Iracema - Repositório Institucional UFC

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20.06.2013 Views

cosmo, uma ilha, um animal, uma planta, a morte, etc) cuja existência é uma realidade passível de ser verificada ainda no momento da enunciação do mito 173 . No caso dos mitos de origem, interpretados pelo pesquisador como um prolongamento da cosmogonia, teríamos a narração de como algo que não existia no momento da criação do mundo passou a existir: “Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido” 174 . Neste sentido, compreender o romance Iracema como um mito de origem do Brasil equivale a interpretá-lo como narração do surgimento do país em decorrência de uma ação, realizada num passado distante. Os mitos de fundação, diz ele, transcorrem num passado longínquo que serve de modelo para a reprodução da sociedade atual. Isto significa que o mito ‘para’ a história se situa aquém dela, e, ao descrever um estado anterior, legitima a continuidade do presente. Iracema, assim como O guarani, faz parte deste universo mítico, pois a narrativa se passa numa época em que a o país era habitado apenas pelo povo nativo e sofria as primeiras invasões do “branco civilizador” ou, como diz Ortiz a propósito de O Guarani, a estória se passa num período em que ‘civilização não tivera tempo de penetrar o interior’, isto é, quando o Brasil se encontrava ainda na sua virgindade originária e a terra não havia sido profanada pela irreversibilidade do tempo 175 . 2.2 Herói Romântico O movimento romântico, na sua reação ao francesismo claramente reinante no Neoclassicismo iluminista do século XVIII, advoga uma cultura centrada nas identidades nacionais. A afirmação da soberania da Nação decorre do jusnaturalismo, que entende os direitos do indivíduo como inalienáveis e sagrados. Ela passa a inspirar os valores básicos das sociedades, de acordo com uma evolução que começa com o individualismo de Locke e a 173 Cf. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. SP: Perspectiva, 1994, p. 11. 174 ELIADE, 1994, p.25 175 Cf. ORTIZ, 1988, p. 262 62

idéia da vontade geral de Rousseau; passa pelo liberalismo econômico, origem do expansionismo capitalista e colonial 176 ; e desemboca na idéia da identidade, fundada em fatores irracionais, como o afeto, a história, a língua, a religião. Os românticos contra-iluministas, como Herder 177 , encontram no gênio da Nação a idéia da identidade, de acordo com os tempos matriciais. As invasões napoleônicas despertam as nações invadidas para a consciência da necessidade de uma libertação revolucionária, como Fichte preconiza 178 . Paradoxalmente, o Romantismo, vocacionado para acolher no seu seio a conflitualidade resultante da tensão de opostos, vai tecer toda a sua produção á volta do individualismo do herói e do nacionalismo identitário da problemática central que anima, inspira e dá suporte a essa produção. Em Portugal, Garrett e Herculano são os pioneiros desta orientação, pautando por ela a sua obra literária. Garrett, no romance, escolhe, n’O Arco de Sant’Ana, a luta paradigmática dos mesteirais da cidade do Porto contra o senhorio feudal do seu bispo, luta apoiada pelo rei D. Pedro I. Trata-se de um assunto inspirado no cronista Fernão Lopes, mas revelador de uma mensagem liberal tão cara ao Romantismo, além disso, num cenário simbólico de tal mensagem: o chamado cerco do Porto. No romance Viagens na Minha Terra, a dupla cervantina Quixote/Sancho Pança é escolhida para equacionar a tensão filosófica e cultural entre idealismo e materialismo, numa preocupação conciliatória entre passado clerical e absolutista e futuro burguês e liberal. Portugal, após a vitória de Évora-Monte, em 1834, optava por alinhar politicamente com o Novo Regime, ganhador na Europa, mas não podia voltar as costas ao patrimônio multissecular da sua identidade. No teatro, para além da bandeira apologista do criador do teatro português, evocada e hasteada em Um Auto de Gil Vicente, em Frei Luís de Sousa, a causa nacionalista ganha grande relevo simbólico com o gesto rebelde de Manuel de Sousa Coutinho ao incendiar a própria casa a fim de impedir os governadores filipinos de se hospedarem nela. Por sua vez, a temática sebastianista, evocada pela filha e pelo escudeiro do fidalgo português, aponta 176 Cf. Eric Hobsbawm, A Questão do Nacionalismo, Lisboa, Terramar, 2000., 177 Cf. Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1999. 178 « Fichte n’avait qu’une idée: travailler à l’affranchissement du peuple allemand. […] Dès que le peuple allemand aurait pris conscience de sa personnalité morale, de son génie national, il ne se risquerait plus d’être absorbé dans une civilisation étrangère ; il puiserait dans sa foi en lui-même l’énergie qui, un jour ou l’autre, lui permettrait de recouvrer son indépendance» (Xavier Léon, Fichte et son Temps, Paris, Armand Colin, 1959, II vol. , p. 57). 63

