20.06.2013 Views

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Por Davi Fazzolari<br />

PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO<br />

O ALIENISTA<br />

MACHADO DE ASSIS<br />

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:<br />

1. Os controversos filhos dos personagens machadianos<br />

(Leitura 1)<br />

I. Uma hipótese para o progresso científico<br />

II. O filho da dúvida nacional<br />

III. “Melhor não tê-los?”<br />

2. Literatura e ciência: Stultifera Navis (Leitura 2)<br />

I. Os caminhos e os veículos<br />

II. “Para o pobre, os lugares são mais longe”<br />

3. A loucura (Leitura 3)<br />

I. O louco<br />

II. O espaço do delírio<br />

III. Os loucos são os outros<br />

LEITURA 1<br />

OS CONTROVERSOS FILHOS DOS PERSONAGENS MACHADIANOS<br />

Na obra machadiana, mais do que os filhos, o ter ou não<br />

ter filhos torna-se sempre um tema instigante e motivador.<br />

Em O alienista, logo no início, a hipótese levantada pelo<br />

narrador para o mergulho profundo do protagonista Simão<br />

Bacamarte na ciência deve-se a uma frustração também<br />

profunda, pois, apesar da busca, não conseguiu ter filhos.<br />

1


I. UMA HIPóTESE PARA O PROGRESSO CIENTíFICO<br />

Leia o trecho a seguir e responda às questões para iniciar<br />

suas reflexões sobre o tema.<br />

TEXTO 1<br />

O ALIENISTA (EXCERTO)<br />

Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo<br />

e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as <strong>leitura</strong>s,<br />

e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos<br />

quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas,<br />

senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de<br />

fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador<br />

de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se<br />

de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe<br />

que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas<br />

de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente,<br />

tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim<br />

apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além<br />

dessas prendas – únicas dignas de preocupação de um sábio,<br />

D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo,<br />

agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir<br />

os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e<br />

vulgar da consorte.<br />

D. Evarista mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte,<br />

não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural<br />

da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três<br />

anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez<br />

um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores<br />

árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas<br />

às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar<br />

à mulher um regime alimentício especial. A ilustre<br />

dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de<br />

Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência<br />

– explicável, mas inqualificável – devemos a total<br />

extinção da dinastia dos Bacamartes.<br />

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas;<br />

o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e<br />

na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta<br />

lhe chamou especialmente a atenção – o recanto psíquico, o<br />

exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no<br />

reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada,<br />

ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu<br />

que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia<br />

cobrir-se de “louros imarcescíveis” – expressão usada por ele<br />

mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente<br />

era modesto, segundo convém aos sabedores.<br />

– A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna<br />

do médico.<br />

ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: <strong>Saraiva</strong>, 2007 (Clássicos <strong>Saraiva</strong>).<br />

