Iracema - Repositório Institucional UFC
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outras raivam de fúria, rebentando em frocos de espuma” 383 . Neste cenário romântico, o guerreiro branco suspira de saudade: “Esse mar beijava também as brancas areias do Potengi, seu berço natal, onde ele vira a luz americana. Arrojou-se nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria, como banhara sua alma nas saudades dela” 384 . As lágrimas da companheira exprimem solidariedade, mas “o sorriso de seu guerreiro” acalenta seu coração 385 . Neste ambiente nostálgico, até os pescadores pitiguaras atroam nos ares o “canto de saudade e os múrmuros do uraçá, que imita os soluços do vento” 386 . É que “o pescador da praia, que vai na jangada, lá onde voa a ati, fica triste, longe da terra e de sua cabana, em que dormem os filhos de seu sangue. Quando ele torna e seus olhos primeiro avistam o morro das areias, o prazer volta a seu coração. Por isso ele diz que o morro das areias dá alegria” 387 . De modo idêntico, Martim sabe, por experiência, “que a viagem acalenta a saudade, porque a alma dorme enquanto o corpo caminha” 388 . É todo um percurso narrativo tecido sobre a tela da saudade, aqui estudada no desenvolvimento do seu processo psicológico. A efêmera lua-de-mel entre os esposos contrasta com a persistente tônica da tristeza, dominante na narrativa de Iracema 389 . As cores do locus amoenus lembram-nos um Virgílio bucólico, tipicamente clássico, em cenário e ambiente cearense: “Como o colibri borboleteando entre as flores da acácia, ela [a filha dos sertões] discorria as amenas campinas. A luz da manhã já a encontrava suspensa ao ombro do esposo e sorrindo, como a enrediça que entrelaça o tronco robusto, e todas as manhãs o coroa de nova grinalda” 390 . Neste ambiente dourado, também o coração do esposo é feliz: “a felicidade nasceu para ele na terra das palmeiras, onde recende a baunilha […]. O guerreiro branco não quer mais outra pátria, senão a pátria de seu filho e de seu coração” 391 . 383 Ib. 384 Ib. 385 “Iracema sentiu que lhe chorava o coração; mas não tardou que o sorriso de seu guerreiro o acalentasse” (Ib.). 386 Cap. XXI, p. 58. 387 Ib., p. 59. 388 Ib., p. 59. 389 “A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como a andorinha, que abandona o ninho de seus pais, e peregrina para fabricar novo ninho no país onde começa a estação das flores” (Cap. XXIII, p. 64). 390 Ib. 391 Ib., p. 66. 96
Mas, saturado de felicidade 392 , os olhos do guerreiro voltam a atormentar-se de saudade: “Viram umas asas brancas, que adejavam pelos campos azuis. Conheceu o cristão que era uma grande igara de muitas velas, como construíam seus irmãos; e a saudade da pátria apertou-lhe no seio” 393 . De modo análogo, o emudecimento e os suspiros da futura mãe, ao tecer “a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do himeneu” 394 , prenunciam um presságio fúnebre: “a sabiá que faz seu ninho, não sabe se dormirá nele” 395 . Também a filha dos tabajaras, sentindo-se “garça viúva” ao ser abandonada pelo esposo, sente saudades da pátria 396 . O nome Mecejana, dado ao local, evoca este abandono 397 . Então, repara na jandaia para quem “tinha sido ingrata”, “esquecendo-a no tempo da felicidade” e “vinha para a consolar agora no tempo da desventura” 398 . O regresso do guerreiro cristão reanima a felicidade de ambos os esposos 399 , mas “breves sóis bastaram para murchar aquelas flores de uma alma exilada da pátria” 400 . Destilando “do seio da dor lágrimas doces de alívio e consolo”, o coração do guerreiro branco subia o monte “e lá ficava cismando em seu destino” 401 . A tristeza de Iracema acentua-se, em pressentimento trágico, percebendo “que esses olhos tão amados se turbam com a vista dela”: “Ai da esposa!