai passar a bola para vocês.<br />

Os meninos voltam a brincar e ficam constantemente perguntan<strong>do</strong> se o tempo deles<br />

acabou. (Diário de campo, 13 de novembro).<br />

Nesse episódio, outras atitudes poderiam ter si<strong>do</strong> tomadas, como a mescla de<br />

meninos no time. Entretanto, fazer isso geraria mais conflito, pois os meninos não<br />

iam querer sair da brincadeira para dar a vez para o outro colega. Outra solução<br />

talvez fosse mais bolas, para que pudessem formar mais times. Contu<strong>do</strong>,<br />

percebíamos certa rivalidade entre os alunos das duas turmas: dificilmente eram<br />

vistos brincan<strong>do</strong> juntos e constantemente havia queixas <strong>do</strong>s meninos da sala<br />

pesquisada de que os da outra turma estavam implican<strong>do</strong> com eles ou até mesmo<br />

baten<strong>do</strong> neles.<br />

No primeiro episódio, o conflito é marca<strong>do</strong> pelo espaço e pela diferença entre os<br />

gostos na brincadeira. Generalizar que to<strong>do</strong>s os meninos são iguais e que gostam<br />

de brincar da mesma coisa é reduzir o universo infantil. Como já mencionamos, nas<br />

relações de gênero identificamos <strong>do</strong>is agrupamentos entre os meninos e as<br />

diferenças entre eles em suas brincadeiras geravam dispustas pelo espaço da sala.<br />

No outro tipo de conflito, há uma afinidade na brincadeira: to<strong>do</strong>s os meninos queriam<br />

jogar futebol, porém, como as crianças eram de turmas diferentes e a escolha <strong>do</strong>s<br />

membros <strong>do</strong> grupo, conforme ressaltam Carvalho e Rubiano (2004), se dá também<br />

pela convivência, uma vez que quase não conviviam com as crianças da outra<br />

turma, o que ocorria somente nos trinta minutos em que ficavam no parquinho, era<br />

difícil aceitarem que outras crianças brincassem com eles.<br />

Por sua vez, na relação entre meninos e meninas, a maioria <strong>do</strong>s conflitos ocorria<br />

entre o grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo), que eram admira<strong>do</strong>s pelas<br />

meninas, e o grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína), que gostavam de ser<br />

admiradas.


Conforme já comentamos, os conflitos geralmente emergiam quan<strong>do</strong> os meninos<br />

apresentavam algum tipo de comportamento que desagradava ou irritava as<br />

meninas, como chamá-las de “feias”, contar para a professora algo de erra<strong>do</strong> que<br />

elas estivessem fazen<strong>do</strong>, por exemplo, molhar o cabelo, no banheiro. Presenciamos<br />

mais situações de conflito entre meninos e meninas <strong>do</strong> que entre meninos.<br />

Identificamos ainda conflitos entre a professora e os meninos que parecem<br />

relevantes para aprofundarmos a reflexão sobre o ser menino nessa turma. Esses<br />

conflitos ocorriam quase sempre por causa <strong>do</strong> barulho ou da bagunça que eles<br />

causavam nos espaços. Após o lanche, as crianças sabiam que deveriam sentar-se<br />

em fila e esperar a professora chamá-los para voltar à sala. As meninas sempre<br />

faziam isso e ficavam brincan<strong>do</strong> de “a<strong>do</strong>leta”; entretanto os meninos corriam pelo<br />

espaço <strong>do</strong> refeitório, que era enorme, o que causava irritação na professora.<br />

No refeitório, as crianças estão lanchan<strong>do</strong>. A professora vê Elvis subin<strong>do</strong> no banco,<br />

deixa o café que está toman<strong>do</strong> e vai em direção a ele, chaman<strong>do</strong>-o. Entretanto, Elvis<br />

parece não escutar, ou fingir não escutar, pois a professora está muito perto dele e<br />

ele continua corren<strong>do</strong>.<br />

A professora diz:<br />

- Elvis! Eu estou falan<strong>do</strong> com você!<br />

Ele pára, olha para professora que pede que ele vá para a fila esperar a hora de<br />

subir. Elvis obedece à professora. (Diário de campo, 13 de novembro).<br />

Santos (2004), em sua pesquisa, constatou que a principal queixa <strong>do</strong>s professores<br />

em relação aos meninos é a forma como estes se comportam diante das normas da<br />

escola. A autora mostra que isso também acontece com as meninas, mas há maior<br />

incidência com os meninos.<br />

Geralmente os meninos que tentam subverter a ordem, não são bem vistos pela<br />

escola e não têm um desempenho escolar aceitável. Elvis era um menino que não<br />

conseguia concentrar-se por muito tempo nas atividades. Sempre que podia, estava<br />

corren<strong>do</strong> ou convidan<strong>do</strong> os colegas a correr. A professora contou-nos que ele era o<br />