1. O que levou Simão Bacamarte a casar-se com D. Evarista?<br />

2. Quais são as “esperanças de Dr. Bacamarte” em “D. Evarista<br />

mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte”?<br />

3. Qual é a primeira reação de Simão Bacamarte ante sua<br />

frustração?<br />

4. Como, afinal, é concluído o episódio e quais são suas conseqüências?<br />

5. Levante uma hipótese para a afirmação de Bacamarte que<br />

se lê no último trecho do texto 1: “A saúde da alma [...] é a<br />

ocupação mais digna do médico”.<br />

6. Machado de Assis escreve numa época em que prevalece a<br />

concepção filosófica do Cientificismo. Como você acha que a<br />

“Ciência” é tratada pelo autor ao longo do conto O alienista?<br />

2


II. O FILHO DA DúVIDA NACIONAL<br />

Uma outra obra de Machado de Assis, Dom Casmurro<br />

– já publicada nos Clássicos <strong>Saraiva</strong> –, protagonizará uma<br />

“charmosa” dúvida nacional. Afinal, o filho da famosa Capitu<br />

era ou não de seu marido e narrador do romance, Bentinho?<br />

A seqüência que reproduzimos a seguir talvez seja a mais<br />

dramática do romance. Repleta de sutilezas, exige cuidados<br />

especiais por parte do leitor. Leia com atenção e depois responda<br />

às questões propostas.<br />

TEXTO 2<br />

DOM CASMURRO (EXCERTOS)<br />

CXXXVI<br />

A XíCARA DE CAFé<br />

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e<br />

ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a minha história<br />

romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e<br />

releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um<br />

tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do<br />

célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e<br />

para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo<br />

nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem<br />

dele, assim como ele precisara dos sentimentos do filósofo,<br />

para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância<br />

é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que<br />

se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muito<br />

mais gente poria termos aos seus dias, se pudesse achar<br />

essa espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto,<br />

querendo fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me<br />

bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de<br />

Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a da cor<br />

das calças que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente<br />

no seu lugar, antes de beber o veneno.<br />

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui<br />

para a mesa onde ficara a xícara. Já a casa estava em rumores;<br />

era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir<br />

o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive<br />

ânimo de despejar a substância na xícara, e comecei a mexer<br />

o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente;<br />

o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da<br />

manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me<br />

ia faltando; lá estava ele, com a mão nas costas da cadeira, a<br />

olhar ao longe...<br />

– Acabemos com isto, pensei.<br />

Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar<br />

que Capitu e o filho saíssem para a missa; beberia depois;<br />

era melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete.<br />

Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a<br />

mim bradando:<br />

– Papai! papai!<br />

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por<br />

havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trágico.<br />

Efetivamente a figura do pequeno fez-me recuar até dar<br />

de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se<br />

na ponta dos pés, como querendo subir e dar-me o<br />

beijo do costume; e repetia, puxando-me:<br />

– Papai! papai!<br />

CXXXVII<br />

SEGUNDO IMPULSO<br />

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não<br />

estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro<br />

ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara,<br />

mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a<br />

vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa<br />

dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora<br />

assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu<br />

segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a<br />

Ezequiel se já tomara café.<br />

– Já, papai; vou à missa com mamãe.<br />

– Toma outra xícara, meia xícara só.<br />

– E papai?<br />

– Eu mando vir mais; anda, bebe!<br />

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo<br />

que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela<br />

abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, por-<br />

3


que o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez<br />

recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar<br />

doidamente a cabeça do menino.<br />

– Papai! papai! exclamava Ezequiel.<br />

– Não, não, eu não sou teu pai!<br />

CXXXVIII<br />

CAPITU qUE ENTRA<br />

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu<br />

diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro, e<br />

é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho<br />

iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar<br />

seco e breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para<br />

ela. Ela olhava sempre, esperando.<br />

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus<br />

olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles<br />

silêncios, a que, sem mentir, se pode chamar de um século,<br />

tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu<br />

recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me<br />

que lhe explicasse...<br />

– Não há que explicar, disse eu.<br />

– Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de<br />

Ezequiel. Que houve entre vocês?<br />

– Não ouviu o que lhe disse?<br />

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras.<br />

Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessá-lo<br />

seria perder a esperança do silêncio e da reconciliação; por<br />

isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem<br />

lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final<br />

do capítulo.<br />

– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.<br />

– Que não é meu filho.<br />

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação<br />

que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar<br />

as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Já ouvi<br />

que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio,<br />

tanto mais que a pessoa que me contou isto acabava de perder<br />

uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha<br />

era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não<br />

queria duvidar dela. Assim que, sem atender à linguagem de<br />

Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a coisa nenhuma,<br />

repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que<br />

a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:<br />

– Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera;<br />

entretanto, você que era tão cioso dos menores gestos,<br />

nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que<br />

lhe deu tal idéia? Diga – continuou vendo que eu não respondia<br />

nada –, diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir<br />

o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal<br />

convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui,<br />

mas diga tudo primeiro.<br />

– Há coisas que se não dizem.<br />

– Que se não dizem só metade; mas já que disse metade,<br />

diga tudo.<br />

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia<br />

estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe<br />

ainda uma vez que não teimasse.<br />

– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda,<br />

se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a<br />

nossa separação: não posso mais!<br />

– A separação é coisa decidida, redargüi pegando-lhe na<br />

proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras<br />

ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez,<br />

porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer,<br />

e é tudo.<br />

Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar<br />

sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de<br />

um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em<br />

um tom juntamente irônico e melancólico:<br />

– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos<br />

seus ciúmes!<br />

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que<br />

suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que<br />

a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas<br />

a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e<br />

murmurou:<br />

– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A<br />

vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do<br />

4


seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos<br />

nisto; não nos fica bem dizer mais nada.<br />

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: <strong>Saraiva</strong>, 2007 (Clássicos <strong>Saraiva</strong>).<br />

