Iracema - Repositório Institucional UFC
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escapam ao conflito, envolvendo-se numa theomachê 13 . Titãs 14 e Gigantes 15 rebelam-se<br />
contra Zeus pela posse do Olimpo. Depois, os diferentes deuses tomam partido por um dos<br />
lados do conflito humano 16 . Deste modo, a epopéia, hermenêutica heróica por excelência,<br />
espelha o paradigma cosmológico da aventura humana.<br />
A ambigüidade do herói grego patenteia-se num conjunto de características<br />
antagônicas: a força e beleza de uns (Héracles, Aquiles, Orestes) contrasta com o aspecto<br />
teriomórfico ou excêntrico de outros (Licáon, “o lobo”; Cécrope, o andrógino; Tirésias, o<br />
transsexual). O seu excesso sexual (violação, incesto), a violentação sacrílega de deusas<br />
(Órion, Actéon, Íxion), reveladora da sua hybris, são traços de uma época primordial que os<br />
fazem semelhantes aos deuses: são fundadores de cidades; inventores de leis, regras sociais<br />
e ofícios; são associados a ritos de iniciação e aos mistérios, são escolhidos como gênios<br />
tutelares que protegem contra invasões, epidemias e outros flagelos, tornam-se imortais,<br />
sendo transportados às ilhas dos Bem-Aventurados ou ao Olimpo. O herói homérico não<br />
foge a este paradigma: Agamêmnon é o chefe todo-poderoso dos Aqueus, mas também o<br />
ávido instigador da cólera de Aquiles, que põe os Gregos em perigo e causa a morte de<br />
Pátroclo; Ulisses é, com Epeu, o astuto inventor do ardil do cavalo que conduzirá à ruína<br />
Tróia, o corajoso e sábio viajante que ultrapassa os perigos do mar, das sereias, de<br />
Polifemo, mas também o desencadeador da cólera de Possídon e os seus homens os<br />
sacrificadores dos bois sagrados de Hélio; lamenta com saudade o afastamento de Ítaca e<br />
Penélope, mas não consegue facilmente desenvencilhar-se dos amores de Circe e de<br />
Calipso. A lição de Homero, segundo Mircea Eliade, é a capacidade de assumir e<br />
ultrapassar a finitude e a precariedade da vida humana: “viver totalmente, mas com<br />
nobreza, no presente. [...] Forçado que foi pelos deuses a não ultrapassar os seus limites, o<br />
homem acabou por realizar a perfeição e, portanto, a sacralidade da condição humana.<br />
Redescobriu, pois, dando-lhe forma definitiva, o sentido religioso da ‘alegria de viver’, o<br />
valor sacramental da experiência erótica e da beleza do corpo humano, a função religiosa<br />
de todo o júbilo coletivo organizado” 17 .<br />
13 disputa entre os deuses.<br />
14 Hesíodo, Teogonia, 617-735<br />
15 Píndaro, Nemeias, I, 67<br />
16 Ilíada, XI, 11-14<br />
17 Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas, trad. port. Porto, Rés-Editora, s.d., T. I, p. 238.<br />
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