“terror” da escola, tanto que to<strong>do</strong>s os funcionários o conheciam. Sua mãe já chegava<br />

na escola perguntan<strong>do</strong> o que Elvis tinha feito de erra<strong>do</strong> naquele dia. A professora<br />

tentava não reforçar essa imagem <strong>do</strong> aluno: mostrava à mãe que ele tinha


qualidades. Luíza contou-nos que isso deu resulta<strong>do</strong> e que Elvis estava bem melhor,<br />

mas, como ela mesma disse, ainda havia um longo caminho a percorrer.<br />

Santos (2004), também mostra em sua pesquisa que a escola muitas vezes rotula<br />

os meninos como leva<strong>do</strong>s e agressivos e as meninas como boazinhas e pacientes.<br />

Dessa forma, a escola nega a multiplicidade <strong>do</strong> ser menino, como se a<br />

agressividade lhe fosse inerente.<br />

Os conflitos gera<strong>do</strong>s nas relações mostram-nos que há diferentes motivos para que<br />

eles ocorram: a falta de espaço, a posse <strong>do</strong> brinque<strong>do</strong>, a disputa pela liderança e a<br />

organização da sala. As salas de Educação Infantil são permeadas de conflitos. Não<br />

que isso seja necessariamente sinônimo de bagunça; pode também ser sinônimo de<br />

construção, diferenciação e afirmação <strong>do</strong> eu entre as crianças.<br />

Esses conflitos também vão permear as relações menino e menina, pois, no<br />

processo de diferenciação <strong>do</strong> eu, há momentos de explosão, de surpresa, de choro e<br />

de alegria, de presença e de ausência <strong>do</strong> outro. Aos poucos, o sujeito vai<br />

posicionan<strong>do</strong>-se em relação ao outro, que nunca vai aban<strong>do</strong>ná-lo. Enfim, na<br />

perspectiva walloniana, os conflitos fazem parte <strong>do</strong> processo de <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu.<br />

O que era importante para os meninos? Para alguns, era correr, brincar com armas<br />

de brinque<strong>do</strong>, jogar bola e manter uma relação de conflito com as meninas. Para<br />

outros, era brincar de fantoche, de casinha, de jogos matemáticos e ter um bom<br />

relacionamento com as meninas.<br />

Assim como o mo<strong>do</strong> de ser menina/mulher não é algo cristaliza<strong>do</strong>, o mesmo<br />

acontece com o menino/homem, que é constituí<strong>do</strong> na sua relação com os meninos,<br />

com as meninas, com a professora e a família.<br />

Na turma <strong>do</strong> Jardim II, havia diferentes formas de ser menino. Alguns interagiam<br />

mais com outros meninos, outros ampliavam suas possibilidades de <strong>constituição</strong><br />

interagin<strong>do</strong> e brincan<strong>do</strong> também com as meninas. Alguns demonstravam não<br />

conseguir uma mobilidade muito grande nos papéis que assumiam, de seu lugar de<br />

meninos, outros haviam ti<strong>do</strong>, até o momento, uma formação que lhes possibilitava<br />

experimentar um universo talvez mais amplo e enriquece<strong>do</strong>r, que interferia na


<strong>constituição</strong> de seus mo<strong>do</strong>s de ser. Do mesmo mo<strong>do</strong>, encontramos em outras turmas<br />

diferentes mo<strong>do</strong>s de ser menino. Ao rotulá-los como iguais, estamos negan<strong>do</strong> a<br />

história social e particular de cada um.<br />

3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA<br />

As análises da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu das crianças <strong>do</strong> Jardim II apontam a relevância de<br />

enfocar as relações de gênero nesse processo. Retomemos então a idéia de infância<br />

e a perspectiva <strong>do</strong> desenvolvimento infantil que permeavam o nosso trabalho, para<br />

assim termos a idéia <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, pois, ao longo <strong>do</strong> trabalho, mostramos indícios daquilo<br />

que seria a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu. De forma semelhante à de Morelli (1876), que, ao<br />

analisar as obras de arte, observava detalhes que os outros especialistas ignoravam<br />

para compreender a magnitude da pintura, ao longo das análises, procuramos<br />

mostrar detalhes não de uma obra pronta e acabada, mas de um processo que está<br />

a constituir-se e no qual a multiplicidade <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de ser delineia percursos e seres<br />

singulares.<br />

A infância e a sua pluralidade mostroram-nos uma rica fonte de observação. Assim,<br />

em vez de falamos criança, falaremos de crianças, pois é dessa forma que<br />

englobamos to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s de ser menino e de sermenina em diferentes grupos<br />

culturais, etnias ou classe social.<br />

Nesta pesquisa, apresentamos mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino na turma <strong>do</strong><br />

