Iracema - Repositório Institucional UFC
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oracular. Por meio do sofrimento (pathos/labor), Enéias aprende que a sua missão não é<br />
conseguir um refúgio para um grupo de expatriados vencidos (Butroto, a nova terra de<br />
Heleno e de Andrômaca, que Enéias visita com emoção e tristeza, é uma pálida imagem da<br />
pátria troiana destruída), mas o da fundação de uma nova cidade que o Destino lhe<br />
proporciona, abrindo-lhe um futuro duro e glorioso, ao mesmo tempo. Esta nova cidade tem<br />
origens troianas, mas é diferente de Tróia, já que é projetada para as vitórias e para o poder.<br />
Os próprios habitantes do Lácio recebem avisos e profecias. Uma série de prodígios parece<br />
indicar a oposição dos deuses ao casamento de Turno e Lavínia, filha do rei Latino e da<br />
rainha Amata: num cenário carregado de mistério e de temor religiosos, Latino consulta o<br />
oráculo de seu pai Fauno; este lhe revela que Lavínia não terá um esposo indígena, mas um<br />
estrangeiro, e dessa união nascerá uma estirpe de dominadores do mundo.<br />
A segunda parte do poema conta o conflito resultante da oposição de forças divinas<br />
e humanas ao desígnio do Destino. Juno retarda o seu cumprimento, desencadeando as<br />
forças da discórdia e da guerra, representadas na potência infernal da fúria Alecto. Podemos<br />
ver o sentido augustano neste conflito: ao vencer o caos das guerras civis, Augusto restituía<br />
ao mundo a paz e a ordem, realizando em toda a plenitude a missão providencial de Roma,<br />
começada com a vitória de Enéias.<br />
Embora o furor ocupe um lugar importante no poema, encontram-se também<br />
personagens de grande virtude e de nobres sentimentos (Lauso, Camila), heróis valorosos e<br />
corajosos, ainda que impulsivos e irracionais (Turno). Até personagens mais sombrias,<br />
como a rainha Amata (com a sua sede de poder e uma sensibilidade indomável), ou o ímpio<br />
Mezêncio (o tirano de crueldade indescritível, que desprezava os deuses) são dotadas de<br />
certa grandeza, manifestada na dignidade com que sofrem a sua dor e enfrentam a morte.<br />
Se, do ponto de vista do Destino, os acontecimentos se encaminham para a justiça e<br />
a grandeza, ao contrário, o ponto de vista das personagens é constituído pela dor, pelas<br />
esperanças destruídas, pelos sentimentos magoados e feridos. Em vez de se deter a<br />
contemplar o desfile triunfal dos heróis, Virgílio prefere comover-se com esse sofrimento<br />
causado pela realização desse grande projeto. Por isso, o leitor da Eneida é, por vezes,<br />
levado a duvidar do desígnio providencial da história: a dor e a injustiça do mundo são<br />
contempladas com amargura, como se não houvesse compensações futuras. Este sentido<br />
trágico da história e da vida humana é predominante no c. IV, com a paixão e a trágica<br />
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