Iracema - Repositório Institucional UFC
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tenha conseqüências funestas 220 . Dilema entre duas espécies de amor, este conflito, porém, deixa marcas no rosto e na alma de Iracema 221 . É também com a alma destroçada que a guerreira tabajara acompanha o esposo até aos inimigos do seu povo, desenvolvendo o conflito entre o amor conjugal e o pátrio 222 , perante a memória do canto fúnebre de outrora, resultante de sinistras guerras interétnicas. A insegurança do amor de Martim provoca o ciúme constante no coração de Iracema, levando-a a aludir várias vezes ao “canto da virgem loura” 223 que lhe chama da pátria 224 , chegando a ferir o companheiro 225 . Ao proferir a profecia da sua morte, logo após o desempenho das suas funções maternas de aleitamento, evoca a libertação do esposo da terra do seu exílio, numa interpelação agônica que parece queimar o visado 226 : “- Quando teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati depois que deu seu fruto. Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra estrangeira” 227 . O nome Moacir, “o nascido do meu sofrimento” 228 , como declara a mãe logo após o parto, traduz a entrega sacrificial de Iracema, como algo necessário à realização do projeto fundacional. Ironicamente, o momento do nascimento de Moacir coincide com o “festim da vitória” 229 dos pitiguaras sobre os guaraciabas, na qual participava seu pai 230 . Simbolicamente, uma vitória se associava ao ato fundacional do Ceará, visível nesse nascimento. 220 “Fugindo, os tabajaras arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne” (Ib.). 221 “Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra, era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha. O pranto orvalhou seu lindo semblante.” (Ib.,pp.53-54). 222 “-Porque chora a filha dos tabajaras? -Esta é a taba dos pitiguaras, inimigos de seu povo. A vista de Iracema já conheceu o crânio de seus irmãos espetadona caiçara; seu ouvido já escutou o canto de morte dos cativos tabajaras; a mão já tocou as armas tintas do sangue de seus pais” (Cap. XX, p. 56). 223 “-Não é a voz de Tupã que ouve teu coração, guerreiro de longes terras, é o canto da virgem loura, que te chama” (Cap. XI, p. 37). 224 “- Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais e busca a virgem branca, que te espera” (Cap. XXVIII, p. 75). 225 “Martim doeu-se. Os grandes olhos que a indiana pousara nele o tinham ferido no íntimo” (Ib.). 226 “- Tua voz queima, filha de Araquém, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo dos grandes calores. Queres tu abandonat teu esposo?” (Ib., p. 76). 227 Ib. 228 Cap. XXX, p. 79. 229 Cap. XXIX, p. 79. 230 “Nessa hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nessa terra da liberdade, via a luz nos campos da Porangaba” (Ib.). 76
Tragicamente, porém, nova profecia de Iracema sublinha o contraste entre a alegria desse nascimento promissor e a profunda tristeza que a sua morte provocaria: como a abelha não prova a doçura do mel que produziu, também esta mãe ver-se-á privada de desfrutar das delícias de ver crescer o seu filho 231 . As cores do drama trágico vão-se adensando no interior desta personagem sacrificial, num pathos crescente. Definindo-se como “a rola que o caçador tirou do ninho” 232 , Iracema compara-se, num topos romântico por excelência, à “estrela que só brilha à noite” 233 , para exprimir o clima da sua tristeza, provocada pelo abandono do esposo: “Só os olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto” 234 . Mas a personagem épica assume, ainda, uma nova forma de luta, ao abandonar “os seios mimosos” aos filhos da irara 235 . Ato de bravura e coragem, esta estratégia ardilosa mostra a têmpera desta combatente que não olha os meios para salvar a vida do filho: “Iracema curte dor, como nunca sentiu; mas os seios vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue de que se formou, esguicha” 236 . Moacir, agora, recebe a significação do nome pela segunda vez: “Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido” 237 . E eis que se consuma o sacrifício da personagem. Após dois meses de ausência, regressa o esposo, mas não chegará a tempo de restituir o sorriso alegre à esposa, cujo “belo corpo”, entretanto se consumira, sem deixar de nele morar a formosura, “como o perfume na flor caída do manacá” 238 . Num derradeiro gesto ofertorial, entrega o filho ao pai 239 , para, em seguida, exalar o último suspiro 240 . 231 “- A jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás; toda a lua das flores voa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas ela não prova sua doçura, porque a irara devora em uma noite toda a colmeia. Tua mãe também, filho da minha angústia, não beberá em teus lábios o mel de teu sorriso” (Cap. XXX, p. 80). 232 Cap. XXXI, p. 82. 233 Ib. 234 Ib. 235 “Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seios mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha. Os cachorrinhos famintos sugam os peitos ávidos de leite” (Ib., p. 83). 236 Ib. 237 Ib. 238 Cap. XXXII, p. 85. 239 “A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande, pôde erguer o filho nos braços, e apresentá-lo ao pai, que o olhava extático em seu amor. - Recebe o filho de teu sangue. Era tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!” (Ib.). 240 “Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu, como a jetica, se lhe arrancam o bulbo” (Ib.). 77
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É também com a alma destroçada que a guerreira tabajara acompanha o esposo até<br />
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terra do seu exílio, numa interpelação agônica que parece queimar o visado 226 :<br />
“- Quando teu filho deixar o seio de <strong>Iracema</strong>, ela morrerá, como o abati depois que<br />
deu seu fruto. Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra<br />
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O nome Moacir, “o nascido do meu sofrimento” 228 , como declara a mãe logo após o<br />
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fundacional. Ironicamente, o momento do nascimento de Moacir coincide com o “festim da<br />
vitória” 229 dos pitiguaras sobre os guaraciabas, na qual participava seu pai 230 .<br />
Simbolicamente, uma vitória se associava ao ato fundacional do Ceará, visível nesse<br />
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220 “Fugindo, os tabajaras arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como a<br />
jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne” (Ib.).<br />
221 “Os olhos de <strong>Iracema</strong>, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos; e longe<br />
o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra, era o<br />
mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha. O pranto orvalhou seu lindo semblante.”<br />
(Ib.,pp.53-54).<br />
222 “-Porque chora a filha dos tabajaras?<br />
-Esta é a taba dos pitiguaras, inimigos de seu povo. A vista de <strong>Iracema</strong> já conheceu o crânio de seus irmãos<br />
espetadona caiçara; seu ouvido já escutou o canto de morte dos cativos tabajaras; a mão já tocou as armas<br />
tintas do sangue de seus pais” (Cap. XX, p. 56).<br />
223 “-Não é a voz de Tupã que ouve teu coração, guerreiro de longes terras, é o canto da virgem loura, que te<br />
chama” (Cap. XI, p. 37).<br />
224 “- Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais e busca a virgem branca, que te espera” (Cap.<br />
XXVIII, p. 75).<br />
225 “Martim doeu-se. Os grandes olhos que a indiana pousara nele o tinham ferido no íntimo” (Ib.).<br />
226 “- Tua voz queima, filha de Araquém, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo dos grandes<br />
calores. Queres tu abandonat teu esposo?” (Ib., p. 76).<br />
227 Ib.<br />
228 Cap. XXX, p. 79.<br />
229 Cap. XXIX, p. 79.<br />
230 “Nessa hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos guaraciabas, o primeiro filho<br />
que o sangue da raça branca gerou nessa terra da liberdade, via a luz nos campos da Porangaba” (Ib.).<br />
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