Jardim II, que podem ser diferentes de outros mo<strong>do</strong>s de ser em outros lugares. O fato<br />

de termos encontra<strong>do</strong> meninas que lideravam e que eram muito preocupadas com a<br />

beleza, ou meninos que se propunham participar de brincadeiras ditas “femininas”<br />

não quer dizer que esse seja um padrão para todas as salas de Jardim II.<br />

O desenvolvimento infantil não se dá de uma forma estável e única. Góes (2000, p.<br />

121) fala-nos que devemos pensar em sujeitos móveis, em construção: “[...] trata-se<br />

de algo em processo (individuação), que não pode ser concebi<strong>do</strong> ou investiga<strong>do</strong>


como uma cena estacionária; por outro la<strong>do</strong>, é um processo que depende das<br />

relações sociais, que é marca<strong>do</strong> pelo papel fundamental <strong>do</strong> socius”.<br />

É imprescindível conhecer os diferentes mo<strong>do</strong>s de ser criança, significan<strong>do</strong> suas<br />

reações a partir das relações que estabelecem com os seus pares e com os adultos.<br />

Assim superaremos uma “[...] visão adultocêntrica que está impregnada em cada um<br />

de nós. Perceben<strong>do</strong> o conhecimento das culturas da infância, como elemento<br />

primordial para se respeitar a pluralidade de mo<strong>do</strong>s de ser criança[...]” (MARTINS<br />

FILHO, 2005, p. 17).<br />

Esses diferentes mo<strong>do</strong>s de ser estão imbrica<strong>do</strong>s em uma cultura e uma história.<br />

Como percebemos isso na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu dessas crianças? Enfocamos os<br />

mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino na turma <strong>do</strong> Jardim II e constatamos que<br />

essa <strong>constituição</strong> se entrecruza com os outros diferentes mo<strong>do</strong>s de ser. Esses<br />

outros, que são a família, a mídia, a professora, os colegas da turma, vão<br />

configuran<strong>do</strong> diferentes mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino em nossa sociedade<br />

ocidental.<br />

Os vários contextos sociais em que a criança se insere em seu<br />

desenvolvimento – o da família, o da vizinhança, o da escola, o <strong>do</strong> trabalho,<br />

o das atividades esportivas ou artísticas, o <strong>do</strong> casamento, etc. – lhe dão<br />

oportunidade para experimentar e responder a diferentes papéis. Dos<br />

conflitos que estabelece com o meio a cada momento no embate com as<br />

ações de outros indivíduos, estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s eles, ao mesmo tempo, em um<br />

processo dialético constante de identificar-se com o parceiro diferenciar-se<br />

dele, o indivíduo forma sua conduta e personalidade (OLIVEIRA, 2004,<br />

P.70)<br />

Nesse caminho pelo qual nos tornamos homens e mulheres, vários papéis/posições<br />

vão nos sen<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong>s ao longo de nossas vidas. Muitas vezes esse caminho é<br />

cerca<strong>do</strong> de conflitos oriun<strong>do</strong>s de uma busca por nos diferenciarmos <strong>do</strong>s outros e de<br />

afirmarmos o próprio eu. As práticas sociais são recursos privilegia<strong>do</strong>s para o<br />

desenvolvimento <strong>do</strong> sujeito. As interações medeiam a construção da linguagem, da<br />

emoção, da cognição e <strong>do</strong> conhecimento. Formas de ser, de agir e de sentir vão<br />

sen<strong>do</strong> construídas ao longo de nossa história particular.<br />

[...] a construção social <strong>do</strong> individuo é uma história de relações com outros,<br />

através da linguagem, e de transformações <strong>do</strong> funcionamento psicológico<br />

constituídas pelas interações face-a-face e por relações sociais mais<br />

amplas (que configuram lugares sociais, formas de inserção em esferas da<br />

cultura, papéis a serem assumi<strong>do</strong>s etc.) (GÓES, 2000, p. 121).


Destacamos aqui formas de ser menina e de ser menino através das interações que<br />

constituem a trama social o que possibilita ver em cada criança um ser singular e<br />

plural, pois, como diz Jonas Ribeiro em seu livro para crianças, intitula<strong>do</strong> “Gente que<br />

mora dentro da gente”, somos um baleiro: “[...] descobri que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é um<br />

baleiro. Que ao invés de balas guardamos gente dentro da gente. Gente de vários<br />

sabores, não deixe de experimentar as pessoas de framboesa e as de hortelã. Elas<br />

são deliciosas” (RIBEIRO, 2000, p.19)<br />

Cada baleiro terá um colori<strong>do</strong> diferente e cada um sentirá o gosto da bala de uma<br />

forma diferente. Assim, gente mora dentro da gente e ajuda a constituir diferentes<br />

mo<strong>do</strong>s de ser menina e de ser menino, ou seja, de ser criança.


