Iracema - Repositório Institucional UFC
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Em segundo lugar, Enéias é um forasteiro (xénos); <strong>Iracema</strong> é indígena. A iniciativa<br />
fundacional de Roma vem de fora; a do Ceará vem de dentro, mais do que de fora. Mera<br />
questão de focalização ou algo de mais profundo na simbologia de Alencar? Pensamos que<br />
não é indiferente a escolha da protagonista ameríndia para título do romance.<br />
Em terceiro lugar, o ato fundacional, na Eneida, resulta de um pacto entre o<br />
representante dos Troianos (Enéias) e o rei Latino, tendo como objeto concreto de aliança a<br />
mão de Lavínia. Em <strong>Iracema</strong>, o ato fundacional não resulta de um pacto político, mas de<br />
uma união natural entre Martim e <strong>Iracema</strong>, por iniciativa desta.<br />
Em quarto lugar, o fruto da união de Enéias e Lavínia, Sílvio, representa a garantia<br />
da eficácia da aliança estabelecida entre os dois povos, tendo em vista o nascimento de um<br />
novo povo, Roma. Iulo, ou Ascânio, está, na base da própria gens Iulia, a família de Gaio<br />
Júlio César e do próprio Otávio Augusto, o novo Iulo. De modo análogo, o fruto da união<br />
entre Martim e <strong>Iracema</strong> estabelece a prova concreta do nascimento do povo cearense.<br />
Em quinto lugar, o ato fundacional, tanto na Eneida como em <strong>Iracema</strong>, depende de<br />
uma união matrimonial entre o herói masculino e o feminino, mas de proveniências<br />
opostas: um estrangeiro e um indígena. Na Eneida, porém, o protagonismo recai sobre o<br />
herói estrangeiro, ao contrário de <strong>Iracema</strong>, com as respectivas implicações culturais, como<br />
já observamos.<br />
Em sexto lugar, tal protagonismo, em qualquer das obras em presença, ofusca, de<br />
modo mais ou menos intenso, o papel do outro elemento: Lavínia não existe como ser<br />
autônomo e individual; Martim passa à margem do projeto simbólico de <strong>Iracema</strong>,<br />
distraindo-se no envolvimento guerreiro e abandonando a companheira.<br />
Em sétimo lugar, a vitória de Enéias sobre Turno, rei dos Rútulos, constitui não<br />
apenas uma condição de acesso à mão de Lavínia, mas a própria condição da qual depende<br />
a realização do seu projeto fundacional. À união entre Rútulos e Latinos a História mítica<br />
prefere a de Troianos e Latinos, da qual resultará Roma. Em <strong>Iracema</strong>, o povo brasileiro não<br />
resulta de uma vitória militar, mas simplesmente de uma união sexual, geracional. No<br />
entanto, o empenho de Martim na vitória dos Pitiguaras sobre os Tabajaras deriva da<br />
aliança destes com os Franceses, o “branco tapuia”.<br />
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Em oitavo lugar, em ambas as obras, o ato fundacional deriva da miscigenação. Na<br />
Eneida, resulta de um pacto político-militar; em <strong>Iracema</strong>, é fruto de uma escolha livre da