7. “Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras<br />

do final do capítulo.” A que palavras refere-se o narrador,<br />

nesse trecho?<br />

8. O triângulo amoroso sugerido pelo narrador-personagem<br />

está estabelecido entre Capitu, Bentinho (o próprio<br />

narrador) e Escobar, um amigo do casal. Contudo, um outro<br />

personagem é citado pelo narrador: Desdêmona. Elabore<br />

uma breve pesquisa e explique por que esse personagem<br />

foi citada no texto 2.<br />

9. O conflito, no texto 1, é gerado pela ausência do filho, enquanto<br />

no texto 2 é gerado pela presença de um filho. Aproxime<br />

os textos pelas conseqüências dos conflitos.<br />

10. Quem, em sua opinião, no texto 2, seria um “belo caso”<br />

para o Dr. Simão Bacamarte? Justifique sua escolha.<br />

III. “MELHOR NÃO Tê-LOS?”<br />

De uma maneira muito diferente da que lemos nas<br />

deduções do Dom Casmurro, a literatura brasileira, já no<br />

século XX, pela voz de um de seus mais populares poetas<br />

– Vinicius de Moraes – vai insistir no tema: Filhos: ter ou<br />

não ter, eis a questão.<br />

TEXTO 3<br />

POEMA ENJOADINHO<br />

Filhos... Filhos?<br />

Melhor não tê-los!<br />

Mas se não os temos<br />

Como sabê-lo?<br />

Se não os temos<br />

Que de consulta<br />

Quanto silêncio<br />

Como os queremos!<br />

Banho de mar<br />

Diz que é um porrete...<br />

Cônjuge voa<br />

Transpõe o espaço<br />

Engole água<br />

Fica salgada<br />

Se iodifica<br />

Depois, que boa<br />

Que morenaço<br />

Que a esposa fica!<br />

Resultado: filho.<br />

E então começa<br />

A aporrinhação:<br />

Cocô está branco<br />

Cocô está preto<br />

Bebe amoníaco<br />

Comeu botão.<br />

Filhos? Filhos<br />

Melhor não tê-los<br />

Noites de insônia<br />

Cãs prematuras<br />

Prantos convulsos<br />

Meu Deus, salvai-o!<br />

Filhos são o demo<br />

Melhor não tê-los...<br />

Mas se não os temos<br />

Como sabê-los?<br />

Como saber<br />

5


Que macieza<br />

Nos seus cabelos<br />

Que cheiro morno<br />

Na sua carne<br />

Que gosto doce<br />

Na sua boca!<br />

Chupam gilete<br />

Bebem shampoo<br />

Ateiam fogo<br />

No quarteirão<br />

Porém, que coisa<br />

Que coisa louca<br />

Que coisa linda<br />

Que os filhos são!<br />

MORAES, Vinicius. Antologia poética. Rio de Janeiro:<br />

<strong>Editora</strong> do Autor, 1960. p. 195.<br />

11. Extraia do poema o conflito apresentado pelo eu-lírico.<br />

12. Há uma estratégia que reforça o conflito exposto. Tratase<br />

do uso contínuo da antítese que é a figura que contrapõe<br />

palavras de sentidos opostos. Destaque-as do poema de Vinicius<br />

de Moraes.<br />

13. A que tipo de loucura o verso “Que coisa louca”, no final<br />

do poema, refere-se? Filhos desse tipo seriam “belos casos”<br />

para o Dr. Bacamarte?<br />

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, outro importante<br />

romance de Machado de Assis, o protagonista parece responder<br />

antecipadamente ao modo como Vinicius de Moraes<br />

veria o tema.<br />

TEXTO 4<br />

MEMóRIAS PóSTUMAS DE BRÁS CUBAS (TRECHO FINAL)<br />

CLX<br />

DAS NEGATIVAS<br />

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram<br />

os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal<br />

deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo,<br />

por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto,<br />

tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da<br />

ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração<br />

do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais<br />

eternamente hipocondríacos.<br />

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei<br />

a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui<br />

califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado<br />

dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o<br />

pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte<br />

de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba.<br />

Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará<br />

que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente<br />

que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao<br />

chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um<br />

pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo<br />

de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma<br />

criatura o legado da nossa miséria.<br />

ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas.<br />

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. I.<br />

14. Por que é possível afirmar que Brás Cubas responde ao<br />

conflito exposto pelo eu-lírico do texto 3?<br />

15. Como o narrador do texto 4 vê o fato de não ter tido filhos?<br />

6


LEITURA 2<br />

LITERATURA E CIêNCIA: STULTIFERA NAVIS<br />

Se é preciso separar os insanos dos sanos, um meio se faz<br />

necessário. A literatura, em seus olhares oblíquos, nem sempre<br />

trata do tema central de modo direto. Para pôr o leitor<br />

em cena, muitas vezes, em vez de explorar a pena de morte,<br />

prefere contar a história do carrasco. Assim, para falar da<br />

loucura, prefere abordar, vez ou outra, os caminhos do devaneio<br />

e que levam ao hospício.<br />

Stultifera Navis é uma expressão em latim utilizada pela<br />

filosofia e pela literatura de todos os tempos e que pode ser<br />

traduzida por nave dos insanos ou por barco dos loucos.<br />

I. OS CAMINHOS E OS VEíCULOS<br />

Tema comum à literatura e demais artes, na Idade Média,<br />

a Stultifera Navis encontrou, talvez, já no Humanismo,<br />

seu principal escritor em língua portuguesa. Gil Vicente<br />

escreveu uma seqüência de autos em que faz embarcar<br />

tipos sociais condenados ou absolvidos pelas leis cristãs.<br />

Um personagem que se destaca pelo evidente transtorno<br />

é Joane, o Parvo. A cena que destacamos a seguir descreve<br />

o momento em que, tendo morrido, Joane, o Parvo, chega<br />

a um lugar em que toda alma é recolhida por um dos dois<br />

barqueiros ali postados. Um levará os “pecadores” para o<br />

inferno, o outro, para o paraíso.<br />

TEXTO 5<br />

AUTO DA BARCA DO INFERNO (EXCERTO)<br />

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:<br />

PARVO – Hou daquesta!<br />

DIABO – Quem é?<br />

PARVO – Eu soo.<br />

É esta a naviarra nossa?<br />

DIABO – De quem?<br />

PARVO – Dos tolos.<br />

DIABO – Vossa.<br />

Entra!<br />

PARVO – De pulo ou de voo?<br />

Hou! Pesar de meu avô!<br />

Soma, vim adoecer<br />

e fui má-hora morrer,<br />

e nela, pera mi só.<br />

DIABO – De que morreste?<br />

PARVO – De quê?<br />

Samicas de caganeira.<br />

DIABO – De quê?<br />

PARVO – De caga merdeira!<br />

Má rabugem que te dê!<br />

DIABO – Entra! Põe aqui o pé!<br />

PARVO – Houlá! Nom tombe o zambuco!<br />

DIABO – Entra, tolaço eunuco,<br />

que se nos vai a maré!<br />

PARVO – Aguardai, aguardai, houlá!<br />

E onde havemos nós d’ir ter?<br />

DIABO – Ao porto de Lucifer.<br />

PARVO – Ha-á-a...<br />

DIABO – Ó Inferno! Entra cá!<br />

PARVO – Ò Inferno?... Eramá...<br />

Hiu! Hiu! Barca do cornudo.<br />

Pêro Vinagre, beiçudo,<br />

rachador d’Alverca, huhá!<br />

Sapateiro da Candosa!<br />

Antrecosto de carrapato!<br />

Hiu! Hiu! Caga no sapato,<br />

filho da grande aleivosa!<br />

Tua mulher é tinhosa<br />

e há-de parir um sapo<br />

chantado no guardanapo!<br />

Neto de cagarrinhosa!<br />

Furta cebolas! Hiu! Hiu!<br />

Excomungado nas erguejas!<br />

7


Burrela, cornudo sejas!<br />

Toma o pão que te caiu!<br />

A mulher que te fugiu<br />

per’a Ilha da Madeira!<br />

Cornudo atá mangueira,<br />

toma o pão que te caiu!<br />

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!<br />

Dê-dê! Pica nàquela!<br />

Hump! Hump! Caga na vela!<br />

Hio, cabeça de grulha!<br />

Perna de cigarra velha,<br />

caganita de coelha,<br />

pelourinho da Pampulha!<br />

Mija n’agulha, mija n’agulha!<br />

Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz:<br />

PARVO – Hou da barca!<br />

ANJO – Que me queres?<br />

PARVO – Queres-me passar além?<br />

ANJO – Quem és tu?<br />

PARVO – Samica alguém.<br />

ANJO – Tu passarás, se quiseres;<br />

porque em todos teus fazeres<br />

per malícia nom erraste.<br />

Tua simpreza t’abaste<br />

pera gozar dos prazeres.<br />

Espera entanto per i:<br />

veremos se vem alguém,<br />

merecedor de tal bem,<br />

que deva de entrar aqui.<br />

Parvo é uma palavra usada em Portugal, até mesmo em<br />

nossos dias, como sinônimo de bobo ou de louco.<br />

VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno.<br />

São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.<br />

O auto de Gil Vicente, escrito por volta de 1517, evidentemente<br />

não apresenta a língua portuguesa como a concebemos<br />

hoje. Ainda assim, não é tão difícil identificar as três<br />

etapas da cena que selecionamos.<br />

1. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que<br />

Joane procura identificar o barco do Diabo.<br />

2. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que<br />

Joane ofende o Diabo, depois de identificá-lo.<br />

3. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que<br />

Joane conversa com o Anjo.<br />

4. O que o título da peça de Gil Vicente, Auto da barca do<br />

inferno, sugere para descrição da barca?<br />

5. Qual é o destino do Parvo? Quais argumentos determinam<br />

seu embarque?<br />

6. Como você descreveria Joane, o Parvo?<br />

qUESTõES PARA DEBATE<br />

7. Você também absolveria o Parvo? Os argumentos do Anjo<br />

também podem servir para o mundo dos vivos?<br />

8. Em nossos tempos, que tipos sociais estariam, nas concepções<br />

de Gil Vicente, aptos à barca do inferno?<br />

8


II. “PARA O POBRE, OS LUGARES SÃO MAIS LONGE”<br />

A literatura contemporânea brasileira registra uma vasta<br />

quantidade de contos, romances, crônicas e poemas que<br />

abordam a “nave dos insanos” como tema. Um dos casos<br />

mais aclamados está em um livro de Guimarães Rosa, intitulado<br />

Primeiras estórias, no qual, de uma forma ou de outra,<br />

todos os contos abordam comportamentos humanos fora do<br />

convencional e que contrariam as expectativas sociais.<br />

TEXTO 6<br />

SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA<br />

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a<br />

véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no<br />

desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão<br />

comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso,<br />

todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim<br />

repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de<br />

grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que,<br />

com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí<br />

de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar<br />

duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão<br />

passava às 12h45m.<br />

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira<br />

do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar<br />

se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar<br />

com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática<br />

do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o<br />

movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do<br />

curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves,<br />

perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas,<br />

conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de<br />

uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo.<br />

Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.<br />

A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem<br />

debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava<br />

um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências<br />

do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empi-<br />

nava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto.<br />

Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma,<br />

e que a gente não pudesse imaginar direito nem se<br />

acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no<br />

levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena,<br />

longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.<br />

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo,<br />

com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha<br />

debaixo do braço. – “Vai ver se botaram água fresca no carro...”<br />

– ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas<br />

mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – “Eles vêm!...”<br />

Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era<br />

um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande,<br />

uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas:<br />

as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que<br />

era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham<br />

vindo, com o trazer de comitiva.<br />

Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar,<br />

levantando os braços, a cantiga não vigorava certa,<br />

nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A<br />

moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados,<br />

vinha enfeitada de disparates, num aspecto de<br />

admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores,<br />

uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada<br />

em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas,<br />

dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha<br />

só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a<br />

cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas<br />

se assemelhavam.<br />

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado.<br />

Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era<br />

uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a<br />

chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa<br />

daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e<br />