4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS<br />

A Educação Infantil é realmente um campo de pesquisa que incita a procura <strong>do</strong> novo<br />

e as descobertas. Nossa trajetória acadêmica e profissional, de certa forma, sempre<br />

esteve ligada a essa modalidade de ensino, que nos vez apurar o olhar sobre as<br />

crianças que freqüentavam e freqüentam as instituições que oferecem esse tipo de<br />

Educação.<br />

Ao observar o desenvolvimento infantil, pudemos perceber que, além da maturação<br />

biológica, outros fatores contribuíam para esse desenvolvimento, e que as<br />

interações tecidas dentro desse universo eram de grande influência nas formas de<br />

agir e pensar das crianças.<br />

Foi a partir daí que começou a se desenhar o objetivo desta pesquisa. Como se dá a<br />

<strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre as crianças da Educação Infantil. Retoman<strong>do</strong> esse objetivo<br />

no momento final deste trabalho, percebemos que as crianças nos mostraram qual o<br />

melhor recorte a ser feito para que pudéssemos compreender em parte essa<br />

<strong>constituição</strong>.<br />

Analisar como se davam esses processos fez com que buscássemos uma vertente<br />

que não deixasse de la<strong>do</strong> a história da infância, pois, para entendermos a criança,<br />

hoje, precisamos compreender como a nossa sociedade a percebia e a percebe e<br />

como cria mecanismos para acelerar ou respeitar o seu desenvolvimento.<br />

Nesta pesquisa, o desenvolvimento infantil foi visto como algo fortemente<br />

influencia<strong>do</strong> pela história e pela cultura. A <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu foi analisada a partir da<br />

relação com o outro, parceiro perpétuo <strong>do</strong> eu, significan<strong>do</strong> seus mo<strong>do</strong>s de ser e de<br />

sentir. Várias pesquisas serviram de base para compreendermos quais os caminhos<br />

a seguir para estudar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu. A subjetividade foi discutida a partir de<br />

uma base teórica que respeitasse o social e o histórico das crianças, mostran<strong>do</strong>-nos<br />

a importância das relações tecidas no universo infantil.<br />

Adentrar no universo infantil a partir da escola significa respeitar o ambiente de<br />

trabalho <strong>do</strong>s profissionais que ali estão e, o mais importante, respeitar o espaço das<br />

crianças, saben<strong>do</strong> observar e retirar-se nos momentos em que a presença <strong>do</strong>


pesquisa<strong>do</strong>r se torna incômoda para a criança. Observar o cotidiano de uma sala de<br />

aula sem alterar o ritmo e sem inibir as formas de expressão das crianças não foi<br />

tarefa fácil. Mas, aos poucos, as próprias crianças inseriram-nos no contexto e nos<br />

mostraram o caminho a seguir para compreender a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu entre elas.<br />

Dessa forma, passamos a observar a interação entre e com as crianças. Nessa<br />

interação, grupos eram forma<strong>do</strong>s e diferentes dinâmicas de convivência eram<br />

traçadas por elas. A análise a partir <strong>do</strong>s grupos não significou a categorização prévia<br />

de crianças, mas, sim, de características que as faziam reunir-se em torno de uma<br />

brincadeira ou atividade. Como dissemos anteriormente, foram as crianças que nos<br />

mostraram qual o melhor caminho para pensar a <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> eu.<br />

Ao analisarmos a composição <strong>do</strong>s grupos e o que os unia, percebemos<br />

características marcantes da <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser menina e <strong>do</strong> ser menino. Foram as<br />

crianças que sutilmente nos mostraram, através de suas brincadeiras e da forma<br />

como se organizavam, que as relações de gênero permeavam de forma marcante<br />

suas atitudes e formas de pensar.<br />

Entender o gênero como a relação entre meninas e meninos e os relacionamentos<br />

como constitui<strong>do</strong>res de identidades torna-se de fundamental importância para<br />

compreendermos como as crianças se movimentam em diferentes papéis, vivenciam<br />

contradições, desconstroem modelos e recriam seus significa<strong>do</strong>s.<br />

Nesse vaivém <strong>do</strong> desenvolvimento, na <strong>constituição</strong> <strong>do</strong> ser menina e <strong>do</strong> ser menino,<br />

os conflitos eram parte integrante <strong>do</strong> processo, revelan<strong>do</strong> que esses momentos<br />

eram espaços de renovação. Constatamos que, nessas interações, as crianças<br />

vivenciavam diferentes papéis e se constituíam como seres singulares. Cada um<br />

interagia e vivenciava o mesmo momento de uma forma diferente, trazen<strong>do</strong> consigo<br />

marcas culturais e experiências de outros momentos vivencia<strong>do</strong>s.<br />

