Iracema - Repositório Institucional UFC
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subversão dos códigos do domínio colonial ante litteram. Esta imposição cultural dos<br />
vencidos já se nota no campo de Turno, fechado a tudo o que fosse diferente dos tais<br />
valores da austeridade que viriam a constituir apanágio do mos maiorum dos Romanos. Em<br />
IX, 598 ss, Numano Rémulo desafia os Troianos no seu acampamento, pondo a ridículo a<br />
brandura oriental e o seu luxo.<br />
Em <strong>Iracema</strong>, a inculturação de Martim está bem expressa no ritual do coatiá 527 . Por<br />
sua vez, Poti, no último capítulo, também é submetido a um ritual de inculturação, através<br />
do sacramento do baptismo 528 . No entanto, o narrador, logo no capítulo I, previne o leitor<br />
quanto à preservação cultural do povo em processo de miscigenação e inculturação: “Um<br />
jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano” 529 .<br />
3.12 A lei sagrada da hospitalidade<br />
Todos os povos que se prezam de estar abertos à comunicação civilizacional<br />
tiveram e têm como sagrada a prática da hospitalidade.<br />
O exemplo mais expressivo desta prática é-nos transmitido na Ilíada quando, em<br />
plena guerra, dois contendores inimigos, Glauco e Diomedes, ao reconhecerem que seus<br />
antepassados tinham sido unidos pelos laços do acolhimento hospitaleiro, num gesto<br />
heróico sem par, não apenas desistem de se defrontar diretamente, mas resolvem trocar as<br />
respectivas armas. Nada aparentemente de extraordinário, a não ser quando o narrador faz<br />
notar de modo bastante exato o abismo do valor econômico que separa os objetos trocados:<br />
o bronze pelo ouro 530 . Mais importante do que o valor econômico é a supremacia dos<br />
valores espirituais, representada na amizade e expressa no gesto da hospitalidade.<br />
125<br />
527 Cf. cap. XXIV.<br />
528 Cf. cap. XXXIII.<br />
529 Cap. I, p. 11.<br />
530 “Assim falou e regozijou-se Diomedes, notável pelo seu grito bélico. / Espetou a lança no solo ubérrimo, /<br />
e dirigiu-se com palavras doces àquele pastor dos povos: / “Ah! Mas então tu és há muito hóspede da casa<br />
paterna!... […] Afastemos as lanças um do outro no ardor da refrega. / Há muitos Troianos ilustres para eu<br />
matar, / se o deus mo conceder e eu os atingir na corrida / e muitos são os Aqueus para tu aniquilares, se<br />
puderes; / troquemos, pois, as armas, a fim de que estes saibam / que nos sentimos honrados com a<br />
hospitalidade dos nossos maiores.” / Depois de assim falarem, saltaram dos seus cavalos, / apertaram as mãos<br />
e juraram lealdade. / Decerto que então Zeus Crónida tirou o senso a Glauco, / ele que trocou as armas com<br />
Diomedes, / dando o ouro pelo bronze, o valor de cem bois por nove apenas” (Ilíada, VI, 212-215; 226-236).