por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje<br />

estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande,<br />

botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e<br />

atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de<br />

dó. Ele respondia: – “Deus vos pague essa despesa...”<br />

9


O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita<br />

paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas<br />

pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não<br />

iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar<br />

tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí,<br />

com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de<br />

chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro<br />

dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem<br />

pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por<br />

forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em<br />

hospícios. O se seguir.<br />

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco,<br />

foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – “Ela não faz<br />

nada, seo Agente...” – a voz de Sorôco estava muito branda:<br />

– “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tornou<br />

a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um<br />

repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas<br />

representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente<br />

viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento<br />

muito antigo – um amor extremoso. E, principiando<br />

baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar,<br />

também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra,<br />

que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não<br />

paravam de cantar.<br />

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham<br />

de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro<br />

de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço,<br />

sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder<br />

entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bemfazer,<br />

na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e<br />

animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes<br />

serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam<br />

também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e<br />

malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua,<br />

os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda<br />

se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em<br />

ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.<br />

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo do<br />

canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um<br />

constado de enormes diversidades desta vida, que podiam<br />

doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum,<br />

mas pelo antes, pelo depois.<br />

Sorôco.<br />

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina<br />

manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou,<br />

e passou, se foi, o de sempre.<br />

Sorôco nâo esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou<br />

de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o<br />

que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado,<br />

embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao<br />

sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo<br />

do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – “O mundo<br />

está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham<br />

as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais<br />

de Sorôco.<br />

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido,<br />

e virou, pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se<br />

estivesse indo para longe, fora de conta.<br />

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que<br />

ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito,<br />

fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir:<br />

quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou<br />

a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga,<br />

mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado.<br />

Cantava continuando.<br />

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A<br />

gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o<br />

que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram<br />

também a acompanhar aquele canto sem razão. E<br />

com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco,<br />

e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase<br />

que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair<br />

mais da memória. Foi um caso sem comparação.<br />

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de<br />

verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.<br />

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.<br />

10


9. Extraia do primeiro e do terceiro parágrafos do conto Sorôco,<br />

sua mãe, sua filha expressões que descrevem o vagão de<br />

trem que receberá os passageiros com destino à Barbacena.<br />

10. Qual das expressões utilizadas por Guimarães Rosa para<br />

descrever o vagão de trem mais aproxima esse meio de<br />

transporte ao que se lê no texto 5, O auto da barca do inferno?<br />

Justifique sua resposta.<br />

11. Quais personagens do título viajarão à Barbacena?<br />

12. Qual é o objetivo da viagem?<br />

13. Extraia o trecho do conto que descreve fisicamente a mãe<br />

e a filha de Sorôco.<br />

14. Destaque, agora, uma expressão que determina o estado<br />

mental de mãe e filha.<br />

15. Que ação das duas “transtornadas” o narrador destaca?<br />

16. O que há nessa ação que denuncia o distúrbio mental?<br />

17. Que outro elemento, além do nítido distúrbio mental das<br />

protagonistas, determina o tipo de viagem a que são submetidas?<br />

Extraia exemplos do próprio texto.<br />

18. Na parte final, especificamente nos três últimos parágrafos,<br />

a narração ganha um novo conflito. Do que se trata?<br />

19. Como se desenvolve o relacionamento das pessoas com<br />

Sorôco durante o enredo?<br />

20. Por que, em sua opinião, Sorôco retoma a cantiga e é<br />

acompanhado pelos demais?<br />

TEXTO 7<br />

O ALIENISTA (TRECHO FINAL)<br />

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida<br />

pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas<br />

tempestades morais que têm desabado sobre o homem.<br />

Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes<br />

enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos<br />

depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave<br />

claridade.<br />

– Sim, há de ser isso, pensou ele.<br />

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos<br />

do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe<br />

que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância,<br />

a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades<br />

enfim que podem formar um acabado mentecapto.<br />

Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era<br />

ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um<br />

conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A<br />

opinião foi afirmativa.<br />

– Nenhum defeito?<br />

– Nenhum, disse em coro a assembléia.<br />

– Nenhum vício?<br />

– Nada.<br />

– Tudo perfeito?<br />

– Tudo.<br />

– Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não<br />

sinto em mim esta superioridade que acabo de ver definir<br />

com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar.<br />

Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa<br />

bondade.<br />

11


A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente<br />

o padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um<br />

observador:<br />

– Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades,<br />

que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda<br />

uma qualidade que realça as outras: – a modéstia.<br />

Era decisivo, Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente<br />

alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato<br />

contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os<br />

amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente<br />

são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o<br />

detiveram um só instante.<br />

– A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina<br />

nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim<br />

mesmo a teoria e a prática.<br />

– Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o<br />

rosto lavado em lágrimas.<br />

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção<br />

científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente<br />

a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se<br />

ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele<br />

morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que<br />

entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegaram ao<br />

ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele,<br />

em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que<br />

correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova,<br />

senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre<br />

Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande<br />

homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita<br />

pompa e rara solenidade.<br />

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: <strong>Saraiva</strong>, 2007 (Clássicos <strong>Saraiva</strong>).<br />

21. De certa forma, o desfecho do conto de Guimarães Rosa<br />

está próximo do final do conto O alienista, de Machado de<br />

Assis. Estabeleça uma comparação entre os contos a partir<br />

das semelhanças e das diferenças. As reflexões a seguir podem<br />

ajudá-lo na formulação da resposta completa.<br />

a) Quem realiza o diagnóstico da “loucura” dos protagonistas,<br />

nos dois contos?<br />

b) Quem decide pelas internações, nos dois contos?<br />

c) De que modo os desfechos revertem os lados da fronteira<br />

entre a loucura e a sanidade?<br />

d) Até que ponto a condição socioeconômica dos personagens<br />

determina o grau de alienação de cada um?<br />

LEITURA 3<br />

A LOUCURA<br />

Os poetas místicos são filósofos doentes,<br />

E os filósofos são homens doidos.<br />

(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)<br />

Tema caro à literatura de todos os tempos e lugares, a loucura<br />

explorada pelo Dr. Simão Bacamarte parece ser apenas<br />

um modo de ver. O que pode ser enquadrado e rotulado<br />

por uns, pode ter diferente <strong>leitura</strong> de outros. Machado<br />

de Assis versou sobre esse tema várias vezes e há, além de<br />

O alienista, evidentemente, um caso exemplar. Trata-se do<br />

personagem Quincas Borba, que surge no romance Memórias<br />

póstumas de Brás Cubas e reaparece em um outro<br />

romance no qual empresta seu próprio nome ao título.<br />

I. O LOUCO<br />

TEXTO 8<br />

O ALIENISTA (EXCERTO)<br />

O padre Lopes confessou que não imaginara a existência<br />

de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável<br />

de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e<br />

vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regular-<br />

12


mente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses,<br />

de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e<br />

suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não<br />

queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses<br />

antes, jogando peteca na rua!<br />

– Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a<br />

verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos<br />

os dias.<br />

– Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar<br />

pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos<br />

conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente<br />

as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não<br />

trabalhe...<br />

– Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do<br />

fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um<br />

instante, mas não é impossível que haja também alguma<br />

razão humana, e puramente científica, e disso trato...<br />

– Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!<br />

Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois<br />

espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão,<br />

rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria<br />

os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição<br />

de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se<br />

o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava<br />

sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao<br />

longo dos corredores à procura do fim do mundo. Era um<br />

desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho.<br />

Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e<br />

saiu-lhes no encalço, achou-os duas horas depois, ao pé de<br />

uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de<br />

crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco.<br />

E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata<br />

dos fugitivos.<br />

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O<br />

mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que<br />

narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma<br />

pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:<br />

– Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada,<br />

a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura,<br />

a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês,<br />

o marquês engendrou o conde, que sou eu.<br />

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e<br />

repetia cinco, seis vezes seguidas:<br />

– Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.<br />

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: <strong>Saraiva</strong>, 2007 (Clássicos <strong>Saraiva</strong>).<br />