A partir da análise <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, percebemos que a escola é parte importante<br />

nesse processo, pois contribui para essa <strong>constituição</strong>, reforçan<strong>do</strong> práticas culturais<br />

ou problematizan<strong>do</strong> determinadas e diversas formas de ser menina e menino.<br />

Acreditamos que a escola pode contribuir para (re)significar práticas culturais que<br />

negam a infância e aceleram o crescimento das crianças para o mun<strong>do</strong> adulto <strong>do</strong><br />

consumo. A escola pode criar momentos em que as crianças possam conhecer


diversas expressões culturais que valorizem o ser criança, e não expressões<br />

culturais que revelem as relações de gênero de uma forma pejorativa,<br />

principalmente para as meninas, que sofrem muito mais com a imposição da mídia<br />

em favor de um determina<strong>do</strong> padrão de beleza.<br />

O professor de Educação Infantil deve estar atento às diferentes formas de<br />

expressão <strong>do</strong> ser menina e <strong>do</strong> ser menino, median<strong>do</strong> essas situações sem reforçar<br />

estereotipias, e sim propician<strong>do</strong> às crianças um espaço no qual elas possam<br />

vivenciar a infância de uma forma que lhes seja possível expressar seus desejos e<br />

suas escolhas.<br />

Mediar não é só estar perto ou acompanhar. É interagir e propiciar às crianças o<br />

avanço em seus conhecimentos sobre as formas de ser menina e de ser menino,<br />

longe de preconceitos que caracterizem as meninas como “boazinhas” e os meninos<br />

como “leva<strong>do</strong>s”, como se esses conceitos fossem naturais. A presente pesquisa<br />

questiona essa “naturalização” da infância e acredita que valores e atributos<br />

culturais participam da <strong>constituição</strong> das crianças, como seres singulares.<br />

Assim, os profissionais da Educação Infantil devem despir-se de concepções que<br />

percebem as crianças como “pequenas mulheres” ou “pequenos homens” e passar a<br />

ver a criança em suas diferentes formas de ser menino e de ser menina,<br />

desconstruin<strong>do</strong> concepções e valores que vêem a identidade de gênero de forma<br />

hierarquizada, amplian<strong>do</strong> seus conceitos sobre gênero e infância.<br />

As instituições de Educação Infantil são espaços ricos em interação e podem<br />

proporcionar às crianças, meninas e meninos, e adultos, a ampliação de seus<br />

conhecimentos e valores, a partir das várias vivências que coexistem dentro desse<br />

espaço, como descreve Ruth Rocha em seu livro “Faca sem ponta, galinha sem pé”<br />

(ROCHA, 1999)<br />

Nesse livro, <strong>do</strong>is irmãos, Pedro e Joana, sofrem com os estereótipos, tais como os<br />

de que as meninas não podem brincar com meninos e de que os meninos não<br />

podem chorar, e acabam reproduzin<strong>do</strong> em suas brincadeiras e atividades esses<br />

preconceitos.


Um dia, como em um passe de mágica, eles passam embaixo de um arco-íris e<br />

trocam de lugar: Joana passa a ser chamada de Joano e Pedro, de Pêdra. Muitas<br />

confusões acontecem, pois os <strong>do</strong>is já não sabem mais o que podem e o que não<br />

podem fazer, já que meninos e meninas não compartilham as mesmas atividades.<br />

Após muita confusão, no final da história eles percebem que podem fazer as coisas<br />

juntos, sem precisar categorizar o que é de menina e o que é de menino.<br />

Assim como na história, meninas e meninos muitas vezes não vivenciam outras<br />

práticas porque não lhes é permiti<strong>do</strong>, por ser menina ou menino. As crianças devem<br />

ter o direito de expressar-se e assumir diferentes papéis. Talvez não devamos<br />

pensar em ações ou papéis apropria<strong>do</strong>s para meninas ou meninos, e sim em ações<br />

ou papéis apropria<strong>do</strong>s para as crianças.<br />

Entendemos que para nós, profissionais da Educação Infantil, fica deste estu<strong>do</strong> a<br />

necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre como concebemos as<br />

relações de gênero na sociedade como um to<strong>do</strong> e na escola em particular, e sobre<br />

qual imagem de menina, de menino e de criança atravessa nossas práticas<br />

educativas.<br />

Sabemos que ações como se fantasiar com as roupas <strong>do</strong>s pais, desempenhar<br />

durante as brincadeiras de faz-de-conta, papéis que fazem parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> adulto<br />

sempre permearam o imaginário infantil, pois é através da experimentação que a<br />

criança vivência desejos, vontades e sonhos. Entretanto nos preocupa pensar que<br />