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaída ferida no âmago, destila as lágrimas em fio” 402 . 392 “A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as carícias da terna esposa que o esperavam na volta, e o doce carbeto no copiar da cabana, já não acordavam nele as emoções de outrora” (Cap. XXV, p. 69). 393 Ib. 394 Ib.. 395 Ib. 396 “A lembrança da pátria, apagada pelo amor, ressurgiu em seu pensamento. Viu os formosos campos do Ipu, as encostas da serra onde nascera, a cabana de Araquém, e teve saudades, mas naquele instante, ainda não se arrependeu de os ter abandonado” (Cap. XXVI, p. 72). 397 “Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio, chamavam àquele sítio da Mecejana, que significa a abandonada” (Ib.). 398 “A linda ave não deixou mais sua senhora; ou porque depois da longa ausência não se fartasse de a ver, ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua triste solidão” (Cap. XXVII, p. 74). 399 “Como a seca várzea, com a vinda do Inverno reverdece e se matiza de flores, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e sua beleza esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos. Outra vez sua graça encheu os olhos do cristão, e a alegria voltou a habitar em sua alma” (Ib.). 400 Ib. 401 Ib. 402 Ib., p. 75 97
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banhar seu corpo nas águas da pátria, como banhara sua alma nas saudades dela” 384 . As<br />
lágrimas da companheira exprimem solidariedade, mas “o sorriso de seu guerreiro”<br />
acalenta seu coração 385 .<br />
Neste ambiente nostálgico, até os pescadores pitiguaras atroam nos ares o “canto de<br />
saudade e os múrmuros do uraçá, que imita os soluços do vento” 386 . É que “o pescador da<br />
praia, que vai na jangada, lá onde voa a ati, fica triste, longe da terra e de sua cabana, em<br />
que dormem os filhos de seu sangue. Quando ele torna e seus olhos primeiro avistam o<br />
morro das areias, o prazer volta a seu coração. Por isso ele diz que o morro das areias dá<br />
alegria” 387 . De modo idêntico, Martim sabe, por experiência, “que a viagem acalenta a<br />
saudade, porque a alma dorme enquanto o corpo caminha” 388 . É todo um percurso narrativo<br />
tecido sobre a tela da saudade, aqui estudada no desenvolvimento do seu processo<br />
psicológico.<br />
A efêmera lua-de-mel entre os esposos contrasta com a persistente tônica da tristeza,<br />
dominante na narrativa de <strong>Iracema</strong> 389 . As cores do locus amoenus lembram-nos um Virgílio<br />
bucólico, tipicamente clássico, em cenário e ambiente cearense: “Como o colibri<br />
borboleteando entre as flores da acácia, ela [a filha dos sertões] discorria as amenas<br />
campinas. A luz da manhã já a encontrava suspensa ao ombro do esposo e sorrindo, como a<br />
enrediça que entrelaça o tronco robusto, e todas as manhãs o coroa de nova grinalda” 390 .<br />
Neste ambiente dourado, também o coração do esposo é feliz: “a felicidade nasceu para ele<br />
na terra das palmeiras, onde recende a baunilha […]. O guerreiro branco não quer mais<br />
outra pátria, senão a pátria de seu filho e de seu coração” 391 .<br />
383 Ib.<br />
384 Ib.<br />
385 “<strong>Iracema</strong> sentiu que lhe chorava o coração; mas não tardou que o sorriso de seu guerreiro o acalentasse”<br />
(Ib.).<br />
386 Cap. XXI, p. 58.<br />
387 Ib., p. 59.<br />
388 Ib., p. 59.<br />
389 “A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como a andorinha, que abandona o ninho de<br />
seus pais, e peregrina para fabricar novo ninho no país onde começa a estação das flores” (Cap. XXIII, p. 64).<br />
390 Ib.<br />
391 Ib., p. 66.<br />
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