1. Leia o trecho com atenção e escolha um dos “loucos” ali relacionados<br />

para apresentar sua história. Elabore uma narrativa<br />

que apresente os motivos e descreva as ações e o comportamento<br />

desse protagonista nascido no conto O alienista como<br />

alguém que contraria a conduta social esperada e, por isso, está<br />

confinado na “casa de orates”, aos cuidados do Dr. Bacamarte.<br />

TEXTO 9<br />

MEMóRIAS PóSTUMAS DE BRÁS CUBAS (EXCERTO)<br />

LIX<br />

UM ENCONTRO<br />

Deve ser um vinho enérgico a política, dizia eu comigo, ao<br />

sair da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que<br />

na rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros,<br />

meu antigo companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente,<br />

a sege seguiu, e eu fui andando... andando... andando...<br />

– Por que não serei eu ministro?<br />

Esta idéia, rútila e grande – trajada ao bizarro, como<br />

diria o padre Bernardes – esta idéia começou uma vertigem<br />

de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a acharlhe<br />

graça. Não pensei mais na tristeza de Lobo Neves; senti a<br />

atração do abismo. Recordei aquele companheiro de colégio,<br />

as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei<br />

o menino com o homem, e perguntei a mim mesmo por que<br />

não seria eu como ele. Entrava então no Passeio Público, e<br />

tudo me parecia dizer a mesma coisa. – Por que não serás<br />

ministro, Cubas? – Cubas, por que não serás ministro de Estado?<br />

Ao ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo<br />

o organismo. Entrei, fui sentar-me num banco, a remoer<br />

13


aquela idéia. E Virgília que havia de gostar! Alguns minutos<br />

depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que me não<br />

pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.<br />

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos,<br />

alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado<br />

ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo<br />

do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca mais larga do<br />

que pediam as carnes – ou, literalmente, os ossos da pessoa; a<br />

cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pêlo<br />

desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam<br />

três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,<br />

enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem<br />

misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de<br />

uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um<br />

colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um<br />

colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.<br />

– Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.<br />

– Não me lembra...<br />

– Sou o Borba, o Quincas Borba.<br />

Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene<br />

de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolação!<br />

Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro<br />

tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e<br />

abastado. Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser.<br />

Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa<br />

barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que<br />

toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos<br />

tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso<br />

não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar.<br />

Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No<br />

fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a<br />

comparação acabrunhava.<br />

– Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor<br />

adivinha tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e<br />

de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de<br />

rei? Que trambolhão! Acabo mendigo...<br />

E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de<br />

indiferença, parecia resignado aos golpes da fortuna, e não<br />

sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassí-<br />

vel. Não havia nele a resignação cristã, nem a conformidade<br />

filosófica. Parece que a miséria lhe calejara a alma, a ponto<br />

de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como<br />

outrora a púrpura, com certa graça indolente.<br />

– Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.<br />

Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. – Não é o primeiro<br />

que me promete alguma coisa, replicou, e não sei se será<br />

o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a<br />

não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e<br />

as casas de pasto não fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de<br />

nada, uns dois vinténs de angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras...<br />

Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Um inferno!<br />

o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não almocei.<br />

– Não?<br />

– Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No<br />

terceiro degrau das escadas de São Francisco, à esquerda de<br />

quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente<br />

fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...<br />

Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis – a menos<br />

limpa – e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes<br />

de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.<br />

– In hoc signo vinces! bradou.<br />

E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e<br />

tão ruidosa expansão, que me produziu um sentimento misto<br />

de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou<br />

sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria,<br />

dizendo que era alegria de pobre que não via, desde muitos<br />

anos, uma nota de cinco mil-réis.<br />

– Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.<br />

– Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.<br />

– Trabalhando, concluí eu.<br />

Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois<br />

disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoa-<br />

do dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.<br />

– Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria,<br />

disse ele, escarranchando-se diante de mim.<br />

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.<br />

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. I.<br />

14


2. Extraia do texto todos os trechos que descrevem Quincas<br />

Borba.<br />

3. De posse da descrição, produza a imagem de Quincas Borba<br />

em outra forma de expressão que não seja a escrita.<br />

Contemporâneo a Machado de Assis o poeta simbolista<br />

brasileiro Alphonsus de Guimaraens ofereceu às<br />

letras nacionais versos bastante singelos sobre o enlouquecimento<br />

de Ismália e que permanecem no universo<br />

popular até hoje.<br />

TEXTO 10<br />

ISMÁLIA<br />

Quando Ismália enlouqueceu,<br />

Pôs-se na torre a sonhar...<br />

Viu uma lua no céu,<br />

Viu outra lua no mar.<br />

No sonho em que se perdeu,<br />

Banhou-se toda em luar...<br />

Queria subir ao céu,<br />

Queria descer ao mar...<br />

E, no desvario seu,<br />

Na torre pôs-se a cantar...<br />

Estava perto do céu,<br />

Estava longe do mar...<br />

E como um anjo pendeu<br />

As asas para voar...<br />

Queria a lua do céu,<br />

Queria a lua do mar...<br />

As asas que Deus lhe deu<br />

Ruflaram de par em par...<br />

Sua alma subiu ao céu,<br />

Seu corpo desceu ao mar...<br />

GUIMARAENS, Alphonsus de.<br />

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.<br />

4. Qual atitude, logo no início do poema, determina a condição<br />

de loucura de Ismália.<br />

5. Qual é o conflito vivenciado por Ismália e que permite ao eulírico<br />

apresentá-la, logo no primeiro verso, como enlouquecida?<br />

6. Quais são as conseqüências do delírio de Ismália?<br />

7. No poema de Alphonsus de Guimaraens, o que pode ser<br />

extraído como elemento popular ligado à idéia de loucura?<br />

TEXTO 11<br />

O FALA-Só<br />

Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me<br />

sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obrigação<br />

nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas<br />

quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar<br />

(ou assumir, como é mais inteligente dizer-se agora) as boas<br />

e as más horas do espírito, porque atrás de uma vêm outras,<br />

e nada está seguro, etc., etc. desta fatalidade poderia até tirar<br />

matéria para a crônica, se mesmo agora me não tivesse<br />

passado na lembrança um homem mal enroupado que eu<br />

conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia<br />

a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia.<br />

Chamavam-lhe evidentemente o Tonho Maluco, uma espécie<br />

de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças.<br />

Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho<br />

morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.<br />

15


Das malícias do tonto não falo: eram muitas, e nem<br />

todas para pôr por escrito. Mas honestíssimas donas de sua<br />

casa rompiam aos gritos e empurravam o Tonho para fora<br />

dos quintais onde ele se introduzia, silencioso e ágil como<br />

um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje<br />

recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante<br />

todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os<br />

prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em estranhos<br />

murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora<br />

quase suspirando enquanto a água das bicas lhe ia correndo<br />

para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes, apelidos<br />

e alcunhas, o Tonho era o Fala-Só.<br />

Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho envelheceu<br />

e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coisas<br />

também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a<br />

culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas<br />

também vão ter muita pena. A ver.<br />

Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas<br />

davam o nome de fala-só, porque se achava que a poesia era<br />

uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns<br />

abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem<br />

em solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que<br />

tudo isto vinha de uma noção incuravelmente romântica do<br />

que seja poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam<br />

dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos.<br />

Num mundo assim organizado todos tinham o seu<br />

lugar: loucos, poetas e sãos de espírito, e todos estavam<br />

cientes dos seus direitos e obrigações. Ninguém se misturava.<br />

Mas decerto não era assim, porque havia sãos de<br />

espírito que passavam a loucos e poetas, e começavam a<br />

falar sozinhos, perdidos para a sociedade da gente normal.<br />

Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo<br />

outro mundo.<br />

Quero eu dizer na minha que estas crônicas são<br />

também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada<br />

comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é<br />

uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras<br />

vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio<br />

espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós<br />

uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai<br />

interromper aqui mesmo a <strong>leitura</strong>, baixa o livro, levanta<br />

os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da<br />

sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e<br />

se, pela magia do esconjuro involuntário, começa enfim a<br />

compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende<br />

e a quem ninguém ajuda.<br />

De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que começaram,<br />

os poetas, por gosto e imitação, e os outros, todos<br />

os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma palavra<br />

é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.<br />

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />

8. A crônica de José Saramago, O Fala-Só, é declaradamente<br />

inspirada por um sujeito de outros tempos conhecido por<br />

Tonho Maluco ou Fala-Só. Destaque, do texto, as principais<br />

características desse personagem.<br />

9. Além de Tonho Maluco, a quais outros tipos sociais, segundo<br />

a crônica, era atribuído o mesmo apelido de Fala-Só?<br />

Por quê?<br />

10. Em “Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e<br />

é logo outro mundo”, o que separa essa fronteira?<br />

11. Em “Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e,<br />

quando os não têm, inventam-nos” é possível abarcar as atitudes<br />

e a ciência de Simão Bacamarte? Ilustre sua resposta<br />

com passagens do conto O alienista.<br />

12. Você concorda com a afirmação do último parágrafo de O<br />

Fala-Só? Elabore um breve comentário considerando o desfecho<br />

do conto de Machado de Assis, O alienista.<br />

16


II. O ESPAÇO DO DELíRIO<br />

A loucura tem abrigo certo dentro da sociedade, mas,<br />

paradoxalmente, separada dela, ao mesmo tempo. O confinamento<br />

questionado em nossos tempos ainda é uma prática<br />

comum no tratamento de indivíduos que demonstram<br />

qualquer tipo de perturbação comportamental. A literatura<br />

registra a loucura fora e dentro de seu ambiente de tratamento.<br />

Mas, ao mesmo tempo em que “separa” a loucura<br />

da sociedade, inclui o hospício como elemento social. Os<br />

textos 12, 13 e 14 descrevem, a seguir, ambientes construídos<br />

para tal situação. Leia-os com atenção e responda às<br />

questões propostas, tendo como principal objetivo estabelecer<br />

uma reflexão sobre o tema.<br />

TEXTO 12<br />

O ALIENISTA (EXCERTO)<br />

– A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento,<br />

mas entra como tempero, como o sal das coisas,<br />

que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos coríntios:<br />

“Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade,<br />

não sou nada”. O principal nesta minha obra da<br />

Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus<br />

diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a<br />

causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério<br />

do meu coração. Creio que com isto presto um bom<br />

serviço à humanidade.<br />

– Um excelente serviço, corrigiu o boticário.<br />

– Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer;<br />

ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.<br />

– Muito maior, acrescentou o outro.<br />

E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam<br />

loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram<br />

monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito.<br />

Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação.<br />

Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar<br />

uma galeria de mais trinta e sete.<br />

(...)<br />

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda<br />

mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na<br />

Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte<br />

começou por organizar um pessoal de administração; e,<br />

aceitando esta idéia ao boticário Crispim Soares, aceitoulhe<br />

também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução<br />

de um regimento que lhes deu, aprovado pela câmara,<br />

da distribuição da comida e da roupa, e assim também da<br />

escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente<br />

cuidar do seu ofício. – A Casa Verde, disse ele ao vigário, é<br />

agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal<br />

e o governo espiritual. E o padre Lopes ria deste pio trocado<br />

– e acrescentava – com o único fim de dizer também<br />

uma chalaça: – Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo<br />

denunciar ao papa.<br />

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu<br />

uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiuos<br />

primeiramente em duas classes principais: os furiosos e<br />

os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios,<br />

alucinações diversas.<br />

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: <strong>Saraiva</strong>, 2007 (Clássicos <strong>Saraiva</strong>).<br />