padrões impostos pelo mun<strong>do</strong> adulto estejam privan<strong>do</strong> as crianças de conhecer<br />

novas possibilidades <strong>do</strong> belo, <strong>do</strong> brincar, <strong>do</strong> fazer amigos. Nesse contexto, para as<br />

crianças, cria-se a idéia de que para “ser feliz” tem se que ter os cabelos da atriz de<br />

novela, a sandália <strong>do</strong> herói <strong>do</strong> programa de televisão, ouvir a música da<br />

apresenta<strong>do</strong>ra de um determina<strong>do</strong> programa infantil. Mais uma vez estamos<br />

negan<strong>do</strong> a infância e negan<strong>do</strong> às crianças o acesso à cultura, não a padronizada<br />

pelos meios de comunicação, mas aquela que está na sua cidade, na sua rua, no<br />

encontro com os mais velhos, enfim, nas múltiplas possibilidades de interações entre<br />

crianças e adultos e entre as próprias crianças.<br />

Dessa forma, deixamos em aberto as novas possibilidades de descobertas que o<br />

contexto da Educação Infantil propicia como se fosse um calei<strong>do</strong>scópio que, ao ser


muda<strong>do</strong> de posição, muda a forma <strong>do</strong> seu desenho. Assim é a Educação Infantil,<br />

que acompanha e produz mudanças importantes no desenvolvimento infantil,<br />

instigan<strong>do</strong>-nos a pesquisar esse universo sempre.


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ANEXO


ANEXO A<br />

Faca Sem Ponta Galinha Sem Pé - Ruth rocha<br />

Esta a história de <strong>do</strong>is irmãos.<br />

Com eles aconteceu uma coisa muito esquisita, muito rara e difícil de acreditar.<br />

Pois eram <strong>do</strong>is irmãos: um menino, o Pedro. E uma menina a Joana.<br />

Eles viviam com os pais, seu Setúbal e <strong>do</strong>na Brites.<br />

E os problemas que eles tinham não eram diferentes <strong>do</strong>s problemas de to<strong>do</strong>s os irmãos.<br />

Por exemplo...<br />

Pedro pegava a bola para ir jogar futebol, lá vinha Joana:<br />

- Eu também quero jogar!<br />

Pedro danava:<br />

- Onde é que já se viu mulher jogar futebol?<br />

- Em to<strong>do</strong> lugar.<br />

- Eu é que não vou levar você! O que é que meus amigos vão dizer?<br />

- E eu estou ligan<strong>do</strong> pro que os seus amigos vão dizer?<br />

- Pois eu estou. Não levo e pronto!<br />

Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara feia.<br />

Dona Brites ficava zangada:<br />

- Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada, boazinha...<br />

- Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus mo<strong>do</strong>s.<br />

Ás vezes Pedro chegava da rua to<strong>do</strong> esfola<strong>do</strong>, choran<strong>do</strong>.<br />

- Que é isso? - Espantava-se seu Setúbal. - O que foi que aconteceu?<br />

- Foi o Carlão! foi o besta <strong>do</strong> Carlão! Me pegou na esquina - choramingava Pedro.<br />

Seu Setúbal ficava furioso:<br />

- E você? O que foi que você fez? Por acaso fugiu? Filho meu não foge! Volte pra lá já e<br />

bata nele também. E vamos parar com essa choradeira!<br />

Homem não chora!<br />

Pedrinho desapontava:<br />

- Eu estou choran<strong>do</strong> é de raiva! É de ódio! Joana se metia :<br />

- Homem é assim mesmo! Quan<strong>do</strong> a gente chora é porque é mole, é boba, é covarde.<br />

Agora, homem quan<strong>do</strong> chora é de ódio...<br />

Pedro ficava furioso, queria bater na irmã.<br />

Dona Brites entrava no meio:<br />

- Que é isso, menino? Numa menina não se bate nem com uma flor...<br />

Pedro ia embora, pisan<strong>do</strong> duro:<br />

- Só com um pedaço de pau...<br />

E as brigas se repetiam sempre.<br />

Quan<strong>do</strong> Joana subia na árvore para apanhar goiaba, Pedro implicava:<br />

- Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore.<br />

Parece um moleque!<br />

- Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. - Você toda hora está em cima de árvore, por que é<br />

que eu não posso?<br />

- Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole,<br />

não! Mulher é mulher, homem é homem!<br />

Quan<strong>do</strong> Pedro botava camisa nova e se olhava no espelho, Joana já implicava:<br />

- Olha a mulherzinha! Como está vai<strong>do</strong>so...<br />

Ou então quan<strong>do</strong> Pedro ficava comovi<strong>do</strong> com alguma coisa, como filme triste, que tem<br />

menininha sozinha, sem ninguém para cuidar dela, Joana já começava a caçoar:<br />

