Iracema - Repositório Institucional UFC
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A personagem Dido nasceu, pois, desta complexa sobreposição literária: de um<br />
lado, o pathos, a finura psicológica com que Apolônio de Rodes narrara a história de<br />
Medéia 161 e Catulo a de Ariadne 162 ; de outro lado, a grandeza inquietante da rainha ofendida<br />
e humilhada, a nobreza e a dignidade de uma heroína trágica, como a Medéia, de Eurípides.<br />
Assim, depois da última tentativa de conquistar Enéias, a rainha isola-se na solidão<br />
desesperada que a levará à morte. Suas súplicas de amor não são atendidas pelo amante,<br />
pois “os destinos se opõem e um deus fecha os ouvidos do herói” (IV, 480). Este, recebe<br />
ordens do próprio Júpiter para partir. Não é de livre e espontânea vontade que o<br />
“venerável” herói deixa a “infortunada amante”.<br />
A narrativa mostra-nos o percurso psicológico e emotivo de Dido, desde a idéia do<br />
suicídio até à sua realização, numa alucinação mental que a arrasta para a morte: aparição<br />
de espectros, presságios, recordações, profecias e sonhos obsessivos. “O feroz Enéias excita<br />
seu delírio mesmo quando ela se entrega ao sono:/ ela se vê sempre só, abandonada, ir sem<br />
companhia/ por longas estradas em busca dos tírios, por terras desertas./ Como Penteu, fora<br />
de si, vê aparecerem-lhe as tropas das Eumênides,/ duplo sol, e as duas Tebas lhe<br />
aparecem;/ ou o filho de Agamenão, Orestes,/ num papel tantas vezes representado no<br />
teatro,/ quando foge da mãe armada de tochas e de negras serpentes,/ e quando as feroses<br />
deusas da Vingança/ estão sentadas sobre o limiar de templo” 163 .<br />
Se Enéias é prisioneiro do Destino, Dido é prisioneira da irracionalidade da paixão<br />
amorosa. Virgílio mostra a separação inevitável das duas almas, cada qual fechada na<br />
concha das respectivas razões, incomunicáveis entre si, numa profunda e irreversível<br />
mágoa. Nem no Hades é possível o restabelecimento da sua comunicação. Virando as<br />
costas ao antigo amante, Dido “mantinha os olhos fixos no chão/ e o rosto impassível às<br />
suas palavras,/ como se fosse mais dura que a pedra ou a rocha” 164 .<br />
160 Ibid., 250-254<br />
161 Medéia é a filha de Eetes, rei da Cólquida (Mar Negro), que detinha o Velo de Ouro. Jasão é impelido por<br />
seu tio, Pélias, que usurpara o trono ao irmão, a procurar na Nau Argos, primeiro navio da história, este Velo<br />
de Ouro. Na Cólquida, Medéia enamora-se de Jasão. Com as suas artes mágicas, consegue vencer as provas e<br />
apoderar-se do Velo, que era guardado por um dragão. Apesar da oposição dos companheiros, Jasão traz<br />
consigo de volta à Grécia a sua apaixonada. No entanto, acaba por trocar Medéia pela futura rainha de<br />
Corinto, levando a atraiçoada ao infanticídio dos filhos comuns dela e de Jasão.<br />
162 Catulo, no Carme 64, sobre as núpcias de Peleu e Tétis, introduz, a partir da écphrasis do leito nupcial do<br />
palácio de Peleu, o episódio do abandono de Ariadne, filha do rei Minos, de Creta, por Teseu, na ilha de<br />
Náxos, após esta o ter ajudado a libertar-se do labirinto.<br />
163 Ibid., 508-517<br />
164 Aen., VI, 469-471<br />
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