13. O que, em sua opinião, Simão Bacamarte quis dizer com a<br />

expressão “A Casa Verde (...) é agora uma espécie de mundo”?<br />

TEXTO 13<br />

UM, NENHUM E CEM MIL<br />

LIVRO VIII, CAPíTULO 4. SEM CONCLUSÃO<br />

Anna Rosa acabou sendo absolvida, mas acho que a sua<br />

absolvição foi em parte devida ao riso que se alastrou na sala<br />

do tribunal quando, chamado a prestar meu depoimento,<br />

compareci vestido com o gorro, os tamancos e o camisolão<br />

azul do hospício.<br />

Nunca mais me olhei num espelho e nem me passa<br />

pela cabeça querer saber o que aconteceu com o meu rosto<br />

17


e a minha aparência. Aquela que eu apresentava diante dos<br />

outros deve ter mudado muito, e de modo bastante cômico,<br />

a julgar pelo espanto e pelas risadas com que fui acolhido.<br />

Todos no entanto continuavam me chamando de Moscarda,<br />

embora a palavra Moscarda agora tivesse para cada um<br />

deles um significado bem diferente daquele de antes, tanto<br />

que eles poderiam ter poupado aquele pobre coitado, barbudo<br />

e sorridente, em tamancos e camisolão azul, do sofrimento<br />

de ter que se voltar todas as vezes que proferiam<br />

aquele nome, como se realmente ainda lhe pertencesse.<br />

Nenhum nome resta, nenhuma lembrança, hoje, do<br />

nome de ontem – ou do nome de hoje, amanhã. Se o nome<br />

é a coisa, se um nome é, em nós, o conceito de cada coisa<br />

situada fora de nós, e se, sem nome, não há o conceito,<br />

ficando em nós a coisa como cega, indistinta e indefinida,<br />

então que cada um grave aquele nome que eu tive entre<br />

os homens, entalhando-o como um epitáfio sobre a fronte<br />

daquela imagem com que lhes apareci, deixando-a em paz<br />

e relegando-a ao esquecimento. Um nome não é mais do<br />

que isso: um epitáfio. Convém aos mortos, aos que concluíram.<br />

Eu estou vivo e sem conclusão. A vida não tem conclusão<br />

– nem consta que saiba de nomes. Esta árvore, respiro<br />

trêmulo de folhas novas. Sou esta árvore. Árvore, nuvem.<br />

Amanhã, livro ou vento: o livro que leio, o vento que bebo.<br />

Tudo fora, errante.<br />

O hospício fica no campo, num lugar ameníssimo.<br />

Saio todas as manhãs ao alvorecer, porque agora quero<br />

conservar o espírito assim, fresco como a aurora, com todas<br />

as coisas recém-descobertas, ainda impregnadas do<br />

gosto cru da noite, antes de o sol as ofuscar e ressecar sua<br />

umidade orvalhada. Aquelas nuvens de água lá em cima,<br />

pesadas de chumbo, amassadas contra os montes lívidos,<br />

que fazem parecer mais largo e mais claro aquele verde<br />

trecho de céu, por entre as manchas de sombra ainda noturna.<br />

E estes fiapos de grama, também tenros de água,<br />

impregnados do vivo frescor das margens do rio. E aquele<br />

burro lá, que passou a noite toda ao relento e agora tem<br />

os olhos apagados e relincha nesse silêncio que está tão<br />

próximo dele, mas que aos poucos parece que vai se afas-<br />

tando, quando começa a clarear ao seu redor, sem causar<br />

espanto, com essa luz que se espalha de leve sobre as planícies<br />

desertas e atônitas. E essa estradinha aqui, cortada<br />

entre colinas escuras e muros gretados, que parece parada<br />

na ruína de seus sulcos, sem levar a lugar nenhum. O ar é<br />

novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de<br />

vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa<br />

se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me<br />

manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que<br />

o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por<br />

dentro o vazio de suas vãs construções.<br />

A cidade está longe. Às vezes me chega na calma da tarde<br />

o som dos sinos. Mas agora eu ouço esses sinos não mais<br />

por dentro, mas de fora, como se eles tocassem por si, talvez<br />

vibrando de alegria em sua cavidade sonora, suspensos do<br />

belo céu azul, cheios do calor do sol misturado ao som das<br />

andorinhas ou do vento de nuvens pesadas e altas, pairando<br />

sobre os campanários aéreos. Pensar na morte, rezar. Há<br />

ainda os que necessitam disso, e os sinos tocam também por<br />

eles. Eu não preciso mais disso, porque morro a cada segundo<br />

e renasço novo e sem lembranças: vivo e inteiro, não mais<br />

em mim, mas em cada coisa externa.<br />

PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Tradução de Maurício Santana<br />