- Vai chorar, é? E agora é de ódio, è?<br />

Mas nas outras coisas eles eram bem amigos:


Jogavam cartas, viam televisão juntos, iam ao cinema...<br />

Um dia...Tinha chovi<strong>do</strong> muito e os <strong>do</strong>is vinham voltan<strong>do</strong> da escola.<br />

De repente, Pedro gritou:<br />

- Olha só o arco-íris!<br />

- É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito!<br />

- Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo? Vamos!<br />

Joana se riu:<br />

- Tia Edith disse que se a gente passar por baixo <strong>do</strong> arco-íris, antes <strong>do</strong> meio-dia, homem<br />

vira mulher e mulher vira homem...<br />

- Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas?<br />

E os <strong>do</strong>is se deram as mãos e correram, correram, na direção <strong>do</strong> arco-íris. E de repente<br />

pararam espanta<strong>do</strong>s.Eles estavam se sentin<strong>do</strong> esquisitíssimos!<br />

- O que aconteceu? - perguntou Joana.<br />

E a voz dela saiu diferente, parece que mais grossa...<br />

- Sei lá! - disse Pedro.<br />

Mas parou de pressa, porque ele estava falan<strong>do</strong> direitinho como uma menina.<br />

- Aconteceu comigo uma coisa muito estranha... - resmungou Joana.<br />

- Comigo também... - reclamou Pedro.<br />

E os <strong>do</strong>is se olharam muito espanta<strong>do</strong>s...<br />

E correram para casa.<br />

Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quan<strong>do</strong> contaram o que tinha<br />

aconteci<strong>do</strong>.<br />

No começo ninguém estava acreditan<strong>do</strong>.<br />

- Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal.<br />

- Vamos parar com isso? - disse <strong>do</strong>na Brites.<br />

Mas depois tiveram que se convencer...<br />

E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia fazer<br />

isso ou aquilo.<br />

Afinal ninguém sabia direito quem era quem...<br />

O pai e mãe de Joana e Pedro ficaram conversan<strong>do</strong> até de madrugada.<br />

- Acho melhor nem contarmos pra ninguém - dizia seu Setúbal.<br />

- Mas como é que vai ser? - argumentava <strong>do</strong>na Brites.<br />

- To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vai notar! E podem até pensar coisa pior...<br />

- E o nome deles? - perguntou seu Setúbal.<br />

- Como é que fica?<br />

- É mesmo! - choramingou <strong>do</strong>na Brites. - A Joaninha, meu Deus, que tinha o nome da minha<br />

mãe. Que Deus a tenha em sua glória, agora vai ter que se chamar Joano! Joano, Setúbal!<br />

Isso é lá<br />

nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma coisa<br />

dessas?<br />

- E tem um outro problema em que estou pensan<strong>do</strong> - disse seu Setúbal. - Está bem que a<br />

gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem se vestir de<br />

homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer dizer, ela, virar<br />

homem outra vez?<br />

- Ah, sei lá! - disse <strong>do</strong>na Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir <strong>do</strong>rmir...<br />

No dia seguinte o problema da roupa foi resolvi<strong>do</strong> com facilidade. Foi só vestir calça de brim<br />

nos <strong>do</strong>is, mais camiseta e tênis.<br />

Joano e Pêdra estavam brincan<strong>do</strong> e rin<strong>do</strong>, como se nada estivesse aconteci<strong>do</strong>, disfarçan<strong>do</strong><br />

para que os pais não se preocupassem ainda mais <strong>do</strong> que já estavam preocupa<strong>do</strong>s. Mas<br />

assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como é que iam fazer na escola.<br />

Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute numa<br />

tampinha de cerveja que estava no chão.<br />

- Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas.<br />

- E eu sou menina? - reclamou Pêdra.<br />

- É, não é?


- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar<br />

papagaio, de pular sela...<br />

- Ué, eu também tinha vontade de fazer tu<strong>do</strong> isso e você dizia que menina não podia -<br />

reclamou Joano.<br />

- Mas é que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que mulher é<br />

dentro de casa...<br />

- Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode...<br />

- Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posse dizer fita, posso ter me<strong>do</strong> de escuro...<br />

Quan<strong>do</strong> tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quan<strong>do</strong> eu quiser ver<br />

novela ninguém vai me chatear...<br />

E eles ficaram ali, uma porção de tempo, discutin<strong>do</strong> a situação.<br />

De repente Pêdra lembrou-se de que precisava ir para o colégio.<br />

- Sabe de uma coisa? - disse Joano. - Eu é que não vou para escola desse jeito ridículo.<br />

- Não sei por que ridículo. Ridículo estou eu, aqui, vira<strong>do</strong> em mulher.<br />