idéia da vontade geral de Rousseau; passa pelo liberalismo econômico, origem do<br />

expansionismo capitalista e colonial 176 ; e desemboca na idéia da identidade, fundada em<br />

fatores irracionais, como o afeto, a história, a língua, a religião.<br />

Os românticos contra-iluministas, como Herder 177 , encontram no gênio da Nação a<br />

idéia da identidade, de acordo com os tempos matriciais. As invasões napoleônicas<br />

despertam as nações invadidas para a consciência da necessidade de uma libertação<br />

revolucionária, como Fichte preconiza 178 . Paradoxalmente, o Romantismo, vocacionado<br />

para acolher no seu seio a conflitualidade resultante da tensão de opostos, vai tecer toda a<br />

sua produção á volta do individualismo do herói e do nacionalismo identitário da<br />

problemática central que anima, inspira e dá suporte a essa produção.<br />

Em Portugal, Garrett e Herculano são os pioneiros desta orientação, pautando por ela a<br />

sua obra literária.<br />

Garrett, no romance, escolhe, n’O Arco de Sant’Ana, a luta paradigmática dos<br />

mesteirais da cidade do Porto contra o senhorio feudal do seu bispo, luta apoiada pelo rei D.<br />

Pedro I. Trata-se de um assunto inspirado no cronista Fernão Lopes, mas revelador de uma<br />

mensagem liberal tão cara ao Romantismo, além disso, num cenário simbólico de tal<br />

mensagem: o chamado cerco do Porto. No romance Viagens na Minha Terra, a dupla<br />

cervantina Quixote/Sancho Pança é escolhida para equacionar a tensão filosófica e cultural<br />

entre idealismo e materialismo, numa preocupação conciliatória entre passado clerical e<br />

absolutista e futuro burguês e liberal. Portugal, após a vitória de Évora-Monte, em 1834,<br />

optava por alinhar politicamente com o Novo Regime, ganhador na Europa, mas não podia<br />

voltar as costas ao patrimônio multissecular da sua identidade.<br />

No teatro, para além da bandeira apologista do criador do teatro português, evocada e<br />

hasteada em Um Auto de Gil Vicente, em Frei Luís de Sousa, a causa nacionalista ganha<br />

grande relevo simbólico com o gesto rebelde de Manuel de Sousa Coutinho ao incendiar a<br />

própria casa a fim de impedir os governadores filipinos de se hospedarem nela. Por sua vez,<br />

a temática sebastianista, evocada pela filha e pelo escudeiro do fidalgo português, aponta<br />

176 Cf. Eric Hobsbawm, A Questão do Nacionalismo, Lisboa, Terramar, 2000.,<br />

177 Cf. Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1999.<br />

178 « Fichte n’avait qu’une idée: travailler à l’affranchissement du peuple allemand. […] Dès que le peuple<br />

allemand aurait pris conscience de sa personnalité morale, de son génie national, il ne se risquerait plus d’être<br />

absorbé dans une civilisation étrangère ; il puiserait dans sa foi en lui-même l’énergie qui, un jour ou l’autre,<br />

lui permettrait de recouvrer son indépendance» (Xavier Léon, Fichte et son Temps, Paris, Armand Colin,<br />

1959, II vol. , p. 57).<br />

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