Dias. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.<br />

14. Luigi Pirandello, autor italiano que viveu na virada dos<br />

séculos XIX-XX, em sua obra Um, nenhum e cem mil desenvolve<br />

o olhar de um cidadão da elite que, aos poucos, percebe<br />

sua condição social neutra e procura analisar os caminhos<br />

da natureza humana. Logo será considerado um louco. No<br />

trecho destacado lemos já o desfecho da obra e a descrição<br />

do hospício em que está recluso o narrador.<br />

a) Que impressão tem o narrador do local em que se encontra?<br />

b) Como o narrador descreve seu auto-tratamento?<br />

18


TEXTO 14<br />

O CEMITéRIO DOS VIVOS (1 a PARTE)<br />

O PAVILHÃO E A PINEL<br />

4 DE JANEIRO DE 1920<br />

Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências<br />

dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de<br />

observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra<br />

para aqui pelas mãos da polícia.<br />

Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra,<br />

só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos<br />

dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário<br />

que me é hoje indispensável. Desta vez, não. O enfermeiro<br />

antigo era humano e bom; o atual é um português<br />

(o outro o era) arrogante, com uma fisionomia bragantina<br />

e presumida. Deram-me uma caneca de mate e, logo em<br />

seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de<br />

capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a<br />

nossa pobreza e miséria.<br />

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que<br />

me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De<br />

mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido<br />

ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que<br />

as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam,<br />

de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.<br />

Além dessa primeira vez que estive no hospício, fui atingido<br />

por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para a Santa Casa<br />

de lá, em 1916; em 1917, recolheram-me ao Hospital Central<br />

do Exército, pela mesma razão; agora, volto ao hospício. Estou<br />

seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio<br />

dele para o São João Batista, que é próximo. Estou incomodando<br />

muito os outros, inclusive os meus parentes. Não é<br />

justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum<br />

apareceu, senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho.<br />

Este senhor Carlos Ventura é um velho homem, tem<br />

uma venda na Rua Piauí, em Todos os Santos, fornece para<br />

a nossa casa, e foi com auxílio dele que me conseguiram<br />

laçar e trazer-me até ao hospício. Acompanharam-me o Alípio<br />

e o Jorge.<br />

Passei a noite de 25 no pavilhão, dormindo muito bem,<br />

pois a de 24 tinha passado em claro, errando pelos subúrbios,<br />

em pleno delírio.<br />

Amanheci, tomei café e pão e fui à presença de um médico,<br />

que me disseram chamar-se Adauto. Tratou-me ele com<br />

indiferença, fez-me perguntas e deu a entender que, por ele,<br />

me punha na rua. Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus!<br />

Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado<br />

por um bom português, que tinha um ar rude, mas<br />

doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me<br />

conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros.<br />

Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda,<br />

lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de<br />

ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas,<br />

e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor<br />

de Dostoiévski, na Casa dos mortos. Quando baldeei, chorei;<br />

mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior<br />

deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.<br />

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.<br />

Desta vez, não me fizeram baldear a varanda, nem outro<br />

serviço. Já tinha pago o tributo... Fui para o pátio, após o doutor<br />

Adauto; mas, bem depressa, fui chamado à varanda de novo.<br />

Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo completo<br />

do espécimen mais humilde da nossa sociedade. Vestia<br />

umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa<br />

cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e<br />

calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no<br />

porão da varanda.<br />

Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro<br />

anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me<br />

parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não<br />

simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros<br />

imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente<br />

toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco<br />

capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco<br />

interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério<br />

– que mistério! – que há na especialidade que professa. Lê<br />

os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a<br />

natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele.<br />

19


Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações.<br />

Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão,<br />

que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício.<br />

Creio que ele não gostou.<br />

Acompanhava-o uma espécie de interno, que tinha<br />

uma cara bovina, apesar do pince-nez. Tanto lá, como aqui,<br />

no hospício, os internos evitam conversar com os doentes:<br />

morgue ou regulamento? No tempo de meu pai não era assim<br />

e, desde que eles descobrissem um doente em nossa<br />

casa, se aproximavam e conversavam. Decididamente, a mocidade<br />

acadêmica, de que fiz parte, cada vez mais fica mais<br />

presunçosa e oca. Julguei, apesar de tudo, que o Roxo me<br />

mandasse embora, tanto assim que, após o almoçojantar,<br />

quando o tal bragança enfermeiro me chamou, pensei que<br />

fosse para ir-me embora. Não foi.<br />

Lembro-me agora de um fato; o guarda-civil, que me<br />

esperou na porta do hospício, pois não veio comigo nenhum<br />

polícia, dirigindo-se a ele, tratou-o mais de uma vez de doutor;<br />

ele, porém, nunca protestou.<br />

Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores<br />

e pátios até ao hospício propriamente. Aí é que percebi que<br />

ficava e onde, na seção, na de indigentes, aquela em que a<br />

imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é<br />

mais formidável.<br />

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é<br />

de uma pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos<br />

são da proveniência mais diversa, originando-se em geral<br />

das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes<br />

italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os<br />

negros roceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das<br />

janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida;<br />

são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores<br />

braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que a<br />

falta de recursos e proteção atira naquela geena social.<br />

Vi lá o D... L..., um poeta alegre, companheiro do Tapajós,<br />

que conheci assim, assim e depois montou um colégio<br />

em Vila Isabel. Parece-me que ele prosperou, mas,<br />

vindo a equiparação e não tendo ele recursos para equipará-lo<br />

ao ginásio (depósito de cinqüenta contos e quota de<br />

fiscalização), foi perdendo a freqüência, ele se desgostou,<br />

endividou-se e enlouqueceu. Cumprimentou-me, mas não<br />

quis falar comigo.<br />

Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser<br />

esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a verdade,<br />

e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente,<br />

ou, como dizendo: “você fica mesmo aí” ou<br />

querendo exprimir que os meus méritos literários nada valiam,<br />

naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse<br />

uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente, não<br />

me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele,<br />

eu talvez pensasse da mesma forma.<br />

O enfermeiro-mor ou inspetor era o Santana. Um mulato<br />

forte, simpático, olhos firmes, um pouco desconfiados,<br />

rosto oval, que foi muito bom para mim. Ele fora empregado<br />

na ilha, quando meu pai lá era almoxarife ou administrador,<br />

e se lembrava dele com amizade. Deu-me uma cama, numa<br />

seção mais razoável, arranjou que eu comesse com os pensionistas<br />

de quarta classe e, no dia seguinte, fez-me dormir<br />

num quarto, com um estudante de medicina, Queirós, que<br />

um ataque tornara hemiplégico e meio aluado.<br />

Tratou-me bem esse moço, conquanto não deixasse de<br />

ter, como eu já tive, essa presunção infantil do nosso estudante,<br />

que se julga, só por sê-lo, diferente dos outros. Dei-lhe<br />

a entender que já o havia sido; ele pareceu não acreditar.<br />

Dormi a noite de 26 no dormitório geral e a de 27 no<br />

quarto do estudante. Vinte e oito foi domingo, recebi visitas<br />

do meu irmão e do senhor Ventura, ambos me trouxeram<br />

cigarros, e o senhor Ventura, passas e figos. Ainda desta vez,<br />

dormi no quarto, com o estudante.<br />

Na Seção Pinel, que é a de que estou falando, reatei<br />

conhecimento com um rapaz português, que me conheceu<br />

quando era estudante e comia na pensão do Ferraz, isto deve<br />

ter sido há vinte anos ou mais. Durante os dias em que lá<br />

estive, ele, o José Pinto, me foi de um préstimo inesquecível.<br />

Relembrava ao porteiro a ordem que eu tinha do Santana<br />

de ir tomar refeições no refeitório especial, arranjava-me<br />

jornais (Santana também), cigarros (contarei essa tragédia<br />

manicomial em separado) e, na tarde de domingo, levou-me<br />

20


a passear pela chácara do hospício. É muito grande e, apesar<br />

de estiolada e maltratada, a sua arborização devia ter sido<br />

maravilhosa. Os ricos de hoje não gostam de árvores...<br />

O hospício é bem construído e, pelo tempo em que<br />

o edificaram, com bem acentuados cuidados higiênicos.<br />

As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a<br />

sua capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul<br />

dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua<br />

imarcescível beleza, quando a olhamos levemente enrugada<br />

pelo terral, através das grades do manicômio, quando<br />

amanhecemos lembrando que não sabemos sonhar mais...<br />

Lá entra por ela adentro uma falua, com velas enfunadas<br />

e sem violentar; e na rua embaixo passam moças em traje<br />

de banho, com as suas bacias a desenharem-se nítidas no<br />

calção, até agora inúteis.<br />

Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui<br />

à presença do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com<br />

grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fezme<br />

sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar.<br />

Disse-lhe que na Seção Calmeil. Deu ordens ao Santana e,<br />

em breve, lá estava eu.<br />

Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de consignar<br />

a singular mania que têm os doidos, principalmente<br />

os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel, dez por cento<br />

assim viviam, num pátio que era uma bolgia do inferno.<br />

Por que será?<br />

Bolgia: palavra italiana que designa confusão, bagunça.<br />

BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. São Paulo: Planeta, 2004.<br />

15. Lima Barreto, importante escritor brasileiro do Pré-Modernismo,<br />

descreve, no texto 14 (trecho do romance O cemitério<br />

dos vivos), a própria experiência como interno do hospício.<br />

a) Que impressão o narrador-autor apresenta sobre as dependências<br />

do hospício em que se encontra?<br />

b) O autor rebela-se contra sua situação? Qual o motivo que<br />

ele atribui para sua internação?<br />

c) Em sua opinião, o texto que lemos em O cemitério dos vivos<br />

é de quem necessita estar internado em um hospício?<br />

III. OS LOUCOS SÃO OS OUTROS<br />

E quanto à “história dos vencidos”?<br />

Após exercitarmos os principais temas tratados em O<br />

alienista, apresentamos duas propostas de trabalho em grupo.<br />

Leia-as com atenção e procure desenvolver um material<br />

original para estudar Machado de Assis.<br />

16. Que tal agora exercitar a imaginação e produzir novos contos<br />

a partir do olhar dos internados por Bacamarte?<br />

A classe, dividida em duplas ou trios, poderá escrever a partir<br />

do ponto de vista dos “doentes” de Bacamarte, fazendo de cada<br />

um deles um narrador em 1 a pessoa. Cada dupla assumirá um<br />

dos internos da “casa de orates” de Itaguaí e escreverá um conto/capítulo,<br />

tendo o nome do personagem como título. Ao final,<br />

teremos um pequeno romance escrito por toda a classe.<br />

Uma nova <strong>leitura</strong> do texto 14, escrito por Lima Barreto, poderá<br />

ser muito útil.<br />

17. Quem não tem uma mania?<br />

Na primeira etapa cada colega da classe ficcionalizará a própria<br />

história de vida ao se descrever em um texto narrativo.<br />

Cada autor apresentará um caso nada convencional, ou ao<br />

menos um pouco estranho, que tenha vivido. Ao fim, cada<br />

redação poderá ser um capítulo para o livro coletivo intitulado<br />

“Novos pacientes para o Dr. Bacamarte”.<br />

21

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!