- E você quer ir para escola? - perguntou Joano.<br />

- Eu não - respondeu Pêdra.<br />

E sentou num murinho, muito desanimada.<br />

Joano sentou também.<br />

- Sabe de uma coisa? - disse Pêdra. - Nós temos é que encontrar o arco-íris pra passar por<br />

baixo outra vez.<br />

- Mas não está nem choven<strong>do</strong> - choramingou Joano, que agora era menino mas bem que<br />

estava com vontade de chorar...<br />

- É, mas se a gente não procurar não vai encontrar. E se não encontrar vai ficar desse jeito<br />

o resto da vida!<br />

Então Joano tomou uma decisão:<br />

- Olha aqui. Eu vou mas não vou levar você, não! Vou é sozinho! Menina só serve pra<br />

atrapalhar.<br />

Pêdra ficou danada da vida:<br />

- Ah, é? Então vire-se! Eu também vou procurar sozinha e não quero conversa com você.<br />

Vamos ver quem encontra primeiro.<br />

E cada um foi para o seu la<strong>do</strong>, sem nem olhar para trás.<br />

Os <strong>do</strong>is rodaram o dia inteirinho, mas não tinha caí<strong>do</strong> nem uma chovinha, de maneira que<br />

não havia jeito de encontrar o arco-íris. E no outro dia foi a mesmo coisa, e no outro, e no<br />

outro.<br />

E em casa as coisas estavam pioran<strong>do</strong> cada vez mais. Um implicava com o outro, caçoava,<br />

proibia:<br />

- Menino não pode!<br />

- Menina não faz!<br />

- Onde é que já se viu?<br />

- Coisa mais feia!<br />

- Vou contar pra mamãe!<br />

Se o arco-íris não aparecesse logo...<br />

Até que um dia eles acordaram e estava choven<strong>do</strong> a maior chuva que já tinha visto.<br />

Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais.<br />

Os <strong>do</strong>is ficaram torcen<strong>do</strong> para a chuva passar. E quan<strong>do</strong> passou, saíram, como sempre um<br />

para cada la<strong>do</strong>, procuran<strong>do</strong> o arco-íris.<br />

Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha i<strong>do</strong>.<br />

E já vinha voltan<strong>do</strong>, desanima<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> viu, bem na sua frente, o arco-íris.<br />

Joano correu e passou por baixo.<br />

Mas não aconteceu nada.<br />

Joano continuava Joano...<br />

Com Pêdra aconteceu mais ou menos a mesma coisa.<br />

An<strong>do</strong>u, an<strong>do</strong>u, até fora da cidade. E só quan<strong>do</strong> vinha voltan<strong>do</strong> é que encontrou o arco-íris,


passou por baixo e nada!<br />

Na porta de casa os <strong>do</strong>is se encontraram:<br />

- Nada, hein? - perguntou Pêdra.<br />

- Nadinha! - respondeu Joano.<br />

- Que será que aconteceu? - disse um.<br />

- Que será que não aconteceu? - disse o outro.<br />

E os <strong>do</strong>is se sentaram - tão amigos! - e contaram, um ao outro, como é que eles tinham<br />

passa<strong>do</strong> por baixo e nada tinha aconteci<strong>do</strong>...<br />

De repente Pêdra se levantou animada:<br />

- Espere um pouco! A tia Edith disse que tinha que passar embaixo <strong>do</strong> arco-íris antes <strong>do</strong><br />

meio-dia, não foi? Então, pra desvirar tem que ser<br />

Depois <strong>do</strong> meio-dia, é ou não é?<br />

- É mesmo! - disse Joano. - E tem mais uma coisa. Pra mudar de sexo nós passamos de lá<br />

pra cá, não foi? A gente vinha voltan<strong>do</strong> da escola, não vinha? Pois agora a gente tem que<br />

passar daqui pra lá, pra desvirar.<br />

Pêdra ficou olhan<strong>do</strong> para Joano:<br />

- Sabe que você é bem esperta para uma menina?<br />

Joano respondeu:<br />

- Você também é bem esperta... pra uma menina.<br />

Os <strong>do</strong>is se riram como há muito tempo não faziam. E juntos saíram á procura <strong>do</strong> arco-íris.<br />

E de repente lá estava ele.<br />

Grande, brilhante, colori<strong>do</strong>, como um desafio.<br />

Joano e Pêdra deram-se as mãos.<br />

E correram, juntos, em direção <strong>do</strong> arco-íris.<br />

E finalmente perceberam que alguma coisa, novamente, tinha aconteci<strong>do</strong>.<br />

Então riram, se abraçaram e abraça<strong>do</strong>s começaram a voltar para casa.<br />

Então Joana viu uma tampinha de cerveja na calçada.<br />

Correu e chutou a tampinha para Pedro.<br />

Pedro devolveu e os <strong>do</strong>is foram jogan<strong>do</strong> tampinha até em casa...

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