Iracema - Repositório Institucional UFC

necessidade mecenática do literato profissional, tal exaltação individual era alheia à
tradição romana, centrada nos valores da coletividade e receosa do germe perigoso,
importado da cultura grega, particularmente helenística, voltada para a quase divinização
dos monarcas 171 . É também este o sentido coletivista que Cícero extrai do poema de
Ênio 172 . É possível que Virgílio tenha sido sensível a esta tradição coletivista, evitando a
tentação do panegírico. Ao atribuir ao poeta o papel de uates, voz pública, de tipo profético,
capaz de interpretar os interesses e sentimentos da comunidade romana, o autor da Eneida
recuperava o sentido profundo do epos arcaico: uma narrativa plena de grandes exemplos
de realização do sistema de valores arquetípicos do código cultural da sociedade romana e
dos fundamentos da sua identidade própria.
A inteligência de Augusto permitiu-lhe ir ao encontro das expectativas comuns e
patrióticas, dilaceradas pelas guerras civis, construindo a imagem de um príncipe cuja
vitória não era a ditadura de um chefe militar, mas a restauração da res publica, o resgate
das tradições nacionais e a prosperidade do Estado.
Virgílio compreendeu que a história de Enéias continha todos os ingredientes
necessários para corresponder às expectativas nacionais, dando, com a solidez da distância
mítico-histórica e fundacional, a base mais sólida do sentir comum, sem controvérsias e
interpretações facciosas: o mito da fundação da cidade, valorizado por uma tradição greco-
latina consolidada, que continha as gestas dos antepassados míticos do Príncipe.
171 Catão, o Censor, o mais empenhado defensor da tradição, decidira ocultar os nomes dos protagonistas das
grandes empresas militares na sua obra Origines, de modo a permitir que elas não ofuscassem a expressão
celebrativa da sociedade inteira.
172 “Através destes louvores, não é apenas honrado aquele que é objeto de tais louvores, mas o nome do povo
romano no seu todo” (Cícero, Pro Archia, 22).
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